INTERSECCIONALIDADE COMO FERRAMENTA TEÓRICO-METODOLÓGICA: APONTAMENTOS PARA A PESQUISA DE RECEPÇÃO E CONSUMO MIDIÁTICO
Intersectionality as a theoretical-methodological tool: Notes to reception and media consumption research
Interseccionalidad como herramienta teórico-metodológica: apuntes para la investigación de la recepción y el consumo mediático
INTERSECCIONALIDADE COMO FERRAMENTA TEÓRICO-METODOLÓGICA: APONTAMENTOS PARA A PESQUISA DE RECEPÇÃO E CONSUMO MIDIÁTICO
Signos do Consumo, vol. 12, núm. 2, pp. 3-13, 2020
Universidade de São Paulo
Recepção: 29 Agosto 2020
Aprovação: 15 Novembro 2020
Resumo: O artigo discute as contribuições teórico-metodológicas da interseccionalidade para os estudos de consumo midiático e de recepção. Discorre sobre a apropriação de teorias, conceitos e categorias. Apresenta discussões referentes à interseccionalidade, evidenciando abordagens conceituais e metódicas. Argumenta-se que, a partir do paradigma construcionista e vinculado à abordagem sociocultural, uma interpretação interseccional é necessária para responder às demandas que vêm tensionando os estudos de audiências, introduzindo uma perspectiva complexa no trato da produção de sentidos e conformação de identidades.
Palavras-chave: Estudos de recepção, Consumo midiático, Interseccionalidade.
Abstract:
						                           This paper debates the theoretical-methodological contributions of intersectionality to media consumption and reception studies. It discusses the appropriation of theories, concepts and categories. It presents the main discussions regarding intersectionality, highlighting conceptual and methodical approaches. The constructionist paradigm and the sociocultural approach are adopted to argue that an intersectional interpretation is necessary to answer the demands tensioning the audience studies, introducing a complex perspective on the production of meanings and the building of identities. The paper debates intersetcionality’s theoretical-methodological contributions to media consumption and reception studies. It discusses the appropriation of theories, concepts and categories. It presents the main discussions regarding intersectionality, highlighting conceptual and methodical approaches. It is argued, from the constructionist paradigm and bound to the sociocultural approach, an intersectional interpretation is necessary to answer the demands that are tensioning the audience studies, introducing a complex perspective on the meaning productions and the building of identities.
Keywords: Reception studies, Media consumption, Intersectionality.
Resumen: El artículo analiza los aportes teóricos y metodológicos de la interseccionalidad para los estudios de consumo de los medios y de recepción. Aborda la apropiación de teorías, conceptos y categorías. Presenta discusiones sobre la interseccionalidad, poniendo en evidencia los abordajes conceptuales y metódicos. Se argumenta que, a partir del paradigma construccionista y en conjunto a un enfoque sociocultural, es necesario una interpretación interseccional para contestar a las demandas que están tensionando los estudios de la audiencia, introduciendo una perspectiva compleja en el trato de la producción de significados y la formación de identidades.El artículo analiza los aportes teóricos y metodológicos de la interseccionalidad para los estudios de consumo de los medios y de recepción. Aborda sobre la apropiación de teorías, conceptos y categorías. Presenta discusiones sobre la interseccionalidad, poniendo en evidencia los abordajes conceptuales y metódicos. Se argumenta que, a partir del paradigma construccionista y en conjunto a un enfoque sociocultural, es necesaria una interpretación interseccional para contestar a las demandas que están tensionando los estudios de la audiencia, introduciendo una perspectiva compleja en el trato de la producción de significados y la formación de identidades.
Palabras clave: Estudios de recepción, Consumo mediático, Interseccionalidad.
INTRODUÇÃO
Neste artigo realizamos uma incursão no conceito de interseccionalidade, explorando a sua potência enquanto ferramenta teórico-metodológica para os estudos de audiência. O objetivo deste texto está inserido no contexto dos estudos de consumo e recepção midiática, em que localizamos a inobservância de uma abordagem interseccional no trato das identidades (JACKS et al., 2008; 2014; 2018). Na última análise da produção de teses e dissertações da área da Comunicação entre os anos de 2010 e 2015, identificamos 191 pesquisas sobre consumo e/ou recepção midiática, sendo que 54 adotam algum marcador social como categoria de análise. Destas, 15 pautaram reflexões sobre gênero (TOMAZETTI; CORUJA, 2017), enquanto 39 apresentaram a categoria classe como aporte analítico (JACKS;, SIFUENTES; LIBARDI, 2017). Ambas são tratadas de modo isolado, ou seja, sem articulação entre elas ou com outros marcadores, como raça e sexualidade. Ainda, são tomadas majoritariamente enquanto dados sociodemográficos, sem uma problematização à luz de perspectivas históricas, sociológicas ou antropológicas.
No campo da comunicação, a centralidade da categoria de classe social teve o seu auge nos anos 1980, em um contexto acadêmico e político influenciado por uma abordagem gramsciana interessada nas relações entre hegemonia e cultura popular (LOPES, 1990; GROHMANN, 2016; JACKS;, SIFUENTES,; LIBARDI, 2017). No momento histórico vigente, observamos um deslocamento da centralidade da classe e a insurgência do gênero enquanto categoria de análise. Influenciado pelos movimentos sociais – sobretudo o feminismo – e por debates identitários que invadem o espaço público brasileiro pós junho de 2013, o campo da comunicação vem se adequando a esta reivindicação que parte do mundo social, fornecendo uma outra centralidade à categoria[1].
Este artigo, portanto, se propõe a explorar possibilidades de um uso complexo dos marcadores sociais enquanto categorias, reivindicação política que nasce do feminismo negro. A interseccionalidade entra em cena de modo a dar conta desse enfrentamento. A partir do seu conceito, propomos uma apropriação do termo enquanto ferramenta teórico-metodológica. Diante deste recorte, esboçamos orientações procedimentais de modo que, no nível da pesquisa empírica, seja possível se abastecer da interseccionalidade não apenas como um termo da moda, mas enquanto uma orientação metodológica que não encerre a descrição dos fenômenos investigados em uma categoria solitária como gênero, raça ou classe.
A seguir discutimos alguns conceitos intrínsecos ao fazer científico que podem servir como aliado nessa empreitada. Adiante, argumentamos a favor da perspectiva da interseccionalidade como ferramenta teórico-metodológica pertinente para os estudos de audiência interessados em examinar práticas de produção de identidade em um contexto de efervescência dos debates sobre diversidade.
CONCEITO, DEFINIÇÃO, CATEGORIA: FERRAMENTAS DE TRABALHO
Tomando como ponto de partida a discussão encetada por Maria Immacolata Lopes (1990) em seu texto referência sobre a formulação de um modelo para pesquisa em comunicação, não há como contornar a questão da relação das ciências sociais com a emergência de novos objetos, e, por conseguinte, novas teorias e conceitos. Os fenômenos nessa área são dinâmicos e mutáveis, porque históricos e culturais, o que impacta e é impactado pela esfera da comunicação.
A interdependência entre desenvolvimento teórico e transformação social é ponto pacífico para contextualizar os movimentos de ambas esferas e aponta para os compromissos a serem assumidos pelos pesquisadores em suas práticas, cientes dessa inter-relação. Também é necessário pautar o condicionamento social na produção do conhecimento científico, que traz vários elementos estruturantes. Se há bem pouco tempo a classe social dos cientistas, por exemplo, era o fator mais relevante nesse condicionamento, de uns tempos para cá, gênero, raça e sexualidade, como resultante de pressões sociais, vem dividir o protagonismo nessa discussão, em perspectiva interseccional. E isso em duas vias, tanto como objeto de estudo, quanto como tributário dos interesses e pertencimentos dos investigadores.
Nessa direção, provavelmente ainda sem levar em consideração as questões de gênero, Octávio Ianni (apud LOPES, 1990, p. 32) já dizia na década de 1970 que “as representações que grupos e classes sociais constroem sobre a sociedade em que se encontram inseridos afetam, em grau variável, as possibilidades e as tendências do pensamento”. Por outro lado, aspecto a considerar também é o quanto as escolhas teóricas permitem ou não a visibilidade e emergência de determinadas problemáticas ou mesmo a possibilidade de sua resolução. No sentido contrário, determinadas questões exigem tratamento teórico que alcance o teor resolutivo necessário, decisão nem sempre tomada por pesquisadores alinhados a certos paradigmas, comprometendo a qualidade do conhecimento gerado.
O papel da teoria no processo de pesquisa, segundo Jayme Paviani, é ao mesmo tempo permitir elaborar e sistematizar o conhecimento já produzido e apoiar a busca por novos, sem com isso tornar-se absoluta, uma vez que sua relação com os fatos sociais continua aberta porque pressionada pelas mudanças científicas e tecnológicas. Segundo ele, a teoria “pode auxiliar nos atos de descrever e/ou explicar os fatos, os eventos, os fenômenos do mundo ou daquilo que costumamos chamar de realidade” (PAVIANI, 2009, p. 46). O autor acrescenta que ela tem a função de aplicabilidade, ou seja, sem ela não há como descrever, explicar ou interpretar o objeto de estudo. A teoria também fornece a possibilidade de formulação de hipóteses, que implicam em conceitos e categorias, ferramentas fundamentais para desenvolver uma pesquisa.
Tratando sobre o conceito, André Comte-Sponville admite que o jogo de palavras “noção de conceito” ou “conceito de noção” mostra o quão fácil é confundi-los, pois têm significados muito próximos. Entretanto, não são a mesma coisa e devem ser diferenciados para não comprometer a pesquisa: “noção costuma ser mais vago e mais vasto, e conceito mais preciso ou mais estrito” (2003, p. 118). Ele completa dizendo que “O conceito, no sentido em que o entendo, tem uma compreensão mais rica – logo uma extensão menor – do que noção” (p. 118) e que “ A noção já é dada; o conceito produzido” (p. 118); “A noção é o resultado de certa experiência, o de certa educação (a prólepsis dos gregos); o conceito, de certo trabalho” e ainda, que “uma noção é um fato; um conceito uma obra” (idem). Resume dizendo que “O conceito – seja ele científico ou filosófico – é uma ideia abstrata, definida e construída com precisão: é o resultado de uma prática e o elemento de uma teoria” (p. 118).
Na mesma direção, Thiry-Cherques diz que conceitos “são generalizações que permitem fixar o conhecimento e explicar a nós mesmos e aos outros o que descobrimos e o que propomos” (2012, p. 11) como resultado de pesquisa, portanto, segundo ele, devem ter significado preciso. Isso porque na área das humanas e sociais eles são as ferramentas de trabalho, e porque não há um léxico próprio como nas matemáticas, na lógica, nas ciências exatas de modo geral. Para ilustrar sua afirmação o autor diz que “os conceitos que utilizamos nas ciências humanas e sociais têm origem profana” (2012, p. 15), ou seja, na linguagem comum.
Tanto quanto Thiry-Cherques, Paviani considera que “o conceito resulta de uma concepção mental, às vezes, pode ser expresso numa simples noção (geral e vaga) ou objetivando determinada modalidade de definição.” (Paviani, 2009, p. 50). Para ele, entretanto, a definição não delimita absolutamente um conceito, por isso abundam as definições de conceitos como liberdade, educação, cultura, etc. Nesse sentido, Thiry-Cherques (2012, p. 291) explica que existem dois marcos essenciais – conceituação e definição – “no processo que vai da notícia imediata de um conteúdo (noção), passa pela unificação do significado (conceito) e alcança a expressão comunicacional (termo)”.
A respeito da definição, Comte-Sponville (2003, p. 141) diz que serve para “estabelecer a compreensão de um conceito (muitas vezes, indicando seu gênero próximo e suas diferenças específicas) e possibilitar, assim, seu entendimento”. E Thiry-Cherques (2012, p. 291), no mesmo sentido, diz que “são explanações sobre os conceitos. Os conceitos não dependem das definições, mas as definições dependem dos conceitos: as definições são sobre os conceitos”. Ele complementa dizendo ainda que “não é possível investigar cientificamente sem conceituar, e os conceitos para serem úteis têm de ser definidos” (2012, p. 292). A definição na pesquisa “tem caráter de um postulado que indica os limites ou os fins de um termo em relação aos demais” (p. 292).
Por fim, categorias – de maneira simplificada pois a discussão tem complexidade filosófica[2] – são “os principais modos de emprego dos conceitos numa linguagem natural ou especializada” (MORFAUX; LEFRANC, 2005, p. 80). Segundo Paviani, é “um atributo que serve para indicar classe, qualidade e ordem. Serve para classificar pessoas, gêneros, tempo, modo etc.” (2009, p. 51). As categorias, que também podem ser chamadas de conceitos operacionais, eliminam o sentido transitivo do que está sendo analisado, tornam universal e abstrato, por isso são provisórias. Para Thiry-Cherques (2012) categorizar é dizer a que classe o conceito pertence, “que tipo de coisa estou pensando quando penso isto?” (p. 279). Ou seja, para ele “A categorização não é um procedimento natural, instintivo, mas um esforço intelectivo de compreensão” (p. 279), que acaba em uma classificação. “Para que o conceito se torne claro para os outros é preciso classificá-lo, isto é, dizer a que classe pertence, estabelecendo se é uma quantidade, uma qualidade ou uma relação (p. 279), ou seja, categorizá-lo. O processo analítico da pesquisa precisa definir conceitos e estabelecer categorias, que não podem ser confundidos, pois têm dimensões e funções diferentes.
INTERSECCIONALIDADE: INCURSÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS
É consenso, na literatura sobre o tema interseccionalidade, que sua proposta já era praticada antes mesmo de ser cunhada com o devido nome pela advogada Kimberlé Crenshaw (1991). De modo resumido, de um ponto de vista político, o debate interseccional da produção de identidades e formação de estruturas sociais não pode escapar da articulação entre diferentes categorias sociais definidas nos termos de raça, gênero, classe, entre outras (CRENSHAW, 1991; COLLINS, 2000; BRAH, 2006; PHOENIX, 2006, etc.). Conforme evidenciado por Baukje Prins (2006), uma perspectiva complexa das identidades já vinha sendo pautada, inauguralmente, pelo black feminism estadunidense dos anos 1980 através de teóricas militantes como Angela Davis, Audre Lorde e Patricia Hill Collins. No continente europeu, a compreensão da complexidade das identidades, descentradas das noções de classe e de nação, ganha fôlego principalmente no território britânico via os Estudos Culturais nas figuras de Stuart Hall, Beverly Skeggs, Paul Gilroy, entre outros. Essa divisão entre as abordagens estadunidense e inglesa da interseccionalidade marca um contraste epistemológico entre duas correntes que, por sua vez, implica em diferentes métodos.
A abordagem estadunidense, formulada no bojo do movimento político do feminismo negro, toma a noção de interseccionalidade a partir da concepção de uma matriz de opressões (CRENSHAW, 1991; COLLINS, 2000). A preocupação maior é observar como a vida das mulheres negras é condicionada por estruturas violentas[3] de opressão de gênero, raça e classe – o que alguns pesquisadores chamam de “mantra dos três marcadores[4]“ (HENNING, 2015). Essa linha de abordagem é caracterizada por Prins (2006) como abordagem sistêmica. A autora explica que estas categorias sociais “[…] são conceituadas como sistemas de dominação, opressão e marginalização que determinam a estrutura das identidades” (p. 279, tradução nossa[5]). A autora compreende que, via essa abordagem, as identidades tornam-se mero reflexo performativo das estruturas, apagando, em grande medida, a capacidade de agência dos sujeitos no que diz respeito à produção de suas identidades. O poder, portanto, é abordado enquanto recurso que uns têm, e outros não; o que entra em conflito com a segunda linha: a abordagem construcionista.
Esta perspectiva ganha forte reverberação no continente europeu, sobretudo na Inglaterra, sendo influenciada por pensadores como Michel Foucault, Antonio Gramsci e da estadunidense Judith Butler. Uma perspectiva construcionista da interseccionalidade desloca a noção de “subordinação”, tradicionalmente vinculada à linha sistêmica da matriz de opressões, privilegiando os conceitos de articulação[6], agência[7] e performatividade[8]. Para Prins (2006), na abordagem construcionista, “marcadores identitários como gênero, classe ou etnia não são formas de categorização limitadoras e meramente exclusivas, mas, simultaneamente, fornecem narrativas e possibilitam recursos” (p. 280, tradução nossa[9]). Portanto, diferentemente da abordagem sistêmica, o poder é compreendido via uma perspectiva foucaultiana, sendo produzido em relação, e não por uma entidade centralizadora de todas as suas funções e destinos. Para a abordagem construcionista, os marcadores sociais não apenas oprimem, mas também produzem sujeitos. Na leitura de Piscitelli (2008), a abordagem construcionista dá ênfase às práticas sociais tecidas no cotidiano em conflito/articulação/continuidade com elementos de gênero, classe, raça, etc. Na mesma esteira, conforme lembrado por Prins (2006), essa abordagem permite pensar que “a identidade não pode ser compreendida por uma lista de características que nos informam o ‘o quê’ de uma pessoa. Identidade diz respeito a ‘quem’ uma pessoa é […]” (p. 281, tradução nossa[10]).
O debate sobre interseccionalidade, originalmente concebido pelo feminismo negro e incorporado academicamente via a disciplina dos women’s studies[11], vem se espraiando em outros campos do saber. Este é um movimento esperado tendo em vista que a proposta conceitual da interseccionalidade dá vazão a uma ampla gama de problematizações contemporâneas de ordens epistemológicas, teóricas, metodológicas e empíricas mobilizadas por perspectivas feministas[12] da sociologia, antropologia[13], história, comunicação[14] etc. Entretanto, conforme apontado por Ann Phoenix (2006), é possível existir contradições nas análises interseccionais em diferentes disciplinas acadêmicas. A partir desse conjunto de diferentes maneiras de articular a teoria, a autora recorda que “uma crítica recorrente em relação à interseccionalidade é que, enquanto ela tem intenção de ser uma metodologia e também uma teoria, ela não se associa a nenhum método” (p. 26, tradução nossa[15]). Essa crítica, conforme apontado pela própria autora, começa a ficar datada se levarmos em conta que os estudos interseccionais já possuem um percorrido, sendo possível observar desencadeamentos metodológicos em diversos trabalhos relevantes, de modo que já podemos esboçar um panorama metodológico da questão. Portanto, as abordagens apresentadas inicialmente via Prins (2006) e comentadas por Piscitelli (2008) fornecem subsídios teóricos para enfrentar a problemática da interseccionalidade nos estudos sobre produção de identidades em diferentes contextos históricos, situacionais e temporais. Entretanto, não necessariamente fornecem ferramentas operacionais para pesquisas que se propõem abordar a interseccionalidade. A pesquisadora Leslie McCall (2005) realiza o esforço de desconstruir diversas pesquisas sobre interseccionalidade. Nesse exercício, a autora identifica três abordagens metodológicas[16]: anticategoriais, intracategoriais e intercategoriais. Apresentamos as duas primeiras, nos detendo principalmente na inter para, em seguida, articularmos com as abordagens teóricas já observadas.
As pesquisas anticategoriais são identificadas como aquelas que visam desconstruir (ou rejeitar) as categorias de análise baseadas em gênero, raça, classe, sexualidade, etc. de determinado grupo específico. Leva em conta que dada a complexidade da vida social, é impossível empreender análises determinadas em categorias fixas. Essa perspectiva é tributária do pensamento pós-moderno e pós-estruturalista que, interessado em questionar a validade da ciência moderna, embaraça a própria teoria feminista desenvolvida até então[17]. As análises intracategoriais estão localizadas entre as duas outras abordagens. Embora ela questione a produção de categorias, essa não é a preocupação maior das pesquisas filiadas a esta perspectiva. Tais estudos reconhecem que categorias existem e que têm papel na manutenção das relações sociais, portanto, orientam-se de modo a “focar em grupos sociais particulares em pontos de intersecção negligenciados” (McCALL, 2005, p. 1774, tradução nossa[18]). Estudos de caso circulam na modalidade intracategorial, situação em que um “grupo interseccional” é eleito para análise, sem fins comparativos com outros. Tanto a categoria anticategorial quanto a intracategorial têm em comum o fato de se dedicarem a grupos específicos e fechados em si mesmos (single-groups).
Por sua vez, a intercategorial, também chamada de apenas categorial, é compreendida como multi-grupal (multigroup). Nessa perspectiva, privilegiam-se vários grupos sociais para fins de descrições comparativas, analisando “[…] a intersecção de toda a gama de dimensões de múltiplas categorias para então examinar vantagens e desvantagens explícita e simultaneamente” (McCALL, 2005, p. 1786, tradução nossa[19]). Por exemplo: na categoria gênero, observam as dimensões do homem cis, da mulher cis e das pessoas trans e não-binárias; na categoria classe, podem levar em conta as dimensões das classes populares, médias, altas; e assim por diante. A socióloga orienta que uma metodologia categorial
começa com a observação de que existem relações de desigualdade já constituídas entre grupos sociais, imperfeitas e mutantes do jeito que são, levando essas relações ao centro da análise. A principal tarefa da abordagem categorial é explicar essas relações e, para fazer isso, é necessário o uso provisório de categorias (McCALL, 2005, p. 1784-5, tradução nossa[20], grifo nosso).
Em termos de metodológicos, esta última indicação é valiosa. Para a abordagem categorial, é imprescindível se debruçar em alguns pontos de partida em termos de categorias a serem consideradas para a análise da questão, usando-as estrategicamente a fim de ir observando as demais nuances que orbitam os marcadores definidos a priori. Isso não significa “lançar a sorte” em duas ou três categorias definidas aleatoriamente. Ann Phoenix (2005), que em seu artigo menciona as contribuições de Leslie McCall (2005), adverte sobre os tipos de comprometimentos por parte de quem está disposto a estudar com lentes interseccionais: “[…] aqueles/as analisando intersecções devem tomar decisões estratégicas e criativas sobre quais são as intersecções mais relevantes para grupos ou pessoas específicas em um momento particular e sobre determinado assunto” (PHOENIX, 2005, p. 26, tradução nossa[21]). O que não impede, também, que o(a) pesquisador (a) verifique a posteriori, junto ao grupo estudado, quais categorias de análise interseccional fazem mais sentido para a situação que está sendo examinada. Em sintonia com essa abordagem, o antropólogo Carlos Henning sugere que
[…] não necessariamente é preciso desenvolver a análise de uma infinidade de marcadores em toda e qualquer análise social, mas atentar para o entrelaçamento daqueles que se mostram relevantes contextualmente, ou seja, partindo de análises atentas às diferenças que fazem diferença em termos específicos, históricos, localizados e, obviamente, políticos. (HENNING, p. 111, grifo nosso).
A partir das considerações acerca das abordagens teóricas – sistêmica e construcionista –, e das abordagens metodológicas – anticategorial, intracategorial e intercategorial, ensaiamos a seguir uma articulação com os estudos de recepção e consumo midiático, propondo uma exploração teórico-metodológica para a apropriação da interseccionalidade.
INTERSECCIONALIDADE E ESTUDOS DE AUDIÊNCIA: ASPECTOS CONCLUSIVOS
Com base nas questões discutidas, argumentamos que o contexto atual dos estudos sobre consumo e recepção midiática demanda ferramentas teóricas capazes de observar a complexidade do nosso tempo. Nesse processo, sabemos que a mídia atua como mediação estruturante da visibilidade destes novos arranjos e enquanto arsenal de referências simbólicas para a produção de identidades. As demandas sociais marcadas por um trato radicalmente anti-essencialista e plural dos sujeitos reivindica que as pesquisas com audiências possam acolher estas exigências. Para isso, deslocamentos teóricos são necessários, o que não é novidade para esse campo de estudos em que a interdisciplinaridade é constitutiva. Os debates sobre interseccionalidade acomodam esse território teórico-metodológico capaz de fornecer ferramentas pertinentes para esse processo.
Na dimensão epistemológica, o paradigma construcionista traduz o modo com que essas duas esferas tratam a realidade. O construcionismo parte da premissa de que as concepções do mundo social são produzidas pela atividade humana. Isso sugere que a noção objetiva de algo é permeado por concepções elaboradas no social (PIRES, 2008). Tanto a abordagem sistêmica quanto a construcionista da interseccionalidade concordam com esta concepção. Entretanto, enquanto a primeira considera que as identidades são produzidas através de sistemas rígidos de racismo, classismo, sexismo etc., a abordagem construcionista rejeita que as identidades sejam distorcidas por organizações ideológicas. A partir dos conceitos já mencionados, sobretudo os de agência e de articulação, é possível estabelecer um nexo entre a abordagem construcionista da interseccionalidade e os estudos de recepção e de consumo de abordagem sociocultural.
No nível teórico, essa abordagem contempla aspectos caros à interseccionalidade e aos estudos de consumo midiático e recepção interessados nas análises das práticas e das produções de sentido. Suas teorias e conceitos buscam interpretar o papel de diferentes mediações, revelando o caráter simbólico e complexo das redes de significados e como se expressam nas experiências dos sujeitos. O enfoque na cultura e no terreno do vivido, portanto, é o ponto crucial para as análises, sem desconsiderar a organização das estruturas que tanto informam, quanto são informadas pelas práticas no cotidiano (JACKS et al., 2008).
Ao se considerar as premissas do paradigma construcionista, da abordagem sociocultural e a centralidade de conceitos em comum entre ambas as esferas tratadas, a estratégia qualitativa torna-se a possibilidade mais plausível para amparar, em termos metódicos e técnicos, os estudos realizados. Sendo o método qualitativo interessado nas questões não-quantificáveis e priorizando o nível da subjetividade, técnicas discursivas como entrevista, história oral, história de família, entre outras, são as mais indicadas. Investigar consumo midiático e recepção, atentando para as relações destas práticas junto à conformação das identidades em perspectiva interseccional, requer estratégias metodológicas que possibilitem que os interlocutores produzam narrativas sobre suas experiências. Prins, resgatando uma citação de Hannah Arendt, enfatiza: “[…] nossas histórias são multifacetadas e contraditórias; os scripts de gênero, raça, etnicidade e classes têm um papel constitutivo, mas nunca da mesma forma, nunca como meros fatores determinantes” (2006, p. 281, tradução nossa[22]). Desse modo, através da escuta das experiências, torna-se possível observar as múltiplas formas de articulação entre categorias de gênero, sexualidade, raça, classe, geração, etc. Observar essas construções nas práticas socioculturais – como no consumo midiático e recepção das audiências – possibilita, nas palavras de Paula Saukko (2003, p. 65, tradução nossa[23]), “[…] superar a tentação de pensar em uma experiência vivida particular como a ‘verdade’ sobre determinado assunto e fazer justiça às especificidades de cada experiência, enquanto se preserva as suas particularidades”. Portanto, é fundamental considerar o que é comum a um grupo (mulheres, por exemplo), sem deixar de observar as especificidades marcadas por raça, classe, sexualidade, etc., de cada uma delas.
Com isso, consideramos que a interseccionalidade permite um aprimoramento teórico-metodológico das práticas de pesquisa com as audiências. Nesse desdobramento interdisciplinar, é crucial que não se perca de vista que o pensamento interseccional tem sua gênese na luta por uma sociedade capaz de observar as diferentes nuances de organização do poder. Por isso, ressaltamos a pertinência de se manter uma vigilância nos níveis das teorias e dos conceitos utilizados para que não se incorra em uma despolitização de tal proposição política através de um “encaixe” vulgar de conceitos e usos levianos de categorias como gênero, raça e classe.
Referências
BRAH, A. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu, Campinas, v. 26, p. 329-376, 2006
BUTLER, J. Prefácio. In: BUTLER, J. Problemas de género: feminismo e subversão da identidade. Lisboa: Orfeu Negro, 2017. p. 17-42.
COLLINS, P. H. Black feminist thought: knowledge, consciousness, and the politics of empowerment. New York: Routledge, 2000.
COMTE-SPONVILLE, A. Dicionário Filosófico. São Paulo: Martins Fontes, 2003
CRENSHAW, K. W. Mapping the Margins: intersectionality, identity politics, and violence against women of color. Stanford Law Review, Palo Alto, v. 43 n. 6, p. 1241-1299, 1991
GIDDENS, A. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
GROHMANN, R. N. As classes sociais na comunicação: sentidos teóricos do conceito. 2016. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.
HALL, S. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 22, n. 2, 1997.
HARDING, S. Feminism & Methodology. Bloomington: Indiana University Press, 1987.
HENNING, C. E. Interseccionalidade e pensamento feminista: as contribuições históricas e os debates contemporâneos acerca do entrelaçamento de marcadores sociais da diferença. Mediações, Londrina, v. 20, n. 2, p. 97-128, 2015
JACKS et al. Meios e audiências. Porto Alegre: Sulina, 2008.
JACKS et al. Meios e audiências II. Porto Alegre: Sulina, 2014.
JACKS et al. Meios e audiências III. Porto Alegre: Sulina, 2018.
JACKS, N.; SIFUENTES, L.; LIBARDI, G. Classe social: elemento estrutural (des)considerado nas pesquisas de recepção e consumo midiático. In: JACKS, N. (coord.). Meios e Audiências III: reconfigurações dos estudos de recepção e consumo midiático no Brasil. Porto Alegre: Sulina, 2017. p. 193-212.
LIBARDI, G. Panorama dos estudos sobre interseccionalidade no Brasil (2008-2018): notas gerais e especificidades dos objetos empíricos comunicacionais. In: COMPÓS, 18., 2019, Porto Alegre. Anais[...]. Porto Alegre: PUC, 2019. p. 1-24.
LOPES, M. I. V. Pesquisa em Comunicação: formulação de um modelo metodológico. São Paulo: Loyola, 1990.
McCALL, L. The complexity of intersectionality. Signs, Chicago, v. 30, n. 3, p. 1779-1800, 2005.
MORFAUX, L-M.; LEFRANC, J. Novo dicionário da filosofia e das ciências humanas. Lisboa. Instituto Piaget, 2005.
MOUTINHO, L. Diferenças e desigualdades negociadas: raça, sexualidade e gênero em produções acadêmicas recentes. Cadernos Pagu, Campinas, v. 42, p. 201-248, 2014.
PAVIANI, J. Epistemologia Prática: ensino e conhecimento científico. Caxias do Sul. Educs, 2009.
PIRES, A. P. Sobre algumas questões epistemológicas de uma metodologia geral para as ciências sociais. In: POUPART, J. et al. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 43-94.
PISCITELLI, A. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Sociedade e Cultura, Goiânia, v. 11, n. 2, p. 263-274, 2008.
PRINS, B. Narrative accounts of origins: a blind spot in the intersectional approach? European journal of women’s studies, Thousand Oaks, v. 13, n. 3, p. 277-290, 2006.
SAUKKO, P. Doing research in cultural studies: an introduction to classical and new methodological approaches. London: Sage, 2003.
SCOTT, J. W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 71-99, 1995.
THIRY-CHERQUES, H. R. Conceitos e definições: o significado da pesquisa aplicada nas ciências humanas e sociais. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2012.
TOMAZETTI, P. T. Genealogias dissidentes: os estudos de gênero nas teses e dissertações em comunicação no Brasil (1972 – 2015). 2019. Tese (Doutorado em Comunicação e Informação) – Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019.
TOMAZETTI, P. T.; CORUJA, P. Relações de gênero: os desafios para além das binariedades, identidades e representações. In: JACKS, N. (coord.). Meios e Audiências III: reconfigurações dos estudos de recepção e consumo midiático no Brasil. Porto Alegre: Sulina, 2017. p. 171-192.
Notas