Resenhas

A IRONIA DO APOCALIPSE: UMA BREVE REFLEXÃO SOBRE FALLOUT: NEW VEGAS

THE IRONY OF APOCALYPSE: A BRIEF REFLECTION ON FALLOUT: NEW VEGAS

LA IRONÍA DEL APOCALIPSIS: BREVE REFLEXIÓN SOBRE FALLOUT: NEW VEGAS

Thales Reis Alecrim
Universidade de São Paulo, Brasil

A IRONIA DO APOCALIPSE: UMA BREVE REFLEXÃO SOBRE FALLOUT: NEW VEGAS

Signos do Consumo, vol. 12, núm. 2, pp. 133-136, 2020

Universidade de São Paulo

Recepção: 28 Outubro 2020

Aprovação: 22 Novembro 2020

Resumo: O presente texto, escrito em junho de 2020, mês em que se observou a crescente intensificação da pandemia causada pelo vírus COVID-19, analisa alguns aspectos da trama do videogame Fallout: New Vegas (2010), relacionando-os com a experiência subjetiva propiciada pela situação de quarentena. Assim, tenta-se observar como as experimentações do fim e do apocalipse narradas neste jogo oferecem chaves de interpretação para melhor analisar o estado da subjetividade durante o período de confinamento. Em especial a relação conflitante com o tempo, entre a experiência do passado e a expectativa de futuro que são subjugadas pela presença excessiva da simultaneidade dos eventos do presente.

Palavras-chave: Apocalipse, Tempo, Quarentena, Videogame.

Abstract: This text, written in June 2020, the month in which the growing intensification of the pandemic caused by the COVID-19 virus was observed, analyzes some aspects of the Fallout: New Vegas (2010) video game plot, relating them to the subjective experience provided by the quarantine situation. Thus, we try to observe how the experiments of the end and the apocalypse narrated in this game offer keys of interpretation to better analyze the state of subjectivity during the confinement period. Especially the conflicting relationship with time, between the experience of the past and the expectation of the future, which are overwhelmed by the excessive presence of the simultaneity of the events of the present.

Keywords: Apocalypse, Time, Quarantine, Video game.

Resumen: Este texto, redactado en junio de 2020, mes en el que se observó la creciente intensificación de la pandemia provocada por el virus COVID-19, analiza algunos aspectos de la trama del videojuego Fallout: New Vegas (2010), relacionándolos con la experiencia subjetiva brindada. por la situación de cuarentena. Así, tratamos de observar cómo los experimentos del fin y el apocalipsis narrados en este juego ofrecen claves de interpretación para analizar mejor el estado de subjetividad durante el período de encierro. Sobre todo la conflictiva relación con el tiempo, entre la vivencia del pasado y la expectativa del futuro, que se ven desbordados por la excesiva presencia de la simultaneidad de los hechos del presente.

Palabras clave: Apocalipsis, Tiempo, Cuarentena, Video juego.

Nesses últimos dias joguei Fallout: New Vegas por várias horas seguidas. Parece até piada, mas em uma situação apocalíptica o que estou fazendo é, justamente, jogar um RPG que se passa num futuro pós-apocalíptico. Quando os historiadores do próximo século começarem a estudar as produções culturais do início do século 21, com certeza darão merecido destaque aos videogames. Afinal, esse gênero, atualmente, disputa espaço com o cinema e recebeu tanto refinamento em seu trato que pode ser considerado uma obra de arte. Além disso, mobiliza paixões e existe todo um nicho de mercado estruturado em torno dos jogos eletrônicos.

O que me chamou a atenção no Fallout: New Vegas, jogo relativamente datado (2010), foi a sua capacidade de interpretar as mazelas do contemporâneo, em especial a relação que está sendo mantida com o tempo e com o espaço. A trama constrói um forte argumento em torno da transitoriedade, do desgaste e do peso que o tempo presente exerce sobre as subjetividades. Esses temas se desenrolam em um mundo pós-guerra nuclear, onde todos os resquícios da civilização anterior são considerados tesouros.

Assim, em suas longas horas de jogos, são traçadas relações entre humanos, sejam sociais e de mercado, a partir das quais são pautados aspectos pertinentes do contemporâneo, como o racismo, a sexualidade e as tramas político-ideológicas. Ao mesmo tempo, o jogador tem relativa liberdade de escolha, pois consegue criar sua própria narrativa ao “performar” a sua existência nesse mundo destruído.

Após certa reflexão, essa ironia – de jogar algo pós-apocalíptico em meio à uma experiência propriamente apocalíptica – me deixou bem angustiado, pois sinto que estou experimentando o fim. Ao passo que não vejo futuro adiante, não consigo aproveitar o presente, a simultaneidade dos eventos não permite isso e, dessa maneira, o passado me assalta vertiginosamente.

No entanto, em momento algum isso me impediu de continuar jogando, aliás, recomendo para todos os interessados. Tanto o enredo como a mecânica do jogo são impressionantemente atuais e relevantes. A despeito de ser um jogo com 10 anos de idade, ele envelheceu muito bem, proporcionando uma narrativa frenética que se passa num mundo horrorosamente intrigante que te impele a descobri-lo. Contudo, não é disso que quero falar, mas sim sobre essa experiência do fim que pode ser sentida na narrativa de Fallout: New Vegas e na nossa experiência cotidiana.

A quarentena é assustadora. Simplesmente estamos incubados enquanto observamos o número exorbitante de mortes crescer. Ao mesmo tempo, assistimos ao desmonte do Estado democrático no Brasil, sendo que o Executivo não está dando a mínima para a situação estarrecedora em que nos encontramos – mais assustador ainda é ver que existem céticos civis que endossam um discurso negacionista. Para esse senso comum, não existe ciência, somente desejos: “é real aquilo que eu quero que seja real, doa a quem doer, só não pode ferir o meu bolso”. Isso é refletido nas sombrias estatísticas, vemos apenas faíscas da cura de um vírus que atacou a humanidade devido ao seu desrespeito pela vida alheia. Paralelamente, endossando a falta de empatia com a vida, milhões não sabem o que fazer, pois não possuem fonte de renda para investir na alimentação básica, essas pessoas têm que escolher, diariamente, entre viver ou morrer.

Portanto, trata-se claramente de uma experiência de fim. Algo está acabando. Daqui há algum tempo, alguém olhará para o passado e dirá “Ah, foi nessa época que tudo mudou”. Não sei ao certo o que está para mudar, mas algo está acontecendo, um evento que mudará a meteorologia. Aliás, não estou falando de algo estranho, extremo ou definitivo. Há de se dizer: os “fins do mundo” são cíclicos. O mundo começa e acaba de tempos em tempos. O apocalipse ou Ragnarok não são absolutos, esses processos permitem que algo continue após a tempestade. O que surge após essa experiência do fim, somente constataremos no futuro.

Assim se passa no Fallout: New Vegas, onde conhecemos uma distopia sediada no oeste dos Estados Unidos. Nos anos 1950, o mundo foi destruído por uma guerra nuclear que alterou a geografia do mundo, novas formas de vida surgiram com a radiação, apresentando desafios para a raça humana que passou anos escondida nos Vaults. No momento em que a humanidade percebeu que havia certa estabilidade nesse novo ambiente, as pessoas saíram de seu confinamento e passaram a recriar o mundo. Novos modelos de sociabilidade surgiram, nasceram algumas experiências que não se alinhavam ao passado pré-guerra, enquanto algumas formas de organização prezaram pelas conquistas anteriores, tais como a burocracia de Estado e os estamentos sociais.

Por um lado, alguns rompem com o passado, por outro, alguns querem preservá-lo. De toda maneira, ambos sofrem com a opressão dos tempos que foram e não são mais. Toda a humanidade depende do passado, isto é, tudo aquilo que sobreviveu ao apocalipse, estrutura a vida dos sobreviventes. Um símbolo marcante da presença constante do pré-guerra é a trilha sonora que, na trama do jogo, é transmitida por rádios: são canções estadunidenses das décadas de 40 e 50. Até mesmo as armas que encontramos ao longo da aventura são peças remanescentes. Assim, o passado se faz presente, palatável, engolindo a experiência do presente que é, por sua vez, difícil de assimilar, pois uma simultaneidade de eventos transformou o que antes era estável em um caos intenso.

Por esse motivo não consegui resistir a ironia de, nesse momento, continuar jogando algo que remete a um futuro pós-apocalíptico. Sinto que algo nessa narrativa instiga certas chaves de interpretação para entender como a subjetividade é afetada pela experiência do fim. Talvez seja porque na trama apresentada por Fallout: New Vegas, essa situação ainda não passou. O estado de “final” se prolongou indefinidamente ao ponto de não se colocarem desejos para o futuro. Apenas subsistem desejos de sobreviver no presente que, devido à simultaneidade de eventos, é difícil de apreender. Enquanto isso, o passado agride as portas da sensibilidade, fazendo com que reminiscências e memórias assaltem os pensamentos, reavivando, assim, arrependimentos e falhas.

A angústia dessa situação é interminável, não há vislumbre do porvir, mas apenas um opressivo sentimento de “peso”. Os acontecimentos simultâneos do presente não permitem um momento de respiro e, nesse mesmo interim, o passado corroí as bordas do presente, insinuando sua presença. Para além do jogo e estabelecendo um diálogo com nossa situação atual, não sei se é só comigo, mas durante essa quarentena sinto, recorrentemente, que não sei onde estou. Perco-me em algum lugar entre os acontecimentos no presente e as reminiscências do passado. Não sei mais o que é atual ou que se desatualizou. Por assim dizer, perco-me no tempo, não consigo me situar, apenas experimento o fim, pois não consigo ver um futuro.

Entretanto, chego nessa conclusão para dizer uma simples coisa. O fim nunca é o fim. Essa frase ridiculamente fraca e sem nenhum senso estético reflete uma intensa obviedade contraditória. Mesmo que estejamos experimentando o final prolongado de algo, ainda assim, certas coisas permanecerão. O fim não é absoluto, certas estruturas do passado se manterão, possibilitando criações inusitadas e ressurreições indesejadas. Assim, está para além do bem e do mal, não há julgamento moral ou divino, o universo é completamente indiferente, o devir não tem um critério de seleção, sobreviverá apenas aquilo que resistir à tempestade. Resta saber (e só poderemos responder isso no futuro) o que ficará e o que perecerá enquanto o apocalipse se alastra, corroendo tudo com os seus quatros cavaleiros.

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