artigo
Recepção: 06 Novembro 2020
Aprovação: 26 Abril 2021
DOI: https://doi.org/10.11606/issn.1984-5057.v13i1p82-93
RESUMO: A presente investigação, partindo da percepção sobre a televisão como mediadora do mundo externo que produz outros efeitos de realidade, tem como objetivo compreender e problematizar a interferência da telerrealidade na construção dos mundos televisuais possíveis, na tentativa de atrair o telespectador/consumidor. Para tanto, discute o texto televisual em relação ao seu modelo de texto e aos outros textos com os quais estabelece vínculos, centrando-se nas estratégias discursivas empregadas pela televisão que ofertam ao consumo quatro realidades distintas.
PALAVRAS-CHAVE: Consumo, Mundos possíveis, Realidade mediada, Telerrealidade, Televisão.
ABSTRACT: This investigation, based on the perception of television as a mediator of the external world that produces other reality effects, aims to understand and problematize the interference of telereality in the construction of possible television worlds, in an attempt to attract the viewer/consumer. For such purpose, it discusses the televisual text regarding its text model and the other texts that it establishes links, focusing on the discursive strategies used by television that offer four distinct realities to consumption.
KEYWORDS: Consumption, Possible worlds, Mediated reality, Telereality, Television.
RESUMEN: La presente investigación, basada en la percepción de la televisión como mediadora del mundo exterior que produce otros efectos de realidad, tiene como objetivo comprender y problematizar la interferencia de la telerrealidad en la construcción de mundos televisivos posibles, en un intento de atraer al espectador/consumidor. Para ello, se discute el texto televisual en relación a su modelo textual y los demás textos que vincula y se centra en las estrategias discursivas empleadas por la televisión que ofrecen cuatro realidades distintas al consumo.
PALABRAS CLAVE: Consumo, Mundos posibles, Realidad mediada, Telerrealidad, Televisión.
APONTAMENTOS PRELIMINARES
Os meios de comunicação, já há alguns anos, permeiam as diversas ações dos seres humanos, o que dificulta, cada dia mais, delinear o que é feito através da mídia e o que é feito por meio dela. Assim, as mídias ocupam um lugar central na vida social: jornais, livros, rádios, televisões e internet estão hoje em todos os ambientes, inclusive nas mãos dos consumidores e espectadores.
Essa nova configuração social interfere diretamente na maneira de produção dos textos midiáticos, alterando as lógicas, as finalidades e, principalmente, o consumo. Se antes os produtos eram sustentados pela simplicidade do consumidor, hoje, com novas e variadas possibilidades, tornaram-se complexos e híbridos. Obviamente, os consumidores também sofreram inúmeras e exponenciais modificações, passando de sujeitos passivos a colaboradores ativos e críticos. Essa mesma lógica é refletida na tela da tevê: os telespectadores podem escolher como, quando e onde acontecerá o consumo. É possível definir como será assistido ao último capítulo da novela, quando será consumida a série e até mesmo em que plataforma o telejornal vai ser compartilhado.
Nesse sentido, as mídias, sobretudo, a mídia televisão, empreendem novas formas de conversar e dialogar com os telespectadores que agora não apenas assistem, mas conversam, compartilham e interferem diretamente no que é veiculado na tela da tevê. Para isso, uma das estratégias mais recorrentes, dir-se-ia uma conditio sine qua non para a sobrevivência das empresas de televisão, é a emissora representar o telespectador, seus anseios, costumes e consumo, com vistas a manter-se próxima desse público que busca representar, cativando, por fim, sua audiência.
A investigação aqui apresentada, é preciso destacar, integra uma pesquisa mais ampla, desenvolvida nos últimos anos, que estuda o comportamento e as estratégias da mídia televisão e suas diferentes e complexas relações com os consumidores. Neste momento, apresenta-se uma reflexão sobre as possibilidades das relações textuais entre televisualidades e realidades na mídia televisão e suas expansões, propondo denominar esse processo de ressignificação de telerrealidade.
Partindo da compreensão sobre a televisão como mediadora do mundo externo, surge o objetivo desta pesquisa, que busca compreender e problematizar a interferência da telerrealidade na construção dos mundos televisuais possíveis, na tentativa de atrair o telespectador/consumidor.
A questão problema que se apresenta é: de que modo as emissoras criam essas realidades? De quais estratégias discursivas elas se utilizam na produção dos mundos? De que forma os efeitos de sentido são ofertados ao telespectador/consumidor?
Para alcançar tal resultado discute-se, primeiramente, a realidade televisual. Em seguida, aborda-se o texto televisual em relação ao seu modelo de texto e aos outros textos com os quais ele estabelece vínculos, centrando-se, por fim, na promessa discursiva da realidade.
ACERCA DA REALIDADE TELEVISUAL
Como abordado anteriormente, as mídias retratam aquilo que acontece no cotidiano da sociedade e outros assuntos que correspondam ao interesse de seus consumidores, isto é, aspectos e acontecimentos exteriores às mídias. De acordo com Nick Couldry (2012), os meios de comunicação estão cada vez mais engajados em construir e representar essa realidade externa, uma vez que os conteúdos dos meios buscam simular, de maneira mais próxima possível e com o maior número de elementos reais, o mundo e a sociedade em sua plenitude. Essa busca da construção da realidade é uma função e também uma necessidade midiática: é a partir dela que a mídia pode construir rituais.
O termo “ritual de mídia” identifica uma forma social que explora categorias-chave para estabelecer uma certa relação entre a mídia e seu público-alvo, ações trágicas envolvendo instituições de mídia e implicando o público e os participantes. A identificação de tais ações estratégicas no mundo inteiro faz pretensão de que os rituais de mídia realmente mantêm a sociedade unida. (COULDRY, 2012, p. 49, tradução nossa)
Para melhor ilustrar os rituais de mídia, o teórico recorre à cultura das celebridades, ou seja, pessoas famosas que são amplamente reconhecidas em diversas camadas da sociedade e geralmente são difundidas pelas mídias tradicionais e pelas novas mídias. São destaques em revistas, notícias em jornais, programas de rádio e tevê, e estão, frequentemente, em sites da web e nas várias redes sociais digitais, pautando temas, noticiando acontecimentos, entre tantas outras possibilidades. Assim, é possível inferir, de acordo com Couldry (2012), que o mais importante nos rituais midiáticos é que eles são construídos a partir das necessidades dos consumidores, seus desejos e interesses são o que sustentam o fazer midiático: mais do que um domínio de significados internos, os rituais representam aquilo que a sociedade faz, um tipo de ação que organiza o comportamento e a linguagem.
Perez (2020), direciona seu olhar para os ritos enquanto processos e práticas de consumo, a partir de uma abordagem antropossemiótica, entendendo que o ritual se constitui em um sistema de comunicação simbólica. Nessa esteira, as ações rituais da contemporaneidade têm, na sua natureza, as características de serem performáticas e midiatizadas, ou seja, são colocadas em circulação e reproduzidas exponencialmente.
Deve-se levar em consideração que os princípios fundamentais da teoria do consumidor pós-moderno dizem respeito às escolhas feitas pelo sujeito, não apenas para os ganhos de utilidade, mas, sobretudo, pelos significados simbólicos dessas escolhas, ou seja, a capacidade de produzir e fazer circular efeitos de sentido. “Assim, consumo é um ritual de construção de vínculos de sentido pela mediação da cultura (i)material que envolve múltiplos processos sígnicos heterárquicos e de natureza complexa, ora pautados em informação e objetividade, ora no mais puro encantamento” (PEREZ, 2020, p. 13).
A concepção ritualística do consumo envolve várias dimensões que perpassam cultura, material e humanidades para dar conta de entender a complexidade destas relações. Perez (2020) apresenta seis rituais de consumo que se manifestam na vida cotidiana, são eles: (a) busca; (b) compra; (c) uso; (d) posse; (e) descarte; e (f) ressignificação. Eles são adaptáveis e se moldam
[…] de acordo com o segmento da cultura material que estamos estudando, com as condições de vida que usufruem os atores sociais envolvidos, com a experiência colateral de cada um, suas aspirações e inspirações e o lugar que o consumo acaba ocupando em suas vidas. (PEREZ, 2020, p. 73)
No caso da mídia televisão, o consumo televisual também perpassa rituais que produzem efeitos de sentidos diferentes em cada enunciação. O ato de assistir à programação de forma individual ou no coletivo; no computador, na tela do celular ou no aparelho televisual; comentar com amigos ou compartilhar nas redes sociais; em ambiente silencioso ou com outras vozes; prestar atenção total ou apenas ser mais um som companheiro na casa; entre tantas outras formas de consumo possíveis que levam a outros e múltiplos direcionamentos.
É, nessa perspectiva, que a mídia, ao integrar e compor o cotidiano da sociedade, torna-se uma extensão de nós, sujeitos sociais discursivos. De acordo com Silverstone (2011, p. 33), ela “se estende para além do ponto de contato entre os textos midiáticos e seus leitores ou espectadores”. Isso porque essas fronteiras estão cada vez mais permeáveis e envolvem consumidores e produtores em atividades contínuas de interpretação e ressignificação, que resultam em diversos textos midiáticos. Esses textos, por sua complexidade de produção e sentidos, transitam entre os diferentes meios de comunicação e passam a fazer parte do cotidiano da sociedade, dificultando definir o ponto inicial da produção e o embaralhamento de produtores.
Dessa forma, é possível recuperar o pensamento de Silverstone (2011), que propõe pensar o transbordamento da mídia e essa estreita relação entre produtores e consumidores como um grande processo de mediação.
A mediação implica o movimento de significado de um texto para outro, de um discurso para outro, de um evento para outro. Implica a constante transformação de significados, em grande e pequena escala, importante e desimportante, à medida que os textos da mídia e textos sobre a mídia circulam em forma escrita, oral e audiovisual, e à medida que nós, individual e coletivamente, direta e indiretamente, colaboramos para sua produção. (SILVERSTONE, 2011, p. 33)
Esse processo de mediação pode, também, ser denominado de circulação de significado, isso porque “os significados mediados circulam em textos primários e secundários, através de intertextualidades infindáveis” (SILVERSTONE, 2011, p. 34). Essa relação entre textos, apresentada por Silverstone (2011), permite recuperar o pensamento intertextual, apresentado por Hjelmslev (2013), dividido em duas instâncias: (a) o texto que é construído tendo como base outros textos, seja para reforçar seus paradigmas, seja para romper e criar novos, estabelecendo, assim, uma relação direta ou indireta com o seu modelo textual; e (b) o texto que é construído em resposta a um texto anterior, é produzido para esclarecer, contrapor ou julgar e, assim, atualizar as outras falas com novos espaços de manifestação.
Essa concepção, aliás, é a compreensão do Grupo de Pesquisa em Comunicação Televisual (COMTV), da Universidade Federal de Santa Maria, liderado pelas pesquisadoras Maria Lília Dias de Castro e Elizabeth Bastos Duarte, que, no exame dos textos televisuais, consideram a intertextualidade em duas direções: uma de caráter paradigmático, que corresponde ao estudo do texto em relação ao seu modelo, possibilitando a discussão em torno de gênero, subgênero e formato; outra de caráter sintagmático, que corresponde ao estudo do texto em relação a outros textos que o precedem e/ou sucedem, de acordo com a colocação na grade da emissora.
ENTRE O MODELO TEXTUAL E OUTROS TEXTOS
A capacidade de o texto reverberar, em seu interior, outros textos, interfere diretamente na relação dos leitores e espectadores como produtores e consumidores de mídia. Isso porque a realidade discursiva proposta pelos textos televisuais, que é mediada, só existe no momento em que ela é interpretada como tal por seus receptores-consumidores.
Os textos e as imagens vão existindo à medida que o leitor ou o espectador os usam ou reinterpretam. Todo texto prevê seu leitor e não pode abrir mão dele: procura-o “gastronomicamente” para que tenha prazer, suspire ou chore, identificando-se com o que lhe contam ou “com fins estéticos”, não esperando que tenha tanto prazer com a história contada como com o modo pelo qual é contada. (CANCLINI, 2008, p. 51)
Na mídia televisual, assim como em todas as mídias, existe um contrato invisível entre produtores e telespectadores. Esse acordo é construído de tal forma que a emissora, sujeito da enunciação, deixa marcas explícitas ou implícitas no seu discurso, o enunciado, com vistas a convocar o telespectador, enunciatário marcado pelo sujeito da enunciação no enunciado, a participar de um jogo. É o sujeito, ou a emissora, quem define como, onde e quem deve consumir determinado produto ofertado por ela. Sua construção é tão importante que pode servir para estabelecer os elos entre emissora e telespectador, a ponto de programar o cotidiano da sociedade: o jornal do meio-dia, a telenovela das 19h, o jornal das 20h e a telenovela das 21h.
Como propõe Martín-Barbero (2009), em cada programa veiculado pelas emissoras de televisão, as diferenças dos telespectadores são absorvidas ao máximo, utilizando-se da familiarização ou da exotização.
Ao conectar o espetáculo com a cotidianidade, o modelo hegemônico de televisão imbrica em seu próprio modo de operação um dispositivo paradoxal de controle das diferenças: uma aproximação ou familiarização que, explorando as semelhanças superficiais, acaba nos convencendo de que, se nos aproximarmos o bastante, até as mais “distantes”, as mais distanciadas no espaço e no tempo, se parecem muito conosco; e um distanciamento ou exotização que converte o outro na estranheza mais radical e absoluta, sem qualquer relação conosco, sem sentido para o nosso mundo. (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 253, grifo do autor)
Nos últimos anos, após a ascensão da internet e, principalmente, com o surgimento dos smartphones, esse contrato de jogo vem sendo alterado. A acessibilidade na palma da mão permite ao consumidor (telespectador/usuário) ultrapassar as barreiras e participar ativamente da produção.
O consumidor de televisão, da televisão pré-digital, era menos ativo do que o usuário da internet, que tem mais recursos para trabalhar na edição dos materiais, interromper e selecionar, ir e voltar. Às vezes o telespectador o imita, porque o controle remoto permite esse jogo, mas, em geral, ele se mostra mais rígido em sua fidelidade. (CANCLINI, 2008, p. 52)
A fidelização do público telespectador acontece por meio do contrato, que pode ser estabelecido de duas formas distintas: ao mesmo tempo que o telespectador utiliza a mídia televisual para compreender o mundo e a realidade que o circunda, esse mundo externo que é mediado pela mídia, ele também se utiliza dos significados produzidos pela mídia para distanciar-se daquela realidade, afastar-se do mundo real. Nesse sentido, pode-se afirmar que existe uma relação dialógica nesse acordo (SILVERSTONE, 2011): quanto mais o telespectador se aproxima do mundo mediado pela mídia, mais ele se afasta da realidade do mundo.
Assim, ao embaralhar os limites entre o real externo e o real midiático, a mídia fornece representações da sociedade que constroem uma nova significação. Essas produções, a partir do mundo exterior, sustentam a realidade midiática que, no caso da televisão, pode ser denominada - e é essa a proposta da presente investigação - telerrealidade. Essa proposição busca dar conta, sobretudo, da mediação que tal mídia faz daquilo que lhe é exterior e que, nesse processo de ressignificação, ela interioriza e torna referência do seu discurso, sustentando e atualizando o seu fazer. Essa telerrealidade só pode ser compreendida porque “a mídia agora é parte da textura geral da experiência. Se incluíssemos a linguagem como uma mídia, isso não mudaria e teríamos de tomar as continuidades da fala, da escrita, da representação impressa e audiovisual” (SILVERSTONE, 2011, p. 14). Esse imbricamento entre linguagem e mídia é semelhante ao entendimento de Rodrigues e Braga (2014), para quem “a linguagem é a primeira e mais importante tecnologia, o mais importante dispositivo mediático” (RODRIGUES; BRAGA, 2014, p. 191). É nesse segmento que se sustenta a telerrealidade, nesse dispositivo central da mídia televisão que reúne, em concomitância, diversas outras linguagens para o seu fazer, sua onipresença na vida social, seu transbordar para outras mídias, enfim, sua cotidianidade.
Todavia, a linguagem televisiva só é realmente efetiva quando o telespectador é fidelizado, se ele consumir, de acordo com o contrato, aquilo que lhe é ofertado, independentemente da forma como ocorre esse consumo. Por isso, são utilizadas estratégias discursivas de diferentes ordens, denominadas mecanismos de engajamento textual por Silverstone (2011). São elas: (a) retórica; (b) poética; e (c) erotismo.
A retórica consiste na capacidade de argumentação de quem fala, na competência de dizer, de forma clara e concisa, o que for preciso para que o enunciatário compreenda e aceite o que foi dito, “acima de tudo, retórica é persuasão. Linguagem orientada para a ação, para a mudança de sua direção e para sua influência. É também linguagem orientada para a mudança de atitude de valor” (SILVERSTONE, 2011, p. 63). O teórico aponta que a maior conquista da retórica da mídia atual, é o empenho e a capacidade de convencer os seus usuários de que o que ela buscou apresentar e representar realmente ocorreu. Essa retórica do real é composta de incansáveis movimentos de representar a realidade externa de maneira mais próxima e fiel do mundo, convocando, para isso, diversas estratégias que colocam em dúvida o que é verdade e o que é mentira:
A resposta reside nas convenções da representação, nas formas de expressão, no equilíbrio frágil, mas eficaz entre o familiar e o novo, o esperado e o inesperado, a segurança e o reconforto da narrativa e da voz; ela reside na linguagem, na retórica, do texto emergente e de sua sustentação por outros textos anteriores e posteriores, aqueles que continuamente reenfatizam e reafirmam a realidade alegada. (SILVERSTONE, 2011, p. 69)
Em síntese, a retórica é a capacidade que perpassa todo o fazer midiático. Só se conquista a credibilidade, item essencial do contrato, quando se aproxima do real, e quando mais se aproxima dele, mais próximo de construir a realidade televisual. Telejornais, talk shows, revistas eletrônicas, documentários e reportagens são produtos que empregam a retórica com maior frequência para engajar e envolver os telespectadores/consumidores.
Já a poética é a capacidade de criar, recriar, contar, explicar e/ou apresentar histórias, contos e narrativas, enfim, o cuidado e a atenção que o emissor utiliza para construir o texto e, sobretudo, como ele será enunciado. Tais características interferem diretamente na maneira como ele será recebido pelo enunciatário/telespectador. De acordo com Silverstone (2011, p. 92), “nosso deleite com histórias, nossa capacidade de relaxar a seu lado, de esquecer um pouco as pressões da vida diária ao lado do alto-falante ou diante da tela são parte do que nos capacita a permanecer humanos”.
Em síntese, a poética investiga a relação entre as histórias contadas e a maneira como são recontadas, ampliadas, distorcidas, com vistas a causar distintas reações nos seus telespectadores. Telenovelas, séries, seriados, sitcons, entre outros, são produtos que empregam a poética com maior frequência para engajar os telespectadores/consumidores.
O erotismo, por sua vez, diz respeito à relação entre leitores, espectadores e consumidores que participam de determinada transmissão televisual por prazer. Assiste-se à telenovela, não importa se os protagonistas terão um final feliz, mas pela necessidade de saber o que acontece entre o início e o fim. O telejornal serve para saciar as dúvidas sobre o que, de mais importante, aconteceu no mundo durante o dia. Os programas de entretenimento contam as histórias mais inusitadas sobre a vida dos famosos. Para Silverstone (2011, p. 109),
nossa obsessão, com novelas, jogos de futebol, filmes de esfaqueadores ou estrelas de cinema e vídeos musicais, é uma maneira de maximizar nossas chances. No entanto, e essa é a natureza de tais coisas, essas buscas são amiúde inteiramente autoderrotantes. Empates sem gol.
Desse modo, o erotismo é o que estimula o envolvimento do telespectador com o produto televisivo veiculado. Ele está mais vinculado com o desejo de consumir algo e o prazer de descobrir determinada informação. O erotismo, linguagem que envolve o telespectador/consumidor, está entre a retórica, capacidade de contar uma história, e a poética, modo como esta história é contada, por isso perpassa diferentes tipos de produtos para engajar e envolver os telespectadores/consumidores.
Essas e outras estratégias são diariamente utilizadas pela mídia televisão para que o contrato entre emissor e telespectador seja efetivamente assinado. Só existirá programa se houver audiência, só haverá audiência se existir o desejo do telespectador em consumir o produto televisual. Nesse sentido, a televisão recorre a distintas realidades, ou a produzir uma realidade que fale da realidade, uma ilusão de que o que está sendo produzido é real. Esse embaralhamento de realidades é uma mediação, ou produção de significados com vistas a confundir o telespectador/consumidor: “agora somos espectadores do que acontece também nas seções do jornal que não são apenas as de espetáculos. É comum que, ao ligar a televisão, seja difícil distinguir se o que vemos é o noticiário ou um reality show” (CANCLINI, 2008, p. 48).
Também pensando na relação entre os textos televisuais e os telespectadores, François Jost (2007) propõe pensar a significação dos programas pela maneira como respondem ao telespectador sobre o tema de que tratam (SOUZA, 2016). Esse reconhecimento constitui uma espécie de etiqueta que permite “reagrupar um conjunto de emissões dotadas de propriedades comparáveis” e que caracteriza “o que se convencionou chamar de gênero” (JOST, 2007, p. 60).
Para Jost, são exemplos de gênero o documentário, o reality show, a telerrealidade, o drama, a soap opera, o docudrama e a docuficção. Percebe-se, então, que para o autor o gênero é uma estratégia de comunicabilidade que pertence a uma classificação maior, chamada de mundos, os quais “podem servir de fundamento a uma classificação racional dos gêneros e formar arquigêneros” (JOST, 2007, p. 61). Segundo ele, existem três mundos possíveis: o real, o fictivo e o lúdico.
O primeiro, o mundo real, é aquele que tem o compromisso de informar ao telespectador apenas o que aconteceu no mundo, de maneira correta e sem interferências. Jost exemplifica esse mundo com o atentado às Torres Gêmeas, ocorrido no dia 11 de setembro de 2001, em que muitas pessoas ligavam as televisões e não sabiam o que realmente estava acontecendo: no mundo real, “quer-se somente dizer que o primeiro reflexo do telespectador é determinar se as imagens falam do mundo ou não, qualquer que seja a ideia que se faça desse mundo” (JOST, 2007, p. 62).
O segundo, o mundo fictivo, embora decorra do mundo anterior, não tem compromisso com a verdade dos fatos. Sua essência é a proposta de uma ficção que tenha coerência interna, envolvendo “uma parte de invenção e a presença de atores” (JOST, 2007, p. 63).
O terceiro e último, o mundo lúdico, fica localizado entre o primeiro e o segundo. Nele, acontecem os jogos que ora se ancoram em dados e fatos reais para construírem a narrativa, ora em elementos ficcionais, quando os jogadores representam papéis, em um relato coerente e completo, ou simplesmente jogam por jogar.
Percebe-se, na concepção de Jost (2007), a representação da realidade televisual como um contrato entre a emissora e o telespectador. Todavia, na perspectiva das realidades discursivas produzidas pelo texto, da perspectiva da telerrealidade aqui proposta, essas reverberações são uma promessa feita ao telespectador, no contrato comunicativo, que podem ser cumpridas ou não. Na subsecção seguinte será melhor explicitada essa relação.
MUNDOS DISCURSIVOS POSSÍVEIS
Conforme abordado anteriormente, sobre a realidade mediada pela televisão, aqui denominada telerrealidade, e as relações que ela convoca com o telespectador, é consenso afirmar que os “produtos midiáticos não podem ser analisados independentemente do processo comunicativo/enunciativo que os em-forma” (DUARTE; CASTRO, 2014, p. 68). Do ponto de vista da semiótica discursiva, compreende-se os produtos midiáticos como textos, complexos e híbridos, que expressam simultaneamente distintas linguagens. E a análise desses textos é fundamental na geração da significação e dos sentidos da produção midiática televisiva.
Dessa forma, os textos televisuais tomam como referência distintos mundos possíveis (real ou paralelo); constroem distintas realidades (metarrealidade, suprarrealidade, pararrealidade, plurirrealidade); comprometem-se com diferentes verdades (veridicção, verossimilhança, hipervisibilização, publicização); integrando um conjunto virtual de textos, denominados gêneros televisuais, que se atualizam em subgêneros e se materializam em formatos específicos (DUARTE; CASTRO, 2014).
A telerrealidade, conceito aqui delineado e defendido, apresenta-se de quatro formas distintas. Suas manifestações podem ser articuladas com o que é proposto por Duarte e Castro (2014) e desenvolvido no âmbito do Grupo de Pesquisa em Comunicação Televisual da Universidade de Santa Maria, obedecendo a uma série de regras e movimentos do jogo televisual. São elas: a metarrealidade, a suprarrealidade, a pararrealidade e a plurirrealidade.
A metarrealidade é a que toma como modelo o mundo exterior à mídia televisual, o mundo real, com o intuito de marcar e imprimir veracidade aos fatos ocorridos no mundo. Os produtos daí resultantes têm o compromisso com a veridicção, isto é, com a verdade e fidelidade aos acontecimentos noticiados, com os atores sociais envolvidos do mundo real, integrando um conjunto virtual de textos pertencentes ao gênero factual.
A suprarrealidade é a realidade que, a partir do mundo real, exterior à mídia televisão, constrói, a partir dele, narrativas, discursos e textos que precisam ter uma lógica adequada no interior da própria realidade produzida. Os produtos daí resultantes têm o compromisso com a verossimilhança, isto é, com as leis, convenções e regras da ficção, integrando um conjunto virtual de textos pertencentes ao gênero ficcional.
A pararrealidade é a realidade que transita entre o factual e o ficcional, criando, assim, um mundo paralelo, artificial, em que tudo é possível. Os produtos daí resultantes têm o compromisso com a exibição, com a exposição, com a hipervisibilização de acontecimentos criados na e pela mídia, integrando um conjunto virtual de textos pertencentes ao gênero simulacional.
A plurirrealidade é o tipo de realidade que pode tomar como referência o mundo factual, o ficcional e o simulacional, embaralhando-os, ao mesmo tempo, ou não. Os produtos daí resultantes têm o compromisso com a publicização, isto é, a divulgação dos produtos, serviços e/ou ações produzidas por uma determinada empresa, com o intuito de informar o público-alvo das suas iniciativas, integrando um conjunto virtual de textos pertencentes ao gênero promocional.
O gênero factual atualiza-se em distintos subgêneros, tais como: telejornal, documentário, reportagem, entrevista, talk show, debate, plantão de notícias, entre outros. São exemplos de formato, respectivamente, o Jornal Nacional, o Globo Repórter, o Profissão Repórter, o Conversa Com Bial, entre outros.
O gênero ficcional também se atualiza em vários subgêneros possíveis, tais como: telenovela, minissérie, seriado, série, spin-off, soap opera, entre outros. São exemplos de formato, respectivamente, a telenovela Império, a minissérie Os Maias, o seriado Os Normais, o spin-off As Five, a soap opera Malhação, entre outros.
O gênero simulacional possui como exemplos de subgêneros os reality shows, os jogos e alguns talk shows. Os exemplos de formatos mais tradicionais são o Big Brother Brasil e o No Limite.
O gênero promocional, aquele que embaralha o factual, o ficcional e o simulacional, possui como exemplos de subgênero: assinatura/exposição de marca, comercial, merchandising autorreferencial, merchandising social, vinheta, quadro, insert, programa. Os formatos manifestam-se em ações de anunciantes e patrocinadores, ou no fazer da própria emissora, caracterizando-se no gênero autopromocional, que se manifesta em chamadas de lançamentos da programação, ou no exemplo mais conhecido, o programa Video Show.
Percebe-se, no atual fazer da mídia televisual, um transbordamento de realidades e, por consequência, de gêneros, subgêneros e formatos. Na era da convergência e da simultaneidade de telas, é possível perceber que as emissoras de televisão prometem um produto ao telespectador, mas muitas vezes, no intuito de conquistar audiência e atrair anunciantes, os produtos recorrem a mais de uma realidade para aproximar-se da realidade do receptor.
Os subgêneros telejornais, pertencentes ao gênero factual, são pautados pelas realidades sociais e pelos diferentes acontecimentos de uma determinada localidade. Entretanto, algumas notícias também são pautadas pelas temáticas abordadas em algumas telenovelas ou nos acontecimentos que ultrapassam os limites dos reality shows.
Os subgêneros telenovela, pertencentes ao gênero ficcional, constroem as narrativas pautadas em acontecimentos da sociedade, hábitos e consumo dos telespectadores, bem como em produtos da própria emissora ou de anunciantes. Algumas vezes a realidade da telenovela é tão próxima da realidade do telespectador que aquela representação é tida como algo verídico, ultrapassando os limites da ficção.
Os subgêneros reality shows, pertencentes ao gênero simulacional, também são construídos com informações da sociedade, das telenovelas e das emissoras. Provas e desafios são pautados por informações do mundo real que permeiam o fazer simulacional.
Todas essas realidades ainda são embaralhadas, ressignificadas e transformadas em mensagens que perpassam as realidades de anunciantes externos à emissora e, também, os anúncios da própria emissora. Isso porque a mídia televisual brasileira é, além de emissora, empresa comercial que sobrevive da venda de seus espaços publicitários. Essa característica dominante faz que todas as outras realidades sejam pautadas por meio da realidade da emissora e do anunciante, que têm por intuito maior representar o telespectador, a realidade do receptor, para construir laços de afetividade e conquistar sua audiência.
Nesse sentido, a emissora estabelece um contrato com o telespectador/consumidor, recorrendo a uma estratégia “mimética e ultrarrealista, a televisão constrói seu público a fim de poder refleti-lo, e o reflete para poder construí-lo: no perímetro desse círculo, a televisão e o público estabelecem o pacto de um programa mínimo, tanto do ponto de vista estético quanto do ponto de vista ideológico” (SARLO, 2000, p. 83).
APONTAMENTOS FINAIS
A presente pesquisa teve como objetivo central compreender e problematizar a interferência da telerrealidade na construção dos mundos televisuais possíveis, na tentativa de atrair o telespectador/consumidor. Agora, é possível afirmar, com base nos autores e conceitos acima apresentados, que a realidade televisual é sempre uma realidade segunda: ela vai até o mundo externo, ambiente original do telespectador, interpreta e ressignifica os elementos principais para transformar o externo em seu próprio mundo. Esse é o movimento denominado telerrealidade.
A telerrealidade a que se propõe a mídia televisual, é, nessa perspectiva, sempre uma realidade mediada: seja como engajamento textual, seja como promessa/contrato entre emissora e telespectador/consumidor, ou como realidade discursiva. O texto televisual, por mais que tente, jamais consegue reproduzir fielmente o mundo externo; ele emprega distintas estratégias discursivas (retóricas, poéticas, eróticas, entre tantas outras) para gerar efeitos de sentido e significação. Enfim, a realidade televisual sempre é uma realidade ressignificada, ou, como foi conceituado aqui, uma telerrealidade, que busca dar conta, simultaneamente: (a) do mundo que a televisão toma como referência - o real ou o paralelo; (b) do tipo de realidade que se propõem a construir - metarrealidade, suprarrealidade, pararrealidade e plurirrealidade; e (c) da promessa que faz ao telespectador - veridicção, verossimilhança, hipervisibilização, publicização.
Reconhece-se, assim, a oferta ao consumo de quatro realidades distintas que constroem mundos discursivos possíveis: (a) a veridicção, isto é, aquele tipo de realidade discursiva que centra sua atenção nas funções informativa e educativa da televisão, reunindo um conjunto virtual de textos televisuais que tomam como referência o mundo real, exterior à mídia televisão, construindo, do ponto de vista discursivo, uma metarrealidade; (b) a verossimilhança, isto é, aquele tipo de realidade discursiva que centra sua atenção na função de entretenimento da televisão, reunindo um conjunto virtual de textos televisuais, os quais, embora tomem como referência o mundo real, exterior à mídia televisão, constroem, a partir dele, do ponto de vista discursivo, uma suprarrealidade; (c) a hipervisibilização, isto é, aquele tipo de realidade que centra sua atenção na função de entretenimento da televisão, reunindo um conjunto virtual de textos que tomam como referência um mundo paralelo - criado no interior do próprio meio, transitando entre o mundo real e o mundo ficcional -, construindo, a partir dele, do ponto de vista discursivo, uma pararrealidade; e (d) a publicização, isto é, aquele tipo de realidade que centra sua atenção na função de divulgação da televisão, reunindo um conjunto virtual de textos televisuais, que podem tomar como referência tanto o mundo real como o paralelo, muitas vezes embaralhando-os, construindo, a partir deles, do ponto de vista discursivo, uma plurirrealidade.
Não importa se seu compromisso seja com a verdade, com a ficção, com a simulação ou com a promoção: no texto televisivo, quanto mais o telespectador se aproxima do mundo mediado pela mídia, mais ele se afasta da realidade do mundo externo.
Aliás, essa telerrealidade pode ser entendida de modo que todas essas realidades produzem mundos distintos e são estrategicamente criadas, justamente para construir vínculos com o telespectador e produzir múltiplos sentidos e significações nos processos e práticas de consumo televisual.
REFERÊNCIAS
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