artigo

SIGNOS DO CONSUMO E A INSATISFAÇÃO DO SUJEITO

Signs of consumption and the subject’s dissatisfaction

Los signos del consumo y la insatisfacción del sujeto

Isabel Jungk
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil

SIGNOS DO CONSUMO E A INSATISFAÇÃO DO SUJEITO

Signos do Consumo, vol. 13, núm. 2, e186905, 2021

Escola de Comunicações e Artes da USP

Recepção: 13 Junho 2021

Aprovação: 22 Novembro 2021

RESUMO: Rica interface conceitual, a aplicação conjunta da semiótica e da psicanálise fornece elementos potentes para analisar a comunicação publicitária e seus efeitos na contemporaneidade. Essa combinação possibilita um olhar atento sobre produções da sociedade capitalista e sua influência na subjetividade, até mesmo como fonte de contradições, insatisfação e sintomas culturais. Neste artigo são apresentados os conceitos de signo, seus modos de associação, de inconsciente e sua flexibilidade significante, mostrando como a compreensão dos processos de significação sob essa perspectiva descortina uma visão abrangente entre o discurso publicitário, com suas estratégias permeadas de sugestões ao consumo, e a condição de sujeito do desejo, dividido entre consciente e inconsciente, entre um modo ter e ser de desejar.

PALAVRAS-CHAVE: Hiperconsumo, Discurso publicitário, Estratégias de sugestão, Flexibilidade significante, Tipos de desejo.

ABSTRACT: A rich conceptual interface, the joint application of semiotics and psychoanalysis provides powerful elements for analyzing the phenomena of advertising communication and its effects in contemporaneity. This combination enables an attentive look at the productions of capitalist society and their influence on subjectivity, even as a source of contradictions, dissatisfaction, and cultural symptoms. In this article, we present the concepts of sign, its modes of association, the unconscious mind and its significant flexibility, showing how the understanding of the processes of signification from this perspective opens up a comprehensive view of the advertising discourse, with its strategies permeated with consumption suggestions, and the condition of subject of desire, divided between the conscious and unconscious psyche, between having and being.

KEYWORDS: Hyperconsumption, Advertising discourse, Suggestion strategies, Significant flexibility, Types of desire.

RESUMEN: Rica interfaz conceptual, la aplicación conjunta de la semiótica y el psicoanálisis proporciona elementos poderosos para analizar la comunicación publicitaria y sus efectos en la contemporaneidad. Esta combinación permite una mirada atenta a las producciones de la sociedad capitalista y su influencia en la subjetividad, incluso como fuente de contradicciones, insatisfacción y síntomas culturales. En este artículo se presentan los conceptos de signo, sus modos de asociación, el inconsciente y su flexibilidad significante, mostrando cómo la comprensión de los procesos de significación desde esta perspectiva abre una visión detallada de la relación entre el discurso publicitario, con sus estrategias impregnadas de sugerencias de consumo, y la condición de sujeto del deseo, dividido entre consciente e inconsciente, entre un modo de tener y ser de desear.

PALABRAS-CLAVE: Hiperconsumo, Discurso publicitario, Estrategias de sugerencia, Flexibilidad significante, Tipos de deseo.

CONTRADIÇÕES DO SUJEITO CONSUMIDOR

Uma nova época surgiu com o capitalismo de consumo, verdadeira “civilização do desejo” construída ao longo da segunda metade do século XX e que provocou a modificação nos modos de vida e costumes, fazendo surgir novas hierarquias de objetivos e fins existenciais, novas relações com o tempo, com coisas, consigo mesmo, com o próprio corpo e com os outros. Essa verdadeira revolução dos comportamentos e do imaginário coletivo, fruto “da estimulação perpétua da demanda, da mercantilização e da multiplicação indefinida das necessidades” (LIPOVETSKY, 2007, p. 11), levou, da década de 1970 em diante, ao fenômeno conhecido como hiperconsumo, no qual destaca-se um novo perfil de consumidor:

Um Homo consumericus de terceiro tipo vem à luz, uma espécie de turbo-consumidor desajustado, instável e flexível, amplamente liberto das antigas culturas de classe, imprevisível em seus gostos e em suas compras. De um consumidor sujeito às coerções sociais da posição, passou-se a um hiperconsumidor à espreita de experiências emocionais e de maior bem-estar, de qualidade de vida e de saúde, de marcas e de autenticidade, de imediatismo e de comunicação […] em um sistema em que o comprador é cada vez mais informado e infiel, reflexivo e “estético”. Pouco a pouco, desvanecem-se os antigos limites de tempo e de espaço que emolduravam o universo do consumo: eis-nos em um cosmo consumista contínuo, dessincronizado e hiperindividualista, no qual mais nenhuma categoria de idade escapa às estratégias de segmentação do marketing, mas no qual cada um pode construir à la carte seu emprego do tempo, remodelar sua aparência, moldar suas maneiras de viver. (LIPOVETSKY, 2007, p. 14)

Nesse contexto de interrelações da sociedade do turboconsumo, várias contradições rondam esse Homo consumericus, e duas delas parecem fundamentais, pois mostram a posição de excessiva dependência em que se encontra o homem contemporâneo para sua satisfação material e psíquica, e como essa dependência externa o insere em um ciclo vicioso.

A primeira reside em que esse consumidor - que se considera informado e se sente livre, cujo leque de escolhas amplia-se constantemente em função do esforço sempre crescente por parte de empresas em aumentar negócios - vê, ao mesmo tempo, todos os seus modos de vida, prazeres e gostos mercantilizados, submetidos ao regime dominante da ordem comercial, ou seja, “quanto mais o hiperconsumidor detém um poder que lhe era desconhecido até então, mais o mercado estende sua força tentacular” (LIPOVETSKY, 2007, p. 15). Para ter acesso a esse mundo de benesses ao qual é conclamado insistentemente, isto é, para alcançar aquilo que, em tese, poderia lhe trazer satisfação segundo a lógica vigente, o sujeito consumidor fica limitado a seu próprio poder econômico, sendo necessário observar o grau elevado em que esse mundo de possibilidades ainda continua fora de alcance para muitos, tendo como consequência variados graus de insatisfação e frustração.

A segunda contradição observada se deve ao fato de que, nesse meio de fartura material, de produtos e serviços em profusão, o sofrimento interior do sujeito aparece desprovido de sentido, pois o “mundo vive sob a crença de que a abundância é a condição suficiente e necessária da felicidade” (LIPOVETSKY, 2007, p. 15). Contudo, como as carências psíquicas e espirituais não podem ser preenchidas materialmente, e como o comportamento social tende ao hiperindividualismo, o homem contemporâneo busca um bem-estar interno (equilíbrio emocional, autoestima, sentimento de realização pessoal, entre outros) como nunca antes. O hiperconsumidor “não está mais apenas ávido de bem-estar material, ele aparece como um solicitante exponencial de conforto psíquico, de harmonia interior e de desabrochamento subjetivo, demonstrados pelo florescimento das técnicas derivadas do desenvolvimento pessoal” (LIPOVETSKY, 2007, p. 15). Segundo Salecl (2005, p. 12), na sociedade do capitalismo tardio, “o ‘eu’ é algo a que se aspira, como a última moda ou o mais recente objeto de consumo. A autoaspiração e o ‘eu’ reinventado são sedutores”, mostrando que “o verdadeiro ‘eu’ é cada vez mais autoconstruído e, mais do que isso, um projeto individual”. (SALECL, 2005, p. 14-15).

O mercado procura igualmente suprir tais carências, porém de acordo com a mesma lógica aplicada a produtos e serviços que afirma que a fonte de felicidade está em algum lugar fora do sujeito como algo exterior, seja na forma da “farmácia da felicidade” ou por meio de terapias e outras formas de aloajuda, com as quais o sujeito não necessariamente se recupera, mas ganha um impulso temporário para continuar a viver, levando a uma contínua gangorra emocional.

A sociedade do hiperconsumo funciona como uma sociedade de desorganização psicológica que é acompanhada por numerosos processos de “recuperação” ou redinamização subjetiva. Mais do que nunca, acelera-se a sucessão dos altos e baixos da vida: movimentos de vaivém que justificam tanto o pessimismo quanto um certo otimismo. (LIPOVETSKY, 2007, p. 18)

Como consequência, o sujeito fica submetido a um regime de estimulação constante de necessidades e desejos - no sentido usual e plural da palavra desejo - em sua maioria fictícios, que ele acredita escolher livremente, que não pode consumar totalmente, e que o desequilibram interiormente, um ciclo no qual o mesmo sistema que o desestabiliza para que ele consuma provoca sua insatisfação interior, que, por sua vez, é tratada paliativamente para que ele suporte continuar a “funcionar” dessa maneira. Embora, como ressalta Lipovetsky (2007), nem tudo esteja perdido, embora o regime capitalista não tenha apenas deméritos e as capacidades reflexivas e críticas dos sujeitos não tenham sido de modo algum extirpadas, e haja até mesmo alguns motivos para ter esperança, importa perguntar por que, mesmo em vista de tais contradições, o discurso do consumo exerce tanta força sobre o sujeito contemporâneo.

SEMIOSE DO SUJEITO: NECESSIDADE, DEMANDA, DESEJO E GRANDE OUTRO

Conforme Silverman (1983), o termo “sujeito” designa um espaço semântico e ideológico muito diferente do indicado pelo termo mais familiar “indivíduo”, que data da Renascença e, portanto, carrega traços dos principais sistemas filosóficos dominantes da época, que davam à ideia de consciência individual uma importância máxima, a exemplo do cogito cartesiano, modelo de consciência privada, ao mesmo tempo autêntica e independente, no qual a ideia de pessoa humana ainda permanece profundamente permeada. O conceito de subjetividade, por outro lado, “assinala uma saída radical dessa tradição filosófica, dando um lugar mais central à sobredeterminação inconsciente e cultural do que à consciência” (SILVERMAN, 1983, p. 126). O sujeito passa a ser visto em seu contexto histórico, fruto do tempo e espaço em que está inserido:

Se nossa imagem da pessoa é o indivíduo, em vez de sujeito, então vemos o pensamento da pessoa como de forma alguma coagido, seja pela força de condições materiais, seja pelos pensamentos de outras pessoas; o indivíduo é entendido como um agente intelectual livre […]. Em oposição, o sujeito é visto, não como uma fonte de pensamento e ação primordialmente livres, mas ao contrário, como um ser tão profundamente inserido em seu tempo e espaço a ponto de ser amplamente, embora não totalmente, limitado em sua cognição e conduta. (COLAPIETRO, 2014, p. 81)

O indivíduo é, por definição, aquele que não é dividido, uno em seu pensamento e conduta, autônomo e estável, portanto, senhor de seus processos mentais, emocionais e comportamentais. Ao contrário, o sujeito não é definido como alguém no comando total de si mesmo. A partir da descoberta freudiana, no fim do século XIX, a constituição do sujeito passou a ser explicada a partir da divisão de sua psique em dois sistemas: o inconsciente e o pré-consciente/consciente. Para Lacan (1998), essa clivagem é o caráter inaugural que define a subjetividade, pois através dela o sujeito advém, estruturando-se psiquicamente de forma plurissistêmica.

Dessa clivagem inaugural emerge um sujeito dividido que será, por toda a vida, um sujeito barrado, no sentido de não ter acesso direto nem ao objeto primordial de seu desejo, nem às representações primordiais que fez dele. Esse objeto é representado pela mãe, isto é, o que se deseja não é a mãe propriamente, mas um estado de satisfação e completude do qual se desfrutou durante o início da vida e que foi propiciado pelo contato com a mãe, tornando-a alvo inicial e mais forte representante desse desejo. A inserção da criança no mundo exterior, na sociedade, impõe a separação física e psíquica da mãe, vetando esse desejo primordial que será recalcado por meio da chamada metáfora paterna. Assim, o desejo nasce na forma de traços de evocação que se deslocam continuamente:

O desejo passa a existir somente quando o pré-consciente impede uma pulsão de se catexizar com um traço mnêmico particular - isto é, quando ela proíbe a expressão e a realização de um certo impulso direcionado ao prazer. Nesse momento, que geralmente se presume coincidir com a crise do Édipo, o desejo nasce. Esse nascimento envolve duas coisas: a fixação da significação inconsciente em relação ao traço mnêmico cujo acesso à consciência foi negado, e o deslocamento de sua afecção para um substituto que seja aceitável pelo mecanismo de censura. Em outras palavras, ele envolve a repressão do proibido e, por consequência, termo privilegiado, e sua substituição no nível pré-consciente por um termo não censurado. Esse deslocamento significa que a afecção que pertence ao primeiro é deslocada para este último. (SILVERMAN, 1983, p. 115, tradução nossa)

Conforme Dor (1985), a clivagem marca então a divisão do sujeito, na qual ele nasce como sujeito submetido à ordem Simbólica, que fará a mediação de sua relação com o mundo, enlaçando o Imaginário e o Real. Ao fim desse processo, um símbolo de linguagem (S2) designará metaforicamente o objeto primordial do desejo tornado inconsciente (S1), inaugurando as cadeias associativas, metonímicas, do desejo que partem da região inconsciente na direção consciente, e que se manterão em constante deslocamento por meio de traços de evocação (S3 em diante). A Figura 1 representa o esquema desse processo.

Recalque originário, clivagem e cadeia metafórica-metonímica
Figura 1
Recalque originário, clivagem e cadeia metafórica-metonímica
Fonte: DOR (1985, p. 102).

Consequentemente, o inconsciente deixa de ser entendido como o lugar da vontade em estado bruto, do desconhecido, daquilo sobre o que não se está consciente, para ser compreendido como a sintaxe, o regime de leis que passa a reger o desejo do sujeito após o recalque originário. Já o consciente deixa de ser o lugar do pensamento cristalino para se submeter às produções do inconsciente que afloram à sua revelia, tais como sonhos, chistes, atos falhos, inibições, fobias, entre outras formas de manifestações psíquicas que desconcertam aqueles que continuam a entender a pessoa humana como indivíduo. Se, por um lado, a teoria psicanalítica explica a constituição e o funcionamento psíquico do sujeito, por outro, mostra que ele é “incapaz de um autoconhecimento exaustivo” (SILVERMAN, 1983, p. 132, tradução nossa).

Freud diferencia desejo (Wunsch) da necessidade orgânica nascida de uma tensão interna e que pode ser satisfeita completamente, ainda que só temporariamente, pela ação de um objeto específico (por exemplo, o alimento). O desejo, diferentemente, está indissoluvelmente ligado a esses traços mnêmicos - de memória - das vivências infantis, como signos perenes a orientar as cadeias psíquicas inconscientes ao longo da vida. Asseverando a centralidade da noção de desejo para a psicanálise, Lacan a expande, distinguindo-a da demanda:

A necessidade visa um objeto específico e satisfaz-se com ele. A demanda é formada e dirige-se a outrem. Embora incida ainda sobre um objeto, este não é essencial para ela, pois a demanda articulada é, no fundo, demanda de amor. O desejo nasce da defasagem entre a necessidade e a demanda; é irredutível à necessidade, porque não é no seu fundamento relação com um objeto real, independente do sujeito, mas com a fantasia; é irredutível à demanda na medida em que procura impor-se sem levar em conta a linguagem e o inconsciente do outro, e exige absolutamente ser reconhecido por ele. (LAPLANCHE; PONTALIS, 2004, p. 114)

A incapacidade do recém-nascido de satisfazer suas necessidades o leva a expressá-las vocalmente, ainda que por meros gritos ou choro, o que é suficiente para atrair a atenção do outro para atendê-las. Contudo, a presença do outro logo ganha importância em si mesma, indo além da satisfação da mera necessidade, pois passa a simbolizar o amor do grande Outro (DYLAN, 2006), cujo representante primordial é a mãe. A demanda assume uma função dupla: articulação da necessidade e demanda de amor. Mas, embora o outro possa prover objetos dos quais o sujeito precisa para satisfazer suas necessidades, ele não pode prover o amor incondicional a que o sujeito aspira. Assim, mesmo satisfazendo as necessidades articuladas na demanda, o desejo por amor permanece insatisfeito, e essa diferença ou resto é o desejo, como excedente produzido pela articulação da necessidade com a demanda: “ao contrário de uma necessidade, que pode ser satisfeita e então deixa de motivar o sujeito até que surja outra necessidade, o desejo nunca pode ser satisfeito; é constante em sua pressão, e eterno” (DYLAN, 2006, p. 38, tradução nossa).

Conforme Roudinesco e Plon (1998, p. 558), como Lacan tratou da questão da alteridade, isto é, “da relação do homem com seu meio, com seu desejo e com o objeto, na perspectiva de uma determinação inconsciente”, criou-se uma terminologia própria para designar o que é da alçada e determinação pelo inconsciente (Outro), do que é do campo da simples dualidade (outro). O grande Outro pode ser compreendido como a ordem simbólica constituída tanto pelas instituições e cultura que regem a ordem social como, principalmente, pela linguagem e significações que a moldam, na qual o sujeito está imerso.

Para Lacan (1998, p. 269), o desejo humano encontra seu sentido no desejo do Outro, não porque o Outro detenha “as chaves do objeto desejado”, mas porque seu primeiro objeto é ser reconhecido pelo Outro. Isso evidencia a radicalidade do inconsciente como outra cena que escapa à consciência, pois, além das representações imaginárias do eu, o sujeito é determinado pela ordem simbólica designada como “lugar do Outro”, sendo distinguível do que é do âmbito da relação com o outro. Assim, é sempre o Outro que se expressa através do sujeito, pois é a partir do Outro que ele fala e deseja, pois, como define Lacan, o desejo do sujeito é o desejo do Outro. O desejo atua, portanto, como força contínua cuja realização não consiste em ser realizado propriamente, mas na sua própria reprodução de desejo como tal a se deslocar constantemente e a mover psiquicamente o sujeito.

Tendo se dedicado à psicologia experimental, embora sem contato com a teoria psicanalítica do inconsciente, Peirce (1905, CP 6.569) observou que “a doutrina de Descartes de que a mente consiste somente naquilo que ela diretamente afirma a si mesma na consciência unitária, todos os modernos psicólogos rejeitam […]. A parte obscura da mente é a parte principal”. Peirce (1866, CP 7.583) sempre considerou que o homem é um símbolo, isto é, um signo genuíno que se desenvolve segundo as leis de associação mental, cujo desenvolvimento possui efeitos no mundo físico. Partindo da descoberta freudiana, Lacan desvela o início desse processo e mostra o sentido em que essas associações se conduzem.

Esses signos, tratados como significantes pela psicanálise (S1, S2, S3 etc.), inauguram a subjetividade humana como uma semiose de significações que buscam, de maneira propositada, teleológica, a satisfação do seu desejo (Wunsch) em sentido amplo (lato) e singular, em referência àquele desejo primordial que o constitui, por meio da satisfação de suas demandas, que articulam necessidades e “desejos” em sentido estrito (para os quais Freud utiliza os substantivos Begierde e Lust), em referência à pluralidade de “objetos de desejo” que se quer, que “substituem” esse desejo primordial e que se sucedem como seus representantes nas cadeias psíquicas.

A realidade psíquica do sujeito, pura semiose desejante, pode ser explicada como um processo em que é predestinado a desejar e a demandar, e a buscar continuamente algum tipo de satisfação, ainda que parcial. O teor manifesto dessas demandas e de suas satisfações será matizado ao longo da vida, primeiramente pelo Outro, isto é, pelo contexto sociocultural e simbólico, mas também pelas experiências pessoais e pelo próprio desenvolvimento psíquico do sujeito. Por isso, para Colapietro (2014, p. 79), “o sujeito é, entre outras coisas, um meio através do qual forças e pessoas, outras que o sujeito, falam”, ou se expressam, e “todas as atividades da mente são formas de semiose”, como ações e movimentos sígnicos, “ainda que nem todas essas atividades sejam visíveis ao sujeito no qual elas acontecem” (COLAPIETRO, 2014, p. 81).

SUJEITO DESEJANTE: ENTRE O TER E O SER

Se o sujeito se constitui por uma semiose fundada em um desejo originário tornado inconsciente, que segue encadeando desejos atuais como demandas que o substituem ao longo da vida, fazendo o sujeito se mover na direção de sua satisfação, é inevitável perguntar sobre sua natureza. Em considerações sobre o propósito e significado da vida, o psicanalista Erich Fromm (1992) descreve o que ele classifica como o modo ter e o modo ser da existência.

Fromm observa que os seres vivos querem viver e, salvo em situações excepcionais, esse desejo é constante. No caso do ser humano, a natureza parece tê-lo dotado do desejo de viver (FROMM, 1992) independentemente das razões pelas quais ele racionaliza esse impulso. Contudo, o ser humano se pergunta como quer viver, o que esperar da vida, o que a torna significativa, e tais questões recebem respostas muito diferentes, entre as quais as mais frequentes são: amor, poder, segurança, prazer sensual, conforto e fama. Um consenso geral dessas visões é que a felicidade, seja da maneira que for, é aliada unicamente à satisfação ou à realização dos desejos. Essa constatação leva, por sua vez, à pergunta sobre quais são as necessidades cuja satisfação traz felicidade, mostrando que a questão sobre o objetivo e o significado da vida conduzem inevitavelmente ao problema da natureza das necessidades e desejos humanos.

Fromm (1992) afirma que atualmente predomina a crença de que a necessidade pode ser inteiramente definida em termos subjetivos. Fala-se em necessidades próprias, sem que sua origem seja questionada, e não se diferencia necessidades como fome e sede, de raiz fisiológica, da necessidade de comida ou bebida refinadas, ou mesmo de arte e pensamento teórico; não se questiona se estas são necessidades enraizadas no desenvolvimento social e cultural do homem, ou se foram socialmente induzidas, como a necessidade de cigarros, automóveis, dispositivos eletrônicos etc. Também não se questiona o efeito da satisfação dessas necessidades, se enriquecem a vida psíquica, se contribuem para seu crescimento, ou se a enfraquecem, sufocam, impedem seu crescimento ou são destrutivas (FROMM, 1992). A felicidade, na maioria dos casos, excetuando situações extremas com resultado evidentemente pernicioso, é meramente assemelhada a ter prazer, seja possuindo coisas e até mesmo pessoas, seja desfrutando de ambas.

Contudo, é possível pensar em termos objetivos. Por exemplo, sabemos que “a meta da vida de uma roseira é ser tudo aquilo que é inerente a sua potencialidade” (FROMM, 1992, p. 17), pois é o que acontece quando suas necessidades são satisfeitas, o que o jardineiro faz seguindo seu conhecimento prático e experiência, a fim de alcançar a meta de que ela se desenvolva plenamente e produza rosas bonitas, algo que ela também busca fazer, mesmo sem ajuda, adaptando-se ao meio e procurando por conta própria suprir os recursos necessários. No primeiro caso, em que a felicidade é concebida subjetivamente, pensa-se: “Serei feliz se conseguir todo o prazer que quero”. Na perspectiva objetiva da felicidade, pensa-se: “Serei feliz se conseguir o que devo querer, contanto que eu queira atingir um optimum de desenvolvimento e ‘bem-estar’” (FROMM, 1992). Dessa forma, a posição objetiva

Faz uma distinção fundamental, focaliza a questão de a necessidade ser proveitosa para o desenvolvimento do “bem-estar” do homem ou ser um estorvo e o prejudicar. Fala de tais necessidades como sendo enraizadas na natureza humana e proveitosas para o crescimento e autossatisfação do homem. Nesse segundo conceito, a natureza duramente subjetiva da felicidade é substituída por uma felicidade objetiva e normativa. Somente a satisfação dos desejos, que são do interesse do homem, conduz à felicidade. (FROMM, 1992, p. 16, grifo nosso)

Fromm nomeia como “desejos”, no plural, essas necessidades articuladas na forma de demandas pelo sujeito que não advém de necessidades genuínas, buscando um critério objetivo a partir do qual eles possam ser estabelecidos. O autor considera também que, embora haja discordância desse modo objetivo de conceber a felicidade, alegando tratar-se de um juízo de valor sem base teórica, atualmente já se conhece o caráter patológico e prejudicial de paixões, tais como a ânsia por poder, fama, posses, vingança, controle, sendo possível qualificar estas e outras demandas semelhantes como prejudiciais em termos teóricos e clínicos (FROMM, 1992). Por exemplo basta pensar nos executivos que ficam doentes como resultado de um modo de vida estressante devido ao excesso de ambição, dependência do sucesso material e à falta de um núcleo pessoal. Sendo assim, o psicanalista pergunta:

Será que não podemos falar de uma natureza do homem? E, se assim for, será que não há uma natureza do homem objetivamente definível que conduza à hipótese de que sua meta é a mesma de todos os seres humanos, isto é, o seu funcionamento mais perfeito e a mais completa realização de suas potencialidades? (FROMM, 1992, p. 17)

Adentrar a questão de quais seriam as necessidades e desejos comuns a todos os seres humanos e cuja satisfação é capaz de conduzi-los a esse optimum de funcionamento, desenvolvimento e realização, e de como identificá-las teoricamente, levaria a discussão para além dos objetivos deste estudo. Todavia, como se trata de investigar a relação entre a lógica de consumo e a insatisfação pessoal, pode-se observar que há diferenças entre desejos de base puramente subjetiva e aqueles fundamentados em uma perspectiva objetiva, sendo possível distinguir de maneira empírica, no cotidiano da existência, entre os que podem ser chamados de desejos indesejáveis, ligados unicamente à obtenção de prazer através de algo, e desejos desejáveis, ligados ao desenvolvimento das potencialidades humanas.

Os efeitos do primeiro tipo de desejo podem ocorrer de duas formas: ou sua satisfação se esgota em si mesma, sem consequências proveitosas para o funcionamento, desenvolvimento e realização do sujeito, e são classificados como desejos neutros ou inúteis; ou sua satisfação é prejudicial, acarretando malefícios em termos somáticos, psíquicos etc., podendo ser tomados como desejos nocivos. A satisfação de desejos desejáveis, por outro lado, é capaz de realizar as potencialidades de um ser como tal em função de sua natureza fértil, fazendo-o crescer internamente, levando-o à autossatisfação pelo exercício e realização dessas potencialidades.

Nessa perspectiva, a satisfação que se dá pela obtenção de prazer imediato pode ser forte, arrebatadora, mas, ao mesmo tempo, é sempre superficial, efêmera, esgotando-se rapidamente. Esse tipo de satisfação está em contraposição àquela que advém dos processos de crescimento e autorrealização, e que somente pode ser construída e alcançada de forma lenta, cujos resultados são sempre duradouros e profundos. No primeiro tipo, modo ter de existir e desejar, busca-se conseguir o máximo de prazer no presente, e no segundo, modo ser de existir e desejar, cultiva-se o prazer de conquistar-se a si mesmo para o autodesenvolvimento, com base em investimentos mais duradouros. Isso significa que, vivendo de acordo com o modo ter, o sujeito é levado ao rápido e constante deslocamento na direção de sempre novos objetos de desejo, sendo evidente o quanto o discurso publicitário se insere e estimula esse modo de desejar, muitas vezes até emulando e prometendo alguma satisfação ao nível do ser, mas que, em verdade, é somente mais uma forma disfarçada de obter prazer do primeiro tipo.

SIGNOS DO CONSUMO: O DISCURSO DO DESEJO

A lógica do hiperconsumo se vale da capacidade do discurso publicitário de apresentar-se como cadeia sígnica inestancável, na qual cada produto ou serviço oferecido diante de uma necessidade ou demanda abre vias associativas que levam a novos “desejos”. Conforme Salecl (2005), em seus apelos, esta lógica encoraja o consumidor a reavaliar constantemente seu estado atual de felicidade e satisfação, sempre em função dos modelos propostos para alcançá-la, fazendo-o querer sempre mais, arrastando-o por meio de uma série de motivações pré-determinadas por essa lógica. Como o sujeito se constitui marcado por uma falta, “constantemente tenta recuperar o objeto que percebe como a encarnação do prazer perdido e que pode preencher o vazio. O próprio fato de o sujeito ser marcado pela falta é então a máquina que mantém o desejo vivo” (SALECL, 2005, p. 24). A sociedade de consumo se alimenta e estimula o modo ter de desejar, pois fica evidente o quanto é conveniente à manutenção da ordem mercantil que o desejo, expresso em demandas de variados tipos, se desloque freneticamente:

O anúncio publicitário, a firma produtora e a marca, que desempenha aqui papel essencial, impõem a visão coerente, coletiva, de uma espécie de totalidade quase indissociável, de cadeia que se deixa aparecer como série organizada de objetos simples e se manifesta como encadeamento de significantes, na medida em que se significam um ao outro como superobjeto mais complexo e arrastando o consumidor para uma série de motivações mais complexas. Descobre-se que os objetos jamais se oferecem ao consumo na desordem absoluta. Em determinados casos, procuram imitar a desordem, para melhor seduzir, ordenando-se sempre, no entanto, para abrir vias diretoras, para orientar o impulso de compra em feixes de objetos, encantando-o e levando-o, dentro da própria lógica, até o máximo investimento e aos limites do respectivo potencial econômico. (BAUDRILLARD, 2005, p. 17)

O deslocamento somente pode ocorrer entre termos que se atraem e remetem um ao outro por serem similares ou adjacentes; dessa forma, “o desejo é, em efeito, nada mais do que uma série de metáforas e metonímias, deslocamentos partindo de um ponto de origem inconsciente no qual um termo substitui outro, ao qual ele ou se assemelha ou é contíguo, antes de ser submetido novamente ao mesmo destino” (SILVERMAN, 1983, p. 115, tradução nossa). Essa possibilidade de deslocamentos significantes do desejo ao longo de linhas metafóricas e metonímicas permite ao desejo certa flexibilidade significante (SILVERMAN, 1983, p. 120). A prodigalidade dessas operações funciona criando afinidades que, sendo maleáveis, plásticas, podem ser provocadas e exploradas por meio de estratégias de sugestão, uma vez que similaridades e contiguidades não são inerentes aos objetos em si mesmos, mas estabelecidas nas percepções que se tem deles, e que, por sua vez, são culturalmente formatadas por meio da circulação da informação em sociedade, processo que reflete a ordem simbólica e suas determinações de maneira ampla. Metáfora e metonímia coexistem e se imbricam, oferecendo, assim, uma variedade de formações mediatórias (SILVERMAN, 1983, p. 121).

Por conseguinte, como explica Santaella (1996, p. 29), em um nível de maior complexidade, além das formações do inconsciente serem pré-condicionadas pela linguagem, “sob o ponto de vista semiótico, elas são, nelas mesmas formações sígnicas que apresentam um estatuto próprio”, podendo ser compreendidas ao longo desses dois eixos de associações por semelhança e contiguidade, que foram considerados por Peirce como as duas leis do funcionamento da mente:

Embora a linguística estrutural tenha tornado famosa a dicotomia acima, pode-se, no entanto, afirmar que se trata de uma descoberta anterior à linguística moderna. Na sua releitura dos empiristas ingleses, Peirce (CP 7.391-498) já dizia, no século passado, que as associações por contiguidade e similaridade são as duas leis da mente. E são tão gerais que estão para a mente assim como a lei da gravidade está para a natureza. De fato, em todo e qualquer sistema de signos, verbais, não verbais, e talvez até mesmo naturais, as mensagens se organizam de acordo com esses dois eixos. (SANTAELLA, 1996, p. 32)

Essas duas formas de associação regem a vida dos signos. A associação por similaridade está na base do funcionamento icônico, e a contiguidade responde pelos índices. Contudo, é preciso lembrar que um signo simbólico encapsula aspectos indiciais e icônicos, bem como os índices compreendem aspectos icônicos, fazendo do funcionamento do ícone a base para todos os outros signos. Como observam Santaella e Nöth (2010, p. 146-147), a publicidade pode se servir de signos icônicos como meio de sugestão para obter um “ganho semiótico”, mostrando atributos que um objeto de fato não tem, manipulando significações e “utilizando uma estratégia parasitária, na medida em que substitui semelhanças factuais preexistentes por semelhanças construídas. O signo icônico permite esse tipo de estratégia de construção de semelhanças porque a semelhança é uma categoria extremamente flexível”. A percepção de semelhanças é tanto uma categoria cognitiva como um fato da experiência, e

Semelhanças produzidas por mensagens publicitárias podem ser criticadas por se caracterizarem como uma tentativa de manipulação a partir de semelhanças que, no fundo, não são semelhanças. Elas podem ser vistas como uma tentativa de estabelecer ligações entre semelhanças e argumentos que não possuem qualquer plausibilidade cognitiva. (SANTAELLA; NÖTH, 2010, p. 147)

Um exemplo de construção desse tipo de estratégia sedutora, porém desprovida de plausibilidade, pode ser encontrado no estudo intitulado “Vida Zero: reflexões sobre jouissance e frustração no hipercapitalismo” (JUNGK, 2017), no qual mostra-se como o uso da palavra zero pelos meios publicitários para anunciar produtos e serviços, seja como signo linguístico ou matemático (por exemplo, Coca Zero, Zero Cal, 0% de juros, entrada zero etc.) é capaz de exercer uma grande força sugestiva sobre o sujeito contemporâneo. Ao deslindar essa semiose específica, é possível tornar perceptível um processo significante que ocorre de maneira inconsciente e que tem levado à adoção de um estilo de vida cada vez mais aceito e buscado por consumidores em geral, que prima pela falta de limites para a busca de satisfação, para a descarga libinal. O funcionamento semiótico dessa estratégia pode ser compreendido a partir do conceito de signo e os modos de relação com seu objeto (simbólicos, indiciais e icônicos), bem como pelo seu modo peculiar de funcionamento no processo interpretante, capaz de elucidar a forma como esse recurso sugestivo é captado e processado pelo sujeito, o que pode ser sintetizado como segue.

Em si mesmo, o número zero possui caráter simbólico, pois seu significado é codificado em um sistema de regras segundo o qual ele significa a ausência de determinada quantidade (sejam unidades, dezenas, centenas etc.) em função de sua posição, gerando uma interpretação correspondente. Contudo, na mídia publicitária, sua capacidade para significar vai além de sua natureza convencional e mesmo indicial ao ser associado a um determinado atributo ou componente de um produto ou serviço.

Por trás do sentido literal, há uma mensagem figurada subjacente, por ele ser utilizado também de forma icônica, aludindo, no discurso publicitário, à possibilidade de satisfação irrestrita. Deslocado do sistema de regras que determina sua interpretação, funciona como um hipoícone (PEIRCE, 1902, CP 2.277), isto é, um tipo de signo icônico que se constitui por uma semelhança de aspectos qualitativos entre o signo e o objeto referido, cujo valor, neste caso, é especialmente metafórico, em função de uma reciprocidade de significados, de um paralelismo com seu caráter representativo. Esse fenômeno se explica porque todo existente “ex-siste” (PEIRCE, 1905, CP 5.429), isto é, exerce uma ação sobre outros existentes através de processos de ação e reação, gerando certos efeitos. O zero, porém, indica que algo não existe em determinado produto ou serviço, portanto, não haverá consequências que decorreriam de sua existência ali. Ou seja, por essa lógica, seria possível, por exemplo, consumir à vontade um produto com zero calorias, supostamente sem nenhuma consequência para a saúde. Como a autolimitação do comportamento surge da reflexão acerca de suas possíveis consequências, o zero, por se tornar o ícone da não existência dessas consequências, alude à possibilidade ilimitada de satisfação, deixando o caminho livre para um comportamento irrefletido e sem limites. Com essa estratégia rebuscada, transmite-se a ideia de que a satisfação tem “custo” zero para o sujeito, insinuando-se metaforicamente, via semelhança de significados, a possibilidade de levar um determinado tipo de vida em que o prazer seria máximo e não haveria consequências (JUNGK, 2017), o que não corresponde à realidade.

Torna-se evidente, assim, como os signos do consumo podem, de maneira imperceptível, imiscuir-se na semiose do sujeito, sempre desejante, encantando-o e “reorganizando” seu modo de existir e desejar, seguindo sua própria lógica ao se valer de processos associativos semelhantes àqueles que regulam o funcionamento de sua psique, porém de maneira falaciosa. Em função dos modos de desejar e dos tipos de desejos que foram apontados, é possível observar que uma das estratégias utilizadas pelo discurso publicitário consiste em estimular a predileção pelo modo ter de viver, convencendo o sujeito de que as consequências de sua adoção inexistem através de metáforas como essa de uma “vida zero” ou sem consequências, em que aspectos negativos de um produto ou serviço que o tornariam indesejável, indigno de ser perseguido, são deslocados, substituídos e associados a outras perspectivas que o tornam aceitável para o sujeito, driblando formas de censura consciente e inconsciente, reorientando sua conduta em função dos interesses de mercado.

Salecl (2005, p. 25) observou como, em um sistema capitalista desenvolvido, a relação do sujeito no campo social forma um discurso particular, verdadeiro “discurso do capitalismo”, no qual “o sujeito se relaciona com o campo social de um modo que ele ou ela toma a si mesmo como mestre”, como se fosse um agente dotado de enorme poder para recuperar a jouissance perdida. Por outro lado, o grande Outro também se transforma no capitalismo tardio (SALECL, 2005, p. 29-32), dissolvendo-se com “o surgimento de uma pluralidade de grandes Sujeitos”, em função do declínio da força de autoridades e instituições reguladoras, tal como a Igreja, e da expansão do progresso científico e do excesso de informação. E, como não há mais “um” grande Outro como conjunto simbólico embora incompleto e incoerente com quem se identificar, essa fase tardia da sociedade capitalista é repleta de semblantes do Outro, funcionando na sua maior parte apenas como “espaço simbólico alienante e difuso”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O atributo constitutivo fundamental de um signo consiste na capacidade de gerar outros signos no processo interpretativo. Esse processo, uma vez iniciado, tende a se perpetuar por impulso próprio. Assim, todo signo é capaz de afetar, em algum grau, sentimentos, disposições de comportamento, ideias e pensamentos, o que muitas vezes passa despercebido. Por outro lado, a psicanálise mostra que o desejo constitui o sujeito como tal, que esse processo segue uma lógica sígnica, associativa, mas que nem todos os desejos e seus efeitos são iguais.

Se, como ressalta Lipovetsky (2005, p. 19), “chegamos ao ponto em que o ‘consumo’ invade toda a vida, em que todas as atividades se encadeiam do mesmo modo combinatório, em que o canal das satisfações se encontra previamente traçado”, torna-se fundamental lançar luz sobre os discursos sedutores e rebuscados da publicidade, em que os signos do hiperconsumo são configurados de maneira assujeitante, induzindo escolhas que facilmente escapam ao escrutínio consciente. A insatisfação que grassa na atualidade, sintomatizada em uma gama variada de desconforto interior, aponta para um sujeito que sofre as consequências psíquicas desses signos sociais e que, muitas vezes, sucumbe sob seu peso, por não compreender como se dá sua influência. A pulverização do grande Outro e a “elevação” do sujeito a mestre e criador de si mesmo produzem as condições para a esgarçadura da flexibilidade significante, que fica desprovida de parâmetros simbólicos orientadores da conduta e das escolhas subjetivas. As demandas, através de seus objetos, são, em última instância, a busca de amor e reconhecimento por parte do sujeito na ordem simbólica, o que somente pode ocorrer por meio de seu desenvolvimento psíquico.

Diante desse cenário, não se trata de condenar o consumo e a organização da sociedade capitalista simplesmente, mas de compreender em que aspectos sua dinâmica pode ser antagônica àquilo mesmo que se busca através da produção e circulação de bens e serviços. A perspectiva interdisciplinar da aplicação conjunta da semiótica e da psicanálise pode apontar um futuro caminho para a conscientização dos sujeitos e, por conseguinte, para a construção de uma possível e desejável liberdade de escolha dos referenciais simbólicos e caminhos de desenvolvimento subjetivo. Da mesma forma, esse quadro teórico pode ajudar a pensar quais os tipos de discursos e, talvez, até mesmo quais os tipos de produtos e serviços que são capazes de estimular o bem-estar e a felicidade segundo o modo ser de desejar e viver, uma vez que estes transmitem conjuntos específicos de significações e valores que impactam diretamente a ordem social e a vida psíquica do sujeito consumidor.

REFERÊNCIAS

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JUNGK, Isabel. Vida Zero: reflexões sobre jouissance e frustração no hipercapitalismo. Leitura Flutuante: Revista de Estudos em Semiótica e Psicanálise, São Paulo, v. 9, n. 2, p. 2-13, 2017.

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