artigo

SEMIÓTICA DO ESPELHO DIGITAL12

Digital mirror semiotics

Semiótica del espejo digital

Massimo Leone
Universidade de Turim, Itália

SEMIÓTICA DO ESPELHO DIGITAL12

Signos do Consumo, vol. 13, núm. 2, e193201, 2021

Escola de Comunicações e Artes da USP

Recepção: 07 Dezembro 2021

Aprovação: 07 Dezembro 2021

Financiamento

Fonte: Conselho Europeu de Investigação (CEI)

Número do contrato: 819649-FACETS

Descrição completa: Este ensaio resulta de um projeto que recebeu financiamento do Conselho Europeu de Investigação (CEI) ao abrigo do programa de investigação e inovação Horizon 2020 da União Europeia (Acordo de subvenção n.º 819649-FACETS).

RESUMO: Os novos espelhos digitais e as imagens que eles devolvem e com as quais frequentemente despertam desejo e consumo diferem dos espelhos analógicos, que Umberto Eco considerava exteriores à ampla gama da semiótica. Os espelhos digitais são, na verdade, telas que simulam espelhos e, por isso, não só já “mentem” em sua função refletiva, mas também podem mentir ainda mais graças aos novos formatos e processos de espelhamento digital, como as selfies e os filtros. Quanto a esses novos espelhos, faz-se a pergunta “Espelho, espelho meu, haverá alguém mais bela do que eu?”, e eles sempre respondem: “Você, é claro, sempre você é a mais bela”. Nesse sentido, este artigo reflete sobre os espelhos digitais como parte de uma consideração mais ampla sobre a ética das imagens na era digital. A ética das imagens difere da ética das palavras, ao contrário destas, as imagens sempre carregam uma motivação intrínseca. Há, naturalmente, algo convencional nas imagens, e pode haver motivação nas palavras, mas a materialidade dos sinais visuais ancora a figura à realidade e à percepção de uma forma diferente e mais coerente, razão pela qual as imagens não mentem da mesma forma que as palavras. Mesmo quando são de fantasia, elas transmitem uma ideia de possibilidade real que as palavras dificilmente podem evocar. Duas posições ideológicas diferentes podem ser tomadas no que diz respeito à relação entre as imagens e o efeito de realidade que elas provocam. As humanidades, incluindo a semiótica, tendem a enfatizar o peso do contexto cultural. No entanto, evidências crescentes mostram que as imagens também funcionam graças à combinação com a neurofisiologia inata da cognição. Os humanos estão biologicamente inclinados a reagir às imagens, e as representações desencadeiam percepções que diferem entre si de acordo com a sua tecnologia, que está evoluindo por meio do acúmulo na história humana. A semiótica é, portanto, chamada a desmascarar a propaganda realista dos novos dispositivos de representação e exibição, apontando para sua convencionalidade, mas também deve levar em conta como novos avanços na produção de simulacros tendem a introduzir dinâmicas emergentes na relação entre as imagens e a percepção humana. O visual falso de hoje é de fato um pouco mais poderoso que os de épocas passadas, uma vez que é construído através de máquinas e seu resultado só pode ser desmascarado por outras máquinas. Além disso, a evolução das culturas digitais cria uma indefinição de gêneros fictícios e não-ficcionais e o visual falso começa a circular como um vírus, multiplicando as ocasiões para suspensões ambíguas de descrença. Assim, é necessária uma nova ecologia do falso que seja capaz de dar origem, por sua vez, a uma semioética razoável do visual falso.

PALAVRAS-CHAVE: Espelhos, Representação digital, Semiótica, Falso, Epidemiologia cultural.

ABSTRACT: The new digital mirrors and the images they reflect, which often arouse desire and consumption differ from analogic mirrors that Umberto Eco considered to be outside the broad range of semiotics. Digital mirrors are, actually, screens that simulate mirrors, thus, they not only already ‘lie’ in their reflective function, but they can lie even more thanks to new formats and processes of digital mirroring, such as selfies and filters. about these new mirrors we ask the question “Mirror, mirror on the wall, who is the fairest of them all?”, which they always answer with “you, of course, always you”. In this sense, this article reflects on digital mirrors as part of a broader consideration of the ethics of images in the digital age. The ethics of images differs from the ethics of words since images always carry an intrinsic motivation that words do not. Images of course have something conventional in them, and words might have a motivation, yet the materiality of visual signs anchors the image to reality and to perception in a different and more coherent way, which is why images do not lie in the same way in which words do. Even when they are farfetched, the images transmit an idea of real possibility that words can hardly evoke. Two different ideological stances can be taken regarding the relation between images and the reality effect they prompt. Humanities, including semiotics, tend to emphasize the weight of the cultural context. However, increasing evidence shows that images also work due to matching the innate neurophysiology of cognition. Humans are biologically inclined to react to images, and representations trigger different perceptions depending on their technology, which is evolving by accumulation throughout human history. Semiotics is, therefore, called to debunk the realistic propaganda of new representation and display devices, pointing at their conventionality, and to consider how new advances in the production of simulacra tend to introduce emerging dynamics in the relation between the images and the human perception. The fake visual of today is indeed somewhat more powerful than those of past times since it is constructed by machines their outcome can be debunked only by other machines. Furthermore, the evolution of digital cultures creates a blurring of fictional and non-fictional genres and the fake visual starts to circulate like a virus, multiplying the occasions for ambiguous suspensions of disbelief. Thus, a new ecology of the fictional, able to give rise, in turn, to a reasonable “semioethics” of the fake visual, is necessary.

KEYWORDS: Mirrors, Digital representation, Semiotics, Fake, Cultural epidemiology.

RESUMEN: Los nuevos espejos digitales y las imágenes que devuelven, las cuales muchas veces despiertan el interés y consumo, se diferencian de los espejos analógicos considerados por Umberto Eco ajenos del amplio abanico de la semiótica. Los espejos digitales son, de hecho, pantallas que simulan espejos y que no solo “mienten” en su función reflectante, sino que pueden hacerlo más aún gracias a los nuevos formatos y herramientas del espejo digital, como selfies y filtros. Respecto a estos nuevos espejos, cabe interrogarse “Espejito, espejito que me ves, ¿hay alguien más bella que yo?”, y siempre responden: “Tú, por supuesto, eres siempre la más hermosa”. En este sentido, este artículo reflexiona sobre los espejos digitales como una consideración más amplia de la ética de las imágenes en la era digital. La ética de las imágenes se diferencia de la ética de las palabras, porque las imágenes siempre llevan una motivación intrínseca que no tienen las palabras. Existe lo convencional en las imágenes y puede haber motivación en las palabras, pero la materialidad visual de los signos sostiene la figura en la realidad y en la percepción de una forma diferente y más coherente, por eso las imágenes no mienten de la misma forma que las palabras. Las imágenes, incluso cuando son fantasía, transmiten la idea de una realidad posible que difícilmente pueden evocar las palabras. Se pueden tomar dos posiciones ideológicas diferentes con respecto a la relación entre las imágenes y el efecto de realidad que provocan. Las Humanidades, incluida la semiótica, tienden a enfatizar el peso del contexto cultural. Sin embargo, hay pruebas que demuestran que las imágenes también funcionan gracias a su combinación con la neurofisiología innata de la cognición. Los humanos propenden biológicamente a reaccionar a las imágenes, y las representaciones desencadenan percepciones distintas entre sí según su tecnología, que está evolucionando a través de la acumulación en la historia humana. Por tanto, la semiótica es llamada a desenmascarar la propaganda realista de los nuevos dispositivos de representación y exhibición, apuntando a su convencionalidad, así como a considerar cómo los nuevos avances en la producción de simulacros tienden a introducir dinámicas emergentes en la relación entre imágenes y percepción humana. Las apariencias falsas de hoy son un poco más poderosas que las de tiempos pasados, ya que se construyen usando máquinas y su resultado solo puede ser desenmascarado por otras máquinas. Además, la evolución de las culturas digitales produce incertidumbre de los géneros de ficción y no ficción, y la apariencia falsa comienza a circular como un virus, multiplicando las ocasiones en momentos ambiguos de incredulidad. Por tanto, se necesita una nueva ecología de lo falso que sea capaz de dar lugar, a su vez, a una razonable “semioética” de apariencia falsa.

PALABRAS CLAVE: Espejos, Representación digital, Semiótica, Falso, Epidemiología cultural.

“What does a mirror look at, Rabbi?”

Frank Herbert

INTRODUÇÃO: A PROMESSA DO ESPELHO

Quando falamos em semiótica do consumo, devemos lembrar que as imagens também são objetos que consumimos. Devemos, portanto, estar cientes da natureza semiótica desses objetos, uma vez que, se o ignorarmos, nos tornaremos vítimas da nossa própria ignorância. Consumir imagens sem estar ciente de sua natureza interna significa se tornar presa de agências externas que podem fazer conosco o que quiserem. Logo, para entender as imagens, é importante entender o desejo de ver. Por que desejamos ver e por que desejamos ver certas imagens em particular?

O mito de Narciso parece sugerir que o desejo primário de ver tem raiz no fato de que somos incapazes de ver diretamente nossos corpos e, especialmente, nossos rostos. É um paradoxo: o rosto é a interface primária da interação social, bem como o meio pelo qual a maioria dos sentidos se manifesta, embora nunca possamos vê-lo. Podemos ver o nosso próprio rosto apenas como um signo, como um reflexo em uma superfície espelhada. Eco (1989) escreveu um importante ensaio sobre como os espelhos não são, na verdade, objetos para a semiótica. Ele ensinou que, como os espelhos sempre refletem de acordo com a mesma regra, não podem mentir e, portanto, não podem ser objeto de indagação para a disciplina que estuda tudo que pode servir para mentir. Entretanto, Eco talvez tenha subestimado o fato de que os espelhos não produzem imagens puramente indexicais; eles mentem no sentido de que podem distorcer indexicalmente a imagem que refletem e porque a imagem, que é o produto de seu reflexo, é sempre interpretada de acordo com uma lógica que nunca é puramente indexical. Quando nos vemos no espelho, não vemos a imagem puramente indexical de nós mesmos, mas uma imagem que sempre envolve certo convencionalismo. Isso fica evidente em todas as patologias em que as pessoas ficam realmente apavoradas com sua imagem no espelho ou a veem fragmentada e distorcida.

Há alguns dias, sonhei que me via no espelho e não conseguia reconhecer a imagem refletida do meu rosto. Porém, isso acontece não só nos sonhos angustiantes, mas também na realidade: os espelhos nos refletem, mas nós também refletimos os espelhos e atribuímos um significado particular às suas imagens aparentemente indexicais. Se acreditamos que os espelhos nos apresentam uma representação fiel de nosso rosto, é porque esse mito indexical de alguma forma nos foi vendido. Houve uma época, uma longa época na história da humanidade, em que os espelhos não existiam. Eles foram inventados em alguma etapa, aperfeiçoados em outra, vendidos em outra e propostos com a promessa retórica de realismo indexical de que finalmente as pessoas seriam capazes de ver seus rostos, finalmente poderiam ver sua verdadeira face. O desejo ancestral de ver e de ver o rosto seria satisfeito, assim, por meio do dispositivo do espelho.

A fotografia, de certa forma, transformou o princípio do espelho em uma técnica de produção e reprodução de simulacros que, com o cinema e, posteriormente, com a vídeo-produção, viraram simulacros em movimento. A virada digital, entretanto, introduziu uma nova possibilidade na ética da imagem espelhada e na política de seu consumo. Pela primeira vez, imagens completamente arbitrárias puderam ser inventadas para dar uma impressão de realismo especular. Cada vez mais usamos as telas de nossos telefones celulares como espelhos, mas eles funcionam, tecnicamente, de uma maneira completamente diferente. A pretensão de indexicalidade que tinham os espelhos tradicionais e que fazia Eco (1989) acreditar que os espelhos não eram signos era - pelo menos parcialmente - justificada pelo fato de os espelhos produzirem as suas imagens de acordo com uma regra física. Há também certa física nos algoritmos, mas a determinação da maneira como eles produzem imagens é muito mais difícil de entender. Percebemos que nossos celulares nos apresentam imagens que nos lembram a realidade, mas as convenções pelas quais essas imagens são produzidas escapam à compreensão da maioria dos usuários. Isso nos leva de volta a considerar a relação entre o consumo das imagens, a sua ética e a antiga questão filosófica do falso.

A NATUREZA ÍNTIMA DA FALSIFICAÇÃO VISUAL

A questão da ética das imagens e a do falso estão intimamente relacionadas. É por meio de imagens que a espécie humana pode representar e evocar não só o que é, mas também o que não é, dando origem às ilusões. É claro que esse também é o caso da linguagem verbal, visto que, também por meio de palavras, os seres humanos podem descrever o que não é. No entanto, subsiste uma diferença semiótica essencial entre o falso das imagens e o das palavras que pode ser explicada apropriadamente nos termos da semiótica de Charles S. Peirce.

As imagens são predominantemente icônicas; seus tecidos podem ser, em parte, convencionais, mas a essência deles é motivada e o que eles representam é reconhecido pela sua semelhança material com a forma como tecido os representa. As palavras, ao contrário, são amplamente simbólicas: é por meio de uma convenção silenciosa que elas fazem o que fazem. Essa diferença, aninhada nas raízes da linguagem, é crucial no que diz respeito ao falso nas imagens: embora flagrantemente absurdas, elas sempre falam a verdade sobre sua motivação, e isso repercute no que contam. A foto falsificada de um líder político supostamente pego em comportamento obsceno pode muito bem ser reconhecida como rebuscada, seja pelas suas qualidades materiais - quando a falsificação é ruim - ou pelo seu gênero - quando é apresentada como uma caricatura -, mas, ainda assim, carrega motivação com ela. É uma imagem falsa, o que significa que representa um evento que nunca aconteceu, mas, ao mesmo tempo, é uma imagem verdadeira, porque o representa através de uma materialidade que segue as regras semióticas da iconicidade. Concluindo uma revisão sistêmica da relação entre imagens e mentiras, o semioticista Winfried Nöth conclui:

O resultado do nosso estudo foi que as imagens podem ser usadas para afirmar ou enganar sobre fatos a partir da dimensão semântica, sintática e, com certas reservas, também da dimensão pragmática. Isso não significa que afirmar e mentir são modos muito típicos de informações pictural. A maioria das estratégias manipuladoras da informação pictórica na mídia não são falsificações diretas da realidade expressas na modalidade assertiva, mas manipulações por meio de uma pluralidade de modos indiretos de significados veiculados. (NÖTH, 1997, p. 144, tradução nossa)

A motivação intrínseca de uma imagem subsiste também quando ela não agrega um nível figurativo adequado, isto é, quando não representa nenhum objeto reconhecível, aquele que poderia ser rotulado por meio da linguagem verbal. Na verdade, uma forma, uma topologia ou uma cor - até mesmo um componente dela, como um matiz, um nível de brilho ou saturação - sempre pode ser reconhecida. Uma pintura abstrata, desse ponto de vista, acarreta uma ontologia que uma palavra abstrata - um neologismo absurdo, por exemplo - não produz. Consiste em uma materialidade que sempre se refere à existência primária da luz modelada e a uma matéria preexistente. Também as palavras, tanto na sua expressão escrita como na oral, devem apoiar-se na matéria, como os contrastes de luz da tipografia ou os do som. Mas essa referência já é simbólica, não icônica como nas imagens. Os padrões de luz que sustentam a forma, a topologia e as cores de uma imagem já guardam uma relação icônica com o que podem representar, uma vez que a espécie humana percebe o mundo como imagem, embora com características que são apenas parcialmente correspondidas pela formação de imagens por meio de tecnologias como o desenho ou a pintura - falta de cor, falta de três dimensões etc. Mesmo nos casos mais extremos, como as telas brancas da pintura abstrata, a moldura é suficiente para designá-las como imagens e, portanto, distingui-las como signos de uma realidade externa, enquanto a simples cor branca é uma referência à matéria subjacente de luz: a moldura transforma a luz em uma imagem semelhante a ela.

A FALSIFICAÇÃO VISUAL, A TECNOLOGIA E A EVOLUÇÃO

Dentro dessa interpretação teórica, a evolução da tecnologia para a criação de imagens inevitavelmente impacta a força e a persistência da motivação destas. Os humanos atuais, ao observarem a imagem de um búfalo na rocha de uma caverna pré-histórica, ainda a consideram bastante realista, afinal, podem reconhecer um búfalo nela e por meio dela. Eles ficam até surpresos com o nível de iconicidade que a imagem exibe. No entanto, essa surpresa é sempre limitada temporalmente. Se um búfalo fosse desenhado da mesma forma hoje, seria recebido como uma expressão da arte primitiva, não como uma representação realista. A razão disso é simples: nesse ínterim, a tecnologia de imagem evoluiu. Pinturas em cavernas podem surpreender devido ao seu realismo primitivo, mas as imagens virtuais em movimento tridimensional de búfalos agora maravilham as pessoas com seu realismo atual (PEREZ; TRINDADE, 2018).

A evolução tecnológica pode ser vista por meio de diferentes ideologias semióticas. As ciências humanas e sociais, com notáveis exceções, geralmente adotam uma ideologia de culturalização - fenômenos que envolvem os seres humanos e as suas sociedades são estudados em relação com suas circunstâncias contextuais. Desse ponto de vista, a realidade virtual digital não é mais realista do que as pinturas nas cavernas, apenas apresenta imagens de forma diferente; as pinturas nas cavernas eram, mutatis mutandis, a realidade virtual dos tempos pré-históricos.

Essa visão tem uma vantagem: ajuda a contextualizar e, portanto, a relativizar o poder das imagens. Ademais, sublinha que, por mais motivada que pareça, a iconicidade sempre resulta, pelo menos parcialmente, da linguagem e de uma convenção, visto que, conforme a convenção muda, também muda o nível de realismo percebido da imagem. Esse fenômeno é evidente especialmente nas épocas em que o desenvolvimento da tecnologia da representação é rápido em relação ao tempo médio de vida humana. O humano pré-histórico também pode ter experimentado essa mudança quando, por exemplo, usou pela primeira vez um certo pigmento em pinturas rupestres, mas é improvável que, na vida desse ser humano, tal experiência de mudança tecnológica radical pudesse ter sido encontrada repetidamente. Para o ser humano contemporâneo, pelo contrário, a mudança tecnológica é mensal, se não diária. No domínio da representação, muitos daqueles que nasceram quando a televisão em cores ainda não havia sido difundida ainda estão vivos e experimentaram o advento de telas digitais e planas, da resolução de imagem disparada, da realidade virtual e, em breve, da realidade aumentada. Lucia Santaella (2015) analisa perfeitamente este processo em termos de “grande aceleração”:

Embora apresentem semelhanças com as divisões acima mencionadas, as seis que foram por mim adotadas delas se distinguem, inclusive cheguei a elas de maneira independente, ao seguir a gradativa introdução histórica de novos meios de produção, armazenamento, memória, transmissão e recepção de linguagens no seio da vida social. Por já haver explicitado em mais de uma ocasião o perfil de cada uma dessas formações que também chamo de eras culturais, o que vale enfatizar no contexto deste artigo é a aceleração crescente no ritmo de passagem de uma era a outra. (SANTAELLA, 2015, p. 50-51)

CONVENCIONALIDADE E MOTIVAÇÃO NA TECNOLOGIA DO VISUAL FALSO

Por um lado, o aumento da velocidade de mudança na tecnologia da representação parece confirmar a hipótese daqueles que abraçam uma ideologia culturalista, uma vez que o espectador ter se acostumado com a resolução de uma tela 4K define o padrão do realismo final e a televisão, com a tecnologia anterior, inevitavelmente passa a impressão de irrealismo. Esse efeito de “visão vintage”, no entanto, é cada vez mais comum e significa que, enquanto a convencionalidade tem codeterminado a recepção da iconicidade ao longo da evolução das espécies, a velocidade de mudança tem mostrado uma tendência de crescimento ao longo da história humana, provavelmente por impacto cumulativo: novas tecnologias geram novas tecnologias e assim por diante. Até agora, no domínio da tecnologia da representação, essa aceleração tem sido linear: a convencionalidade que enquadra a semelhança das imagens está mudando a um ritmo cada vez maior. A ideologia alternativa considera que a tecnologia de representação não só muda, mas também evolui. Novas tecnologias de representação e de exibição permitem que não só o espectador possa ver de forma diferente, mas também que possa ver melhor. A melhoria é geralmente definida em termos de realismo: quanto menos lacunas forem percebidas entre a realidade - a percepção não mediada tecnologicamente - e a representação - a percepção da realidade mediada tecnologicamente - melhor.

Os defensores da postura culturalista, tradicionalmente incluindo a maioria dos semioticistas, geralmente desconstroem essa visão. Para eles, não existe uma percepção da realidade não mediada pela tecnologia. A realidade é sempre percebida de acordo com alguns hábitos, como sugeriu o pai da semiótica, Charles S. Peirce. Ademais, defendem que esses hábitos são moldados por meio de interações sociais dentro de uma comunidade de intérpretes, dando origem a um senso comum perceptivo. Nessa visão, não vemos melhor por meio das novas tecnologias digitais, mas nos acostumamos a ver melhor por meio delas. Não há diferença, então, entre o realismo da pintura rupestre e o da realidade virtual, já que ambos resultam de uma construção cultural. Embora haja alguma verdade nessa afirmação - iconicidade sempre implica um quadro de convencionalidade - e as evidências tendem a confirmá-la - a tecnologia de representação perfeitamente realista se torna vintage quando suplantada por novos dispositivos -, essa visão, quando expressa em termos extremos, também se torna irracional. Negar qualquer convencionalidade cultural na iconicidade tecnológica acarreta, em última instância, consequências absurdas, assim como negar qualquer iconicidade natural. Há, de fato, uma dimensão de hábito semiótico na percepção, mas a percepção não é apenas isso, pois sua convencionalidade deve se enraizar em uma base neurofisiológica moldada pela evolução natural. Por um lado, é verdade que os humanos se acostumam com as novas tecnologias de representação, muitas vezes cedendo à retórica de sua proficiência perceptiva; por outro lado, também é verdade que eles se surpreendem com ela, achando que os novos dispositivos para a representação e a exibição visual lhes permitem acessar sensorialmente e mentalmente imagens com realismo sem precedentes. O “efeito de realidade” das representações é sempre uma questão de convenções, hábitos e símbolos. No entanto, é também uma questão de relações e sugestões materiais, uma questão indexical.

A iconicidade das imagens surge na encruzilhada entre essas duas dimensões: uma imagem parece real porque os observadores estão acostumados com seu efeito de realidade, mas também parece real porque corresponde à fisiologia da percepção humana, resultado de uma evolução biológica natural. A História confirma tais explicações talvez até melhor do que a Antropologia: quando os primeiros jesuítas começaram o seu proselitismo no Japão do século XVI, ainda isolado, muitas vezes exibiam pinturas cristãs que chocavam o público. O motivo, porém, não era o conteúdo, mas a forma. Os japoneses ficaram impressionados, e às vezes até convertidos, pela perspectiva renascentista, pelo realismo de sua ilusão tridimensional. O efeito de realidade da representação não dependia, porém, apenas da convenção; mesmo observadores japoneses que nunca haviam tido contato com este dispositivo ótico e representativo puderam perceber que ele era capaz de construir imagens de uma forma inédita e impressionar a percepção do público para que o realismo da representação pudesse ser transferido para o realismo do representado. Em alguns casos, as conversões ocorreram porque as divindades cristãs pareciam pular das telas e compartilhar o mesmo espaço físico dos observadores.

A TERCEIRA VIA DA SEMIÓTICA

Entre uma ideologia de contextualização cultural radical e uma de naturalidade radical, a semiótica propõe um meio caminho razoável, o que sugere que, ainda que a iconicidade seja um fenômeno cultural, ela é influenciada pela mudança tecnológica e, em particular, pela sua velocidade em relação à fisiologia da percepção. O ritmo crescente do surgimento de novas tecnologias de representação e exibição implica uma desestabilização mais rápida dos hábitos perceptivos, gerando um efeito de surpresa e realidade que muitas vezes é naturalizado também para fins comerciais e persuasivos. A semiótica é chamada não só para desmascarar o fascínio pseudonatural da nova tecnologia, mas também para desmascarar, de alguma forma, o desmascaramento e admitir que, em certas circunstâncias e dentro de certos limites, a nova tecnologia realmente aumenta o realismo da representação tanto em termos de iconicidade cultural quanto nos de iconicidade indexical. Os seres humanos devem certamente “se acostumar” a usar um capacete de realidade virtual, mas eles estão se acostumando, na verdade, à representação imersiva sem precedentes de um espaço tridimensional, cujo poder de persuasão, em muitos casos, funciona exatamente como na perspectiva das pinturas jesuíticas do século XVI no Japão: combinado à fisiologia da percepção e induzindo uma suspensão perturbadora da descrença. Por um lado, portanto, a semiótica deve desvendar as convenções culturais que sustentam o efeito de realidade da tecnologia de representação e exibição. Por outro, no entanto, ela não deve exagerar na dimensão retórica da tecnologia até o ponto de chegar à conclusão absurda e um pouco chata de que os observadores não deveriam realmente ver o que eles veem e que na verdade eles não o veriam se tivessem os olhos abertos em respeito às raízes convencionais secretas da representação.

Pelo contrário, a semiótica deve admitir que, se uma comunidade de observadores e intérpretes tão prontamente adota uma nova convenção representativa, é devido à maneira revolucionária com que ela interage com a neurofisiologia na percepção da espécie. Essa abordagem equilibrada da semiótica gera grandes consequências para a ética das imagens, uma vez que ela aponta para a necessidade de desenvolver uma semioética da representação que seja cultural e biologicamente embasada. A semioética leva em conta, por exemplo, que as imagens são o que são e implicam potenciais perigos éticos não só por causa das convenções simbólicas que sustentam sua iconicidade, mas também - e cada vez mais - por causa da impressão de realismo que elas provocam na fisiologia humana da percepção. Essa reflexão composta é urgente, especialmente no que diz respeito aos efeitos persuasivos que as imagens podem produzir: considerá-las exclusivamente baseadas em convenções culturais é redutor, pois tal ponto de vista não consegue explicar tanto a persistência de seu poder fenomenológico quanto o impacto das novas tecnologias de representação visual em relação com a percepção humana. Na verdade, o poder das imagens se baseia, também, no fato de que elas interagem com uma característica inata e específica da fisiologia e da cognição humana, bem como no fato de que a qualidade dessa interação é modificada pela natureza específica da tecnologia que é usada para a produção e exibição das imagens.

Uma questão crucial nesse domínio é a forma pela qual as imagens contribuem com a produção do que convencionalmente se chama de suspensão da descrença, isto é, a obliteração da discrepância entre a imagem representativa e o significado da realidade representada. Quando o efeito de realidade das imagens é máximo, elas na verdade substituem, aos olhos e à consciência de quem as observa, a mesma realidade que representam, aparecendo indistinguíveis. É o caso de todo tipo de trompe-l’œil: o efeito de realidade da imagem é tal que a iconicidade é substituída pela indicialidade - o que é visto não representa apenas uma realidade significada; o que é visto na verdade é essa realidade, pelo menos aos olhos dos observadores delirantes. Faz-se importante mencionar um caso extremo de suspensão da descrença, porque pode-se supor que muitas das mudanças tecnológicas mais recentes no domínio da representação visual e da exibição visam a instâncias de trompe-l’œil cada vez mais proficientes. Cada vez mais a imagem digital visa eliminar qualquer efeito de uncanny valley (vale perturbante) para desenvolver uma espécie de autonomia semiótica da realidade representada, o que remete à questão ética do falso: a imagem digital hiper-realista atual se apresenta não como uma ficção, mas como um fato e, portanto, como uma farsa.

No entanto, o avanço tecnológico torna essa farsa cada vez mais indistinguível da realidade que representa e cada vez mais capaz de dissimular sua própria natureza de representação. Conceber a história da tecnologia de representação não apenas em termos culturais, mas também evolutivos é, portanto, importante para distinguir os diferentes tipos de trompe-l’œil que tem surgido ao longo da história. Por um lado, é verdade que a imagem hiper-realista de um rosto digital fabricado por meio da inteligência artificial contemporânea é um exemplo de trompe-l’œil tanto quanto uma pintura trompe-l’œil renascentista. No entanto, a diferença tecnológica entre as duas instâncias não pode ser ignorada: a última dificilmente pode se apresentar como uma falsificação perfeita ou como uma réplica totalmente ilusória da realidade que representa. Em vez disso, seu objetivo é desencadear uma suspensão temporária da descrença perceptiva mais para exaltar a habilidade do pintor do que para enganar permanentemente o espectador. Por outro lado, pinturas propriamente falsas começaram a ser produzidas e a circular como resultado do surgimento e do aumento do mercado e do comércio da arte moderna, mas sua finalidade não é, claro, atrair a admiração do público pelo falsificador; é enganar permanentemente potenciais compradores. O método de conhecimento de Giovanni Morelli, famoso historiador da arte, foi planejado exatamente para desmascarar tais falsificações.

Uma semiótica cultural e cognitiva do falso deve ser capaz, todavia, de identificar não apenas as semelhanças, mas também - e de maneira crucial - as diferenças entre as pinturas falsas da era pré-digital e as imagens falsas da época digital. Os avanços da tecnologia digital de imagens levaram à criação de tipos extremos de trompe-l’œil e a falsificações que, ao contrário do passado, qualquer olho humano não pode mais desmascarar. Para detectar a falsificação, as mesmas máquinas que contribuíram para criá-la devem ser invocadas para desmascará-la. Isso nos leva a toda uma nova área de investigação no domínio da ética das imagens, exatamente no que diz respeito à ética das falsificações digitais.

A SEMIÓTICA COMO DISCIPLINA DO FALSO

A falsificação é um tema central em vários campos de investigação. As ciências naturais definem falsificação como aquilo que é intencionalmente falso, cabendo à metodologia e à pesquisa reconhecê-lo para obter uma compreensão verdadeira da realidade. Nas humanidades, falsificação é a contrapartida da autenticidade, a sombra ameaçadora do pensamento ocidental desde o seu início e, por isso, a humanidade deve buscar o que é verdadeiro e evitar a falsidade, valorizar o autêntico e banir o falso. As doutrinas e as religiões éticas também enfatizam a periculosidade da falsidade e da falsificação para a coesão e a harmonia social: mentiras, isto é, representações intencionalmente falsas, mas de alguma forma críveis da realidade, devem ser mantidas longe. No entanto, a possibilidade de representar, por meio da linguagem, não apenas o que é, mas também o que não é, é uma característica consubstancial da cognição humana. Os humanos são dotados de uma capacidade única de criar e usar simulacros mentirosos do mundo, incluindo o mundo interior e invisível de suas emoções. Afinal, a habilidade humana de criar representações ficcionais críveis da realidade é paralela à habilidade de criar realidades ficcionais críveis nas artes. Assim, ao longo da história e por meio das culturas, as comunidades humanas têm se dedicado à questão social central de “lidar” com o falso. Os filósofos têm buscado definir a falsidade, tanto estigmatizando-a na maioria das escolas de pensamento quanto brincando com ela em alguns casos - da sofística à casuística católica, de Nietzsche a Derrida e o desconstrutivismo. Líderes éticos e religiosos têm sublinhado o risco social da mentira sistemática. Escritores e artistas têm refinado ao máximo a retórica da narrativa e das representações ficcionais. Os cientistas naturais têm desenvolvido métodos e procedimentos para reconhecer a falsidade e comprovar a verdade e os cientistas sociais têm procurado compreender as motivações, o processamento e os efeitos da falsidade. Pensadores políticos e estudiosos do direito têm buscado as melhores estratégias para limitar e controlar a disseminação da falsidade nas relações sociais.

No entanto, existe apenas uma disciplina, tanto nas ciências naturais quanto nas humanas, para a qual o falso é o objeto principal de investigação. Essa disciplina é a semiótica, a ciência da significação e da comunicação. Umberto Eco, um de seus fundadores, definiu-a em seu Trattato di semiotica generale (Tratado de semiótica geral), de 1975, como “a disciplina que estuda tudo que pode servir para mentir” (ECO, 1975, p. 18), uma definição que pode ser tomada como um ponto de partida. Na verdade, embora o falso faça parte da cognição humana, e embora as práticas e teorias do falso tenham caracterizado toda a história, a mudança tecnológica tem um impacto profundo nas culturas humanas da falsificação. Como foi sugerido, a arte rupestre em Lascaux ou em outros locais pré-históricos do mundo já eram uma espécie de representação ficcional, visto que o homem do paleolítico já decorava cavernas com imagens idealizadoras de animais selvagens. No entanto, o visitante contemporâneo pode agora explorar a réplica exata do local autêntico, sem nenhuma diferença perceptível, no Museu Nacional da Pré-História em Dordonha. A digitalização em 3D e outras tecnologias avançadas possibilitaram a construção de uma falsificação que pode ser experimentada como autêntica, ainda que os visitantes do museu sejam informados de que o que eles veem é uma réplica. Em um número cada vez maior de circunstâncias, entretanto, os indivíduos de hoje interagem com falsificações visuais sem saber que elas são falsas e sem ter a oportunidade de distinguir a realidade da ficção, a verdade da impostura. As técnicas para a produção de uma ilusão de realidade e veracidade também têm uma longa história. As pinturas trompe-l’œil, por exemplo, são bastante comuns na história da arte ocidental, assim como a fabricação de réplicas enganosas. Estas têm sido acompanhadas, ao longo da história da arte ocidental, por uma elaboração igualmente abundante de métodos para o desmascaramento do falso, como a planejada por Giovanni Morelli.

No entanto, os avanços tecnológicos modificaram o circuito entre a produção falsa e o reconhecimento do falso. Por exemplo, a Apple atualmente investe enormes recursos para proteger os dispositivos de reconhecimento facial dos seus telefones e computadores contra qualquer falsificação, ao mesmo tempo que grupos de hackers tentam superar os sistemas de segurança da empresa. O que muda em relação ao passado é que agora essa corrida entre fabricantes e detetives do falso é extremamente rápida, excedendo em muito as habilidades da maioria dos usuários de tecnologia. Os avanços da tecnologia digital permitem que o falso seja cada vez mais realista e transcenda as habilidades comuns de detecção da falsificação, mas também que seja produzido e divulgado com velocidade sem precedentes e para além do alcance da checagem de fatos não especializada. Novas tecnologias digitais para a produção do falso - do falso profundo (deep fake) até as máscaras profundamente falsas e impressas em 3D, de hologramas de inteligência artificial (IA) aos trolls algorítmicos e outros pseudousuários -, junto com as novas tecnologias digitais para a circulação do falso, isto é, todos os tipos de redes sociais, estão empurrando perigosamente o mundo em direção ao caos epistêmico e social que o pensamento ocidental, ao longo dos séculos, tem visto como uma consequência ameaçadora das falsificações e das mentiras. Essas novas tecnologias do falso, de fato, podem ser usadas para promover a formação de comunidades cujos pensamentos, emoções e ações são manipulados por meio da criação rápida e da disseminação frenética de representações digitais do mundo que, ainda que falsas, são confiáveis. Isso pode levar ao perigo de uma sociedade crédula e impressionável, bem como ao perigo oposto de uma coletividade hipercética e cínica, à aquiescência política e à polarização social.

O PANO DE FUNDO DA REFLEXÃO: AVANÇOS E LACUNAS

Como resultado da disseminação preocupante da falsificação digital, uma área de investigação inteiramente nova emergiu na encruzilhada de várias ciências sociais e humanas. É a área que indaga sobre duas palavras-chave popularizadas na década de 2010: “notícias falsas” e “pós-verdade”. A literatura é abundante em várias línguas e são vários os estudos recentes que se concentram no uso ideológico (FUCHS, 2020; VAN DIJK; HACKER, 2018) e político (FARKAS; SCHOU, 2020) das notícias falsas e referenciam contextos geopolíticos específicos - Lockhart (2018) nos Estados Unidos da América (EUA), Eberwein, Fengler e Karmasin (2019) na Europa e Roudakova (2017) e Boyd-Barrett (2020) na Rússia. Enquanto Barnes e Barraclough (2019) e Zimdars e McLeod (2020) focam na produção digital das notícias falsas, há autores que dão ênfase especial ao jornalismo (KATZ; MAYS, 2019; MCNAIR, 2018), à difusão viral (SAFIEDDINE; IBRAHIM, 2020), às redes sociais (SUMPTER, 2018), aos possíveis métodos de combate (DALKIR; KATZ, 2020) e ao papel do falso em domínios particularmente sensíveis, como a educação (PETERS et al., 2018), alimentação (SCHWARCZ, 2019), história (DE BAETS, 2018), medicina (FAINZANG, 2016) e ciências (ARNOLD 2019; JEWETT, 2020).

A questão filosófica da pós-verdade também tem sido tratada por vários estudiosos (MCINTYRE, 2018) do ponto de vista da filosofia da comunicação (RABBITO, 2020), da filosofia moral (PHILLIPS, 2019), da ontologia (CONDELLO; ANDINA, 2019) e do pensamento interdisciplinar (DUNCAN, 2018). Ainda, a pós-verdade é estudada por meio de abordagens relativísticas para a questão do “falso genuíno” (PYNE, 2019), com foco em falsificações de arte, fósseis falsos, documentários da natureza, sabores sintéticos, exposições de museus, códices maias e réplicas paleolíticas. As perspectivas históricas também floresceram, a fim de dar nuances à novidade do fenômeno: Corran (2018) na Idade Média, Hadfield (2017) no período moderno inicial, O’Shaughnessy (2017) no nazismo, Cortada e Aspray (2019) nos anos de história dos EUA e Denery (2015) e Fraser (2020) no período do início da história ocidental. As ciências da linguagem também têm uma longa tradição de lidar com mentiras, como a filosofia da linguagem (MICHAELSON; STOKKE, 2018), a linguística (MEIBAUER, 2019) e a semiótica (DANESI, 2019; LEONE, 2020; SANTAELLA, 2018; VIOLARIS, 2020). Enquanto para a filosofia analítica da linguagem, verdade e falsidade são atribuições lógicas (GORLÉE, 2012), tanto para a filosofia continental da linguagem quanto para a semiótica elas são definidas em relação à significação (ECO, 1984).

Todos os pais fundadores da semiótica lidaram com tópicos como Charles S. Peirce na tradição dos EUA (LORUSSO, 2018; OUSMANOVA, 2004) e as vozes principais da semiótica estrutural. Em uma edição especial do jornal francês Communications dedicada ao conceito de vraisemblable - “plausível”, “provável”, “o que parece verdadeiro” -, Tzvetan Todorov, Gérard Genette, Christian Metz, Julia Kristeva, Gérard Genot e Roland Barthes foram mencionados como algumas dessas vozes (TODOROV, 1968). Baudrillard (1987, 2000) voltou a falar sobre o assunto mais recentemente em uma mesa redonda sobre a pós-verdade, intitulada Post-vérité et démocratie, organizada por Jacques Fontanille durante o congresso de 2019 da Associação Francesa de Semiótica em Lyon, entre 11 e 14 de junho de 2019 (DI CATERINO, 2020). Para mais, Umberto Eco (1995) escreveu extensivamente sobre o falso, dirigiu um número especial da revista de semiótica Versus (1987) e também tratou sobre o tema em numerosos ensaios e romances - O pêndulo de Foucault, O cemitério de Praga e Número zero - e Jurij M. Lotman, semioticista e historiador cultural, abordou em várias ocasiões a questão da falsificação (ANDREWS, 2003; MAKARYCHEV; YATSYK, 2017).

Apesar da abundância e da variedade de trabalhos acadêmicos que lidam com o falso, a literatura existente mostra algumas lacunas conspícuas: 1) falta de interdefinição: os estudiosos usam termos abstratos, como falsidade, mentira, falso, falsificação, notícias falsas, pós-verdade e falso profundo, de formas multifacetadas e, por vezes, contraditórias, necessitando-se, assim, de um esforço teórico e conceitual de categorização e classificação semântica e pragmática; 2) falta de interdisciplinaridade: os temas da construção, circulação, difusão e potencial desmascaramento do falso são abordados a partir de várias perspectivas que, no entanto, muitas vezes não se complementam construtivamente; 3) falta de cooperação entre as ciências humanas e sociais, por um lado, e, por outro, entre as ciências naturais e a engenharia devido ao fato de que a tecnologia do falso é atualmente tão complexa que é extremamente difícil para os literatos ter uma compreensão precisa de sua geração e disseminação; 4) falta de fertilização cruzada entre acadêmicos e artistas. Sobre esta última lacuna, vale ressaltar que os acadêmicos abordaram principalmente o falso como um problema, uma força negativa que estraga as águas do pensamento racional em todos os domínios da vida social, enquanto a criação artística o utiliza como principal recurso. Uma vez que existe uma estreita relação entre o falso e a ficção, os artistas podem desempenhar um papel fundamental na exploração das estratégias de significação e comunicação por meio das quais um efeito de realidade pode ser conferido a uma farsa, ocultando seu conteúdo de falsidade.

AS TAREFAS QUE SE AVIZINHAM PARA UMA SEMIOÉTICA DA FALSIFICAÇÃO VISUAL

O objetivo principal de uma semioética das imagens falsas é preencher essas lacunas e suscitar, assim, uma nova consciência social, acadêmica, profissional e artística sobre a falsificação visual e sua natureza de mudança, seus riscos e as oportunidades que ela oferece, dentro do que é necessário para os cidadãos do século XXI navegarem adequadamente pelas complexas representações digitais de suas sociedades tecnologicamente avançadas. Os desafios que temos pela frente estão relacionados não só a essas lacunas e às formas de preenchê-las, mas também às mudanças que as sociedades e tecnologias da falsificação visual poderão sofrer nos próximos anos. A tarefa que há pela frente, neste domínio, não é apenas filosófica ou teórica; ela consiste em alcançar uma definição interdisciplinar, operacional e proativa capaz de promover a cooperação entre as ciências humanas, sociais e naturais, entre acadêmicos e engenheiros, entre stakeholders acadêmicos e não acadêmicos e entre pesquisadores e criadores. Consequentemente, as fronteiras disciplinares devem ser reconsideradas de modo que seja desenvolvida uma nova criatividade teórica a respeito da criação, da circulação e do possível “manuseio” do falso nas sociedades tecnologicamente avançadas dos dias atuais. Falsas representações da realidade acompanharam toda a história da espécie humana e provavelmente são consubstanciais à sua cognição. No entanto, dois novos fatores alteram radicalmente a presença do falso visual nas sociedades e ambos são inerentes às sociedades digitais e da internet: de um lado, o peso dos big data, e, de outro, as novas dimensões do realismo digital.

A semioética do falso deve, portanto, envolver a reconsideração interdisciplinar das novas tendências quantitativas e sensoriais do falso por meio da cooperação entre abordagens até agora separadas. As falsas representações da realidade ganham impulso sem precedentes na arena social e impactam com força anômala a formação da opinião pública. As distorções marginais da verdade adquirem visibilidade atípica nas redes sociais por meio de uma retórica da quantificação: sua circulação é difusa e acompanhada da retransmissão incessante e quantificável. Além disso, sua difusão é cada vez mais alimentada pela adoção de uma comunicação multimodal e multissensorial que explora o apelo antropológico e ancestral de imagens e outros artefatos visuais, mas os aprimora por meio de uma credibilidade digital incomparável. Nesse sentido, a investigação sobre esse novo nível de produção e circulação do falso nas sociedades digitais - internet - agora ultrapassa o arcabouço epistemológico e metodológico que antes era trabalhado apenas nas humanidades: para entender o falso no século XXI, é fundamental que as ciências cheguem a um acordo sobre como as máquinas fabricam, espalham e promovem cada vez mais o falso por meio de processos automáticos. Notícias falsas, pós-verdade, trolling etc. são, de fato, invisíveis sem uma consideração profundamente interdisciplinar sobre “os algoritmos do falso”, ou seja, sobre os processos e dispositivos computacionais de produção do falso.

Duas perspectivas que normalmente divergem e se ignoram mutuamente devem, portanto, trabalhar em conjunto: a reflexão acadêmica sobre o surgimento do falso no enquadramento teórico, na conversa social ou na investigação científica e a prática tecnológica relativa ao desenvolvimento de dispositivos e algoritmos envolvidos na produção e na difusão de falsas representações. Deve-se também aumentar a consciência - entre os criadores de tecnologia - sobre o impacto social dos avanços digitais, a fim de que os pesquisadores percebam o potencial de mudança das regras das novas tecnologias digitais e a oportunidade prospectiva de usá-las não apenas para criar representações sociais incorretas, mas também para rebatê-las e desmascará-las. A sinergia entre a investigação teórica e aplicada é também fundamental para compreender que a falsificação visual não é apenas um elemento de risco na formação do senso comum, do conhecimento compartilhado e da opinião pública; é também a base para planos de ação e escolhas pragmáticas. Notícias falsas encorajam os cidadãos a votar de acordo com uma compreensão distorcida das sociedades; bots e outros algoritmos de trolling influenciam as relações internacionais e podem até ser sequestrados por agências políticas destrutivas; a pós-verdade leva a atitudes econômicas infundadas e modifica em profundidade a produção e a circulação de mercadorias; as teorias da conspiração condicionam a recepção da ciência e o papel da medicina na sociedade. Assim, a falsificação visual, em outras palavras, torna-se um ator social central que desempenha seu papel, na maioria das vezes, de forma descontrolada, alterando as relações e tendências sociais com base em representações falsas da realidade.

Hoje, a falsificação visual causa bilhões de danos em todos os setores da vida social, econômica e política ao mesmo tempo que se torna uma indústria do mal para aqueles que desejam lucrar com a sua difusão. Tal indústria perniciosa do falso deve ser substituída por uma que lucre, ao contrário, a partir do desmascaramento das falsas representações da realidade. Essa operação, no entanto, será impossível de ser realizada sem um conhecimento profundo da gramática das ficções, ou seja, regras não escritas, mas pelas quais um falso simulacro é fortalecido com força pragmática e com a capacidade de produzir efeitos em seu âmbito cultural e meio-ambiente social. As regras dessa gramática não são constantes, variam ao longo das épocas históricas, das culturas do falso visual e dependem das tecnologias que as implementaram. No entanto, existe uma gramática das ficções transcultural e trans-histórica que deu origem a uma antropologia profundamente arraigada do falso visual. Escritores, pintores, escultores e, mais recentemente, diretores de cinema e artistas digitais praticam a arte sutil dos simulacros de maneira magistral. Mesmo sem qualquer consciência formal disso, eles têm criado, durante séculos, ficções perfeitamente críveis, invenções confiáveis. Chegou a hora, portanto, de colocar essa arte do falso em diálogo com a ciência do falso com o objetivo de impulsionar as sociedades em que a criatividade possa florescer, também graças às novas tecnologias digitais e da internet, sem gerar um domínio do falso sobre a verdade.

SOBRE FALSOS E VÍRUS

Propõe-se neste artigo um referencial teórico, baseado na semiótica, para o estudo interdisciplinar da falsificação visual, tendo em vista a tarefa de reconstruir sua semioética. Embora diferentes ramos da semiótica estudem a linguagem - o significado, a significação e a comunicação - com inclinações díspares, nenhum deles pode contar com uma ampla e estimulante gama de conceitos e teorias no que diz respeito a estrutura da cultura e sua evolução como a semiótica de Lotman e a Escola de Semiótica Tártu-Moscou. Na semiótica de Lotman, a noção de semiosfera é a chave de compreensão. A produção, a circulação e a difusão de significado na sociedade são estudadas como se a cultura fosse uma biosfera de significados, em que textos e representações surgem, são reproduzidos, proliferam e se espalham da periferia para o centro do sistema ou, inversamente, eles diminuem, movem-se para as margens e caem no esquecimento. A tecnologia, nessa metáfora, representa a infraestrutura de dispositivos e processos - da escrita aos algoritmos - por meio da qual é garantida a reprodução da cultura como memória não genética da espécie humana. A semiótica cultural dos dias atuais, inspirada por Lotman e por outras fontes, adota uma abordagem sistêmica da cultura, mas não endossa perspectivas mecanicistas. A teoria mimética e a sociobiologia, embora relevantes, desconsideram o papel dos sujeitos e sua intencionalidade na formação das trajetórias de significado na sociedade.

Este ensaio abrange, em vez disso, uma epidemiologia humanística da cultura que valoriza modelos de difusão e contágio derivados das ciências naturais e da biologia, mas os matiza em consideração à força persuasiva específica das representações e dos textos. O aumento da importância do aspecto quantitativo no estudo das redes sociais como plataformas de difusão de sentido encurta a distância entre a ciência natural da epidemiologia e a ciência social da semiótica cultural. Se, de acordo com Lotman, a cultura é vista como um sistema holístico e o significado como uma entidade que permeia seus tendões de acordo com padrões estruturados de difusão, então as falsas representações visuais ou, mais geralmente, o falso visual, também devem ser consideradas em termos ecológicos. O principal desafio que temos pela frente consiste, portanto, em encontrar um lugar para o falso icônico na ecologia humana do significado. Aparentemente, uma semiosfera sem nenhuma falsificação visual seria o ideal, sentimento que está cada vez mais presente em uma época em que as representações distorcidas da realidade crescem em todos os domínios da vida pública e dificultam o curso correto das interações humanas. A comparação com o quadro epidemiológico, entretanto, sugere um ângulo diferente.

No momento de escrita deste ensaio, o mundo inteiro é atingido pela difusão pandêmica do novo agente coronavírus, a covid-19. É natural e compreensível que, em tais circunstâncias, as pessoas passem a sonhar com um mundo sem vírus. No entanto, é evidente para os especialistas em virologia que, apesar dos avanços da medicina e da farmacêutica, essa expulsão de vírus do mundo não só é impossível como indesejável. Os vírus, na verdade, sempre fizeram parte do ambiente natural, contribuindo constantemente para seu equilíbrio ecológico. O que se deve sonhar, então, não é um mundo sem vírus, mas um mundo em que os humanos possam coexistir com os vírus em um equilíbrio aceitável. Porém, como aponta a literatura científica da área, esse equilíbrio, que dura milênios, está sendo rompido pelos novos avanços tecnológicos que garantem à espécie humana uma expansão sem precedentes em toda a biosfera. O falso é o equivalente cultural de um vírus. De fato, durante a pandemia, muitos comentaristas começaram a usar a palavra infodemia, ou seja, a difusão descontrolada e desconcertante de uma representação não confiável, incerta ou totalmente falsa da epidemia.

No entanto, sonhar com um mundo sem falso, em que todas as falsas representações são milagrosamente banidas por uma ética superior da linguagem, pelo controle político ou por dispositivos tecnológicos - de soros da verdade aos polígrafos, de testes de captcha a checagem automática de fatos - é tão irreal quanto sonhar com uma natureza sem vírus. Ninguém entendeu isso melhor do que Jonathan Swift, no Livro IV de As viagens de Gulliver, de 1726, em que o autor descreve os Houyhnhnms, uma raça fictícia de cavalos inteligentes cuja racionalidade perfeita contrasta totalmente com os modos bestiais dos humanoides Yahoos. Os Houyhnhnms são dotados de uma filosofia e, acima de tudo, de uma linguagem completamente desprovida de qualquer absurdo político e ético. Sua linguagem, por exemplo, não contém nenhuma palavra para “mentira”, a tal ponto que, para se referir a ela, os Houyhnhnms devem usar um rodeio: “dizer um pensamento que não é”. Eliminar todas as imperfeições do pensamento e toda ambiguidade da linguagem sempre foi um sonho humano. Umberto Eco e outros estudiosos analisaram essa antiga obsessão pela linguagem perfeita. Ainda assim, linguistas, semióticos e filósofos da linguagem sabem que os humanos são capazes de fingir porque são capazes de significar. Somente uma sociedade sem sentido eliminaria qualquer traço de falsificação do mundo.

No entanto, vale recapitular a analogia entre o falso e o vírus, entre pandemias e infodemias: os rápidos avanços na tecnologia de comunicação digital e na internet ampliaram o domínio do falso visual e alteraram seu equilíbrio com as áreas de significado controlável e confiável. A comparação entre a epidemiologia e a difusão viral do falso pode ser estendida ainda mais longe. Como sugere a investigação científica, e que agora faz parte do conhecimento comum, as pandemias mais recentes resultaram de um processo biológico conhecido como zoonose, isto é, a expansão agressiva da espécie humana pelo planeta está levando a um contato atípico desta com outras espécies animais que são hospedeiras e vetores de vírus, aumentando, assim, as oportunidades de “transbordamento” destes para os seres humanos. Mutatis mutandis, pode-se dizer que a proliferação de significado por meio de novas tecnologias de comunicação digital e pela internet também está produzindo um tipo específico de transbordamento. Domínios discursivos até então separados entram em contato e se confundem, resultando em uma semiose, isto é, a passagem do falso visual do domínio discursivo da ficção para o da interação comunicativa não ficcional. Os diretores de ficção científica vêm imaginando cenários distópicos há décadas e isso nunca prejudicou a funcionalidade da arena política, mas, ao contrário, permitiu ao cidadão descobrir, de forma ainda mais vívida, os cenários sociais que ele prefere evitar. A falsificação visual, neste caso sob a forma de ficção, tem sido útil para uma comunicação eficaz sobre a realidade. No mundo pós-verdade, no entanto, as ficções não se limitam apenas a revelar cenários do que os seres humanos podem ou não desejar para o seu futuro, mas se confundem com gêneros discursivos não ficcionais, induzem a adesão à sua representação da realidade e, assim, contribuem para a verdadeira realização de suas perspectivas imaginárias. As teorias da conspiração, por exemplo, não se anunciam como ficções sobre os possíveis perigos de uma sociedade que perde o controle sobre sua indústria farmacêutica, mas como relatos de tais perigos em uma sociedade que já o perdeu. Por mais sutil que possa parecer a distinção, seus efeitos políticos são destrutivos: uma coisa é sujeitar essa indústria a um controle oportuno da sociedade, outra é considerar todas as vacinas, por exemplo, como produtos prejudiciais da especulação.

Uma nova compreensão sistêmica da ecologia do falso visual nas atuais sociedades tecnologicamente avançadas deve ser adquirida através de uma abordagem igualmente sistêmica, envolvendo a cooperação entre ciências, humanidades, engenheiros e artistas. Lacunas no estado da arte e, principalmente, no atual “manuseio” social do falso visual serão preenchidas apenas se um esforço abrangente de compreensão total do papel das falsas representações nas culturas humanas e suas interações com o progresso tecnológico for promovido. Por um lado, isso levará à descoberta de novas “vacinações culturais”, ou seja, remédios de curto prazo que podem ser projetados por meio do uso direcionado da IA, por exemplo, novos dispositivos, aplicativos e algoritmos de verificação de fatos. Por outro lado, essas curas de curto prazo lidam apenas com os sintomas, não com os patógenos subjacentes à proliferação do falso visual na sociedade. A longo prazo, será crucial entender como o desenvolvimento tecnológico na comunicação digital e na internet se uniu a outros fatores econômicos, infraestruturais e socioculturais para alterar progressivamente a ecologia humana do falso visual e gerou transbordamentos incontroláveis de representações ficcionais da realidade em gêneros visuais não ficcionais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A necessidade humana de ver o próprio rosto representado é antiga e provavelmente nasceu com a espécie - sobretudo com a linguagem, com a consciência de que os sentidos recebem um cenário do mundo de fora através da visão, da audição, do paladar, do olfato e do tato, mas que a fonte dessas percepções, o rosto, permanece invisível para o indivíduo. A espécie humana representa o rosto simbolicamente, por meio de figurações convencionais e tenta produzir iconicamente uma semelhança entre o rosto representado e sua efígie. Além disso, os humanos também o representam por meio de procedimentos indexicais que conferem à imagem a aura de um artefato dotado de verdadeiro realismo. As divindades produzem marcas milagrosas do seu próprio rosto, principalmente no cristianismo, assim como as cortes dos poderosos recorrem ao molde e à máscara funerária para preservar os seus traços. Durante grande parte da Antiguidade, homens e mulheres que quisessem olhar para seus próprios rostos disponham apenas da superfície refletora da água. Só os mais ricos, de fato, podiam possuir espelhos primordiais em bronze ou outros metais que refletiam palidamente a imagem do rosto do dono, frequentemente através do filtro de inscrições ou outras figurações. Entre os séculos XIV e XV, porém, o espelho irrompeu na civilização ocidental e se tornou algo cada vez mais comum, doméstico e popular. Porém, se por um lado preservou o grande formato, cercado por molduras suntuosas e multiplicado em conjunções espetaculares como em Versalhes, por outro foi miniaturizado, democratizou-se e entrou na casa de todos; tornou-se um acessório na bolsa de qualquer senhora.

Assim, o espelho se transformou em uma ferramenta formidável para conhecer e controlar a imagem do rosto. Textos de todos os tipos se referem a ele, desde os pictóricos que, especialmente no século XVII, o incluem entre os símbolos alegóricos da vanitas, até literatos como Lewis Carroll, com seu livro Alice através do espelho, veem nele uma porta de entrada para outro mundo. Filósofos e cientistas também lidam com isso. Lacan, por exemplo, hipotetiza a famosa “fase do espelho” e a neurociência contemporânea atribui a alguns neurônios a capacidade de “espelhar” e imitar o comportamento da ação quando observada. O espelho também se espalhou por outras civilizações, tornando-se um sinal da prática colonial do início da modernidade: por exemplo, os espelhos que os primeiros colonizadores trocaram com as populações indígenas da América e da Austrália e que, posteriormente, foram apropriados, assim como as suas formas e molduras, pelos povos colonizados, como no caso dos maravilhosos espelhos emoldurados de madeira feitos em Serra Leoa e em outros domínios coloniais britânicos que atualmente encontram-se no Museu Antropológico de Cambridge.

Umberto Eco, com um gesto mais semiótico do que antropológico, exclui os espelhos da lista dos signos por julgar que ele sempre devolve a imagem pela mesma fórmula, sem, portanto, poder mentir sobre o que reflete. Essa exclusão, no entanto, remonta à era pré-digital, quando todos os espelhos ainda funcionavam como todas as superfícies usadas para a reflexão desde o início da humanidade, ou seja, superfícies que permitiam uma referência altamente indexical entre o objeto espelhado e a imagem espelhada. Se a imagem espelhada fosse dada, o objeto tinha que estar em contiguidade espaço-tempo com o dispositivo que o criou. Logo, o espelho não apenas produzia a imagem, mas recebia seu efeito devido a uma presença ontológica.

Contudo, quem vasculhar a bolsa ou a mochila de um indivíduo contemporâneo não encontrará um espelho nela. O motivo é simples: com a invenção dos smartphones, os espelhos foram substituídos por telas que, graças a uma fotografia digital cada vez mais sofisticada, refletem a imagem do objeto que está em seu foco, emoldurado pela minúscula e quase invisível câmera que está voltada para ele em um minúsculo orifício próximo à superfície da própria tela. É sempre uma regra física, mediada por complexos processos eletrônicos, garantir que a imagem digital produzida pelo celular se assemelhe iconicamente ao objeto à sua frente. O ícone é, portanto, produzido por um processo indexical, cuja dinâmica interna, entretanto, foge ao entendimento da maioria das pessoas. Se a fotografia perturbou a aura de singularidade da imagem pictórica, o telefone celular altera profundamente a aura do espelho. Faz sentido, assim, a madrasta do famoso conto de fada perguntar ao espelho “Espelho, espelho meu, haverá alguém mais bela do que eu?”, precisamente porque o espelho não podia mentir, como bem adivinhara Umberto Eco, e, por isso, muitas vezes, respondia com uma resposta indesejada: “Branca de neve!”. Mas, hoje, os espelhos são telas que simulam espelhos e são na verdade vídeos digitais que criam a impressão de que refletem o que está olhando para eles. Porém, à medida que formatos como selfies ou processos como aplicações de embelezamento de imagens faciais, que assumem a função tradicional de espelho, são multiplicados, aumenta-se a possibilidade de podermos modificar imagens ao nosso gosto, por meio de filtros e outras maldades, de modo que o espelho comece a mentir para nós de acordo com uma nova regra que nós mesmos lhe ensinamos. Portanto, à questão “Espelho, espelho meu, haverá alguém mais bela do que eu?” o espelho responderá constantemente “você, você, você!”, dando vida, assim, a um novo mito de Narciso, em que não apenas nos apaixonamos pela imagem, mas esta também, dotada de inteligência artificial, apaixona-se por nós e nos responde, nos acaricia, nos beija e, acima de tudo, esconde o poderoso mecanismo de consumo e controle - já oculto - como um mundo surreal inventado por Carroll: além da superfície espelhada e das suas agradáveis falsidades.

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Notas

1 Este ensaio resulta de um projeto que recebeu financiamento do Conselho Europeu de Investigação (CEI) ao abrigo do programa de investigação e inovação Horizon 2020 da União Europeia (Acordo de subvenção n.º 819649-FACETS).
2 A primeira versão deste artigo foi apresentada como aula inaugural para a turma do curso de pós-graduação em “Cultura material e consumo: perspectivas semiopsicanalíticas”, da Universidade de São Paulo (USP) em 3 de março de 2021. Agradeço muito a minha estimada colega Clotilde Perez pelo convite.
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