artigo
Recepção: 06 Janeiro 2022
Aprovação: 10 Março 2022
DOI: https://doi.org/10.11606/issn.1984-5057.v14i1e193997
RESUMO: Neste artigo apresento algumas considerações sobre a mitosfera do consumo enquanto teoria que visa aproximar comunicação, consumo e imaginário. Para isso, realizo uma reflexão epistemológica aos estudos de comunicação e consumo, relacionando-os aos estudos do imaginário. Entre outros objetivos menos explícitos, buscarei fornecer bases teóricas para que possamos discutir o estatuto das imagens simbólicas e dos mitos na sociedade midiática e de consumo.
PALAVRAS-CHAVE: Mitosfera do consumo, mito, consumação, imaginário, imagem simbólica.
ABSTRACT: In this article, I present some considerations on the mythosphere of consumption as a theory that aims to bring together communication, consumption, and imaginary. To this end, I carry out an epistemological reflection on communication and consumption studies, relating them to studies of the imaginary. Among other less explicit objectives, I will seek to provide theoretical bases to discuss the status of symbolic images and myths in the media and consumer society.
KEYWORDS: Mythosphere of consumption, myth, consummation, imaginary, symbolic image.
RESUMEN: En este artículo trato de presentar algunas notas sobre la mitosfera del consumo como una teoría que pretende acercar la comunicación al consumo y al imaginario. Para ello propondré una reflexión epistemológica sobre los estudios de comunicación y consumo, relacionándolos con los estudios del imaginario. Entre otros objetivos menos explícitos, también buscaré aportar bases teóricas para que podamos discutir el estatuto de las imágenes simbólicas y los mitos en la sociedad mediática y de consumo.
PALABRAS CLAVE: Mitosfera del consumo, mito, consumación, imaginario, imagen simbólica.
Como citar este artigo: TAVARES, F. Mitosfera do consumo: notas de uma teoria sobre comunicação, consumo e imaginário. Signos do Consumo , São Paulo, v. 14, n. 1, p.1-12, jan./jun. 2022.
INTRODUÇÃO
Os estudos voltados à interface comunicação-consumo, sob forte influência dos Estudos Culturais, propuseram que o consumo serve como prática comunicacional, identitária e cidadã ( DOUGLAS ; ISHERWOOD, 2013 ; GARCÍA CANCLINI, 1995 ). Muitos autores mostraram como o consumo serve às trocas humanas, à comunicação social e midiática, à construção da subjetividade individual e coletiva, ou seja, à edificação de si mesmo e das instituições sociais. Contudo, são raras as pesquisas que procuram compreender o aspecto mitológico e simbólico do consumo. Tal compreensão está relacionada com o solo arquetípico e imaginário das sociedades e requer uma abordagem teórica transdisciplinar que contemple os chamados estudos do imaginário. Esses estudos, por si só, são transdisciplinares, pois envolvem diversas áreas do conhecimento, como a mitologia, psicologia arquetípica, antropologia do imaginário, sociologia compreensiva etc. Nesse sentido, a mitosfera do consumo abrange essas questões e, enquanto objeto teórico, se localiza nos estudos de comunicação e consumo, valendo-se dos estudos do imaginário. E, assim como propôs Braga ( 2007 ) sobre o próprio trabalho teórico em comunicação, a mitosfera do consumo visa “desentranhar da complexidade do mundo real elementos essenciais que nos ajudem a compreender e a descrever essa realidade” (p. 23).
Este artigo apresenta algumas notas da mitosfera do consumo enquanto teoria que visa aproximar comunicação, consumo e imaginário. Para isso, proponho uma reflexão epistemológica aos estudos de comunicação e consumo, relacionando-os aos estudos do imaginário. Entre outros objetivos menos explícitos, busca-se fornecer bases teóricas para que possamos discutir o estatuto das imagens simbólicas e dos mitos na sociedade midiática e de consumo.
O ENRAIZAMENTO DINÂMICO DA COMUNICAÇÃO E DO CONSUMO
É possível admitir que o campo da comunicação – inclusive na área dos estudos sobre comunicação e consumo – trabalhe diversos temas, sob diferentes abordagens, como arte; cultura empreendedora; discursos e biopolíticas; história; memória e subjetividade; identidades socioculturais; educação e teleficção; culturas juvenis, imagem e política; ética; interculturalidade e cidadania. É inclusive conhecida a tese de que a área da comunicação contém uma dispersão cognitiva, um sem-número de teorias e autores que pouco concordam ou discordam entre si ( SODRÉ, 2012 ). De toda forma, é possível admitir que os estudos da comunicação e consumo não têm se voltado com tanta ênfase ao que Durand ( 2003 ) considera o nível fundador de uma tópica sociocultural. Embora eles tratem, por exemplo, da produção e do consumo de imagens midiáticas, não desenvolvem uma teoria e uma metodologia para abordar a fonte dessas imagens, que está localizada, justamente, no nível fundador ou arquetípico da sociedade.
A noção de enraizamento dinâmico do imaginário proposta por Maffesoli ( 2016 ) considera que as imagens midiáticas e os demais textos do cotidiano têm uma espécie de enraizamento no próprio imaginário. Podemos compreender, então, que o imaginário – este sistema de imagens que constitui o capital pensado e impensado da humanidade – tem um nível fundador. Durand, que foi mestre de Maffesoli, assim nomeou o solo arquetípico de uma tópica sociocultural.
Uma tópica sociocultural se refere ao espaço em que se coloca uma comunidade imaginada. Essa noção, desenvolvida em sua proposta mitodológica , mostra como o imemorial, o trans-histórico e o transcendental se atualizam nos níveis do ego e do superego societais.
As noções de ego e superego societais, ao contrário do que algumas críticas que se levantam contra suspeitosa essencialização da abordagem durandiana do imaginário 2 , parecem mostrar como Durand estava atento ao que Maffesoli posteriormente chamaria de enraizamento dinâmico das imagens do cotidiano. Sobre o nível fundador de imagens e textos da cultura, o nível arquetípico, Durand reconheceu os papéis sociais (dominantes e dissidentes, o ego societal) e no superego societal caracterizou o que Maffesoli depois denominou mundo oficial (regras, leis, tudo o que compete à “história”) ( TAVARES, 2018a ).
Tendo em vista esse esboço da tópica sociocultural, proponho pensar no termo “consumação”, porque ele indica, muito mais do que a palavra “consumo”, o caráter mitológico e simbólico existente no palco social dos media e das práticas de consumo. Esse termo, tal como tenho elaborado em pesquisas sobre “consumação midiática”, tenta indicar que, no consumo, há algo de mitológico e, por isso, algo que é profundamente simbólico.
A consumação é um gesto arcaico, a um só tempo material e simbólico. Ela existe desde a emergência, no Homo sapiens , de todo um “aparelhamento mitológico mágico” mobilizado para enfrentar a morte e, por extensão, o tempo, ou seja, a duração ( MORIN, 1988 ). Esse aparelhamento mitológico mágico, constituído desde a pintura, o rito, a sepultura, e desde os desdobramentos da arte, isto é, a destreza, a habilidade, a precisão, a invenção no saber-fazer – que os predecessores do sapiens já tinham desenvolvido nas atividades práticas e designadamente na caça ( MORIN, 1988 ; 2001 ) –, vem a estruturar uma esfera que é própria das produções do espírito (imagens, símbolos, ideias) e que Morin vai chamar de produções noológicas ( TAVARES, 2018a ). A questão que coloco aqui é a seguinte: ao passo que produzimos esse aparelhamento mitológico mágico de um lado, ou seja, a noosfera, nós a consumimos de outro.
Nesse sentido, é possível argumentar que o consumo, “antes de significar a pedra angular de uma ideologia nefasta à sociedade” ( TAVARES, 2018a, p. 76 ) e ao meio ambiente, pode ser compreendido como um processo ativo que implica a produção simbólica do real. Por meio da consumação de mitos, práticas rituais e magia, o homem arcaico, mas também o homem contemporâneo, procura “rejeitar, transpor e resolver este ‘dado mundano’ que é a duração, a morte” ( TAVARES, 2018a, p. 76 ), ou o “terror da história”, como propôs Eliade ( 1988 ). Em última instância, a espécie humana vai se constituir como uma espécie que se comunica para dar ordem, isto é, sentido à sua própria condição trágica de existência, que está indissociavelmente ligada à consumação da vida.
Esse tipo de compreensão radical do ato comunicacional e de consumo indica como a comunicação acontece em meio à trajetória simbólica, também chamada de trajeto antropológico, ou trajeto do sentido ( DURAND, 2012 ). É nesse trajeto de “infigurável transcendência” ( DURAND, 1993 ) que as imagens simbólicas se formam e se transformam, onde deuses e heróis, situações e objetos emblemáticos se manifestam, aparecem e desaparecem (e retornam sob diferentes modulações) ( TAVARES, 2018a ). Nas palavras de Everardo Rocha ( 2000 ), “a viabilidade do edifício do consumo começa pela construção de um sistema simbólico que permite a circulação de significados, algo capaz de dar sentido, à esfera da produção” (p. 25).
Com base nas ideias de Rocha, Durand e Morin, proponho que a esfera da produção, ao abarcar e conjugar expressões históricas e noológicas, responde ou necessita de uma esfera da consumação para lhe conferir sentido. Tratando de ser o consumo a outra face da produção, uma vez que não há um sem o outro, ou, como prefiro dizer, a consumação será um processo indissociável à produção da nossa imaginação coletiva e das imagens que constituem nossas vidas cotidianas e os diferentes processos comunicacionais. A consumação é um fenômeno imaginário, individual e social, cultural, em grande medida inconsciente e, certamente, um fenômeno biológico. Por se tratar de um fenômeno imaginário, engendrará em si aquele aparelhamento mitológico mágico que inventamos desde o nascimento da espécie humana. Não seria correto supor que esse aparelhamento noológico serve à produção e à consumação midiática?
Esses “produtos do século”, de ordem comunicacional e midiática, por serem essencialmente estéticos serão potencialmente mágicos, como nos lembra Morin ( 1988 ). E, nesse sentido, estarão sempre associados aos fenômenos da natureza e do inconsciente ( BOECHAT, 2009 ), ponto de divergência que acredito manter com Rocha, precisamente quando este diz que não é importante refletir – para o pensamento do consumo cultural – sobre a dimensão natural, biológica ou universal do consumo ( TAVARES, 2018a ).
Nas palavras de Rocha ( 2004 ): “o fogo sempre consumirá as florestas” (ideia de consumo natural); “qualquer vida vai se consumir” (consumo como universal); “nada vive sem consumir uma forma de energia” (consumo biológico) (p. 14). Segundo o autor, o consumo nessas versões não interessa à compreensão do consumo cultural. A separação que sugere aí entre natureza e cultura, se minha interpretação não está equivocada, distancia-se, por exemplo, das leituras bachelardianas e durandianas que falam em imaginação material ou natural, em dominantes reflexos (postural, digestiva e rítmica), que são também chamadas de naturais ( TAVARES, 2018a ). Todavia, não caberá discutir essas divergências, mas enfatizar o aspecto de enraizamento dinâmico do imaginário na sociedade midiática e de consumo.
Nas palavras de Morin ( 2001 ):
Efetivamente, podemos constatar que os gênios, demônios, espectros, que povoam a natureza, foram despachados para uma noosfera estética, tornando-se heróis de romances ou stars de cinema, ou migraram para os interiores psíquicos, tomando a forma fluida das pulsões e sentimentos. (p. 173)
A partir das leituras de Morin e Maffesoli, é possível compreender que a mitologia está para o consumo, ou para a consumação midiática, como uma expressão das fusões imaginárias elaboradas in illo tempore , isto é, desde tempos imemoriais ( TAVARES, 2018a ). Querer compreender o estatuto do símbolo na sociedade midiática e de consumo requer, portanto, que se busque radicalizar o pensamento ( MAFFESOLI, 2016 ). Para o sociólogo, o pensamento radical busca preparar a escuta dessas fusões imaginárias de muito tempo atrás, mas que ocorrem no cotidiano, em que, segundo entende, vibra-se junto. Tal empreendimento intelectual tem o poder de nos arrancar das rotinas filosóficas e das teorias progressistas da emancipação definitiva, fazendo-nos voltar às imagens simbólicas e às emoções de base; aos fantasmas imemoriais; às imagens elementares; aos temas mitológicos arquetipais, ou a isso que constitui a base granítica sobre a qual se elabora todo viver-junto ( TAVARES, 2018a ).
Ao reconhecermos a indissociável relação entre comunicação, consumo e imaginário, faz-se necessário recobrar o predomínio do inconsciente. Em outras palavras, o inconsciente coletivo tem um papel fundamental na formação de climas ou estados emocionais, detonados com a comunicação (ou consumação) midiática. Esses climas ou “atmosferas sensíveis” ( MARTINS, 2017 ) revelam, fenomenologicamente, como a comunicação tem pouca relação com o mais famoso – e talvez mais criticado – modelo da comunicação de Claude Shannon (1916-2001) e de Warren Weaver (1894-1978) ( TAVARES, 2018a ). Esse modelo representa a comunicação conforme o cenário da telecomunicação, como se houvesse uma linearidade das trocas comunicacionais entre emissor e receptor. Portanto, passa ao largo da complexidade do fenômeno comunicacional e da sua produção/consumação de sentido, sobretudo se consideramos seu componente imaginário e inconsciente.
Em outras palavras, há deuses em nosso consumo, assim como há deuses na mídia, ou seja, há seres imaginais na consumação e na comunicação midiática. É importante essa reflexão epistemológica, sobretudo quando consideramos que
A maior parte dos estudos contemporâneos sobre Comunicação não ignora as questões psicológicas da subjetividade, alguns ainda consideram as questões da afetividade e do desejo, mas não é comum encontrarmos nessas reflexões um interesse maior acerca da natureza e da influência nas relações comunicativas desses seres imaginais que habitam em grande parte o inconsciente. Tudo ocorre como se pudéssemos, para respeitar a classificação de áreas de saber imposta por uma visão compartimentalizada do mundo e do ser humano, tratar dos processos comunicativos [e de consumo] sem refletir sobre suas motivações e demandas inconscientes. ( CONTRERA, 2010, p. 18 )
Dada a interrelação comunicação, consumo e imaginário, e considerando o imaginário como uma espécie de reservatório coletivo de imagens no qual o ser humano, individual e coletivo, busca soluções – proposta durandiana bastante próxima da noção de arquétipo em Jung –, e que seria esse imaginário alimentado pelas artes, pela filosofia, pela ciência, pela religião, Portanova Barros ( 2010 ) e Maffesoli ( 2016 ) vão argumentar que será justamente a comunicação midiática uma das principais responsáveis por dinamizar o imaginário, colocando em circulação suas imagens ( TAVARES, 2018a ). É distinta essa visão, na sua ênfase e criticidade, das teses de Contrera ( 2010 ). Essa autora compreende que existe na comunicação midiática, e ainda mais no seu consumo generalizado, mercantilizado, “um universo próprio que gradativamente se afasta de suas raízes originais de referência, gerando ‘seres do espírito’ pertencentes a uma esfera própria” ( CONTRERA, 2010, p. 57-58 ) – a esfera dos imaginários mediáticos . A mediosfera, entendida como um núcleo criado no âmago da noosfera, teria, segundo a autora, inflado titanicamente “de modo a vampirizar aos poucos a energia dos outros conteúdos na noosfera, pressionando os limites da primeira por dentro” ( CONTRERA, 2010, p. 57-58 ). Essa tese acentua, portanto, certa autonomia e mesmo uma literalidade das imagens midiáticas dadas ao consumo no sistema capitalista. Aponta-se a emergência de um imaginário midiático que “gradativamente vai inflando e roubando de outros núcleos do imaginário cultural seu poder de centralização dos olhares” ( CONTRERA, 2010, p. 57-58 ).
Mas, se na proposta teórica da mediosfera, os imaginários culturais são “roubados”, “pressionados”, se sofrem um tratamento estereotipado nas produções mediáticas, como se fossem acometidos por um “tumor”, encontraremos nas abordagens de Rocha ( 2008, p. 122 ) – sobre a interface comunicação/consumo – uma leitura que aponta “o papel seminal que as práticas de consumo, real e simbólica, desempenham nas sociedades contemporâneas”. Segundo nos mostra:
Vem-se constatando, em estudos de base empírica e qualitativa, o fato de nelas e a partir delas [as práticas de consumo] se constituírem identidades, tanto reativas quanto afirmativas. O consumo, de modo muito especial nos setores juvenis, afirma-se como referente fundamental para a conformação de narrativas, de representações imagéticas e de universos imaginários repletos de significação, das mais aterradoras às mais inspiradoras. ( ROCHA, 2008, p. 122 )
Se Rocha nos propõe uma leitura política dos modos de consumir, acentuando a constituição de identidades tanto reativas quanto afirmativas no palco social (ego societal para Durand), e daí os universos imaginários especialmente dos setores juvenis, Maffesoli chega a compreender, por exemplo nos incêndios provocados em Paris, em 2005, precisamente nos enfrentamentos de jovens des banlieues (filhos de imigrantes) contra a polícia, “coreografias rituais ou movimentos nos quais nenhum dos protagonistas poderia se reduzir a uma identidade individual” ( TAVARES, 2018a, p. 80 ). É importante destacar como essa leitura se insere no que ele chamou de “sociedade da consumação”, indicando, no caso supracitado, até mesmo uma estética dos distúrbios, já que a consumação é algo que se realiza em comum, através de ritmos, ritualidades, ou do que ele chamou de “perda de si no outro”:
Estamos sempre em grupo, pensamos, falamos e atuamos em grupo. Todos existem apenas por e no espírito do outro. Não falamos sobre “se jogar”? Essa perda de si no outro é bem a marca de uma sociedade da consumação , cujos efeitos ainda não terminamos de mensurar. É interessante notar que nos confrontos entre as “gangues” de jovens e a polícia se instalava uma espécie de coreografia ritual, um ritmo de ataques e defesas, escaramuças e perseguições. Houve, não podemos negá-lo, uma estética dos distúrbios: chamas durante a noite, movimentos rápidos de ataque e fuga, tudo parecendo a alguns destes balés de dança contemporânea. Da mesma forma como nestas cenas, em que o olhar não pode se concentrar em um dançarino ou em um movimento de grupo homogêneo e uniforme, mas ao invés disso é atraído por vários pontos de vista concomitantes, da mesma forma, no próprio movimento dos motins, nenhum dos protagonistas poderia ser reduzido à sua identidade individual. O debate sobre o estatuto penal desses jovens, sem passagem anterior pela polícia, ou reincidentes, era de certa forma estúpido, já que ignorava a origem plural dos atos, a irresponsabilidade individual, a responsabilidade coletiva. ( MAFFESOLI, 2006, p. 46, tradução nossa, grifo nosso )
A irresponsabilidade individual e a responsabilidade coletiva, nesse caso, ilustram como, de maneira geral, os grupos sociais consomem e se comunicam por meio de imagens, ritmos, narrativas, conflitos, ritualidades, tragédias ou situações que provocam estados alterados ou poéticos ( MORIN, 2017 ). É possível considerar, no horizonte das propostas de Maffesoli, que a “perda de si no outro” é uma marca da sociedade da consumação , da pós-modernidade, cujos efeitos estaríamos apenas começando a mensurar. Tratar-se-ia de compreender aí uma espécie de desconstrução do indivíduo moderno? Para Maffesoli ( 2016 ), sim, e, nesse sentido, o autor entende que é conveniente pensar na “pessoa plural”, nos trajetos do sentido e na consumação , fenômeno a partir do qual se pode observar uma reatualização de imagens primordiais, arquétipos, esquemas e símbolos da nossa imaginação coletiva. Podemos argumentar, assim, que há deuses em nosso consumo. Mas, antes disso, cabe apresentar o que Durand compreendeu se tratar dos benefícios do pensamento simbólico, os quais coexistem com outros níveis patologizados do universo do consumo (e do consumo dos media ), bem anotados por Contrera ( 2010 ).
Primeiro, e na sua determinação imediata, na sua espontaneidade, o símbolo surge como restabelecedor do equilíbrio vital comprometido pela inteligência da morte; depois, pedagogicamente, o símbolo é utilizado para o restabelecimento do equilíbrio psicossocial; em seguida, se examinarmos o problema da simbólica em geral, através da coerência das hermenêuticas, apercebemo-nos que a simbólica estabelece, através da negação da assimilação racista da espécie humana a uma pura animalidade, ainda que racional, um equilíbrio antropológico que constitui o humanismo ou o ecumenismo da alma humana. Por fim, depois de ter instaurado a vida face à morte, o bom-senso do equilíbrio face ao desregulamento psicossocial […], o símbolo erige finalmente, face à entropia positiva do universo, o domínio do valor supremo e equilibra o universo que passa, por um Ser que não passa, ao qual pertence a eterna Infância, a eterna aurora, e desemboca então numa teofania. ( DURAND, 1993, p. 97-98 )
Podemos ver como o símbolo tem um lugar fundamental na espécie humana. É ele quem restabelece o equilíbrio vital – ligado a uma inteligência da morte; quem estabelece um equilíbrio psicossocial e uma mitologia da alma humana. Nesse sentido, a sociedade midiática e de consumo se oferece como um vasto e inexplorado campo para a pesquisa empírica de imagens simbólicas, à luz dos estudos do imaginário. Para isso, Durand ( 2003 ) propõe uma mitodologia .
Em linhas gerais, a mitodologia durandiana será um modo de compreender o humano em sua inteireza (espírito-corpo, inconsciente-consciente, natureza-cultura etc.), e daí um procedimento metodológico que busca reconhecer mitos diretores em textos/imagens da cultura (o que se chamou de mitocrítica ); quando a leitura passa pelo desdobramento desses mitos nos contextos em que são produzidas e recebidas essas imagens, realiza-se um tipo de mitanálise . Contudo, a mitodologia durandiana, segundo Portanova Barros ( 2010 ), é apenas uma sugestão de método dentro da perspectiva do imaginário na comunicação, podendo tratar das relações entre real e imaginário, das desmitologizações e remitologizações encorajadas pelas tecnologias de comunicação; da questão do estereótipo e do preconceito, e das “degradações de imagens arquetípicas que tão facilmente circulam nos produtos comunicacionais” ( PORTANOVA BARROS, p. 141 ).
A mitodologia mostra como o mito, em suma, garante algum tipo de comunicação motivada por algo que não se esgota em racionalidades. A mitodologia pode mostrar, assim, “climas emocionais”. Apenas para ilustrar pensemos naquelas personalidades políticas que encarnam a imagem simbólica do herói, do salvador da pátria, e que reproduzem constantemente em seus discursos o esquema ascensional da mudança; muitas vezes essas figuras – consteladas a outras tantas imagens simbólicas – são consideradas populistas e demagogas, talvez, por falarem a uma maneira mitológica, valendo-se, muito frequentemente, de metáforas e analogias. O que as imagens simbólicas podem fazer é nos “arremessar ao mesmo tempo” para algum lugar mais ou menos concreto da realidade; porque este lugar é, essencialmente, virtual, potencial e transcendental. Do grego sýmbolon , do verbo symbállein , o símbolo tem o poder de nos “arremessar ao mesmo tempo”, de “com-jogar” ou “conjugar” uma “re-união” ( BRANDÃO, 1986, p. 38 ), de modo que o símbolo e, por extensão, as imagens simbólicas do consumo caracterizam espaços comunicativos fundados num sentido mitológico. Essas imagens, no final das contas, parecem nos “arremessar ao mesmo tempo” para este lugar comum em que ocorre o mito.
O mito está em toda parte; por isso ele parece não estar em lugar algum. Edgar Morin afirma que a noosfera, a esfera do nóos , que em grego designa o espírito, o entendimento, é a esfera do mito. Os seres míticos, segundo Morin ( 2001 ), podem efetivamente “transbordar a linguagem” e, por isso, eles nos levam ao limite do próprio entendimento. Como argumenta James Hollis ( 2005 ), o mito se realiza através de um vidro escuro, da insinuação, do respeito, da reverência e do anseio por algo muito mais amplo. Assim, a noosfera enxerta na esfera da vida para o consumo, o mito, algo que nos salda, que nos reconhece e nos convoca a imagens da transcendência, oferecendo-nos modelos de conduta, heróis etc. Sua forma convencional é a narrativa, pois nela se condensa o pensamento mítico-mágico e o pensamento lógico-empírico.
As imagens e as narrativas midiáticas significam um excelente material empírico de investigação sobre como o consumo atinge nossas vidas.
Todos os dias, em algum nível, o consumo atinge nossas vidas, modifica nossas relações, gera e rege sentimentos, engendra fantasias, aciona comportamentos, faz sofrer, faz gozar. Às vezes nos constrangendo em nossas ações no mundo, humilhando e aprisionando, às vezes ampliando nossa imaginação e nossa capacidade de desejar, todos nós consumimos e somos consumidos. ( BARCELLOS, 2012, p. 22 )
Se, agora como propõe Durand ( 2003 ), o mito não é “um fantasma gratuito que se subordina ao perceptível e ao racional. É um res real que se pode manipular tanto para o melhor quanto para o pior” (p. 41, tradução nossa), faz sentido pensarmos em uma mitosfera do consumo, do ponto de vista teórico; ou em mitosferas do consumo, do ponto de vista empírico. Ao perguntarmos sobre imagens simbólicas e mitos diretores de textos e contextos articulados ao consumo, estamos fundamentalmente perguntando sobre uma mitosfera do consumo.
Ainda segundo Durand – ao se perguntar sobre a mitosfera dos tempos modernos –, os mitos não se apagam da memória social, e os esquemas arquetípicos tendem a se sobrepor:
Ainda vivemos do velho Prometeu do século XIX, que está em nossas pedagogias; vivemos, ainda, dentro de nossos meios de difusão e de uma maneira bastante intensa, do mito de Dionísio; e vivemos só um pouco do novo mito do século XX, que é este mito hermético que se pode ver aqui e acolá: […] Por que Jung se apaixonou pela alquimia? Porque assistimos à tomada de consciência de um modelo muito antigo do saber, aquele anterior ao Renascimento, e que utilizava as regras da similaridade e não as regras de exclusão do tipo hipotético-dedutivo – o que é muito mais válido para esclarecer certas constatações presentes do que um mito binário: “ou isto ou aquilo”, sim/não etc. Então, tomamos consciência de que um mito é o que permite o “psicótico” – magnífica noção hermética –, e o que permite compreender as situações a partir de outras homólogas.
Só que ainda está em estado germinativo em nossas sociedades [o uso dos esquemas herméticos]. São os feitos dos cientistas da vanguarda na física, nas ciências da vida, e também agora, pouco a pouco, nas ciências do homem. ( DURAND, 2003, p. 132, tradução nossa )
Prometeu, Dionísio e agora Hermes… Deuses e mitos que dirigem os tempos, as sociedades e que figuram, nos estudos do imaginário, o enraizamento dinâmico do próprio imaginário; por extensão, indicam como a comunicação e o consumo significam fenômenos dinâmicos, mas enraizados em mitos e esquemas arquetípicos. Assim demonstra uma psicologia arquetípica:
[…] para uma psicologia arquetípica, há deuses em nosso consumo. Afrodite da sedução e do encantamento pela beleza e pelo prazer, Hermes do comércio e da troca intensa, Cronos do devoramento, Plutão da riqueza e da abundância, Criança Divina da novidade, Dionísio do arrebatamento, Herói furioso, Eros apaixonado, Pan Príapo, Puer , quem mais? Que pessoas arquetípicas estão na alma do consumo? ( BARCELLOS, 2012, p. 23 )
Os fenômenos comunicacionais e de consumo, ao passo que estão enraizados no campo imaginal, ancestral –, tornam visíveis, ao menos em parte, a força invisível e radical dessa variedade de “pessoas arquetípicas”. E será um pensamento radical (que capta na raiz), o que garante, segundo Maffesoli ( 2016 ), o seu conhecimento; ou “todo questionamento filosófico que compreende, a exemplo de Aristóteles em Metafísica , que somente é possível conhecer uma coisa se pensamos em apreender sua origem essencial” ( MAFFESOLI, 2016apudTAVARES, 2018a, p. 84 ).
O conhecimento de uma mitosfera do consumo, seja ela qual for – enquanto objeto empírico – terá um compromisso inalienável com o que Durand chamou de trajetória antropológica ou trajeto do sentido, pois aí pode-se entrever o aspecto simbólico, em alguma medida arquetípico, das imagens. A noção de esfera, ou melhor, de mitosfera do consumo, parece então apropriada para tratar dos trajetos do sentido constituídos no cotidiano de consumo de narrativas midiáticas, por exemplo. É nesse sentido que tenho empregado a noção de consumação midiática.
Do ponto de vista das suas articulações teóricas e metodológicas, a mitosfera do consumo mostra como a consumação midiática é um lugar privilegiado de observação dos trajetos do sentido, em que, segundo Durand ( 2012 ), são formadas as imagens simbólicas.
Portanova Barros ( 2013 ) ensina que a noção de trajeto do sentido não mostra ao observador externo mais do que seus dois polos relativamente estáticos (o das pulsões inerentes à condição humana e o das coerções estabelecidas pelo meio). Para conhecer a imagem simbólica que se forma no trajeto do sentido, a autora entende que é preciso “nascer com essa imagem”, ou seja, entregar-se à sua transcendência. Desse modo, a compreensão intelectual da noção de trajeto do sentido não basta para avançar, pois, “quando se acredita tê-lo entendido racionalmente, haverá algo que escapa a este entendimento, dada a presença de uma energética simbólica que impulsiona o movimento no trajeto do sentido” ( PORTANOVA BARROS, 2013, p. 27 ).
O estudo das imagens simbólicas, por exigir uma imersão no trajeto do sentido, não permite ao pesquisador da Comunicação “contentar-se com as ferramentas herdadas de outras áreas do saber como a Sociologia, a Semiótica, a Antropologia etc., já que estas só desbastariam o terreno no polo das intimações do meio” ( PORTANOVA BARROS, 2013, p. 27 ). O imaginário “pede a perspectiva simbólica ao pesquisador, e é aí que as abordagens técnicas e teóricas não são mais suficientes; convoca-se a abordagem iniciática” ( PORTANOVA BARROS, 2013, p. 28 ). Essa abordagem, no meu entendimento, tem a ver com o que Barcellos ( 2012 ) chamou de “obra do consumo na alma” ou “obra da alma com o consumo”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Barcellos ( 2012 ), ao questionar a inteligibilidade da nossa sociedade de consumo, reclama por uma compreensão do consumo à luz do processo da alma:
A obra do consumo na alma, ou a obra da alma com o consumo (tanto faz), atinge patamares patologizados, contornos enfermos, mas tem em seu epicentro nervoso, social e individualmente falando, uma ampliação do desejo ou do deleite da própria alma pelo mundo – mundo das coisas e coisas do mundo. Podemos então pensar que o consumo flexibiliza e amplia os limites de sua experiência e até mesmo o espaço psíquico da liberdade. Nossa sociedade de consumo só será um todo inteligível à luz do processo da alma. Sob o consumo, opera a alma .
O consumo faz parte da atração da alma pelo desejo, de seu envolvimento com o desejo. Faz parte do Mito de Eros e Psiquê. E o desejo aqui é pelas coisas do mundo – desejo que, em última instância, deseja de verdade animar o mundo, torná-lo alma. (p. 29-30, grifo nosso)
Podemos ver como o psicanalista indica um caminho de inteligibilidade à sociedade de consumo, que é compreendê-la à luz do processo da alma, ou seja, à luz da consumação da alma. Esse processo, sem dúvida, é um processo imaginal e comunicacional. Nesse sentido, cabe aos estudos de comunicação e consumo desenvolver caminhos de compreensão dos aspectos mitológicos e simbólicos que dirigem os contextos investigados; para isso, sugiro recorrer aos estudos do imaginário, que têm na sua transdisciplinaridade característica uma virtude, mas também um desafio. A mitosfera do consumo, enquanto objeto teórico, é uma sugestão de pesquisa que visa aproximar as questões da comunicação, do consumo e do imaginário. Por isso reúne uma série de conceitos, noções, discussões teóricas e práticas metodológicas que buscam facilitar o desafio de se construir um objeto do conhecimento tão complexo como a consumação midiática, por exemplo. Esse tipo de abordagem, entre outras, pretende tratar do estatuto das imagens simbólicas e dos mitos na sociedade midiática e de consumo. Assim, a mitosfera do consumo pode ser considerada uma teoria da consumação conforme propus outrora ( TAVARES, 2018b ).
REFERÊNCIAS
BARCELLOS, Gustavo. Psique e imagem: estudos de psicologia arquetípica. Petrópolis: Vozes, 2012.
BOECHAT, Walter. A mitopoese da psique: mito e individuação. Petrópolis: Vozes, 2009.
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Notas
Autor notes
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