RESUMO: Este artigo reflete sobre as motivações para o consumo de obras de arte que remetem à pichação a partir da articulação teórica de autores das áreas do consumo, arte e psicanálise. Foram entrevistados dois galeristas e quatro consumidores, a fim de identificar possíveis rituais de consumo. Percebeu-se que esse tipo de aquisição e posse é uma forma de o consumidor se aproximar de significados associados à arte de rua, como transgressão, coragem e liberdade. Isso se dá por meio do significado deslocado, no qual, pela posse desses objetos, os consumidores tentariam incorporar tais características e mostrar que são capazes de entender e dialogar com esses artistas que se utilizam da pichação para conseguir visibilidade e inclusão na sociedade.
PALAVRAS-CHAVE: Arte de rua, Pichação, Consumo de arte, Rituais de consumo, Significado deslocado.
ABSTRACT: This paper reflects on the reasons and motivations for the consumption of tag-like art works by articulating authors writing about consumption, art, and psychoanalysis. Two gallery owners and four consumers were interviewed to identify possible consumption rituals. This type of acquisition and ownership is a way for consumers to approach meanings associated with street art, such as transgression, courage and freedom, through displaced meaning. By owning these objects, consumers would try to embody these characteristics and show their ability to understand and dialogue with these artists who use tagging to achieve social visibility and inclusion.
KEYWORDS: Street art, Tagging, Art consumption, Consumption rituals, Displaced meaning.
RESUMEN: Este artículo propone reflexionar sobre las motivaciones del consumo de obras de arte que hacen referencia al grafiti desde la articulación teórica de autores del ámbito del consumo, del arte y del psicoanálisis. Se entrevistó a dos galeristas y a cuatro consumidores para identificar posibles rituales de consumo. Este tipo de adquisición y posesión se reveló como una manera de que el consumidor se acercara a significados asociados con el arte callejero, como la transgresión, el coraje y la libertad. Esto sucede a través del sentido desplazado en el que los consumidores con la posesión de estos objetos intentarían incorporar dichas características y demostrar que son capaces de entender y dialogar con estos artistas, que utilizan el grafiti para lograr visibilidad e inclusión en la sociedad.
PALABRAS CLAVE: Arte callejero, Grafiti, Consumo de arte, Rituales de consumo, Significado desplazado.
artigo
ARTE DE RUA EM CASA: O CONSUMO DE OBRAS QUE REMETEM À PICHAÇÃO
Street art at home: consumption of tag-like art
Arte callejero en casa: el consumo de obras que aluden al grafiti
Recepção: 27 Março 2022
Aprovação: 06 Junho 2022
Como citar este artigo: COUTO, Letícia; SATO, S. Arte de rua em casa: o consumo de obras que remetem à pichação. Signos do Consumo , São Paulo, v. 14, n. 1, p.1-11, jan./jun. 2022.
Este artigo é um recorte da monografia intitulada “ARTE DE RUA EM CASA: o consumo de obras de arte que remetem à pichação”, desenvolvida como trabalho de conclusão do curso “Cultura Material e Consumo: perspectivas semiopsicanalíticas” (Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo), em 2020. Nela, foi desenvolvida uma análise do consumo de obras de arte que remetem à pichação com o objetivo de entender a simbologia e a motivação para sua aquisição e posse, a partir de seus rituais de consumo ( MCCRACKEN, 2003 ). Para isso, realizamos entrevistas – de roteiro semiestruturado – com quatro consumidores e dois galeristas, todos moradores de São Paulo, entre os meses de abril e maio de 2020. As entrevistas foram analisadas com a articulação das contribuições teóricas consultadas, nas áreas do consumo ( BARBOSA, 2004 ; BAUDRILLARD, 2009 ), arte ( LIPOVETSKY; SERROY, 2015 ) e psicanálise ( FREUD, 2010 ), apresentadas ao longo deste artigo.
Inicialmente, esclarecemos que a expressão “arte de rua” é utilizada para se referir a um fenômeno muito comum em grandes cidades do mundo. Manco, Art e Neelon ( 2005 ) definem a arte de rua como aquela que utiliza uma linguagem específica encontrada em diferentes estilos, como grafite, estêncil, cartazes, pichação, adesivos, entre outros. Em comum, esses formatos têm como características principais a efemeridade, gratuidade e ilegalidade.
Zuin ( 2018 ) complementa esse entendimento, reforçando que este tipo de arte conta uma história nos suportes oferecidos pela cidade, ao se colocar em muros e paredes, postes e fachadas, pelo emprego do spray, do pincel, das máscaras. Aprofunda-se na relação da arte com a cidade ao considerar que:
a arquitetura da cidade tem em si uma linguagem, e a história está inserida nessa linguagem arquitetônica. Uma linguagem urbanística na qual o fechado e o aberto se completam, o previsível com o inesperado, o protegido e o exposto, o privado e o comum, o geométrico e o orgânico, em suma: a unidade e a variedade. Essa é uma linguagem completa em que o indivíduo faz parte da cidade e a cidade parte fundamental do indivíduo. ( ZUIN, 2018, p. 131 )
No entanto, é importante diferenciarmos pichação e grafite. Em comum, segundo Gitahy ( 2017 ), ambos interferem no espaço, subvertem valores e são transgressores. Por outro lado, o autor cita algumas diferenças: o grafitti vem das artes plásticas e a pichação da escrita, “ou seja, o graffiti privilegia a imagem; a pichação, a palavra e/ou a letra”. Zuin ( 2018 ) identifica mais uma diferença: o resultado é bem diferente em relação à composição visual, à temática, ao discurso, à função social e ao objetivo.
Graffiti, segundo o Gitahy ( 2017 ), vem do italiano graffito , que significa inscrição ou desenhos de épocas antigas, riscados toscamente à ponta ou a carvão em rochas, paredes etc. Gitahy ( 2017 ) ressalta que o grafite discute e denuncia valores sociais, políticos e econômicos com muito humor e ironia, e se contrapõe aos outdoors, por tirar o espectador da posição passiva de mero consumidor: “É, antes, um convite ao encontro e ao diálogo”. Zuin ( 2018 ) concorda e reforça, afirmando que o grafite é um texto estético provocador para que o indivíduo observador possa sentir o mundo de modo diferente daquele que sentia anteriormente.
O movimento do grafite começou a se desenvolver nos Estados Unidos na década de 70, junto ao hip-hop. Segundo Manco, Art e Neelon ( 2005 ), os filmes fizeram com que essa cultura fosse conhecida em outros países, inclusive no Brasil. Muitos grafiteiros famosos, hoje, começaram nessa época: Os Gêmeos, Tinho, Binho, Speto, Ornesto, para citar alguns. Em comum, Nova York e São Paulo da década de 70 enfrentavam problemas de violência e a pobreza.
No final da década de 70 e início dos anos 80, outras técnicas foram sendo descobertas, como a pintura à mão livre de figuras com látex e spray. Nesse período, crescia o número de artistas que se arriscavam com sua arte efêmera (ainda ilegal) para embelezar a cidade.
O grafite, que inicialmente era visto somente de modo negativo, considerado como ato de vandalismo e de revolta, de acordo com Zuin ( 2018 ), passa aos poucos a ser respeitado e se torna parte do território urbano contemporâneo, conquistando espaço nas galerias de arte de todo o mundo.
Os grafites passaram a ser considerados uma prática artística, perdendo características de protesto. Já a pichação, que, segundo Manco, Art e Neelon ( 2005 ), utiliza materiais mais baratos, como tinta látex, lama ou o próprio picho, que deu origem ao nome “pichação”, não aceita a proteção das instituições e não faz contratos que determinem o seu comportamento. Nesse caso, quando há tentativa nesse sentido, a pichação choca ao reforçar sua própria ideologia. Nesse contexto, Zuin ( 2018, p. 27 ) acredita que os “transeuntes podem apreender as denúncias feitas de problemas moral e social”, e, como afirmam Manco, Art e Neelon ( 2005, p. 29 ), é um protesto social.
Para Zuin ( 2018 ), a pichação é uma representação da contracultura e dos movimentos dos guetos, dá visibilidade à classe de grupos menos favorecidos da sociedade, “fazendo serem vistos outros modos de organização social em que o excluído se inclui e mostra ter esse direito de existir socialmente” ( ZUIN, 2018, p. 43 ). Segundo a autora, a pichação parte de um processo anárquico de criação, com o objetivo de agredir, marcar presença, provocar e chamar atenção para si, e utiliza símbolos de significação restrita aos grupos iguais. Inclusive, a escolha do local onde é feita a intervenção traz também um simbolismo, porque o objetivo é atuar em locais de grande visibilidade. É uma forma de demonstrar prestígio e coragem, principalmente para outros grupos de artistas de rua.
Outra característica desse tipo de arte é o fato de ser democrática e acessível a qualquer pessoa que passe pelo local onde foi feita, já que está inserida no espaço público, sem que seja necessário um pagamento para adentrar em espaço privado. Quando ela migra para locais fechados, como galerias, lojas e museus, deixa de ser acessível à sociedade como um todo e passa a ser consumida por uma parte menor da população que frequenta esses espaços expositivos e que, posteriormente, pode adquirir e levar essas obras para um espaço privado, como suas casas. Ou seja, essa comercialização e esse consumo passam a se dar fora das ruas, seu contexto original de criação, ainda que mantenham suas características estéticas. Além disso, o consumo é limitado a uma elite social, a única camada da população capaz de pagar o preço dessas obras, e, ironicamente, a mesma que geralmente não quer ter seu muro pichado.
Segundo pesquisa da Datafolha 1 , realizada em fevereiro de 2017 na capital de São Paulo, 97% dos entrevistados declararam ser contrários às pichações em muros e fachadas. Quando perguntados se gostariam de ter grafites na rua de sua casa, 78% dos entrevistados declararam que sim. Já quando se trata de pichações, a rejeição alcança 97%. Quando a pergunta se refere à fachada de sua casa, 69% declararam que gostariam de ter grafites e 3% afirmam que gostariam de ter pichações.
As reflexões propostas neste artigo referem-se às motivações para o consumo de obras que fazem referência direta à pichação, com quadros, latas de spray e extintores de incêndio customizados, miniatura de muro pichado e até telas nas quais são reproduzidas caligrafias dos muros, justamente por ter características menos comerciais e por serem menos aceitas pela sociedade em geral.
Inicialmente, vamos trazer reflexões teóricas sobre o consumo de arte a fim de problematizar suas práticas.
Para Barbosa ( 2004 ), o consumo é uma espécie de manipulação de artefatos e objetos da cultura material para fins simbólicos de diferenciação, satisfação de necessidades básicas e/ou supérfluas, atribuição de status, pertencimento e gratificação individual, e está presente em toda e qualquer sociedade humana ocidental e contemporânea. Já Baudrillard ( 2009 ) coloca o consumo como elemento de dominação social, responsável pela integração dos grupos que partilham o mesmo código. Ambos os autores concordam que o consumo ultrapassa a esfera da compra do objeto, abordando de formas diferentes como isso ocorre.
Para McCracken ( 2003 ), os bens de consumo são a parte visível e concreta da cultura e, por isso, carregam um significado cultural, além do caráter utilitário e do valor comercial. Da mesma forma, Baudrillard ( 2009 ) afirma que os homens não trocam simplesmente mercadorias, pois, na realidade, trocam símbolos, significações e informações. Assim, o objeto não precisa servir para alguma coisa. Ele precisa significar, deixar de ser instrumento para virar signo. Por isso, “o objeto torna-se substituível no campo das conotações, onde assume valor de signo” ( BAUDRILLARD, 2009, p. 89 ). Para o autor, a lógica do consumo passa pela manipulação de signos. O objeto perde a finalidade objetiva e sua função, tornando-se parte de um conjunto de objetos que, juntos e relacionados, adquirem um valor.
Ainda, segundo o pensamento de McCracken ( 2003 ), os objetos recebem significação simbólica, explorada com propósitos sociais. Os grupos utilizam signos como sinais de pertencimento. São códigos não linguísticos da cultura material, mensagens menos explícitas que a linguagem não dá conta de explicar isoladamente. É como uma marca invisível entendida apenas por quem faz parte. O autor pontua que os grupos inventam significados que se estabelecem por princípios e categoriais culturais e, em seguida, passam adiante para as classes subordinadas. Baudrillard ( 2009 ) complementa, ao dizer que a riqueza de uma sociedade faz parte de uma estrutura social que reproduz o privilégio de classes, deixando uma espécie de herança cultural para minorias privilegiadas.
Deste modo, os objetos conseguem simular a essência social e produzem um código social de valores por meio de signos. McCracken ( 2003 ) também trata da importância dos grupos na geração de um novo significado cultural, mesmo que por meio de um processo negativo de violar categorias culturais.
Neste contexto, são, principalmente, os grupos que vivem à margem da sociedade os responsáveis pela reforma de significado mais radical e inovador, e não a classe mais alta. A incoerência se dá porque essas redefinições acabam sendo incorporadas pelo mainstream . Esses grupos são provedores de significado, mesmo quando querem subverter a ordem estabelecida, porque também se utilizam do mundo consumista em busca de signos que os diferenciem. No entanto, quando os grupos radicais expressam seu protesto na linguagem dos bens de consumo, criam mensagens que todos que fazem parte desse sistema conseguem ler, mesmo não pertencendo ao mesmo grupo.
Saindo dos grupos para os indivíduos, através de seus bens de consumo – que trazem noções culturais –, esses últimos criam, de acordo com McCracken ( 2003, p. 116 ), um “mundo dos bens” pessoal que reflete suas experiências e conceitos. E é através da posse desses bens que o indivíduo assimila a própria vida e busca reivindicar o estilo de vida a que aspira. Baudrillard ( 2009 ) complementa essa ideia ao reforçar que os objetos são signos que distinguem o indivíduo. A relação do consumidor com o objeto não passa mais por uma utilização específica, mas pelo conjunto de objetos e o que ele representa no todo.
Isso é entendido de uma melhor forma ao abordarmos o conceito de significado deslocado, que, segundo McCracken ( 2003, p. 135 ), é o “significado cultural que foi deliberadamente removido da vida cotidiana de uma comunidade e realocado em um domínio cultural distante”. Para o autor, os bens são pontes para o significado deslocado, mesmo quando não são possuídos e somente desejados; ou seja, mesmo antes da compra, o bem pode servir para conectar o futuro dono com o significado deslocado. Normalmente, quando o indivíduo escolhe um bem para ser a ponte para esse tipo de significado, escolhe algo que está além de seu poder de compra porque o ajuda a contemplar a posse de uma condição emocional, uma circunstância social e um estilo de vida. McCracken ( 2003 ) alerta para a decepção causada ao indivíduo quando consegue comprar todas os bens que serviram como pontes para o significado deslocado, mas percebe que seus ideais permanecem irrealizados. Nesse caso, o autor aponta, como uma possível solução, a compra do que é “escasso e raro”, ou seja, passa a “colecionar”.
Para entender melhor o objeto como expressão do desejo do consumidor, de uma reinvindicação de status e, em última instância, de uma forma de se reconhecer como indivíduo, é preciso abordar outro conceito de McCracken ( 2003 ): os rituais de consumo. São eles que vão explicar como o bem de consumo consegue transferir significado do mundo culturalmente constituído ao indivíduo. Isso se dá em dois momentos. O primeiro é quando o significado é transferido do mundo culturalmente constituído para o bem de consumo, e acontece, principalmente, por meio da publicidade. São abordagens que conseguem dotar os bens de consumo de significado, dando um novo valor, tirando-os da função utilitária e os transformando em signo. O segundo momento, foco deste artigo, é a transferência de significado do bem de consumo para o indivíduo, ou seja, quando o indivíduo adquire aquele significado almejado por meio do bem de consumo. Isso se dá por meio dos rituais de consumo. O autor apresenta os rituais de troca, posse, arrumação e despojamento, mas também podemos observar outros, como o ritual de busca.
Esses rituais ocorrem atualmente num mundo estetizado, com o surgimento do capitalismo artista. Segundo Lipovetsky e Serroy ( 2015 ), “não há sociedade que não se empenhe de uma maneira ou de outra, num trabalho de estilização ou de ‘artealização’ do mundo, trabalho esse que é o que singulariza uma época ou uma sociedade” ( LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 16 ).
Os autores problematizam a Era Transestética, em vigor desde a segunda metade do século XIX, que transforma os artistas em mercadorias e produz a arte em grande escala para fins comerciais, porém com componente estético e emocional. Essa arte de que estamos tratando aqui não é uma subarte, mas, sim, uma arte dominante da hipermodernidade, quando os grandes colecionadores são também mecenas, marchands, criadores de exposições, diretores de galeria, promotores e comunicadores e, às vezes, até os próprios artistas.
No contexto da Era Transestética, o que caracteriza a arte não é mais a transgressão, mas a conformidade com o mercado ( LIPOVETSKY; SERROY, 2015 ). Por isso, o preço das obras é mais importante do que o valor estético, porque é o que consagra o artista e a obra. Byung-Chul Han ( 2019 ) traz o fato de que obras de arte são negociadas comercialmente, inclusive nas bolsas de valores: “elas não possuem nem valor de culto nem valor de exposição. É justamente seu puro valor especulativo que as submete ao capital. Hoje, o valor especulativo se manifesta como valor supremo. A bolsa é o local de culto de hoje. No lugar da redenção, aparece o lucro absoluto” ( HAN, 2019, p. 101 ). Para Lipovetsky e Serroy ( 2015 ), hoje, existe uma grande concentração do mercado mundial da arte, com redes internacionais. Com isso, investimentos em comunicação destes produtos estão cada vez mais altos. Afinal, é a propaganda que irá criar prestígio para o artista, sentido para a obra e transmitir o valor simbólico (artístico, cultural e mítico).
A expressão simbólica da arte não basta mais: é preciso um contexto de sedução, um espetáculo completo e teatralizado para o consumo. No entanto, Han ( 2019 ) considera que as obras de arte perdem seu valor de culto no momento em que são expostas, porque o valor de exposição o ultrapassa: “o valor de exposição suplanta o valor de culto. As obras de arte não são dispostas na via festiva, mas expostas nos museus” ( HAN, 2019, p. 101 ). Lipovetsky e Serroy ( 2015 ) também citam a capacidade que os museus adquirem de transformar objetos práticos ou culturais em objetos estéticos, que adquirem valor de exposição, universal e atemporal, no lugar dos valores rituais ou funcionais. Os autores alertam para o risco de tudo se estilizar e transmutar em obra de arte, até mesmo o espaço urbano: “a era da igualdade democrática tornou possível a afirmação da igual dignidade estética de todos os assuntos, a liberdade soberana dos artistas de qualificar de arte tudo o que criam e expõem” ( LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 23 ).
Lipovetsky e Serroy ( 2015, p. 91 ) complementam, ainda, que “certas galerias de arte fazem pensar em lojas de presentes, os museus e vernissages se apresentam como lugares e momentos hip , as lojas de moda parecem galerias de arte”. A estetização do consumo se aplica aos objetos, às lojas, aos locais urbanos e também ao consumidor, em seus gostos, apreciações e estilo de vida. Nesse contexto, Baudrillard ( 2009 ) lembra que o centro cultural vira comercial, e a mercadoria ganha caráter de cultura. Ele atribui o consumo de arte a uma necessidade de imagens e de signos da realidade e da história. Essas imagens criam um simulacro do mundo dentro de casa, o que torna o enclausuramento do cotidiano menos insuportável. No consumo da arte, cabe também o conceito de McCracken ( 2003 ) de transferência de sentido. O bem de consumo deixará as mãos do designer e entrará em qualquer um dos contextos escolhidos pelo consumidor. Assim, o designer precisa transformar o objeto de tal maneira que o espectador/dono possa perceber que tal objeto possui certo significado cultural ( MCCRACKEN, 2003, p. 112 ).
Desta forma, observamos que o consumo da arte pode ser similar ao de qualquer outra mercadoria, uma vez que é submetida ao mercado e também passa pela transferência de sentido, tanto para o bem quanto para a pessoa, por meio de rituais de consumo.
Nas entrevistas realizadas com dois galeristas e quatro consumidores, procuramos compreender como se dá a transferência de sentido do bem (obra de arte) para o indivíduo (consumidor), por meio de obras que remetem à pichação. Utilizamos o conceito dos rituais de consumo ( MCCRACKEN, 2003 ) para organizar os principais aprendizados a partir das entrevistas, adequando-os ao consumo deste tipo de obras de arte.
Assim como o consumo de obras de arte de maneira geral, o consumo de obras que remetem à pichação tem o mesmo viés que McCracken ( 2003, p. 74 ) chamou de “consumo curatorial que é quando a pessoa cuida do seu bem com responsabilidade, prezando pela conservação, exposição e pela transmissão segura”. Portanto, os principais rituais são os de busca, negociação ou relacionamento, e posse. A seguir, detalharemos cada um deles e seus principais aspectos destacados pelos entrevistados.
O ritual de busca é o período em que a pessoa visita galerias, exposições, sites e perfis no Instagram de artistas para encontrar a obra de que goste. Esse período pode durar anos porque, como se trata de um bem de consumo durável, o preço é alto e dificilmente a compra é feita por impulso ou com pressa. Na fase da busca, a pessoa conhece artistas (ou, no caso de arte de rua, há um reconhecimento dos artistas que já foram vistos nas ruas), fica com o olhar voltado para isso, busca estilos diferentes, pesquisa preços, até tomar a decisão de compra. Sobre estes rituais, um dos consumidores entrevistados é um colecionador que, quando começou a consumir arte, o fazia por impulso. Hoje, ele avalia todas as variáveis, isto é, se a obra tem potencial de valorização e se o artista é reconhecido. Ele procura no mercado para ver se há outra obra parecida mais barata para não pagar mais caro. Já os outros dois consumidores entrevistados, que são profissionais de marketing, levam mais em consideração a trajetória do artista e o quanto isso se reflete na obra. Eles avaliam o quanto a compra vai fazer diferença para o artista no sentido de propiciar que ele invista em materiais para fazer outros trabalhos. Além disso, citam a importância do investimento no artista que tem origem na arte de rua, que, em geral, vem de uma camada mais invisibilizada da sociedade. A quarta consumidora entrevistada, profissional de comunicação, considera o ritual de busca uma constante em sua vida. Ela conta que está sempre com um olhar atento para as artes e para as oportunidades que possam aparecer.
Por outro lado, os dois galeristas entrevistados para este estudo contam que, como seus espaços são destinados especificamente à arte urbana, o consumidor não leva muito tempo para decidir porque já fez um filtro inicial do estilo dos artistas. Se ele está na galeria, é porque quer algo com aquelas características. Um dos galeristas conta que os consumidores que compram arte de rua querem levar um pouco dessa transgressão para casa. Já o segundo concorda que há clientes que querem ter em casa algo com uma estética “meio bandida”, mas acredita que os consumidores também enxergam uma plasticidade nisso.
No caso da arte de rua, observamos um ritual que chamaremos de “negociação” ou de “relacionamento”, que se trata do momento em que o consumidor interage diretamente com o artista. Essa é uma característica deste estilo de arte, que, por ter origem nas ruas, propicia uma proximidade maior entre consumidor e artista. Um dos galeristas conta que o que o aproximou da arte de rua inicialmente, ainda como consumidor, foi a proximidade dos artistas e a possibilidade de conversar pessoalmente com eles. Os consumidores entrevistados também citam a importância das redes sociais, como o Instagram, para aproximar artista e cliente e viabilizar o diálogo entre eles. Já um deles revelou a importância de se identificar com o propósito do artista. Os entrevistados definiram esta etapa como essencial à decisão de compra, com exceção do consumidor que é colecionador e trata sua compra de forma mais complexa. Quando o consumo acontece em galerias, ambos os galeristas entrevistados revelam a existência de uma negociação maior de preço, no pedido por desconto. Segundo um galerista, esse comportamento é um hábito do brasileiro e na arte não é diferente.
O terceiro ritual de consumo relacionado à arte de rua é o de posse, isto é, quando a pessoa se apropria da obra, escolhe o local onde vai ficar e a coloca, de fato, neste local – na parede ou em algum lugar de sua propriedade. Aparentemente, somente nesse momento, a pessoa sente que o bem lhe pertence. A obra em questão irá se unir aos outros bens decorativos e vai transferir significado para o indivíduo, ajudando-o a formar um pouco de sua personalidade e a mostrar um pouco de como ele é. Ao deixar as mãos do designer, o bem de consumo entrará em qualquer um dos contextos que o consumidor escolher para ele. Para isso, o dono precisa perceber que o objeto, assim formulado, possui significado cultural, “com suas novas propriedades simbólicas plenamente expostas em suas novas propriedades físicas” ( MCCRACKEN, 2003, p. 112 ).
Um dos consumidores entrevistados define seu sentimento como satisfação porque, segundo ele, suas obras de arte representam um pouco do que é. Outra entrevistada relata sentir emoção por estar participando de um circuito único e exclusivo de comportamento real urbano e por ter um pouco da rua em casa. Outro consumidor descreve o sentimento presente nesse momento como uma mistura de alegria, no sentido de poder ver algo todos os dias em sua casa, e se sentir mais completo, como um conforto pessoal. Inclusive, conta que uma das suas primeiras motivações para consumir este tipo de arte foi garantir que ela não iria desaparecer, risco que se corre quando a intervenção fica na rua porque pode ser apagada a qualquer momento.
As verbalizações a partir das entrevistas realizadas com artistas, galeristas e consumidores, além da análise das redes sociais e dos trabalhos dos artistas selecionados, permitiu compreender de forma mais profunda os conceitos teóricos discutidos neste artigo. Segundo Lipovetsky e Serroy ( 2015 ), a partir do momento em que o indivíduo tem suas necessidades de base satisfeitas e adquire conforto material, o consumo é cada vez mais comandado pela busca de emoções, pela exigência de se proporcionar “pequenos prazeres”, pelo desejo de viver experiências ( LIPOVETSKY ; SERROY, 2015, p. 329 ). Além disso, os autores explicam que a relação com a casa também é transformada pela sensibilidade estética hipermoderna:
Estamos no momento em que o conforto doméstico definido exclusivamente pelos critérios funcionais e técnicos já não basta. Se os grandes conjuntos urbanos parecem, os interiores revelam, em nossos dias, gostos estéticos subjetivos. O capitalismo artista e a dinâmica de individualização se conjugaram para tornar possível uma maior subjetivação da relação com a casa, uma democratização das tendências à estetização da home, procedimentos decorativos mais personalizados, menos patronizados. ( LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 329 )
Por outro lado, Lipovetsky e Serroy ( 2015, p. 20 ) alertam que a vontade de estilização do ambiente de vida funciona como meio de autoafirmação social, maneira de exibir sua posição e de realçar o prestígio dos poderosos. Estaria aí um dos motivos que levam ao consumo da arte de rua diretamente associada à pichação: seria uma forma de reforçar o poder e a possibilidade de comprar a rua? Baudrillard ( 2009 ) afirma que a nossa sociedade, antes de ser de produção de bens, é uma sociedade de produção de privilégios: “existe uma relação necessária, sociologicamente definível, entre o privilégio e a penúria. Ambos se encontram estruturalmente interconexos” ( LIPOVETSKY ; SERROY, 2015, p. 74 ), e o consumo é colocado como “um poderoso elemento de dominação social” ( LIPOVETSKY ; SERROY, 2015, p. 100 ). Portanto, essa seria uma das motivações desse tipo de compra: a possibilidade de tudo comprar, inclusive a rua, e o controle desse tipo de arte, uma vez que, quando o grafite ou a pichação estão nas ruas, ninguém consegue dominá-los.
Outro fator é o “significado deslocado” que, de acordo com McCracken ( 2003 ), é “um significado cultural deliberadamente removido da vida cotidiana de uma comunidade e realocado em um domínio cultural distante” ( MCCRACKEN, 2003, p. 135 ). É o que acontece, por exemplo, quando um quadro que remete à pichação é colocado em um contexto diferente do original.
Para McCracken ( 2003, p. 137 ), uma comunidade pode deslocar seus ideais quando reconhece que a realidade desejada é inacessível. Isso os removerá da vida cotidiana e os transportará para outro universo cultural, e, desse modo, serão mantidos ao alcance, mas fora de perigo.
A cultura que recorre à estratégia do “significado deslocado” deve encontrar um lugar para seus ideais. No caso do grafite e da pichação, isso pode estar associado a características positivas relacionadas a esse tipo de arte, como juventude, coragem e liberdade.
Baudrillard ( 2009 ) trata da orientação positiva do sujeito para o objeto da necessidade e alerta que não há necessidade satisfeita, podendo resultar em violência. Segundo o autor, “assim se ilumina o problema fundamental da violência na sociedade da abundância” ( BAUDRILLARD; 2009, p. 239 ). Ainda explica que esta violência é diferente daquela “gerada pela pobreza, pela penúria e pela exploração e constitui a própria emergência em ato de negatividade do desejo, omitida, velada e censurada pela positividade total da necessidade” ( BAUDRILLARD; 2009, p. 239 ). Ele associa ainda essa emergência à destrutividade (pulsão de morte) para a qual é impossível haver estruturas burocráticas de recepção.
Por outro lado, Freud ( 2010 ) também aborda este tema quando trata dos impulsos obedecidos pela massa. O autor explica que eles podem ser tão imperiosos que o interesse pessoal não se fará valer, nem sequer o interesse da autoconservação. Ou seja, a pulsão de morte se sobressai em relação ao instinto de sobrevivência. Segundo ele, podemos sentir em nós mesmos essa tendência à agressão ( FREUD, 2010 ). Dessa forma, características como o risco, a transgressão e o vandalismo, normalmente associados ao grafite e à pichação, são capazes de gerar uma identificação nos indivíduos que têm esse instinto reprimido.
Aproveitando ainda uma reflexão de Freud ( 2010 ) sobre a relação entre a civilização e a beleza, exige-se que o homem civilizado venere a última, e que a produza em objetos, na medida em que for capaz de fazê-lo. Isso está longe de esgotar o que reivindicamos da civilização ( FREUD, 2010 ).
Essa atitude estética para com o objetivo da vida não oferece muita proteção contra a ameaça do sofrer, mas compensa muitas coisas. A fruição da beleza tem uma qualidade sensorial peculiar, suavemente inebriante. Não há utilidade evidente na beleza, nem se nota uma clara necessidade cultural para ela; no entanto, a civilização não poderia dispensá-la. ( FREUD, 2010 )
Quando falamos em civilização, segundo o autor, “associamos a sinais de limpeza e à ordem” ( FREUD, 2010 ), e talvez seja por isso que a pichação incomoda tanto os indivíduos nas ruas: por estarem associadas à poluição visual e a uma falta de ordem. Nesse raciocínio, o consumo da arte de rua poderia ser inclusive uma tentativa de colocar ordem e incluir essa arte em uma civilização.
Por fim, observa-se uma última, e não menos importante, possível causa para o consumo da estética da pichação: a possibilidade de ela ser considerada bela e, portanto, consumida por esse motivo. De acordo com Han ( 2019 ), o ideal do belo despoja-se de todo o consumo por causa de seu conteúdo racional. Segundo ele, o juízo quanto ao ideal do belo vai além do gosto. É um “juízo de gosto intelectualizado” que se baseia no “acordo do gosto com a razão, ou seja, do belo com o bem” e, segundo o autor, “não são todos que são capazes de apresentar e julgar essa beleza” ( HAN, 2019, p. 71 ).
A análise realizada neste artigo ressalta que esse tipo de consumo é uma forma de o consumidor se aproximar do universo da arte de rua e das características a ela associadas, como transgressão, coragem e liberdade. Isso se dá por meio do significado deslocado, através do qual, pela posse desses objetos em suas casas, os consumidores tentariam incorporar tais características e mostrar que são capazes de visualizar, entender e dialogar com esses artistas que se utilizam da pichação para conseguir visibilidade e inclusão na sociedade.
Isso posto, foram identificadas três possibilidade para o entendimento das razões e motivações pelas quais ocorre o consumo das obras que têm origem na arte de rua, particularmente na pichação: a possibilidade de comprar, mesmo que simbolicamente, a rua; a importância do caráter transgressor da arte de rua e sua relação com o risco associado à pichação; e a transmissão de significados relacionados à pichação, como a juventude, coragem, pertencimento a grupos e reconhecimento por iguais.
Mesmo sujeita a controvérsias, a arte de rua e suas distintas manifestações e recursos utilizados se impõe como um estilo de arte democraticamente difundido, pelo menos em sua origem. Da mesma maneira, em sua linguagem, expressa sentimentos e demandas da população, além de crítica social e política. Tais significados simbólicos são valorizados e consumidos no processo de transformação destas obras em mercadorias.
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