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#GIRLPOWERRUN: AS DIMENSÕES ESTÉTICA, ÉTICA E LÓGICA NAS MEDIAÇÕES COMUNICACIONAIS DO CONSUMO DA RUA

#GIRLPOWERRUN: the aesthetic, ethic, and logic dimensions in the communicational mediations of street consumption

#GIRLPOWERRUN: las dimensiones estéticas, éticas y lógicas en las mediaciones de comunicación del consumo callejero

Lívia Silva de Souza
Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil

#GIRLPOWERRUN: AS DIMENSÕES ESTÉTICA, ÉTICA E LÓGICA NAS MEDIAÇÕES COMUNICACIONAIS DO CONSUMO DA RUA

Signos do Consumo, vol. 14, núm. 1, e198376, 2022

Escola de Comunicações e Artes da USP

Recepção: 28 Maio 2022

Aprovação: 13 Junho 2022

RESUMO: O consumo da rua manifesta uma das formas do consumo do morar, em uma ponta oposta à casa, enquanto local de intimidade. Este artigo analisa os rituais midiatizados do consumo de uma corrida de rua, buscando as dimensões estética, ética e lógica nas mediações comunicacionais do consumo. Tal abordagem inspira-se em Perez e Trindade, que propõem uma aproximação entre as mediações de Martín-Barbero e as ciências normativas de Peirce como caminho para a construção de objetos de estudo no campo da comunicação e do consumo. Este percurso tornou possível a leitura de lógicas do consumo midiatizado manifestas nas postagens de participantes da prova na rede social Instagram, apontando mais aproximações do que discordâncias entre as estratégias e as táticas do consumo.

PALAVRAS-CHAVE: Comunicação, Consumo, Mediações, Midiatização, Cidade.

ABSTRACT: The street consumption manifests one form of the living consumption, in an opposing pole to the house as a place of intimacy. This article analyzes the mediatized rituals of street race consumption seeking the aesthetic, ethic, and logic dimensions in the communicational mediations of consumption. Such approach is based on Perez and Trindade, who propose to bring the mediations of Martín-Barbero and the normative sciences of Peirce closer as a path to build objects of study in the field of communications and consumption. This path allowed the reading of manifest medialized consumption logics in posts of participants of the race in the social network Instagram, pointing to more similarities than discrepancies between the consumption strategies and tactics.

KEYWORDS: Communication, Consumption, Mediations, Mediatization, City.

RESUMEN: El consumo callejero manifiesta una de las formas de consumo de habitar en extremo opuesto a la casa como espacio de intimidad. Este artículo analiza los rituales mediatizados del consumo de una carrera en la calle, buscando las dimensiones estéticas, éticas y lógicas en las mediaciones comunicacionales del consumo. Este enfoque se inspira en Perez y Trindade, quienes proponen una aproximación entre las mediaciones de Martín-Barbero y las ciencias normativas de Peirce como forma de construir objetos de estudio en el campo de la comunicación y el consumo. Este recorrido permitió comprender las lógicas del consumo mediatizado que están presentes en las publicaciones en Instagram de los participantes de la prueba, señalando más aproximaciones que discrepancias entre las estrategias y las tácticas de consumo.

PALABRAS CLAVE: Comunicación, Consumo, Mediaciones, Mediatización, Ciudad.

Como citar este artigo: SOUZA, Lívia Silva de. #GIRLPOWERRUN: As dimensões estética, ética e lógica nas mediações comunicacionais do consumo da rua. Signos do Consumo, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 1-10, jan./jun. 2022.

INTRODUÇÃO: A RUA E O CONSUMO MIDIATIZADO DO ESPAÇO URBANO

Um dos pilares da vida material, o morar enquanto relação de consumo, estende-se desde seu âmbito mais íntimo, a organização dos cômodos e dos objetos da casa, até suas dimensões mais públicas, na relação dos consumidores com o bairro e a cidade. Interessa-nos, neste momento, a rua enquanto lugar de consumo/consumo de lugar, e em linha com o pensamento de Canclini (1995) e os estudos latino-americanos desse objeto: encarado como processo sociocultural, é abordado como parte do ciclo de produção e reprodução social e integra as maneiras pelas quais exercemos a cidadania.

A rua – suas formas, sua organização e seu consumo – responde a questões sócio-histórico-culturais, além de, no Brasil, esta ter influência do modo como foi concebida desde o período colonial. Em relação à colonização da América pelos países ibéricos, Holanda (1995) distingue as práticas e métodos espanhóis e portugueses nas figuras do ladrilhador e do semeador. A colonização espanhola, na figura do ladrilhador, caracterizou-se pela criação de uma extensão da Espanha no Novo Continente, e, assim, pelo domínio da atividade humana sobre a natureza. A colonização portuguesa no Brasil, por sua vez, seguiu a motivação da exploração comercial, principalmente, e teve uma personalidade mais desordenada e ditada pelas facilidades e dificuldades do relevo na construção das cidades, ruas e praças. Com isso, também devido à facilidade de escoamento dos produtos extraídos da colônia para a metrópole e a defesa do território, a colonização portuguesa deteve-se, por mais de dois séculos, exclusivamente nas regiões litorâneas.

Ao olhar para o Brasil colonial e pós-colonial, Roberto da Matta (2011) observa que a organização do espaço, aqui, se confunde com a própria ordem social. Em outros lugares, como nos Estados Unidos, a organização do espaço, das ruas e dos bairros se dá de forma racional, linear, com orientação dos pontos cardeais. No Brasil, por sua vez, esta organização segue os esquemas das distinções sociais, como, por exemplo, na separação entre centro e periferia, e na má-conotação da expressão “suburbano”, ou seja, “sub-urbano”. (MATTA, 2011)

Quanto à relação entre a casa e a rua, Matta (2011) percebe grandes diferenças de ordem moral. Determinados assuntos não são falados em casa da mesma forma que são na rua, e vice-versa. A casa não é o espaço da polêmica e da discórdia, ao contrário da rua. É um espaço de intimidade, ao mesmo tempo coberto de moralidade no discurso. Há uma série de expressões idiomáticas, conforme lembra o autor, que refletem essa dicotomia. A ordem “vá para a rua!” mostra o drama do rompimento com a casa e o isolamento do indivíduo da sociedade. A expressão “rua da amargura” mostra a caracterização solitária e triste de se estar na rua, fora do acolhimento doméstico. “Sentir-se em casa” é o melhor sentimento que se pode ter em algum lugar fora de casa (MATTA, 2011). Assim, enquanto a casa é ambiente de harmonia e tranquilidade, a rua é movimento, é perigo, são os estranhos e os seus julgamentos, uma vez que todos são anônimos.

A fim de compreender a rua a partir do olhar do consumo, bem como situar esta pesquisa no campo, cabe fazer breves considerações quanto às suas mediações e midiatização.

Em SOUZA, 2019, conceituamos as chamadas mediações e midiatizações do consumo a partir de Trindade e Perez (2014), que observam o protagonismo cada vez maior das mídias e suas lógicas na configuração das práticas de consumo. A ideia do consumo midiatizado vê o surgimento de novas conformações dos rituais de consumo por meio das lógicas das mídias, que se tornam uma instituição independente na sociedade (HJARVARD, 2014). O que observamos em SOUZA, 2019> é o surgimento de novos rituais, próprios deste novo paradigma.

A postagem de fotografias ou vídeos, o uso de filtros nas imagens, a escolha de hashtags e marcadores de localização, bem como reações como o “curtir”, o comentário e o compartilhamento são os novos rituais deste consumo midiatizado. Tais rituais também veem surgir novas mediações técnicas, como é o caso das mediações algorítmicas das plataformas, que constroem critérios de relevância dentro de suas lógicas de mercado, visando ao aumento da permanência dos usuários nas redes e ao direcionamento de postagens patrocinadas e peças publicitárias.

Orientando essa discussão para o consumo da rua, podemos pensar nas diversas formas de rituais de consumo, novos ou nem tanto, que reconfiguram estes espaços como lugares do consumo midiatizado. Esses rituais estão nas ruas, na forma de estratégias e táticas do consumo. Certeau (2014) diz que o campo das estratégias é organizado pelos governos e pelas corporações, referindo-se àquilo que se pretende como regra, em resposta a objetivos definidos e racionalmente planejados. Já o campo das táticas corresponde às apropriações potencialmente criativas dos sujeitos consumidores que nem sempre, ou poucas vezes, respondem exatamente àquilo que fora previsto nas estratégias.

Nos espaços urbanos, vivenciamos o constante jogo entre as estratégias e táticas do consumo. Por um lado, marcas dominam a paisagem, com comunicações publicitárias, patrocínios e fachadas que levam as marcas, eminentes mediadoras do consumo, para o espaço do cotidiano. Por outro, os indivíduos apropriam-se destes sentidos, ora seguindo o script, ora em apropriações capazes de ampliar ou alterar os significados daquelas marcas. Nas táticas, os rituais midiatizados do consumo se fazem presentes, demarcando as ruas nos territórios da circulação comunicacional (GROHMANN, 2020) e atualizando as estratégias das marcas.

Entre outras coisas, a rua é também lugar de práticas esportivas: os praticantes de caminhada e corrida, a princípio, necessitam apenas de espaço linear para executá-las, o que torna a rua um espaço oportuno para esse fim. A prática da corrida de rua, entretanto, vem se tornando cada vez mais organizada, alinhada ao campo das estratégias, com a presença das equipes de treinamento, das agências organizadoras e das marcas patrocinadoras de eventos. Esse tipo de evento varia desde as provas mais tradicionais, como a Corrida de São Silvestre, em São Paulo, e a Volta da Pampulha, em Belo Horizonte, até circuitos criados mais recentemente, como a Night Run, corrida noturna que acontece em diferentes cidades no Brasil, ao longo de cada ano. Em todos os casos, para além da atividade esportiva em si, a corrida de rua se configura como prática de consumo midiatizado, tendo as marcas como mediações comunicacionais e rituais que se formam e reproduzem dentro das lógicas das mídias.

AS MEDIAÇÕES COMUNICACIONAIS DO CONSUMO E SUAS DIMENSÕES ESTÉTICA, ÉTICA E LÓGICA

No âmbito dos estudos latino-americanos da comunicação e do consumo, a teoria das mediações (MARTÍN-BARBERO, 2009) tem servido de base para pensar a produção, recepção e circulação dos sentidos nos rituais do consumo e do consumo midiatizado.

Perez e Trindade (2019) ampliam a compreensão das mediações comunicacionais do consumo na contemporaneidade ao aproximar a teoria das mediações e a semiótica de base peirceana: os autores entendem que o signo, em Peirce (1995), sendo triádico, é essencialmente mediado. A perspectiva sociocultural da comunicação, evidenciada pela teoria das mediações, encontra-se com as dimensões estética, ética e lógica dos signos, as ciências normativas, conforme Peirce (2015 apud PEREZ; TRINDADE, 2019).

A proposta pretende balizar, de certo modo, as pesquisas desenvolvidas no campo da comunicação, que, por não possuírem teorias próprias, fragmentam-se em direcionamentos distintos, que por vezes não dão conta dos fenômenos comunicacionais. Exemplo disso é a visão da midiatização, quando considerada de forma isolada na comunicação, sem que sejam levadas em conta as mediações comunicacionais do consumo.

Nesse sentido, a formulação de uma teoria das mediações comunicacionais do consumo, alinhada ao signo peirceano, fornece um caminho para o desenvolvimento das pesquisas em comunicação. Nas palavras dos autores:

a mediação sígnica configura uma abordagem estética das formas de conhecer as manifestações de comunicação e consumo, pressupondo que tais mediações serviriam à formulação de condutas/ética, no sentido atribuído por Peirce (1995), […] bem como para a formação de profissionais da área de comunicação e para as práticas de mercado, cujos resultados seriam reveladores das lógicas do consumo e consumo midiatizado na vida social e cultural. (PEREZ; TRINDADE, 2019, p. 111)

Visto que os signos são elementos mediadores das interações comunicacionais, a dimensão estética é a primeira observada pelos autores. Em Peirce (1995), a ciência normativa da estética não é a ciência do belo, mas sim daquilo que é passível de admiração. Localizando o tema nos estudos do consumo, Perez e Trindade (2019) estabelecem três eixos centrais: a estética dos produtos e serviços; a estética da publicidade; e a estética das expressões e sensorialidades das marcas. O primeiro, atualmente, tem uma importante ligação com a disciplina do design, que passou, em anos recentes, a integrar a própria concepção dos produtos e serviços. O segundo eixo, a publicidade, relaciona-se a todas as estratégias evocadas no intuito de conectar as marcas e as pessoas. Perez (2016) cunha a expressão “ecologia publicitária”, buscando dar conta da multiplicidade de ferramentas e formatos que expandem a publicidade hoje. O terceiro eixo, a estética das marcas, hoje, refere-se não somente ao seu aspecto visual, e se expande sensorialmente: cheiros, texturas, sonoridades, sabores. Mais que nunca, a relação entre pessoas e marcas configura uma experiência estética.

A dimensão ética, enquanto ciência da conduta, tem seus princípios fundadores na estética, segundo a teoria peirceana. Os estudos das mediações comunicacionais do consumo, aqui, observam as condutas do consumo, tais como: os estudos sobre o consumismo (de alinhamento sociológico ou psicanalítico); posicionamento honesto e reputação das marcas; o marketing de causas; e a culpa do consumidor (PEREZ; TRINDADE, 2019, p. 119-120).

A dimensão lógica é chamada por Peirce (1995), justamente, de semiótica, uma vez que o próprio pensamento se baseia em signos. Para os estudos das mediações comunicacionais do consumo, isto se refere, segundo Perez e Trindade (2019), aos estudos das lógicas do consumo, a saber: as lógicas de produção (o capitalismo clássico e sua expansão tecnológica); as lógicas do mercado, como a maximização do lucro, técnicas de venda e visual merchandising; e as da formação, que aponta a inexistência de uma formação profissional para o consumo, e pesquisa e produção de conhecimento, lógicas estas que estão em processo de estabelecimento, em especial na área de pesquisa em comunicação (PEREZ; TRINDADE, 2019, p. 121-123).

A partir desta proposta de constituição dos estudos das mediações comunicacionais do consumo, junto às ciências normativas de Peirce, analisaremos os rituais do consumo midiatizado da rua, com foco em um evento de corrida realizado na cidade de Vitória, no Espírito Santo (ES), em maio de 2022.

#GIRLPOWERRUN: ESTÉTICA, ÉTICA E LÓGICA DO CONSUMO MIDIATIZADO DA RUA

A história do estado do Espírito Santo pode ser entendida como uma metonímia da própria colonização do Brasil: uma região litorânea, ao sul da Bahia, onde aconteceu o primeiro desembarque oficial dos portugueses. Com a divisão da colônia em capitanias hereditárias, a do Espírito Santo foi fundada em 1535. Vitória foi elevada à categoria de cidade em 1823, mas sua urbanização intensificou-se a partir de meados do século XX. Embora seja a capital do ES, a cidade fica em quarto lugar no estado em número de habitantes. O território da cidade divide-se entre a Ilha de Vitória, onde está a maior parte do município, e o continente.

A cidade é conhecida por sua constante presença em rankings de qualidade de vida e Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM). Segundo os dados mais recentes do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Vitória ocupa a quarta posição entre os municípios brasileiros, quanto ao IDHM (PNUD, [2010]).

Trata-se, portanto, de uma cidade litorânea, de clima tropical, em que os sentidos da qualidade de vida manifestam-se em hábitos de se estar ao ar livre, seja para atividades de lazer, nas muitas praças ou nas praias, seja para a prática de atividades físicas, também constantemente observadas nas praias, ruas e academias privadas.

Nesse cenário, no dia 15 de maio de 2022, foi realizada a corrida de rua Girl Power Run, com as opções de percurso de 5 km e 10 km, em sua maior parte realizado pela Avenida Beira-Mar, com seu ponto de chegada em um local com vista para a baía de Vitória, uma espécie de “cartão postal” da cidade. Trata-se de uma prova que acontece também em outras cidades, sendo que o circuito já passara por São Paulo e Osasco. A corrida foi organizada pela RBR Eventos e Cultura, e teve gratuidade na participação, o que foi possibilitado pela Lei de Incentivo ao Esporte, pelo patrocínio da mineradora Vale e apoio da rede de artigos esportivos Centauro.

A Girl Power Run possui um claro posicionamento de marca voltado ao chamado empoderamento feminino, discurso em voga e por vezes banalizado na atualidade. O nome, em tradução livre, significa Corrida do Poder Feminino, e sua identidade visual, conforme disponível no site e no mobiliário do local do evento, tem foco em tons de rosa-choque e lilás, com tipografia jovial, sem serifas. No logotipo, na palavra “power”, a letra “O” vem com um traçado em forma de cruz, formando o símbolo do espelho da deusa Afrodite, ou Vênus, iconografia para o gênero feminino. Quanto ao conteúdo, no site, além de informações gerais do evento, há uma seção intitulada “12 mulheres que fizeram história”, em que são divulgadas personalidades de mulheres das ciências, literatura, música e esportes, que tenham realizado algum feito notório (12 MULHERES…, [2022]).

Manifesta-se, assim, na dimensão estética das mediações comunicacionais do consumo, o posicionamento da marca Girl Power Run, interessada em pautar uma conduta de consumo alinhada a um discurso corrente em favor do poder feminino. É importante mencionar que tal posicionamento desconsidera a mulher como gênero em sua totalidade, uma vez que não faz menção a existências que não a das mulheres cisgênero. Na descrição da temática da corrida, divulgada no site e em releases para a imprensa especializada, por exemplo, torna-se claro que existe uma identificação quase que automática entre o sentido de mulher e o sexo biológico: “[…] é um projeto que pretende divulgar informações sobre temas centrais femininos, como: cuidados relacionados à TPM, à menopausa, aos exames preventivos, ao câncer de mama, além de debater a relação do esporte com tudo que envolve a saúde das mulheres” (TOTTI, 2022). Também no local do evento, foram disponibilizados serviços de “beleza, tendo à disposição um estande oferecendo penteados e massagem” (TOTTI, 2022), o que reforça o estereótipo cis-normativo na construção do sentido do público-alvo “mulheres”.

Na dimensão ética, portanto, o posicionamento torna-se passível de críticas, uma vez que ignora a existência da construção do gênero desatrelada das características unicamente biológicas, como é o caso das mulheres transgênero, por exemplo. De fato, isso se manifesta na própria dimensão estética, uma vez que a padronização em tons de rosa e lilás remete a um estereótipo de feminilidade cis-hétero-normativo.

Quanto às lógicas de mercado presentes, chama a atenção o patrocínio da mineradora Vale ao evento. Tal incentivo é facilmente identificável devido à presença do logotipo da empresa nos uniformes das competidoras e nos painéis afixados ao longo do percurso e no ponto de chegada da prova.

No ES como um todo, e em particular na cidade de Vitória, a Vale tem uma presença importante. O estado é cortado pela Estrada de Ferro Vitória a Minas (EFVM), que faz o escoamento dos minérios e outros produtos de Minas Gerais até o Porto de Tubarão, em Vitória. Além do porto, a Vale também mantém no estado a produção de pelotas, que são pequenas bolas fabricadas com os finos da extração de minério de ferro, e que servirão para a fabricação do aço.

Se por um lado a empresa traz desenvolvimento econômico à região, por outro, a questão ambiental torna-se problemática. Entre as décadas de 1960 e 1980, os rejeitos da usina de pelotização (fabricação de pelotas) eram lançados ao mar e nas areias da praia de Camburi, em Vitória. Até os dias atuais, há resíduos de minério na praia e, recentemente, em 2017, segundo reportagem publicada no G1, uma decisão determinou que a empresa retirasse os resíduos da areia (CHAGAS, 2017). Além dos resíduos lançados, há o problema da poluição do ar. Segundo estudo do Instituto Estadual de Meio Ambiente (Iema), em parceria com a Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), 70% das emissões poluentes no ar da Grande Vitória são provenientes das empresas que operam no Complexo de Tubarão, entre estas a Vale (VALE…, 2019a). No estado, utiliza-se corriqueiramente a expressão “pó da Vale” para se referir à poluição do ar, com partículas de cor escura.

A responsabilidade ambiental é um ponto central na dimensão ética das mediações comunicacionais do consumo, hoje. Nesse sentido, a Vale, visando à manutenção de sua imagem institucional, patrocina muitos dos eventos culturais e esportivos no estado, além de realizar obras de recuperação paisagística e ambiental. Tais ações são divulgadas no site da empresa, em relatórios disponíveis para download. Estes têm como público não somente a população geral, mas sobretudo os acionistas da empresa, dentro da lógica do capitalismo financeirizado, contemplando a terceira dimensão das mediações.

No âmbito das estratégias (CERTEAU, 2014) do consumo, a organização da prova, os patrocínios, a definição de público-alvo e sua comunicação articulam as dimensões estética, ética e lógica em favor de uma expressão marcária, que pretende uma visão unívoca e inquestionável do posicionamento construído, sintetizado no “empoderamento feminino”, na paisagem “cartão-postal” da cidade e na presença do patrocinador.

A fim de perceber os rituais nas táticas do consumo midiatizado (CERTEAU, 2014), foram coletadas 20 postagens na rede social Instagram, no dia da corrida, após o término da prova. A coleta foi feita a partir da hashtag #GIRLPOWERRUN. Tal metodologia, bem como suas limitações, foram discutidas em SOUZA, 2019. Para esta observação, optamos por um corpus mais delimitado, pois temos como foco a observação das imagens e das legendas a partir das dimensões estética, ética e lógica das mediações comunicacionais do consumo da rua em seus rituais midiatizados.

Todas as fotografias coletadas foram postadas durante ou ao final da corrida, não havendo, na amostra, nenhuma menção aos momentos anteriores. Sobretudo nas imagens, mas também nas legendas das postagens, predominam expressões de euforia, como sorrisos e gestos amplos. Nas legendas, são presença constante as frases e expressões motivacionais e pequenas histórias de superação.

A composição das fotografias postadas segue um padrão, em que se destacam três modelos: imagens da pessoa correndo; ao final da corrida, em enquadramento próximo (close), mostrando a medalha em primeiro plano; ou em poses, de forma individual ou em grupos, em frente a um painel oficial da corrida, com as cores lilás e rosa-choque, onde se pode ler a hashtag #DONADOMEUCAMINHO e ver os logotipos da patrocinadora Vale, da Lei de Incentivo ao Esporte e da organizadora RBR. (Figura 1)

Postagens com a hashtag #GIRLPOWERRUN
Figura 1:
Postagens com a hashtag #GIRLPOWERRUN
Fonte: Instagram.

Mais especificamente quanto ao consumo midiatizado do espaço público da cidade, o asfalto se destaca e é de fato um elemento de composição de algumas das imagens. Outro, mais diretamente relacionado ao local escolhido para a prova, é a vista da baía de Vitória, em que fotografias tiradas com ângulos mais abertos mostram a água, algumas pequenas ilhas e o penedo, formando uma paisagem “instagramável”, neologismo dedicado àquilo que tem grande possibilidade de ser postado na rede Instagram.

Junto ao consumo midiatizado da cidade e seus rituais, está o consumo midiatizado da moda. Há toda uma indumentária entendida como a mais apropriada para a prática da corrida de rua: os tênis, o top, os shorts de corrida, o relógio de medição de performance e a camiseta do evento. Os tênis, em especial, chamam a atenção, pois, além de entregar a performance necessária a esta prática esportiva, são também bastante coloridos e chamativos, seja para aumentar a segurança do corredor nas ruas, seja para remeter esteticamente à ação, agilidade e energia.

Outro elemento a se observar é a presença de algumas postagens de uma influenciadora digital local, chamada Lara Santana. Moradora de Vitória, ela conta com 68.300 seguidores (em 28 de maio de 2022), e ficou famosa ao produzir vídeos curtos em que ironiza traços de comportamento dos capixabas, como são chamados os habitantes do Espírito Santo, além das características das principais cidades e bairros (Figura 2).

Postagens com a hashtag #GIRLPOWERRUN
Figura 2:
Postagens com a hashtag #GIRLPOWERRUN
Fonte: Instagram.

As táticas do consumo midiatizado da cidade, na corrida de rua, se revelam nas dimensões estética, ética e lógica das suas mediações comunicacionais e expandem os sentidos dados nas estratégias.

Quanto à dimensão estética, as cores, tanto das camisetas do evento quanto das demais peças de roupa e acessórios, são vibrantes e chamativas, frisando o sentimento eufórico das expressões faciais, corporais e das legendas, sentimento esse que é predominantemente associado à prática esportiva e, ao mesmo tempo, faz parte de uma espécie de ideologia da motivação e do sucesso. A presença recorrente das medalhas em destaque nas imagens reforça este sentido. A paisagem frequentemente escolhida para as fotografias participa, esteticamente, da legitimação daquilo que é da ordem do consumo midiatizado, daquilo que deve ser postado, constituindo assim um ritual desse consumo na curadoria dos elementos ditos “instagramáveis”. Na paisagem, também, o destaque dado ao asfalto e ao calçamento busca valorizar o fato de se estar na rua, como um signo de liberdade.

Algumas marcas que não patrocinam o evento aparecem espontaneamente nas imagens: Polar (marca de relógios para monitoramento de esportes), Asics, Fila e Adidas (marcas de artigos esportivos, como tênis e roupas para corrida) são exemplos de marcas que aparecem com certo destaque. A expressão das marcas nos rituais do consumo midiatizado servem à própria legitimação do praticante de corrida, como elemento constitutivo da identidade dos praticantes desse esporte na dimensão lógica do consumo.

Quanto à dimensão ética, as táticas do consumo parecem confirmar os temas propostos nas estratégias de posicionamento de marca construídas em torno do discurso do empoderamento feminino. O painel do evento, com os logotipos dos patrocinadores e organizadores e a hashtag #DONADOMEUCAMINHO, é um cenário privilegiado para boa parte das imagens postadas. Tal hashtag é também celebrada nas legendas de algumas das postagens, em complemento à ideia de poder feminino presente na concepção da prova. Essas publicações desconsideram, em sua totalidade, as contradições já apontadas aqui quanto aos sentidos do empoderamento feminino construídos nas estratégias da marca Girl Power Run. Quanto à presença da Vale como patrocinadora principal, também inexistem postagens com tom crítico a ela, mas também sem menções explicitamente positivas. O fato é que o logotipo da empresa aparece nas fotos em que há o painel e o uniforme das corredoras, indicando um grau de aceitação das ações desenvolvidas por ela no sentido da responsabilidade ambiental e social.

O conjunto dos elementos, como o tom eufórico nas imagens e legendas, e a hashtag #DONADOMEUCAMINHO nos traz à dimensão lógica das mediações comunicacionais do consumo. Esta se refere, aqui, à lógica do capitalismo neoliberal financeirizado, que enaltece ideologicamente a figura do self-made man, alinhada ao discurso da meritocracia e do individualismo, que vê o indivíduo como descolado de uma estrutura histórico-social e único responsável por suas escolhas, seus caminhos e seu sucesso.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O caminho proposto por Perez e Trindade (2019) para a aproximação das mediações comunicacionais do consumo com as ciências normativas peirceanas traz contribuições para a construção de objetos de estudo na Comunicação.

No presente artigo, pudemos analisar como se estruturam os rituais do consumo midiatizado da rua na situação específica de um evento de corrida, que se torna uma manifestação do consumo da moradia, na ponta oposta à intimidade da casa. No evento Girl Power Run, observamos a presença de marcas dos organizadores e patrocinadores, além daquelas levadas pelas competidoras em seus corpos. Foi possível perceber as diferenças e as aproximações entre as estratégias propostas e as táticas do consumo nos rituais empreendidos pelas autoras das postagens no Instagram.

Tais estratégias e táticas partem da dimensão estética do consumo, com a presença marcante de determinadas cores, expressões faciais e paisagens tidas como “instagramáveis”. Estes elementos revelam questões éticas importantes nas dinâmicas do consumo hoje, tais como as questões de gênero e a da sustentabilidade ambiental, as mais evidentes no evento e nas postagens em torno dele. Na dimensão lógica, por fim, revelam-se os aspectos marcantes da ideologia neoliberal no consumo midiatizado, em rituais que reforçam a alegria da conquista e o sucesso pessoal e ignoram contradições próprias destas mesmas dinâmicas do consumo, contribuindo para o reforço da imagem da empresa patrocinadora Vale e correspondendo às expectativas do mercado.

Trata-se, pois, de uma proposta necessária para pensarmos metodologias de estudo da própria circulação midiática nas redes, que não sejam balizadas unicamente pelas plataformas e “novas” tecnologias, ao levarmos em consideração as materialidades socioculturais e econômicas a partir das mediações comunicacionais do consumo.

REFERÊNCIAS

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VALE promete reduzir 50% do pó preto até 2023. Tribuna Online, Vitória, 7 dez. 2019. Disponível em: https://bit.ly/3yzTcAJ. Acesso em: 27 maio 2022.

Autor notes

Docente no Centro de Artes – Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), é doutora e mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo e graduada em Publicidade e Propaganda pela mesma instituição. Atua nos campos da cultura material, consumo e publicidade. É pesquisadora vinculada ao GESC3 – Grupo de Estudos Semióticos em Comunicação, Cultura e Consumo, vinculado à USP e ao CNPq, e membro do conselho técnico-científico da ABP2 – Associação Brasileira de Pesquisadores em Publicidade.

E-mail: livia.souza.37@ufes.br

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