artigo
DA BIG IDEA AO BIG DATA EM 10 ANOS DO CANNES LIONS: PUBLICIDADE EM TEMPOS INCERTOS 1
From big idea to big data in 10 years of Cannes Lions: advertising in uncertain times
De la Big Idea al Big Data en 10 años de Cannes Lions: publicidad en tiempos inciertos
DA BIG IDEA AO BIG DATA EM 10 ANOS DO CANNES LIONS: PUBLICIDADE EM TEMPOS INCERTOS 1
Signos do Consumo, vol. 14, núm. 1, e198641, 2022
Escola de Comunicações e Artes da USP
Recepção: 06 Junho 2022
Aprovação: 13 Junho 2022
RESUMO: Este texto traz um olhar reflexivo e ao mesmo tempo propositivo sobre as transformações na publicidade contemporânea, tanto nos modos de fazer como nos modelos de negócio das agências. Trata-se de um recorte das minhas pesquisas de doutorado e de pós-doutorado, nas quais investigo as alterações nos processos criativos e o deslocamento de saberes e de poderes nas agências de publicidade brasileiras e europeias. Aqui, realizo uma breve análise dessas alterações a partir de uma pesquisa exploratória sobre as categorias de premiação do Cannes Lions (Festival Internacional de Criatividade), entre 2009 e 2019, a fim de verificar a fragmentação e a complexidade da atividade. Em 2020, o festival não ocorreu devido à pandemia de covid-19, mantendo palestras on-line, sendo retomado em 2021 de forma remota.
PALAVRAS-CHAVE: Processos criativos, Agências de publicidade, Complexidade, Cannes Lions.
ABSTRACT: This text brings a reflective and at the same time propositional point of view about the transformations in contemporary advertising, both in the ways of doing it and in the business models of the agencies. It is an excerpt from my doctoral and postdoctoral research, in which I investigate changes in creative processes and the displacement of knowledge and power in the Brazilian and European advertisement agencies. Here, I conduct a brief analysis of these changes based on exploratory research on the award categories of Cannes Lions ( International Festival of Creativity ), between 2009 and 2019, to verify the fragmentation and complexity of the activity. In 2020, the festival was canceled due to the COVID-19 pandemic, keeping online lectures and resuming in 2021 remotely.
KEYWORDS: Creative processes, Advertising agencies, Complexity, Cannes Lions.
RESUMEN: Este texto presenta una mirada reflexiva y, a la vez, propositiva sobre las transformaciones en la publicidad contemporánea, tanto en las formas de hacer como en los modelos de negocio de las agencias. Se trata de una parte de mi investigación doctoral y posdoctoral, en la que estudio cambios en los procesos creativos y el desplazamiento de saberes y poderes en las agencias de publicidad brasileñas y europeas. En este artículo analizo brevemente estos cambios a partir de una investigación exploratoria sobre las categorías de premios de Cannes Lions (Festival Internacional de la Creatividad), entre 2009 y 2019, con el fin de constatar la fragmentación y complejidad de la actividad. En 2020, el festival no se llevó a cabo debido a la pandemia del Covid-19, pero se mantuvieron conferencias en línea, y lo reanudaron en 2021 de forma remota.
PALABRAS CLAVE: Procesos creativos, Agencias de publicidad, Complejidad, Cannes Lions.
Como citar este artigo: ALVES, Maria Cristina Dias. Da big idea ao big data em 10 anos do Cannes Lions: publicidade em tempos incertos. Signos do Consumo , São Paulo, v. 14, n. 1, p. 1-18, jan./jun. 2022.
TEMPOS INCERTOS
Os conhecimentos se multiplicam exponencialmente, de repente,
transbordam a nossa capacidade de nos apropriarmos deles e,
acima de tudo, lançam o desafio da complexidade: como confrontar,
selecionar, organizar adequadamente esses conhecimentos,
conectando-os e integrando a incerteza.
Edgar Morin (2000)As classificações para o nosso tempo são várias e cada uma busca dar conta das transformações decorrentes da ascensão das tecnologias de informação e comunicação alterando os modos de existência. A interatividade resultante dos novos suportes técnicos, mais do que uma prática da democracia, depende das opções oferecidas pelo mercado, como escreve Dantas ( 2002 ), um mercado de ideias, regulador das práticas econômicas, sociais e culturais, e que compõe uma das indústrias que mais crescem no mundo: a criativa. Uma indústria em constante movimento, que reúne profissionais com competências diversas, como designers, criadores de conteúdos, produtores e editores dos diferentes formatos de audiovisual; arquitetos, programadores de softwares, entre outros, dos quais destaco os publicitários, que trabalham em um modelo de negócio que abarca os demais, devido à multidisciplinaridade característica da área.
Nesse sentido, do mesmo modo que a chegada de cada um dos meios analógicos, e posteriormente digitais, modificou a percepção do mundo – parte do processo de midiatização presente desde antes da invenção da escrita ( VERÓN, 1998 ) –, as instituições também têm se modificado e requerido profissionais e processos de trabalho cada vez mais eficientes e produtivos, que possam dar conta da queda da audiência na televisão aberta e demais meios considerados “tradicionais”, já que está fragmentada e dispersa nos meios digitais, ainda que sob o controle dos algoritmos.
Se a presença da televisão nas residências brasileiras caiu menos de 1% entre 2016 e 2019, por outro lado, o uso da internet teve um incremento de mais de 13%, passando de 69,3% para 82,7% no mesmo período, sendo que o consumo de notícias pela internet aumentou 54% entre 2013 e 2021 2 . De todo modo, são transformações profundas, comparadas à chegada do rádio ou à da televisão no século passado, e, da mesma maneira, requerem aprendizado tanto no uso quanto na produção, no manuseio, na tecnologia e, principalmente, nos processos de trabalho. São reinvenções dos modos de ser profissional, característica da modernidade tardia, que faz de cada um empresário de si mesmo ( FOUCAULT, 2008 ), em busca de atualização constante para que não perca a vaga no mercado trabalho.
Relacionada a essa instabilidade profissional, há a emergência de sistemas informacionais de produção de textos 3 e de notícias 4 ; de serviços publicitários – slogans e nomes de empresas ( Figura 1 ), logotipos, modelos de embalagens e de sites, entre outros –, além dos bancos de imagens de fotos, desenhos e vídeos prontos, utilizados há muito pelo mercado. Como consequência, a sistematização de processos de trabalho resulta em mais rapidez na execução, com custos reduzidos que, por sua vez, têm homogeneizado as produções publicitárias, a maioria advinda das mesmas matrizes fornecedoras.

Como um dos achados da pesquisa de doutorado, cito o desenvolvimento de certa racionalidade aplicada ao fazer criativo, cuja metodologia objetiva estimular um “ mindset ” próprio, nas palavras do entrevistado ( ALVES, 2016 ), para a criação de campanhas a partir de uma sequência de procedimentos, com limites de palavras e de tempo para o desenvolvimento, com a síntese da ideia. Profissionais que adotam esse modelo tendem a desqualificar processos criativos mais demorados e mesmo brainstormings com muitas pessoas. Outro achado é a ascensão da técnica sobrepujando processos mais artesanais de trabalho, porém, apenas a técnica não basta, como apontou um dos entrevistados, head of art e diretor de criação ( ALVES, 2016, p. 163 ), ao se referir às orientações que passa para a equipe de direção de arte: “[...] não perca o craft ! Não perca o entender como as coisas são feitas, tipografia hoje é uma coisa que ficou banalizada, mas não é uma coisa banal, é uma coisa que acho que tem que ter conhecimento técnico, tem que ter conhecimento, que ficou fácil de acessar [...]”.
Por outro lado, tenho acompanhado de perto a expansão de histórias e ações de marcas, cada vez mais complexas, na aproximação com as narrativas de identidade, pela capacidade que têm de criar mundos possíveis ( SEMPRINI, 2006 ). Mundos esses dotados de sentido, que possibilitam conexão com consumidores e dão significado e unidade à experiência, diante do esfacelamento das “grandes narrativas”, como também apontam Hall ( 2005 ) e Bauman ( 2001 ).
Uma das faces dessa complexidade está nas experiências em tempo real proporcionadas pelas marcas, cuja produção de sentido dialoga com as memórias discursivas na busca pelo que denomino empatia marcaria , antes em anúncios impressos, no rádio, na televisão e, agora, prioritariamente, nas redes sociais e sistemas informacionais, por meio de plataformas, aplicativos de vídeo, áudio, games, realidade aumentada e avatares no metaverso, com histórias cada vez mais fragmentadas, produtoras de significados a serem transferidos para os bens:
A publicidade funciona como método em potencial de transferência de significado, reunindo o bem de consumo e uma representação do mundo culturalmente constituído no contexto de uma peça publicitária. O diretor de criação de uma agência publicitária procura ligar esses dois elementos de tal maneira que o espectador/leitor perceba entre eles uma similaridade essencial. Quando essa equivalência simbólica é estabelecida com sucesso, o espectador/leitor atribui ao bem de consumo determinadas propriedades que sabe existirem no mundo culturalmente constituído [...] a publicidade serve como dicionário de significados culturais correntes. ( MCCRACKEN, 2007, p. 104-105 )
As histórias que as marcas contam é o que conta, sobretudo quando a empatia marcária provoca, aquém e além do consumo de bens e serviços, mídia espontânea promovida por consumidores por meio da propagação das campanhas (e das experiências das marcas) nas redes sociais, que, do mesmo modo, alimentam as notícias sobre o tema em jornais, revistas e sites, especializados ou não. Em linha com a maioria das agências do mundo, as quais não são responsáveis pela mídia, nessa segunda década do século XXI, têm surgido agências no Brasil sem departamento de mídia e que atuam somente com owned media (conteúdos e plataformas controlados pelas marcas anunciantes) e earned media , denominada orgânica, com a contribuição de consumidores (consumidores-mídia ou prossumers ), características do terceiro polo , como aponta Fausto Neto – não mais a emissão ou a recepção, mas a circulação –, zona indeterminada e lócus de encontro e de “jogos complexos” entre produtores e receptores: um “dispositivo em que se realiza trabalho de negociação e de apropriação de sentidos, regidos por divergências e não por linearidades” ( FAUSTO NETO, 2010, p. 63 ).
Essa “autonomia simulada” da audiência ocorre desde sempre: se antes consumidores e consumidoras faziam bigodes à caneta em personagens de anúncios de jornal; se recortavam fotos de artistas do rádio e colavam nas paredes do quarto; se antes parodiavam jingles e imitavam locutores de spots; nesse “antes”, a produção não podia ser compartilhada, por ausência de meios de propagação. Por isso, insisto que a audiência nunca foi passiva, apenas não havia como disseminar as suas paráfrases e paródias. Atualmente, além do acesso à cultura “mundializada” e da possibilidade do manejo de tantos gadgets , há o estímulo das marcas para ressignificar conteúdos, tanto na produção, quanto na propagação. A audiência se torna instância de partida, não mais de chegada, como escreve Braga ( 2012 ), o que faz refletir sobre a autonomia dessa produção, incontrolável à primeira vista. Entretanto, o controle se mantém, seja por meio da relevância ou do “apagamento” de conteúdos que não interessam às marcas.
Em minhas pesquisas, também pude observar a proximidade entre publicidade, relações públicas e jornalismo, o que coincide com a criação de novas categorias de premiação em diversos festivais de publicidade nacionais e internacionais, em uma superposição de formatos com ações crossmedia , que utilizam multiplataformas para expandir o universo das marcas, com pouca autonomia de consumidores, que têm ilusão de empoderamento ( HELLÍN; TRINDADE, 2014 ).
Somado a essa característica, há uma expansão de peças ou de ações que não se limitam a formatos publicitários (vídeo, posts , anúncios etc.) e se voltam à criação de aplicativos, de games ou de softwares. É o caso do NFScan, software de código aberto que lê as informações de notas fiscais de consumidores para conversão e doação dos créditos concedidos pelo governo à instituição Graac 6 , e da campanha Antibullying Skin , da Samsung 7 , no game Fortnite . Ou, ainda, a peça de e-commerce da Magazine Luiza, que possibilita identificar e comprar instrumentos musicais presentes nas músicas da plataforma Deezer 8 , todas essas ações foram premiadas no Festival Cannes Lions , que em 2015 criou o Creative Data .
Portanto, se por um lado as narrativas das marcas buscam envolver consumidores nas redes sociais, em comerciais, web-séries , curtas-metragens ou produções inteiras em que o produto é coadjuvante, de outro lado, há a ascensão da técnica, possibilitando experiências com a marca ao vivo ou por meio de softwares e aplicativos, como a AR, realidade aumentada ( Figura 2 ) e os games imersivos.

Dessa forma, o imperativo da atualização profissional se torna premente e exige cada vez mais o domínio da técnica (ou pelo menos a percepção de novas possibilidades a partir dela), como declara um dos entrevistados da pesquisa de pós-doutorado ( ALVES, 2021 ):
A cada dia a gente tem um novo ponto de contato e uma maneira de se comunicar com o consumidor. E isso pra mim é infinito. […]. Todo dia tem uma nova mídia social. Até seis meses atrás ninguém tinha falado do Tik Tok e agora estamos criando para o Tik Tok. Um tempo atrás era o Instagram, quando liberou anúncios. [...]. E do nosso outro lado de cá, a gente tem que acompanhar rapidamente essas mudanças, pra que a gente aprenda a especificidade daquela mídia, como se conecta com o consumidor [...]. Tá cada vez mais rápido, cada vez mais dinâmico. (DIRETOR DE CRIAÇÃO, Brasil)
Há premência por “inovação”, que impele os profissionais à atualização e aprimoramento constante, como escreve Sennet ( 2015 ), sobre a flexibilidade e as tecnologias que tornaram o trabalho fácil e a mudança de qualificação, uma norma. Até a década de 1990, os publicitários se consideravam conhecedores de cultura geral ( ROCHA, 1985 ), com práticas criativas bem próximas do fazer artístico. Nessa segunda década dos anos 2000, há certa opacidade nos processos criativos, quer pelas possibilidades cada vez mais diversas de manifestação da marca, quer pela instabilidade desse lugar em que se encontra o publicitário e a publicitária e, especialmente, as equipes de criação, cuja denominação dos cargos (redator/a, diretor/a de arte) e funções, originária no início do século passado, não dão conta do seu fazer.
UM FAZER CADA VEZ MAIS COMPLEXO
No estudo da publicidade em seus múltiplos formatos, realizo uma aproximação das formas hegemônicas dos meios de comunicação, já que os anunciantes são os principais investidores no desenvolvimento de cada um dos meios, desde o telégrafo até as redes informacionais e respectivas plataformas. E ainda, implica olhar para as sobreposições de camadas da nossa cultura, uma vez que a publicidade (e seus profissionais, como fontes de ideias), dialoga com o cotidiano, com a memória discursiva e os modos de ser e de estar no mundo. Como o fez Gilberto Freyre ( 2012 ), ao analisar os anúncios de jornal do século XIX e, por meio das descrições que continham sobre escravizados e escravizadas, traçar características de personalidade e de formas de corpo de negros e mestiços da época. A publicidade, como um sistema, tem relevância sociopolítica, por meio das campanhas públicas ou mesmo políticas e, por sua vez, a contrapropaganda, que faz ascender ou arruinar programas de governo, os principais investidores em publicidade no Brasil e no mundo. As redes sociais são os novos destinatários das campanhas políticas, por meio da produção de conteúdos, como ocorre com as marcas de produtos e serviços. Como discute Grohmann 10 , ao abordar as peculiaridades das fazendas de cliques no Brasil, essas atividades “consistem em curtir e comentar posts nas redes sociais e seguir contas no Instagram, no TikTok e no YouTube [...] formadas por pequenas empresas que funcionam como plataforma e prometem seguidores reais aos clientes que têm contas em redes sociais”.
A cultura da mídia passa por momentos de profundas transformações, que requerem um olhar perspícuo para observar como essas mudanças operam nas práticas dos trabalhadores, especificamente as equipes de criação das agências de publicidade como abordo em minhas pesquisas. E ainda, como mudam o próprio modelo de negócio da comunicação publicitária, um dos mais importantes agentes da indústria criativa do mundo e que, no caso do Brasil, movimentou R$49 milhões em 2020, gerando quase nove reais para cada real investido na atividade ( CADA…, 2021 ).
Mais do que investigar as formas e as manifestações da publicidade na contemporaneidade, meu interesse se volta para os processos de trabalho dos criativos das agências de publicidade brasileiras, cujas práticas têm sido cada vez mais mediadas por aparatos técnicos, nos procedimentos e na relação entre os sujeitos. Há alterações nos modos de trabalhar que tangenciam modelos mais abertos de prestação de serviços, como o home office e a ausência de rigor nos horários de entrada e de saída, que já ocorriam mesmo antes da pandemia, típicos do homo oeconomicus ( FOUCAULT, 2008 ). Por outro lado, implicam na precarização do trabalho, na incerteza quanto à formação profissional tendo em vista a racionalização de procedimentos e o espírito empreendedor do modelo econômico neoliberal, que torna a todos empresários de si mesmos.
Em constante expansão, a ascensão da técnica, que possibilita acesso de tudo a tantos, cria modelos padronizados de trabalho e impõe às equipes criativas publicitárias o conhecimento multidisciplinar e jornadas extenuantes na busca de ideias sedutoras, que atraiam e mantenham a atenção de consumidores, para que não pulem os cinco segundos do comercial, que antecede o vídeo escolhido no Youtube. Ou não ignorem os posts e os stories das marcas que atravessam as timelines das redes sociais. Nesse sentido, tanto a minha pesquisa de doutorado quanto a de pós-doutorado sinalizam o declínio de um lugar de poder das equipes de criação nas agências, decorrente da ascensão da técnica e das exigências de eficiência, dispositivo de produtividade para dar conta das rápidas alterações nos modelos de negócio das empresas de comunicação ( ALVES, 2016 , 2021 ) e que têm nas empresas de tecnologia as principais concorrentes. Um exemplo singular é a Accenture Interactive (empresa de tecnologia), que, ao adquirir agências e outros modelos de negócio de comunicação, tornou-se a maior agência de publicidade digital do mundo.
Como tenho discutido em outros trabalhos ( ALVES, 2012 , 2016 , 2021 ), o profissional de publicidade “aprende a fazer fazendo”, ao criar campanhas e sistematizar procedimentos de trabalho de acordo com o surgimento das inovações dos meios e das alterações de comportamento de consumo. Um dos achados da minha pesquisa de doutorado indica o movimento de trazer profissionais de tecnologia da informação (TI) e programadores para dentro das equipes de criação das agências, seja como diretores de criação ou como parte das equipes de criação, compondo trincas com redatores/as e diretores/as de arte. A necessidade de formação em técnicas específicas, como roteiro audiovisual e conteúdos de podcast, além de outras formas de manifestação das marcas (em games, por exemplo), se tornou uma tônica em algumas agências, que subsidia a formação continuada de profissionais 11 .
A par da imediatez que rege o nosso tempo, é um risco acompanhar de perto as transformações nas agências no exato momento em que ocorrem, trazendo processos desconhecidos, já que tudo muda rapidamente. Entretanto, como escreve Deleuze ( 1999 ), o dispositivo indica linhas de força, a atualidade do que os profissionais irão se tornar e com a qual já coincidem, conformando novos dispositivos, saberes e poderes outros, como a própria classificação de procedimentos no dia a dia de trabalho, o que sinaliza práticas de sentido e orienta o andamento dos trabalhos nas agências ( ALVES, 2012 , 2014 ). São denominações de departamentos, de atribuições e mesmo de profissionais, estratégias discursivas que estratificam papéis e as competências de cada departamento, as linhas de visibilidade do dispositivo ( DELEUZE, 1999 ). Essa característica fez algumas agências escolherem denominações diferentes para departamentos, que funcionam como marcas idiossincráticas do próprio modo de trabalhar e são utilizadas como elemento de distinção em concorrências, como acontece com a agência Soko.
Contudo, a palavra “criativo” permanece cada vez mais atrelada à profissão e, atualmente, também a dados, o que remete novamente a Foucault quando discute o que é ou não ciência: “Eu que formulo este discurso, enuncio um discurso científico e sou um cientista?” ( FOUCAULT, 2005, p. 96 ). Ou seja, realizar a criação de peças publicitárias faz das equipes criativas? São os troféus do campo ( BOURDIEU, 2007 ), como no caso das premiações do Festival Cannes Lions , cuja denominação mudou em 2011 para Festival Internacional de Criatividade, para legitimar esse lugar da “criatividade” implícita no fazer publicitário.
UM CAMPO E MÚLTIPLOS TROFÉUS
Antes da realização da pesquisa de campo no pós-doutorado, voltei-me para outra ponta do trabalho publicitário, tão almejado por agências, clientes e, principalmente, pelas equipes de criação: as premiações do Festival Internacional de Criatividade Cannes Lions . O objetivo desse deslocamento foi ilustrar, por meio de uma cartografia da premiação, a fragmentação de categorias, como ilustração da complexidade do trabalho publicitário.
Abordagem similar ocorreu em um projeto de Iniciação Científica sob a minha orientação, no qual foi sugerido o acompanhamento das categorias de premiação do Clube de Criação de São Paulo, atualmente Clube de Criação. Em um breve artigo ( GARCIA; ALVES, 2018 ), foi possível perceber o enredamento das alterações do mercado brasileiro diante da emergência dos novos suportes digitais e das redes sociais.
Só para ser ter uma ideia das transformações também em curso no Brasil, em 1975, ano da inauguração do Clube de Criação de São Paulo, havia apenas sete categorias de premiação: Revista, Jornal, Editorial, Outdoor, Televisão, Rádio e Material Promocional. Já em 2022, ao ler os regulamentes do prêmio 12 , é possível elencar 52 categorias e algumas subdivisões, sendo 28 categorias técnicas (e 32 subdivisões) e de 24 categorias de criação (e dez subdivisões), além das categorias Estudantes e Periferia Criativa, reafirmando os achados anteriores.
O levantamento dos dados realizado nessa pesquisa nos possibilita trazer apontamentos sobre esse processo de mudanças no trabalho publicitário a partir de uma observação que leva em conta os prêmios e a fragmentação de categorias. A primeira delas é que a maioria das categorias consideradas tradicionais (o próprio clube usa essa palavra), como Revista e Outdoor , desapareceram. Estas agora têm um caráter mais voltado aos modos de fazer e ao conteúdo da mensagem do que ao suporte. ( GARCIA; ALVES, 2018, p. 10 )
Agora, procuro contemplar as categorias de premiação dos dez últimos anos do Festival Internacional de Criatividade Cannes Lions13 , originalmente Festival Internacional de Cinema Publicitário de Veneza, evento criado em 1954 por iniciativa do SAWA (Screen Advertising World Association ), com premiações similares às do Festival de Cinema (criado nos anos de 1940), para valorizar o filme publicitário. Devido à incipiente presença do meio televisivo na Europa, somente eram premiados filmes feitos para o cinema, condição que permaneceu até a década de 1980 (os comerciais produzidos exclusivamente para a televisão eram recusados). Do mesmo modo, anúncios impressos passaram a ser aceitos somente a partir de 1992 ( TUNGATE, 2009, p. 264 ).
A cidade do Festival se alternou com Veneza até 1984, quando Cannes se tornou o endereço definitivo desse que é um dos principais eventos de premiação da publicidade em todo o mundo, com “troféus do campo” ( BOURDIEU, 2007 ) valorizados e desejados por agências e profissionais da área 14 .
A partir dessa breve investigação 15 , foi possível observar as mudanças nas categorias de premiação como sinalizadoras da indefinição do trabalho das agências de publicidade (e mesmo de outras empresas prestadoras de serviço de comunicação: consultorias, fornecedoras de tecnologia e, inclusive, anunciantes), com adição de novas classes de prêmios, alteração ou exclusão de outras, na tentativa de abarcar a volatilidade do mercado com seus acertos e erros.
A comparação – entre as categorias e o trabalho de quem concorre a elas –, lança luz sobre a incerteza do setor publicitário a partir das variáveis de classificações, que ora incluem uma palavra ora excluem (a categoria press , por exemplo, se tornou print & publishing ). Além das subclasses com dezenas de possibilidades de premiação, como aconteceu com a categoria Communication em 2019, que teve 135 subclasses para que nada nem ninguém ficasse de fora e, assim, a quantidade de inscrições se mantivesse elevada.
Como ilustração desse movimento, quando o festival foi criado, em 1954, apenas 14 países e 187 campanhas concorreram 16 . Em 2019, foram 30.953 inscrições de 89 países, recuo considerável desde 2017, que teve 40.045 inscrições de 90 países. Já em 2021, a versão on-line possibilitou o aumento da audiência, com 29.074 trabalhos inscritos de 90 países – menor índice desde 2012 17 .
Por outro lado, o número de campanhas premiadas tem diminuído nos últimos dez anos, ainda que as categorias de premiação, não ( Figura 3 ). Algumas delas, no entanto, são as mesmas há quase vinte anos, como Film, Media e Outdoor , formatos tradicionais da publicidade (a premiação Film , inclusive, teve o maior número de inscrições na versão remota de 2021). Outras foram unidas ou subdivididas para conter uma maior variedade de avaliações; desse modo, uma campanha pode ser premiada em mais de uma categoria, como ocorreu com Retratos da Real Beleza de Dove , que conquistou 19 leões (dez ouros, três pratas, cinco bronzes e o GP de Titanium ) 18 .

A alternância de premiações torna visível as constantes transformações do mercado, cada vez mais aceleradas, que tanto têm afetado profissionais e empresas. A entrada das tecnologias de informação e comunicação, a partir dos anos de 1990, marcou o início de um novo tempo nas agências e o Festival tratou de incluir workshops e palestras na programação, como forma de mobilizar profissionais para a discussão do próprio negócio, que se transformava rapidamente. Somente em 1994 a internet passou a ter publicidade ( PINHO, 2000, p. 192 ), no formato de banners de patrocínio alocados nos sites de empresas. Nesse mesmo ano, os primeiros buscadores (Yahoo) começaram a tomar forma e atrair consumidores que desejavam encontrar os sites das empresas na web ou realizar compras.
A categoria Cyber foi criada em 1998, seguida por Media Lions um ano depois. Contudo, desde o início dos anos 2000, o evento já sinalizava a fragmentação da atividade publicitária 19 com diferentes modificações, como em 2005, com a adição de Radio, Titanium, Direct e Interactive , categorias que premiam formatos tradicionais e ações on-line, em ascensão. O prêmio Titanium , por exemplo, foi criado para premiar ações que contemplam vários meios, e, em 2007, se tornou Titanium Integrated , considerando mais de três meios.
Em 2008, passam a ser contemplados prêmios para Design e, em 2009, Relações Públicas ( PR ), categorias que indicam a abrangência do trabalho publicitário, que, nesse momento, incorporara definitivamente a mídia digital. Na outra ponta, ocorre a inclusão das categorias Film Craft, Grand Prix for Good e Promo & Activation , que indicam um olhar para os modos de fazer e para os objetivos de comunicação, sejam ideias que promovam o “bem”, ou ações promocionais e de ativação de marcas, que levam em conta a experiência do consumidor, requisito já em ascensão pela aproximação das marcas em diferentes plataformas.
A mudança da denominação Festival Internacional de Publicidade para Festival Internacional de Criatividade, em 2011, marca a ampliação do foco do negócio publicitário, momento de inclusão da categoria Creative Effectiveness , para premiar a “eficácia” criativa, ou seja, resultados em vendas ou mudanças de comportamentos efetivas.
Em 2012, houve a adição da categoria Mobile , voltada às peças criadas para dispositivos móveis, em rápido crescimento devido à proliferação dos smartphones. E, ainda, Entertainment ( Branded Content & Entertainment ), que anos depois se transformou em duas categorias: Entertainment (2016) e Entertainment for Music , como forma de abarcar conteúdos produzidos pelas marcas e videoclipes.
A categoria Entertainment for Sport que “celebra a criatividade que influencia a cultura de fãs e aproveita o poder do esporte e do eSports para conectar pessoas a marcas” 20 , criada em 2019, representa a ampliação do negócio em outra direção, à dos games, um dos segmentos econômicos que mais cresce no mundo, incluindo a plataforma eSports21 .
Outras incorporações voltadas para a ascensão da técnica e uso de dados foram acrescentadas e transformadas, como a Innovation (2013), que dois anos depois se tornou um evento dentro do Festival, além da categoria Creative Data , voltada à criatividade com o uso dos dados, ou seja, algoritmos convertidos em ações criativas para as marcas.
Em 2014, a categoria Glass ( Glass Lion: The Lion for Change ) chega para premiar peças que privilegiam a igualdade de gênero e a quebra de estereótipos na publicidade, tendo em vista a diversidade e a inclusão, uma das manifestações da empatia marcaria , como sinalizei anteriormente, quando as narrativas das marcas se colocam no lugar dos consumidores e consumidoras. Nessa premiação, os valores das inscrições são revertidos para os objetivos propostos, com resultados checados a cada ano. A iniciativa ocorre junto do movimento See it, be it (SIBI) 22 , que congrega mulheres criativas para promover a representatividade feminina na publicidade, tendência que mobiliza profissionais e agências em todo o mundo pela igualdade de cargos e salários. Em ambos os casos, percebe-se a valorização da técnica junto a uma prática humanista, como balizadoras de novos formatos publicitários em direção às questões urgentes, tanto na sociedade como no microambiente das agências de publicidade e anunciantes.
Uma alteração ocorrida em 2016, similar à do Clube de Criação no Brasil, foi a substituição da categoria Press por Print & Publishing , ampliando mais uma vez as possibilidades do trabalho publicitário para conteúdos on-line e interativos, não necessariamente anúncios impressos.
Em 2018, o Festival sofreu modificações devido às críticas pelo excesso de premiações e de custos para os participantes, com a segmentação das categorias 23 . Nessa seara, foi acrescida a categoria Creative eCommerce , para reconhecer as ações criativas em toda cadeia do comércio eletrônico (em franco crescimento); além de Industry Craft , Sustainable Development Goals e Brand Experience & Activation , prêmios que indicam um movimento de valorização do apuro técnico na realização de textos e de ideias ( craft ), bem como o comprometimento das marcas com as experiências do consumidor ( experience ) e com as mudanças no planeta. Essa última premiação, em 2019, teve entre os jurados um representante da ONU.
A categoria Social & Influencer , incluída em 2018, sinaliza as adaptações do mercado às novas estratégias criativas que visam a conexão de pessoas mediada pelas marcas. Reflete, ainda, a ascensão de influenciadores digitais, responsáveis pela criação de novos modelos de negócios e que mesclam agenciamento de pessoas e de conteúdo para as marcas, um dos novos setores das agências, tal como observado em minha pesquisa exploratória que precede este artigo.
A categoria Creative Strategy , criada em 2019 para celebrar “a ideia por trás da ideia; como o planejamento estratégico pode redefinir uma marca, reinventar negócios e influenciar consumidores ou a cultura mais amplamente” 24 , resulta do movimento de valorização do planejamento estratégico, também denominado criativo e que, muitas vezes, assume a concepção de campanhas ou de ações que trazem mudanças para o fluxo de trabalho nas agências, como observado em minha pesquisa de doutorado ( ALVES, 2016 ).
Entre as tantas subdivisões de 2019, há as subcategorias que se voltam para os próprios meios e respectivas produções, como Promotional Content for Publishers & Networks . Outras, para campanhas e insights culturais locais, como Culture & Context , que também envolve inovações de marcas levando em conta orçamentos pequenos. Outras inclusões de 2019: Business Transformation , que se volta para ações de anunciantes, e Native Ads em Radio & Audio , resultado dos streamings, rádios on-line e podcasts, formatos em crescimento exponencial nos últimos anos.
O Festival manteve para a versão on-line os prêmios previstos um ano antes, com atualizações e o acréscimo do prêmio Creative Business Transformation Lions , com destaque para as consultorias, outro modelo de negócio em ascensão. Mais um atrativo para anunciantes, ao valorizar a criatividade em relação à criação de novos produtos ou serviços; ao design da tecnologia, às operações internas (dentro das empresas) ou em relação às experiências de clientes que resultem em transformações positivas, indicativa da tendência de atrair cada vez mais empresas para o evento 25 .
Já em 2022, além da atualização do prêmio Media Lions , para valorizar o trabalho criativo na estratégia, na segmentação e execução de mídia, foram criados os prêmios Creative Commerce Lions , tendo em vista “a abordagem inovadora e criativa ao comércio on-line e off-line”, 26 que inclui transações, pagamentos e experiências de compra – um claro sinalizador da intensificação do e-commerce devido ao isolamento social –, e, por fim, o prêmio Creative B2B Lions , voltado à construção de marcas nas ações business to business (B2B): “As inscrições precisarão demonstrar uma combinação de táticas de curto prazo e estratégias de construção de marca de longo prazo, em conexão com clientes […]” 27 . São denominações que tornam ainda mais evidente o esgarçamento (ou seria alongamento?) dos usos que o adjetivo “criativo” tem alcançado, antes restrito às ações idealizadas pelas duplas de criação.
Pela brevidade deste artigo, não foi possível realizar uma análise mais detalhada de cada categoria e respectivas premiações presentes nos anos aqui apresentados, grafadas no idioma original (inglês) para não perder as potencialidades e os limites de cada palavra. Contudo, elenco as categorias mantidas durante esses 10 anos – Design, Digital Craft, Direct, Film, Media, Outdoor, PR, Radio & Audio e Titanium –, em destaque na nuvem de palavras ( Figura 4 ), que sinalizam a interdisciplinaridade do Festival e do próprio sistema publicitário.

Fazem parte dos Festivais aqui discutidos os segmentos e as subcategorias, as palestras e os workshops , os eventos paralelos e as festividades, elementos que ajudam a mapear as transformações do mercado a partir da diversidade de troféus e que, na academia, têm pouca relevância, porque o campo é outro. As palestras on-line, pela primeira vez gratuitas e abertas, devido ao cancelamento do Festival em 2020, tiveram como foco a criatividade, o devir da publicidade, a tecnologia, a inclusão, e reuniram profissionais de diversas áreas, a maioria em isolamento, além de incluir uma premiação especial dos melhores da década 28 .
SHORT LIST DE CONSIDERAÇÕES
A experiência das irrupções do imprevisto na história
ainda não penetrou nas consciências. Ora, a chegada de um
imprevisível era previsível, mas não sua natureza.
Daí a minha máxima permanente: “Espere o inesperado”.
Edgar Morin (2000)Um dos achados da minha pesquisa de doutorado revela as alterações em alguns modelos de fluxograma das agências, que une profissionais de diferentes áreas e formações para trabalharem conjuntamente, com vistas a soluções mais do que criativas e, sim, produtivas e eficientes. Um dos entrevistados, programador, manifestou certa empolgação por trabalhar junto das duplas de criação ( ALVES, 2016, p.80 ) e fez questão de ressaltar a sua inclusão nas equipes:
[...] uma das restrições do processo criativo é não ter restrição, né, porque antigamente se fechava num grupo de pessoas que sabiam escrever e sabiam desenhar, mas, como não pode ter esta restrição em criação, foi-se abrindo espaço para outras pessoas [...] foi abrindo espaço para a tecnologia ajudar na criação. (PROGRAMADOR, agência tradicional)
O programador constata que escrever e desenhar não são mais habilidades necessárias para um “criativo”, ou seja, não precisa ser pintor, desenhista, escritor, poeta, enfim, artista, como no século passado. Então, quais seriam as qualificações necessárias para o trabalho criativo hoje? Ou o departamento de criação nas agências são terá mais essa denominação? Ou, ainda, deixará de existir? Mesmo a agência de publicidade deixará de existir, como apontam os apocalípticos?
Outra observação da minha pesquisa de pós-doutorado, refere-se à ascensão do uso da palavra “ creative ” (em inglês) em diversos cargos nas agências, como creative data , creative contente , creative consumer insights , entre outros, confirmando um dos pressupostos de ambas as pesquisas: de que não apenas as equipes de criação devem ser consideradas criativas nas agências. Entretanto, em outra via, o termo tem sido incorporado pelas plataformas para denominar serviços de publicidade realizados por inteligência artificial (IA), como programator creative , na tentativa de adjetivar um trabalho com certeza em nada criativo e que combina dados com textos pré-produzidos.
São muitas as inquietações que mobilizam as minhas pesquisas até aqui, porque a mudança acontece agora, enquanto escrevo. E ao terminar este texto tudo pode ter mudado. Por isso, a importância de olhar para esse objeto movente que é a Publicidade e Propaganda, denominações essas que, talvez, não deem mais conta dos diferentes formatos de publicização ( CASAQUI, 2011 ; FRANÇA, 2005 ).
Ao me debruçar sobre um Festival tão tradicional como o Cannes Lions , tive por objetivo jogar luz sobre um tema pouco discutido na academia, mas que serve como um corredor de sentido das classificações sobre o trabalho da publicidade como um todo. E ajuda a compreender o momento pelo qual passa o setor no Brasil e no mundo, a partir do olhar do outro. Esse outro que precisa se reinventar a cada dia para se manter nas agências e nos anunciantes, sob as mudanças do trabalho à distância durante a pandemia (que se tornou uma prática comum), além do enxugamento dos quadros e acúmulo de funções.
As incertezas já existiam antes dos tempos de exceção decorrentes da covid-19, uma crise de identidade do que é ser publicitário ou publicitária hoje, apontada inclusive por profissionais experientes, como ausência de relevância (e de criatividade) em que a tecnologia ocupa um lugar cada vez mais preponderante 29 , como também pude observar em minhas pesquisas. Não abordei aqui outro ponto importante, que são os valores para a participação no Festival e que têm sido questionados, inclusive pelos anunciantes. Nem mesmo a pressão de agências para a criação de cases que concorram ao Festival, temas que também iluminariam outros caminhos críticos e analíticos.
As análises apresentadas ajudam ainda a refletir as disjunções pelas quais passa o campo da comunicação nos cursos de publicidade, que separam disciplinas complementares, como discutido no VIII Colóquio de Pesquisadores em Publicidade, em que apresentei parte do texto, revisto para esta publicação. Esse evento, pertencente ao Propesq PP-Encontro de Pesquisadores em Publicidade e Propaganda, reúne pesquisadores do Brasil, América Latina e Europa, momento em que também foram discutidas as novas Diretrizes Nacionais Curriculares dos Cursos de Publicidade e Propaganda no Brasil, aprovadas em abril de 2020 e ainda sem homologação.
Em uma aproximação teórica com Morin ( 2010 ), busco compreender a complexidade desses tempos em que a fragmentação não significa ruptura, mas caminhos diferentes que se complementam exatamente pelos percursos díspares que abarcam. Se, por um lado, os desafios das pesquisas mobilizam em direção à análise crítica da dataficação do mundo e do capitalismo de dados ( COULDRY, 2018 ) e, como consequência, o deslocamento de saberes e poderes nas agências, a precarização do trabalho e as exigências de produtividade ( ALVES, 2016 , 2021 ), de outro, mantêm o desafio de requerer um olhar humanista ao considerar a complexidade como um caminho para compreender as transformações em processo inacabado e do qual todos fazem parte.

REFERÊNCIAS
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Notas
Autor notes
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