RESUMO: Este artigo explora a interação entre práticas de consumo e crenças religiosas. Utilizando o exemplo pessoal da “Tia Pequena”, que acumulava objetos, examina-se como valores religiosos e culturais influenciam a maneira como as pessoas consomem e preservam bens materiais. Analisa-se ainda a ideologia subjacente a esses padrões de consumo, relacionando-os com a doutrina cristã e a semiótica religiosa e comparando-as com ideologias de consumo contemporâneas, destacando as diferenças e semelhanças entre elas.
PALAVRAS-CHAVE: Religião, Consumo, Semiótica, Minimalismo, Cultura Material.
ABSTRACT: This article explores the interaction between consumption practices and religious beliefs. Using the personal example of the “Little Aunt”, who accumulated objects, the article examines how religious and cultural values influence the way people consume and preserve material goods. The text also analyzes the ideology behind these consumption patterns, relating them to Christian doctrine and religious semiotics and comparing them with contemporary consumer ideologies, highlighting the differences and similarities between them.
KEYWORDS: Religion, Consumption, Semiotics, Minimalism, Material Culture.
RESUMEN: Este artículo expone la interacción entre las prácticas de consumo y las creencias religiosas. A partir del ejemplo personal de la “Tía Pequeña”, quien atesoraba objetos, se examina cómo los valores religiosos y culturales influyen en la forma en que las personas consumen y conservan los bienes materiales. También se analiza la ideología que subyace a estas pautas de consumo, relacionándolas con la doctrina cristiana y la semiótica religiosa, comparándolas con las ideologías de consumo contemporáneas, destacando las diferencias y similitudes entre ellas.
PALABRAS CLAVE: Religión, Consumo, Semiótica, Minimalismo, Cultura Material.
artigo
A TIA PEQUENA CONTRA MARIE KONDO: REFLEXÕES SEMIÓTICAS SOBRE CONSUMO E RELIGIÃO
The Little Aunt against Marie Kondo: semiotic reflections on consumption and religion
La Tía Pequeña contra Marie Kondo: reflexiones semióticas sobre consumo y religión
Recepção: 01 Dezembro 2023
Aprovação: 31 Dezembro 2023
“— O que há nessa caixa, tiazinha?
— É a caixa com os pedaços de cordão de que a gente não precisa.”
(Conversa com minha tia, quando eu tinha cinco anos de idade)Talvez não exista uma imagem que mais capture as transformações da relação entre religião e consumo do que aquela que emerge de uma herança e seu destino. Quando uma pessoa idosa falece, frequentemente ela deixa para trás bens móveis e imóveis e, acima de tudo, uma miríade de objetos, alguns funcionais – como panelas e frigideiras, pratos, um caderno etc. – e outros que foram sendo adquiridos durante uma vida muitas vezes bastante longa, ocasionalmente usados por um curto período de tempo e depois abandonados, às vezes adicionados ao enxoval de objetos, móveis e bugigangas com propósitos que, apressadamente, poderiam ser chamados de puramente decorativos. Não nos damos conta agora, mas, quando morrermos, também deixaremos para trás, para nossos herdeiros ou no vazio, um arsenal de objetos que fizeram sentido para nós, ou que fizeram sentido em algum momento de nossas vidas, mas que lutam para significar algo para aqueles que nos seguem, ou para o mercado em que eles vivem e operam. No entanto, os objetos que serão julgados inúteis e inutilizáveis dirão mais sobre nós e nossas personalidades do que aqueles que tinham alguma função quando éramos vivos 1 .
Há alguns anos, desapareceu uma vizinha do apartamento onde minha família e eu morávamos durante minha infância, à qual estávamos muito ligados e a quem meu irmão e eu chamávamos de “a Tia Pequena”. O nome se devia ao fato de que ela fazia parte de um sistema familiar imaginário que nós tínhamos criado em torno dos nossos vizinhos. Nosso pai nos teve quando já estava na casa dos 50, e seus pais, que deveriam ter sido nossos avós, haviam morrido; dessa forma, meu irmão e eu reinventamos nossos avós com o par de vizinhos que viviam do outro lado do andar, a quem chamávamos de “o avô e a avó do outro lado”, e que tinham uma filha na casa dos 70, com um corpo pequeno e uma voz fina, a quem chamávamos de “Tia Pequena”, para distingui-la da “Tia Grande”, a irmã da avó do outro lado, que tinha um corpo maciço e uma voz grave, assim como uma personalidade grosseira e direta.
A Tia Pequena, por outro lado, era muito delicada e atenta aos detalhes, aproximando-se dos limites da mania. Nunca se casou, viu todos os membros de sua família morrerem um após o outro e, deixada sozinha naquele apartamento, encontrou em minha mãe uma amiga e um apoio acima de tudo, relação que continuou mesmo após nos mudarmos para outra parte da cidade e até mesmo após eu ter ido para outra região da Itália para meus estudos. A Tia Pequena era muito devota e, como é costume entre pessoas muito religiosas no sul da Itália que morrem sem deixar herdeiros, ao final de sua vida deixou a casa em que vivia, um belo apartamento no centro da cidade, para a Igreja Católica, com a instrução de que fosse usado para financiar a restauração de uma capela dedicada à Nossa Senhora das Dores, a quem seu pai, o avô do outro lado, também era muito devoto.
A amizade entre a Tia Pequena e minha mãe cresceu tanto que, quando a primeira morreu, ela legou à segunda todos os seus bens imobiliários, incluindo tudo que estava na casa doada à Igreja. Tornou-se necessário, portanto, mudar esses móveis para outro lugar, porque a Igreja planejava vender o apartamento. Ao fazer um inventário dos numerosos objetos que povoavam cada canto daquela casa, ficou evidente que muitos deles, especialmente os menos funcionais, estavam relacionados à religião. Agora, cerca de quarenta caixas cheias desses objetos estão em minha garagem, porque, infelizmente, minha mãe também faleceu e assim eu os herdei.
Abrindo essas caixas, encontrei em primeiro lugar uma vasta quantidade de livros, porque a Tia Pequena foi professora de inglês em um instituto técnico da cidade por mais de quarenta anos e, portanto, acumulou manuais, apostilas e cursos de inglês a partir dos anos 1960, que agora estavam muito ultrapassados, pois não só essa maneira de ensinar a língua estrangeira envelheceu nesse meio tempo, mas talvez o próprio inglês e os meios de comunicação usados para seu ensino, sem dúvida. Nas caixas, havia registros de 45 rpm para os estudantes aprenderem a pronúncia do inglês, depois cassetes, e até mesmo alguns CDs.
Por que todos esses objetos, alguns dos quais haviam até perdido toda a esperança de serem lidos e transformados em som e ensino por qualquer dispositivo, estavam lá? Parece absurdo hoje, mas, ao longo de sua vida, a Tia Pequena honrou um princípio típico das pessoas de sua geração e extração, que ela compartilhou com a maioria dos indivíduos nascidos durante o século XX na Itália, especialmente no sul e em famílias modestas, que sobreviveram através do trabalho; esse princípio era tão lapidário que poderia ter aparecido em um decálogo, como uma espécie de 11º mandamento: “nunca jogue nada fora”. De fato, a Tia Pequena viveu por esse lema, segundo o qual se deve essencialmente comprar apenas o necessário, só se entregar ao supérfluo se motivado por algum motivo ritual — por exemplo, assistir a um casamento — e, sobretudo, em nenhuma circunstância se deve dispor de algo. Essa convicção estava ligada à alimentação, que, de fato, declinava com a mesma força, mas em uma esfera diferente: a relação do humano com o animal de consumo de alimentos por excelência, ou seja, o porco. “Do porco” – era repetido várias vezes e ensinado às crianças – “nada é jogado fora, tudo é usado”, porque tudo pode ser comido, ou transformado em salsichas, ou cerdas para escovas, ou couro para curtimento. E, por extensão, a relação que a maioria das pessoas daquela geração tinha com a vida e o consumo, em particular, era marcada por esse mesmo lema do porco: não jogue nada fora.
De fato, a Tia Pequena nunca jogou nada fora e manteve objetos de diversas origens e funções em sua casa, ordenadamente categorizados e empilhados. Nem mesmo o enorme advento do plástico e da embalagem escapou dessa preservação, porque a Tia Pequena tinha sua própria forma, muito eficiente e compacta, de dobrar os sacos, que eram então amontoados em uma gaveta de cozinha para serem reutilizados na primeira oportunidade. A cozinha de sua casa continha uma grande despensa, cheia de enlatados, que certamente eram desproporcionais às necessidades dessa mulher solitária, idosa e pequena, mas que, costumava dizer ela, a tranquilizava, porque, quando criança, sua família havia vivido em extrema pobreza – acordavam de manhã sem saber se iriam comer no dia, porque tudo dependia do trabalho de seu pai, carpinteiro.
Depois da fome dos anos 1920 e 1930, veio a guerra, e então a fome se tornou sistemática, generalizada e organizada, com complicados sistemas de cartões e filas quilométricas para conseguir acessar algumas mercadorias escassas, como um pacote de massa ou café feito com chicória. A mentalidade de acumulação constante e indiscriminada foi moldada durante esses anos. Após a Segunda Guerra Mundial, com a Itália emergindo como protagonista do boom econômico, riquezas sem precedentes começaram a encher os bolsos dos italianos. As famílias da península, especialmente aquelas mais distantes das fontes dessa riqueza, viram isso como um feliz e inesperado golpe de sorte, que poderia desvanecer tão rapidamente quanto surgiu. Nesse contexto, foi consolidada uma atitude de preservação absoluta, que se mesclou com um hábito igualmente arraigado de economizar e ser parcimonioso.
Essa atitude atingiu níveis que hoje podem parecer paroxísticos. Por exemplo, numa prateleira da casa da Tia Pequena, havia uma caixa rotulada “Cordão de ligação que não se precisa”, justamente porque a ideia de conservar não estava ligada apenas à possível utilidade de um determinado objeto, mas também, e sobretudo, a uma espécie de afeição generalizada pelas coisas, que carregavam valor porque dinheiro tinha sido gasto para adquiri-las, ou porque tinham sido dadas de presente por alguém, ou porque tinham sido obtidas gratuitamente em alguma circunstância etc. Em qualquer caso, tinham agora uma espécie de aura, um valor intrínseco nascido do simples fato de existirem e terem entrado na esfera dos objetos que pertenciam a um lar. Esse afeto era, de fato, tanto espacial quanto temporal e atribuía um valor aos objetos porque eles tinham de alguma forma atravessado o limiar do espaço familiar, mas também porque eles tinham sido capazes de suportar a passagem do tempo, o desgaste dos dias, até mesmo a passagem entre gerações.
Como é sabido, uma das ferramentas mais utilizadas na semiótica aplicada ao consumo e à publicidade é o chamado quadrado de valorizações de Jean-Marie Floch, concebido a partir do sistema de semiótica generativa de Greimas. Como em uma narrativa podem existir tanto valores básicos quanto valores de uso, ou seja, valores que são incorporados em objetos que servem para obter os objetos nos quais os primeiros são incorporados, por meio do cruzamento de valores básicos e de uso no diagrama do quadrado, pode-se categorizar as formas pelas quais, em uma narrativa, as modalizações dos objetos são configuradas conforme são valorizadas, como: 1) práticas, em virtude precisamente de sua capacidade de permitir ao sujeito obter outros objetos e valores mais fundamentais; 2) críticas, ou seja, valores que emergem de uma comparação da utilidade de diferentes objetos de uso; 3) utópicas, quando estão ligadas a uma negação de praticidade e, portanto, a uma afirmação do valor básico ou final de um objeto; ou 4) estéticas, quando negam a criticidade como uma triagem comparativa e escolhem como base do valor a relação existencial de um objeto com o sujeito.
O quadrado de Floch, entretanto, não exclui o fato de que essas valorizações – práticas, críticas, utópicas ou estéticas – possam não emergir individualmente em uma narrativa, mas se apresentar em uma confusão, em entrelaçamentos complexos nos quais vários modos de valorização se sobrepõem, fazendo com que um deles surja como prevalecente. O caso descrito da preservação sistemática e indiscriminada dos objetos certamente se enquadra no âmbito da valorização prática, pois muitos desses objetos são preservados com o pensamento de que mais tarde poderiam ser utilizados para algum fim; no entanto, essa finalidade não é definida e presente na consciência do consumidor, mas projetada para um futuro abstrato, no qual um objeto poderia, sim, ser útil, mas não é conhecido exatamente pelo quê. A categoria de “cordão de amarração desnecessário”, então, representa uma espécie de termo neutro dentro do quadrado, no qual o termo contraditório de inutilidade e seu subcontrário são interpenetrados e confundidos juntos: valorizado nem do ponto de vista existencial, nem do ponto de vista utilitário, o “cordão desnecessário” torna-se um hino à valorização existencial do inútil, que é preservada não porque pode servir no futuro, mas porque serviu no passado.
Uma das limitações do quadrado de Floch aplicado ao estudo desses casos-limite, na verdade, é que ele se apresenta como um instrumento estritamente sincrônico, que, no entanto, não leva em consideração a evolução do sistema de valores ao longo do tempo e, especialmente, a evolução dos valores em relação ao tempo. De fato, não se pode entender completamente a atitude da Tia Pequena e sua mania de preservar objetos, mesmo na convicção quase absoluta, embora implícita, de que eles nunca mais serão úteis, sem dar o devido peso ao fato de que essa atitude e o sistema de valores que ela expressa em relação aos objetos, sua aquisição, seu uso, seu consumo e sua conservação, se configuram não em relação ao tempo futuro, mas em relação ao tempo passado. Nesse contexto, o significado dos objetos muda profundamente, tanto em termos de valores existenciais como utilitários, tanto dos valores básicos como dos valores de uso. Quanto aos valores básicos, um objeto é valorizado e preservado não apenas porque é útil no presente ou pode ser útil no futuro, mas porque foi útil no passado, ou até mesmo porque em algum momento passado se pensou que poderia ser útil, e mais tarde – talvez só depois de sua compra – se percebeu que não o era. A cozinha da Tia Pequena, por exemplo, estava cheia de utensílios que não só não eram mais necessários ou usáveis, mas que nunca haviam sido realmente usados, ou haviam sido usados uma vez e depois considerados inúteis. Ainda assim, já haviam adquirido a aura necessária para que fossem mantidos por anos, décadas, depois legados à minha mãe e, finalmente, com sua morte, passados para mim, que os mantenho preservados em sua esplêndida inutilidade em uma das quarenta ou mais caixas amontoadas em minha garagem.
Um objeto que alguém havia comprado, usado ou sonhado permanece para sempre cercado por uma certa aura, tênue, mas forte o suficiente para impedir que alguém se desfaça dele, dando origem a uma atitude conservadora em relação ao valor que não pode ser explicada sem uma referência mais geral à ideologia de sentido que está subjacente a tal relação com os objetos. Uma das hipóteses que norteiam este artigo é que esse tipo de atitude em relação ao consumo, à aquisição, preservação e valorização de objetos, e a consequente incapacidade de se livrar deles, está enraizada em uma ideologia semiótica de valorização dos objetos intimamente relacionada com a esfera religiosa.
O apartamento da Tia Pequena também continha um grande número de objetos de natureza religiosa, desde minúsculos livros de oração até rosários, desde pinturas de santos a grandes estátuas de papel machê da Virgem Maria sob sinos de vidro, típicos do artesanato religioso do sul da Itália. Esses objetos tinham sido adquiridos, comprados, doados ou herdados, e assim tinham o sentido de uma valorização puramente existencial, embora, novamente, com nuances e enredos: os rosários, por exemplo, tinham tanto uma função utilitária, na medida em que serviam como uma antiga ferramenta mnemotécnica para recitar novenas à Virgem Maria, quanto uma função estética, na medida em que muitos eram embelezados com elementos decorativos de bijuterias ou joias populares, e até mesmo uma função utópica, na medida em que encarnaram em si mesmos, em sua própria existência e no contato com a transcendência tornada possível através do canto lento das orações, todo um horizonte de valores expressos em um destino final, ao qual o rosário permitia o acesso ritual, rítmico e cadenciado.
Entretanto, seria redutor limitar a reflexão sobre religião e consumo apenas à esfera da compra e uso de bens religiosos. Na verdade, essa seria uma perspectiva míope e, de certa forma, anacrônica, pois projetaria no presente a esfera de valores que lhe é peculiar, a de uma concepção de mundo profundamente inspirada pela secularização, na qual objetos ligados ao culto, devoção e ritual são equiparados a qualquer outro objeto que possa entrar no circuito de produção, venda, uso, consumo etc. Na realidade, é apenas com um olhar histórico e antropológico que se pode compreender como as atitudes em relação ao consumo em geral, não apenas aquelas ligadas à esfera religiosa, são profundamente influenciadas pelas culturas religiosas, pelas ideologias semióticas que elas encarnam e expressam, e pela forma como impulsionam não apenas os devotos, mas também aqueles imersos em uma determinada cultura, a atribuir valor aos objetos de consumo de uma forma específica.
Essa hipótese geral forma o pano de fundo para uma análise mais circunstancial, segundo a qual o tipo de atitude manifestada no estilo de consumo da Tia Pequena não se deve apenas, como ela subjetivamente indicava, à experiência da pobreza ou da guerra. Há indivíduos e grupos muito pobres que consomem de forma muito diferente, que desperdiçam muito mais e exorcizam a pobreza através do consumo imprudente de certos itens por que podem pagar, ou mesmo que não podem, mas que adquirem, por exemplo, graças aos novos dispositivos de crédito eletrônico. O fundamento de uma ideologia semiótica que valoriza objetos básicos e utilitários, não em relação ao presente ou ao futuro, mas em relação ao passado, é, por outro lado, religioso num sentido muito mais profundo, pois está ligado a uma ideologia de sentido na qual a relação com a transcendência nunca é evanescente e desencarnada, mas passa por uma semiótica na qual só é possível viver sua dimensão espiritual, religiosa e confessional se ela for encarnada numa materialidade feita de espaços, tempos, atores e, acima de tudo, objetos.
Em outras palavras, na relação com o consumo – que tende a nunca dispor dos objetos adquiridos e a continuar a valorizá-los mesmo quando não são mais necessários ou úteis – um papel central é desempenhado por uma ideologia muito antiga, segundo a qual a mediação com o maior valor de existência, o valor da transcendência evocado pela religião, nunca é desencarnada, e sim expressa formas de mediação que são sempre materiais, nas quais a relação com o divino e o significado que ele expressa é de alguma forma incorporada a uma experiência sensorial que não é efêmera, mas que se cristaliza e se torna duradoura no objeto adquirido.
Essa ideologia de sentido é típica de muitas, mas não todas, culturas religiosas pré-modernas e se manifesta de forma proeminente no cristianismo, que se fundamenta de forma teologicamente essencial na ideia de encarnação. O Deus do cristianismo não é o do judaísmo, e de fato configura sua própria diferenciação e singularidade precisamente em relação, e em contraste, com a religião da qual deriva, em um caminho dialético que se desenrola através de milênios. O judaísmo definiu sua diferença religiosa e cultural através da expulsão da multiplicidade do politeísmo, o que gerou a necessidade de eliminar da prática comunitária, tanto no espaço litúrgico quanto no tempo ritual, qualquer fixação material que pudesse significar e promover um retorno a essa multiplicidade. A transcendência, portanto, não é representada nem nomeada, pois tanto o conceito e o nome de Deus, como a imaginação de sua figura, são prerrogativas de uma interioridade comunitária invisível, compartilhada mas não expressa, que se une em invisibilidade e não se divide em expressão. O cristianismo responde dialeticamente a essa estratégia de significação, avançando, opostamente, a necessidade de uma visibilidade comunitária de crença, de um compartilhamento do significado religioso que não passe apenas pela evocação abstrata do divino, mas por sua significação concreta, que adota todos os tipos de sinais categorizados pela semiótica moderna e contemporânea para dizer e manifestar o divino, e articular em torno desses sinais e manifestações o sopro de uma comunidade.
Assim, os cristãos se amontoam não em torno da leitura e interpretação da Torá, mas em torno da narrativa verbal dos evangelhos e da representação icônica onipresente da face de Cristo, o que, por sua vez, é possível porque seu ponto de partida é a encarnação, ou seja, o dogma segundo o qual a transcendência não apenas é visível, como se torna homem, e, portanto, não é perceptível apenas como palavra, mas também como palavra incorporada, experienciando as vicissitudes do corpo que habita e até mesmo passando por violência, tortura, sofrimento e morte, com a cintilação final da ressurreição para confirmar a natureza divina de Cristo e seu remanescente centro da relação dos cristãos com a transcendência através de seu rosto e corpo, e também para além dele, na transcendência da vida eterna.
O cristianismo, no entanto, não constitui a síntese dialética e o fim desse desdobramento de ideologias de sentido religioso ao longo do arco da história humana. Por um lado, é respondido pelo islamismo, que desse ponto de vista é um retorno ainda mais urgente à invisibilidade comunitária já expressa pelo judaísmo, acentuado pelo fato de que a própria palavra divina, o Corão, não é mais considerada como interpretável, mas como uma espécie de relíquia da enunciação divina, um pilar imóvel no tempo e no espaço. Por outro lado, o cristianismo também declina internamente, com o advento da ideia tipicamente protestante de uma comunidade religiosa, na qual permanece o conceito judaico de uma inexpressividade da transcendência, o único antídoto contra seu lapso na multidão do politeísmo e, portanto, na confusão da idolatria. Porém, a ideia de uma transcendência invisível e mesmo assim comunitária é substituída pela de uma relação desencarnada com o divino, que se expressa de forma individual e individualizante, de acordo com uma relação que não é mais a de uma comunidade com um deus invisível, mas a de um deus invisível com um eu individual.
Outras tradições religiosas surgem em outras regiões do mundo, independentemente das judaico-cristãs, mas ocasionalmente encontrando-as no curso dos eventos históricos dos grupos humanos e suas ideias religiosas. Nas religiões da Ásia, por exemplo, do budismo ao xintoísmo, nascem e são desenvolvidas ideologias alternativas de significado, que exaltam o conceito de vaidade de significação e, portanto, a necessidade de transcender todo significante material, a fim de despertar a consciência da natureza ilusória de todo significante. Agora, ao invés disso, essas ideologias acentuam a conexão do sentido espiritual com o ser da natureza, propondo formas sofisticadas de união entre uma adesão plana à ontologia do existente e a possibilidade de experimentá-la como uma expressão direta, não mediada por qualquer representação da presença de outra dimensão espiritual.
Essa categorização, muito sumária em termos semióticos das diferentes ideologias de significado religioso, seria mais o objeto de uma filosofia religiosa contemporânea do que de uma reflexão sobre o consumo, especialmente sobre publicidade ou propaganda, não fosse o fato de que as sociedades contemporâneas dão origem às formas de consumo, e a todo o mercado que as estrutura e as envolve, ainda profundamente influenciadas por ideologias muito antigas que regulam a relação do ser humano com a realidade, com os objetos, com os sinais e com a forma como a realidade se transforma para que seja dotada de um significado especial.
Um jovem que hoje vive e consome na mesma área geográfica, o sul da Itália, que a Tia Pequena, não entenderia completamente suas atitudes em relação ao consumo, e possivelmente as acharia ridículas. Por que acumular objetos que não são necessários? Por que celebrar, em uma espécie de bolha ritual, sua utilidade passada, em vez de se desfazer deles quando não são mais necessários? Por que acumular coisas? Essa atitude relacionada ao acúmulo e à preservação de objetos utilitários ou utópicos está sob ataque de várias frentes, entre as quais duas emergem com particular força. Por um lado, o ataque minimalista, “menos é mais”: precisamos criar espaço, vazio, nos centrarmos na essência; por outro, o ataque ambientalista: é inútil comprar objetos inúteis, ou acumular e perpetuar uma celebração da acumulação; é muito melhor colocar os objetos em circulação, reanimá-los, incentivar a reutilização, a reciclagem, até mesmo o vintage, no limite; mas contrabalançar o instinto pecaminoso de acumular objetos que não são necessários, com situações onde objetos são comprados por aqueles que precisam deles, ou quando aqueles que precisam deles não podem comprá-los, parece um caminho difícil.
A ideologia de sentido minimalista visa reativar o sentido do consumo através de sua rarefação, ou seja, criando tempo vazio na concentração em torno da fruição dos objetos e em sua localização. A ideologia de sentido ambientalista, por outro lado, também intenciona criar vazio, mas através de um deslocamento direcionado dos objetos de onde eles não são necessários para onde eles podem ser necessários ou, até mesmo, são necessários. Ambas essas soluções requerem logística, implicam estratégia e dão origem a um mercado florescente de ideias, no qual o antigo sacerdócio de valor ritual é substituído pelo de renúncia, tanto para a criação do vazio como para a criação do círculo.
As sacerdotisas contemporâneas do vazio e do círculo podem ser consideradas, por um lado, Marie Kondo, com a imensa popularidade de seus preceitos para criar o vazio e assim exaltar a sensação de plenitude na vida pessoal e sobretudo doméstica, e, por outro, Greta Thunberg, com suas ideias de não desperdiçar recursos na aquisição de novos objetos que implicam um enorme gasto de energia, e sim promover o decrescimento, por meio de várias formas de abstenção que são entendidas como capazes de regenerar e colocar em circulação. Mais uma vez, a reflexão estética e até econômica sobre essas novas formas de consumo – que, deve-se dizer, também geram correlatos precisos no mundo da publicidade e da propaganda – geralmente é enquadrada numa perspectiva rigidamente sincrônica, que não leva em conta as profundas ligações que essas ideologias de consumo (ou melhor, de “não consumo”) continuam a ter com ideologias mais antigas, como as ideologias religiosas que, no passado, informavam todos os aspectos da vida humana, e que, com um pensamento muito superficial, acredita-se terem desaparecido completamente, e com elas qualquer efeito, com o advento da secularização.
Por outro lado, parece óbvio argumentar que aquela disposição para a acumulação indiscriminada que caracterizou a Tia Pequena, e que hoje é considerada como sem sentido, ligada ao medo da pobreza ou da guerra,
e substancialmente marcada por um fetichismo de objetos, é, ao invés disso, a manifestação moderna de uma ideologia semiótica mais remota, a de um cristianismo que, especialmente em sua manifestação católica barroca, vê o sentido da transcendência como inseparável de sua incorporação em objetos materiais, cujas configurações de presença no tempo e espaço dão sentido à sua existência precisamente através da relação ritual com os objetos e sua duração. Adotando o quadro explicativo da temporalidade proposto pela semiótica da enunciação, pode-se dizer que, nessa ideologia de sentido, o que realmente importa é a durabilidade dos objetos, ou seja, a forma pela qual, por meio da promessa de uma ontologia que sobrevive à passagem do tempo, eles contribuem para o discurso religioso que promete a salvação da decadência do existente e uma saída do círculo aterrador da criação e da destruição, da vida e da morte.
Na casa da Tia Pequena, os crucifixos, anunciando em seu simbolismo milenar a possibilidade de uma ressurreição do sofrimento e da morte, eram picos retóricos que muitos outros objetos pequenos, menos místicos e mais cotidianos – desde os utensílios de cozinha dos anos 1950 até manuais escolares de meio século – pareciam recitar, junto com o crucifixo: não somos simplesmente objetos, mercadorias a serem preservadas para o gosto fetichista da acumulação e do relacionamento com a coisa, mas mensagens de uma transcendência que promete que, um dia, essa seta temporal que faz desaparecer todos os seres amados – os pais, as mães, os irmãos, os amigos – será parada e revertida com um gesto de transcendência. O crucifixo, como parte dessa história, representa então a verdade dessa reversão, e mesmo a miríade de pequenos objetos, aparentemente inúteis, que o cercam só agem como um farol para ele: vamos parar o tempo e conquistar a morte, vamos sobreviver ao anjo da história e seu vento destruidor, nós, modestas bugigangas acumuladas por acaso no decorrer da vida; nós, cinzeiros em uma casa de não fumantes; nós, cordões de ligação para pacotes que não existem. A caixa de cordões que não servem é uma proclamação teológica sobre a possibilidade de salvação. Mesmo aqueles que não servem, diz a caixa, serão salvos.
A perspectiva religiosa de Marie Kondo é exatamente o oposto da desenvolvida anteriormente. Aqui, surge uma espécie de irônico combate mortal entre essa ideóloga do vazio doméstico e a Tia Pequena, um combate que tem algo de grotesco, como aqueles filmes nos quais lutam titãs de diferentes épocas e culturas, como Hércules contra Godzilla.
É evidente que o contexto cultural e sobretudo religioso da proposta de Marie Kondo, não só estético, mas também semiológico, não é o da ideologia do sentido do catolicismo, mas o de um minimalismo que, inspirado pelas filosofias orientais de sentido, se alia a um imaginário global que dá origem a práticas de consumo, publicidade, propaganda e marketing do vazio. A retórica do vazio manifestada por Marie Kondo inicialmente argumenta que é necessário se livrar de objetos cuja utilidade não é mais percebida, por exemplo, roupas ou móveis. Na realidade, a proposta de Kondo é mais sofisticada, na medida em que não é delineada em relação apenas a uma mera valorização utilitária, mas também em relação a uma valorização existencial na qual a ênfase está mais nos objetos que desaparecem do que naqueles que aparecem, e naqueles que partem, mais do que naqueles que permanecem, valorizados não tanto em si mesmos, mas porque são sobreviventes dessas purgas de objetos. A natureza ideológica dessa proposta é evidente, porque assume que deve haver um forte significado pessoal enraizado individualmente na relação com os objetos e que, consequentemente, a ideia de que objetos aparentemente desprovidos de uso ou valor pessoal possam permanecer em um espaço individual é absurda e deve ser combatida com os métodos coercitivos gentis concebidos por essa guru da ordem.
A questão é que, aplicando o método Kondo ao sótão da Tia Pequena, ou nada permaneceria, pois se descobriria que nada lá dentro tem valor real, ou tudo ficaria lá, pois se perceberia que é impossível dispor de algo. Existe, entretanto, um gigantesco mal-entendido no método Kondo quando aplicado a coleções de objetos como essas, tão numerosas e evidentemente pesadas, construídas ao longo de décadas pela Tia Pequena. A ideologia católica de significado também inspira esses conjuntos de objetos, com respeito ao fato de que seu significado é expresso não individualmente, mas coletivamente: esses objetos, de fato, fazem sentido não porque servem individualmente a algo, mas porque, coletivamente, expressam sua mensagem metafísica; é por isso que, exatamente como nas comunidades de fé, a única maneira de serem sacrificados é coletivamente, ou seja, não escolhendo entre os predestinados para a salvação e os condenados, como no nipo-protestantismo e no individualismo minimalista de Kondo, mas em bloco.
No final, só há uma maneira de se livrar do sistema de objetos criado com uma visão comunitária de significado, que é dispor dele em bloco, com uma conversão total do fideísmo para o niilismo. Da mesma forma, a ideia de garantir a ressurreição dos objetos por meio de sua reutilização pertence a outra ideologia de sentido, que também tem raízes religiosas, e de fato corresponde a uma utopia de reencarnação, ou seja, que a salvação não é alcançada pela rejeição da natureza ilusória das formas, um pródigo do iconoclasmo de Kondo, ou pela predestinação à salvação de certos objetos, como na ética protestante da seleção, mas por meio da sobrevivência do objeto em sua passagem de uma geração para outra, como uma bandeira da própria teologia da inutilidade, através da reciclagem, da economia circular, ou outros circuitos nos quais se pretende preservar a energia vital do objeto, transmutando-o em diferentes formas. Quanto mais espetacular, mais profunda a transmutação, e mais um objeto recupera sua utilidade e funcionalidade em uma esfera de movimento diferente da original.
Para finalizar, é inevitável deter-se na forma como o digital e sua utopia de desmaterialização interagem com essas ideologias religiosas de sentido e objetos, decretando a atualidade e viabilidade de alguns, enquanto outros, aqueles que não podem ser digitalizados, são condenados à dessuetude, e até mesmo à estigmatização. É evidente que o sótão da Tia Pequena não é digital. É por isso, talvez, que se possa imaginar um terceiro combate mortal entre essa velha senhora e Mark Zuckerberg, também para reequilibrar o gênero, até então muito feminino, dessas lutas. Mas, a essa altura, a tiazinha deve estar um pouco cansada de sua luta com a mais jovem Marie Kondo. O confronto com Greta Thunberg e o confronto com Mark Zuckerberg terão que ocorrer em um estudo futuro.
Por enquanto, a principal conclusão deste artigo é que as práticas de acumulação e consumo estão profundamente enraizadas em ideologias semióticas e religiosas. Por meio do exemplo da Tia Pequena, explorou-se como objetos, mesmo os aparentemente inúteis, carregam significados profundos e são preservados como parte de uma ideologia de consumo que se relaciona intimamente com crenças religiosas, especialmente no contexto do catolicismo. Foi realizada uma reflexão sobre como a relação das pessoas com os objetos é influenciada historicamente por suas crenças e valores religiosos, sugerindo que mesmo práticas contemporâneas de consumo, como o minimalismo, estão ligadas a essas ideologias mais antigas.
Este artigo apresenta várias perspectivas para pesquisas futuras. Ele sugere uma investigação mais aprofundada sobre a interseção entre crenças religiosas e comportamento do consumidor, especialmente como as ideologias religiosas moldam os padrões de consumo. Há potencial para explorar diferentes contextos religiosos e seus impactos exclusivos sobre o consumo. Além disso, o artigo solicita um exame mais detalhado dos aspectos simbólicos e semióticos do consumo influenciado pela religião, oferecendo um campo rico para estudos culturais e sociológicos que pode levar a uma compreensão mais ampla de como a cultura material e os valores religiosos coexistem e se influenciam mutuamente nas sociedades contemporâneas.
Com base no que foi desenvolvido neste artigo, pode-se imaginar um projeto que vise explorar a complexa relação entre crenças religiosas e comportamento do consumidor em diferentes culturas. Ele examinaria como as ideologias e os símbolos religiosos moldam os padrões de consumo e os significados semióticos associados aos bens materiais em múltiplos contextos religiosos, com o objetivo de analisar como diferentes religiões influenciam o comportamento do consumidor e a cultura material, explorar os significados semióticos do consumo influenciado pela religião e comparar e contrastar esses padrões em vários contextos religiosos. Essa pesquisa deveria usar uma abordagem de métodos mistos, combinando dados qualitativos e quantitativos, realizando estudos etnográficos em comunidades com crenças religiosas predominantes (por exemplo, cristianismo, islamismo, hinduísmo, budismo). Além disso, pesquisas e entrevistas deveriam coletar dados sobre o comportamento do consumidor e as atitudes em relação a bens materiais nessas comunidades, na espera de revelar as profundas conexões entre religião e consumo, destacando como a cultura material e os valores religiosos se entrelaçam, e fornecer percepções sobre a semiótica do consumo em contextos religiosos, contribuindo assim para entendimentos culturais e sociológicos mais amplos.
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