artigo
Recepção: 31 Agosto 2022
Aprovação: 28 Novembro 2022
DOI: https://doi.org/10.11606/issn.1984-5057.v14i2e201653
RESUMO: De acordo com o último levantamento anual do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), de 2020, 19.796 adolescentes estão na condição de restrição e privação de liberdade; desses, 5.144 na região Nordeste. O mundo das drogas e de seu tráfico aparece como forte condutor de aquisição econômica e material para esses meninos e meninas, refletindo como possível trampolim de reconhecimento social e sofrendo influência da sociedade de consumo, principalmente a partir da aquisição, por esses jovens, de produtos de marcas famosas. Este artigo é resultante de uma dissertação de mestrado redigida a partir de pesquisa realizada, entre novembro de 2019 e fevereiro de 2020, com adolescentes-jovens em medida socioeducativa de internação no Centro de Atendimento Socioeducativo/Fundação de Atendimento Socioeducativo (Case/Funase) do Cabo de Santo Agostinho/PE e vinculados à Vara da Infância e Juventude de Ipojuca/PE.
PALAVRAS-CHAVE: Medida socioeducativa, Consumo juvenil, Drogas.
ABSTRACT: According to the last annual survey of the National System of Socio-educational Service (Sinase), of 2020, 19,796 adolescents are in the condition of restriction or deprivation of freedom; of those, 5,144 in the Northeast region. The world of drugs and of drug trafficking appears as a strong conductive thread to economic acquisition to these boys and girls, reflecting as a possible trampoline of social recognition and suffering influence of consumption society mainly from the acquisition, by these youngsters, of products from famous labels. This article results from a master’s dissertation redacted from Research carried out from November 2019 na February 2020, with adolescent-youngsters in socio-educational measure of internship in the Socio-Educational Service Center/ Socio-Educational Service Foundation (Case/Funase) of Cabo de Santo Agostinho, state of Pernambuco (PE), and tied to the Court of Infancy and Youth of Ipojuca (PE).
KEYWORDS: Socio-educational measure, Youngster’s consumption, Drugs.
RESUMEN: Según la última encuesta anual del Sistema Nacional de Atención Socioeducativa (Sinase), en 2020 se encontraban 19.796 adolescentes sujetos a restricción y privación de libertad; de estos, 5.144 estaban en la región Nordeste de Brasil. El mundo de las drogas es un motor para la adquisición económica y material para estos jóvenes, que la consideran como un posible medio para el reconocimiento social, además de ser influenciados por la sociedad de consumo, sobre todo cuando estos jóvenes tienen productos de marcas famosas. Este artículo es el resultado de una tesis de maestría que se basó en una investigación realizada, entre noviembre de 2019 y febrero de 2020, con adolescentes jóvenes en medida socioeducativa de internación en el Centro de Asistencia Socioeducativa/Fundación de Asistencia Socioeducativa (Case/Funase) del Cabo de Santo Agostinho, en Pernambuco (Brasil), y vinculados al Juzgado de la Niñez y la Adolescencia de Ipojuca, en Pernambuco.
PALABRAS CLAVE: Medida socioeducativa, Consumo juvenil, Drogas.
INTRODUÇÃO
“Já viu o meu tênis, tia? Você tem um assim?”. A frase que serve de título para este artigo foi dita por José2, um adolescente preto e periférico, já inserido no sistema socioeducativo no ano de 2017. O encontro ocorreu na antessala da equipe interprofissional da Vara da Infância e Juventude da Comarca de Ipojuca, momentos antes da entrevista psicossocial que fora previamente agendada com José.
Ele era mais um adolescente inserido no sistema socioeducativo, após o cometimento de ato infracional, acolhido pela equipe interprofissional. Por isso, encontrava-se com a sua mãe no Fórum de Ipojuca na data e horário agendados para dar início ao estudo psicossocial do seu caso, solicitado pelo juiz. Nesse dia, o adolescente trajava calças jeans, blusa de manga curta e tênis. Assim como outros adolescentes e jovens, José utilizava vários adornos, relógio, colar e pulseiras bem grossas na cor dourada, e, num determinado momento, perguntou-me se estava na hora da sua entrevista. Antes de receber alguma resposta, ele fez a pergunta: “Já viu o meu tênis, tia?” Após breve silêncio e, mais uma vez, antes de qualquer resposta ao seu questionamento, José continuou a sua inquirição: “Você tem um assim?”
A trajetória de José e os contornos de sua experiência, como adolescente preto, pobre e periférico, revelam o cotidiano de diversos outros adolescentes-jovens, com as vidas marcadas sob o compasso de diversas vulnerabilidades sociais, como racismo e violações de direitos, vivenciadas por eles e partilhadas com suas famílias e com a comunidade local. O envolvimento com o tráfico representa a possibilidade de dispor de alguns ativos de poder em um contexto de identidades sociais muito desvalorizadas e vulnerabilidades sociais tão acentuadas. O acesso ao dinheiro viabiliza a possibilidade de minimizar a dureza cotidiana, e a inserção dos adolescentes-jovens no mundo do consumo material ostensivo se apresenta, em muitos casos, como fonte de expressão, inclusão e identidade social. José, diante do contexto de vulnerabilidade e exclusão que vivenciava, almejava ser visto e reconhecido, o que em alguma medida pôde ser demonstrado na postura de chamar atenção para seu tênis.
Compreendemos que as múltiplas faces do consumo sofrem modificações constantes, atreladas a mudanças ocorridas no mundo social, tomando como base os movimentos da sociedade, mercado e Estado. No cotidiano, além da necessidade de garantia da subsistência, a adolescência e a juventude também são influenciadas por esse poder de incentivo ao consumo, principalmente pelo consumo material como forma de acesso a signos e significados capazes de construir identidades e ampliar o “poder”. Segundo McCracken (2003, p. 135), “os bens de consumo são pontes para tais esperanças e ideais”.
Neste artigo, buscou-se analisar este fenômeno a partir de um universo bastante específico, o dos adolescentes com restrição de liberdade, vinculados a uma medida socioeducativa por ato infracional praticado e condenados, como José, a um período de liberdade cerceada pelo Sistema de Justiça. Foram analisados adolescentes-jovens internados no Case/PE, a partir das relações estabelecidas pelo uso massivo de produtos materiais de marcas famosas, enfatizando, dentre as mais citadas, a marca pernambucana de roupas Seaway. Buscou-se, ainda, compreender as estratégias de utilizar os signos e significados presentes nestes adornos como forma de ressignificação de identidades deterioradas.
De acordo com o último levantamento anual do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), de 2020, 19.796 adolescentes estão inseridos no sistema socioeducativo na modalidade de restrição e privação de liberdade; desses, 5.144 apenas na região Nordeste. Especificamente sobre o Sinase de Pernambuco, segundo o último Boletim Estatístico de maio de 2022, 486 adolescentes-jovens estão inseridos na modalidade internação (privação de liberdade) nos CASEs.
Na sociedade de consumo, os bens materiais e seus significados passam a representar papéis empoderáveis na vida dos adolescentes-jovens, através de seus signos e ressignificações, principalmente dentre os bens materiais mais desejados, tornando-se estes tanto fonte de expressão e representação social, quanto de ascensão, com o adolescente em busca de um mundo idealizado. Nesse contexto, a indumentária, assim como outros bens materiais, retrata a cultura material como um elemento importante na construção da identidade desses adolescentes-jovens. Além disso, esses elementos demonstram também que essa cultura material é utilizada como ponto de mediação, a qual os adolescentes-jovens estabelecem com o cotidiano e até com as instituições. Ou seja, a indumentária funciona como elemento para mediar as diversas relações de identidades sociais necessariamente construídas em diferentes espaços sociais.
Portanto, este artigo, tomando como referência principal as trajetórias e histórias de vida relatadas pelos próprios adolescentes-jovens, se pauta na observação assistemática e na observação participante para as coletas de dados, realizadas ao longo da pesquisa no Case/PE. Pauta-se, ainda, na experiência profissional da autora como Assistente Social da Vara da Infância e Juventude de Ipojuca, do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), e na participação em audiências, em momentos específicos, na referida vara. A faixa etária dos adolescentes-jovens pesquisados vinculados ao Case do Cabo de Santo Agostinho/PE e dos vinculados à Vara da Infância e Juventude da Comarca de Ipojuca/PE compreendeu a idade entre 17 e 20 anos.
OSTENTAÇÃO, EXPRESSÃO SOCIAL E IDENTIDADE: O CONSUMO MATEriAL ENTRE ADOLESCENTES-JOVENS PRIVADOS DE LIBERDADE
A expressão “adolescentes-jovens” remete para uma etapa de transição entre a adolescência e juventude, conforme argumenta Miranda (2011; 2017) e Andrade (2018). O termo enfatiza a importância de reconhecimento dos adolescentes e dos jovens como sujeitos de direitos, garantidos no Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990) e no Estatuto da Juventude (BRASIL, 2013). De acordo com Miranda, as diversas adolescências e juventudes variam com o tempo e com o espaço, e são conceitos produzidos historicamente. Andrade, por sua vez, explicita também a importância da construção das adolescências e juventudes a partir de elementos das culturas política, escolar e histórica. As questões sociais, como a vulnerabilidade social, por exemplo, inseridas dentro deste segmento traduzem os diversos caminhos percorridos por estes adolescentes-jovens, inclusive com inserção na ilicitude e, consequentemente, nas medidas socioeducativas.
A privação de liberdade para cumprimento de medida socioeducativa, além de representar o retrato dessas importantes questões sociais, também traz à tona uma reflexão sobre o tolhimento de importantes espaços de reconhecimento social para o adolescente-jovem, uma vez que a sua saída da comunidade onde reside, espaço de forte expressão e pertencimento social, faz com que esta comunidade já não mais lhe pertença, mesmo que sua ausência seja por um curto período. Logo, a busca por sociabilidade, independentemente do espaço ocupado por esse adolescente-jovem, é contemplada em muitos momentos pela busca de bens materiais, principalmente aqueles enaltecidos por marcas famosas, contribuindo assim para este processo de reconhecimento social compensatório.
A ostentação de produtos de marcas famosas, viés de visibilidade utilizado pelo adolescente-jovem, traz consigo a compensação pessoal que é o uso de determinados bens materiais, mas também realiza o papel de exposição desses adolescentes-jovens perante seus pares, seus grupos e até em espaços novos de socialização, de acordo com as características e o desejo de cada um. A intenção de serem percebidos e respeitados nos espaços, e diante de outros adolescentes-jovens, potencializa a necessidade de construção dessas identidades sociais. Para Silva (2015, p. 91),
os bens materiais através da sua representação, seja pelo que ele é, pela marca, pelo enaltecimento que ele conquista pelos sujeitos, condicionam os adolescentes-jovens a vincularem as suas características e sociabilidades através da mercadoria.
O uso de marcas no local onde vivem, na comunidade ou nas instituições de medidas socioeducativas, por exemplo, denota a realidade de adolescentes-jovens que almejam um reconhecimento não somente social, mas também pessoal e comunitário, sobretudo com o propósito de diferenciação e status. A compra de produtos de marcas ainda é mais enaltecida por esses adolescentes-jovens quando é retratada no mundo ilícito das drogas, principalmente no mundo do tráfico de drogas.
A inserção de adolescentes-jovens em medida socioeducativa restritiva de liberdade, como na instituição Case/PE, instituição de internação da Funase, por exemplo, evidencia esse retrato de ostentação de marcas famosas no interior de seus pavilhões e entre os pares formados no interior da unidade.
Segundo a autora Safi (2013), a relação entre as marcas e a formação da identidade juvenil é um fator muito latente, que, apesar da escassez financeira da família, ainda é um sacrifício a ser cumprido, com o propósito de manutenção do status do adolescente-jovem, mesmo inserido em medida socioeducativa de internação. A autora explana a visão do adolescente “M” em relação pedido de compras de produtos de marcas à mãe: “[…] bonés, tênis e roupas. Diz que tem que andar com roupas de marcas para as pessoas saberem que ele tem dinheiro” (SAFI, 2013, p. 22).
A partir da convivência com adolescentes em medida socioeducativa de internação, Silva (2015) esboçou a sua descoberta sobre o potencial significado das marcas no mundo juvenil. Segundo o autor,
[…] não eram desenhos comuns, eram símbolos das marcas mais famosas de grifes internacionais, como: Osklen, Lacoste, Nike, Oakley, Dudalina. Questionei o que significava aquele episódio. Um dos adolescentes me respondeu: “é ostentação, poder”.
(SILVA, 2015, p. 17)Barcellos (2003), em pesquisa no Morro de Dona Marta no Rio de Janeiro, analisou os elementos que estruturam a admiração de muitos adolescentes-jovens em relação às figuras de “bandidos” conhecidos nas periferias, dentre eles, “Cabeludo”, cujas ascensão e importância são apresentadas a partir do olhar de seu sobrinho sobre a história, visto que o menino, aos doze anos de idade, já almejava ingressar na quadrilha do tio, imitando o seu cabelo e modo de vestir. Aqui, como em outros casos, a perspectiva de relação, de aproximação, ganha materialidade a partir de adornos presentes no universo do consumo,
O “funk ostentação” integra este universo, sendo caso de segmento e ritmo musical que retrata bem esse estímulo para o consumo de bens materiais que almejam a demonstração de poder e ainda o estímulo para o status. Artistas como 50 Cent, Nelly, Mc Guimê e Tchesko são exemplos de rappers que utilizam bens materiais caros, inclusive automóveis de luxo para esbanjarem ostentação (ver Figura 1).

Caldeira (2014) traz à tona uma discussão sobre o consumo juvenil na sua obra Qual a Novidade dos Rolezinhos? Espaço Público, Desigualdade e Mudança em São Paulo, apontando esse movimento como reflexo de uma mudança no contexto do cotidiano e do consumo popular entre os jovens. A autora enfatiza também que os adolescentes inseridos no movimento do “rolezinho”:
são apenas nova encarnação de uma configuração bem conhecida, e embora articulem elementos que tenham sempre feito parte da experiência das cidades modernas — circulação, consumo, tensões de classe e de raça, disputas pelo controle do espaço público, por outro, são de fato uma nova articulação desses elementos.
(CALDEIRA, 2014, p. 14)Pensar em cultura de consumo é pensar sobre o papel social desenvolvido por ela como elemento importante nas relações estabelecidas nas adolescências e juventudes, seja no território, na comunidade, nas instituições, nos pavilhões da Funase ou nas audiências de adolescentes e jovens em conflito com a lei, demonstrando a importância do vestuário e adornos de marcas famosas, além de imagens representativas através de tatuagens e cortes de cabelo, nesse processo de mediação nos mais diversos espaços sociais.
Assim, a inserção de adolescentes-jovens no Case/PE, por exemplo, após o cometimento de ato infracional, também reflete esse espaço de identidades construído para a inclusão, reconhecimento social e até sobrevivência. A indumentária e os adornos utilizados de forma ostensiva, neste contexto, tornam-se aspectos de mediação dessas relações sociais, compostas por adolescentes-jovens dotados de identidades fragilizadas diante das vulnerabilidades sociais e violações de direitos por eles vivenciadas, principalmente por aqueles da periferia.
No Case/PE, os próprios pavilhões sofrem segregações e interferências de adolescentes-jovens que se utilizam das estratégias promovidas pelo poder do consumo ostensivo para a manutenção da ordem e da liderança. A utilização de colares, pulseiras e bermudas de marcas famosas específicas, por exemplo, retrata contextos de vida que ultrapassam o simples ato de aquisição, e os empoderam para uma busca de visibilidade social numa sociedade marcada pela pobreza e exclusão social. Essas práticas são reproduzidas nas relações sociais dos adolescentes-jovens com a escola, com as instituições e com o universo das medidas socioeducativas.
“EU DIVIDI ESSA CALÇA QUE ELA TÁ EM DEZ VEZES. EU FAÇO DE TUDO!”: AS MARCAS FAMOSAS E AS IMAGENS REPRESENTATIVAS NO COTIDIANO DOS ADOLESCENTES-JOVENS PRIVADOS DE LIBERDADE
A fala “Eu dividi essa calça que ela tá em dez vezes. Eu faço de tudo!” surgiu durante a realização de mais um estudo social na Vara da Infância e Juventude da Comarca de Ipojuca. Cabe destacar que as observações nas unidades de internação foram realizadas tomando como referência o universo masculino, mas, nas audiências da Vara da Infância, foram observadas situações de uso de elementos da cultura material em meninos e meninas.
Maria chega ao Fórum trajando calças jeans e blusa, e ainda adornos e tênis. Na companhia da genitora, não detalha sobre o ato infracional cometido, porém isso não foi o bastante para isentar a mãe de declarar a sua profunda tristeza e vergonha vivenciadas naquele momento. A sra. Ana, mãe de Maria, por diversas vezes tenta justificar a sua ausência durante o dia em casa, explicando a necessidade que tem de trabalhar para garantir o sustento de Maria e de seus outros filhos. Ainda durante o atendimento, a mãe indaga à filha sobre o envolvimento com drogas e narra tudo já realizado na vida dos filhos com o intuito de atender aos desejos de consumo destes, inclusive para a compra de vestimentas e adornos que custam um valor elevado para o orçamento da família.
O uso de cartão de crédito emprestado por terceiros para a compra de produtos para os filhos é uma prática comum na vida da sra. Ana. Esse foi o caminho utilizado para a aquisição das calças jeans de marca famosa, por exemplo, que a adolescente trajava no dia da entrevista social. A sra. Ana, durante a entrevista, ressalta não somente a compra do produto, como também a divisão do valor em dez vezes no cartão de crédito de uma vizinha.
A necessidade de inclusão e inserção em determinados grupos sociais, a partir do estilo pessoal do adolescente-jovem, das vestimentas de marca que utiliza e dos adornos que consome, é um importante ponto nessa relação que busca o enaltecimento, a ostentação, mas principalmente o reconhecimento social.
No universo da medida socioeducativa de internação, estar inserido em determinados grupos sociais no interior do Case/PE, por exemplo, favorece tanto a proteção do adolescente-jovem (já que o poder também está atrelado ao consumo de vestimentas de marcas, adornos, uso de tatuagens e cortes de cabelo), quanto o reconhecimento pessoal de cada um desses indivíduos, além de uma consequente busca por visibilidade social também promovida pelos grupos em que fazem parte.
A função social dessas vestimentas ultrapassa o seu simples manuseio ou utilização, marcando as diversas e distintas fases das adolescências e juventudes e as expressões que são carregadas nelas através de um determinado consumo material. As vestimentas de marcas famosas, entre os consumidores adolescentes-jovens, tornam-se passaportes de acesso, circulação e mediação, justificados pelo forte poder de expressão e busca por reconhecimento social, atreladas pelos adolescentes-jovens a determinadas marcas famosas.
As marcas Seaway e Cyclone representam essa trajetória de vida de inúmeros adolescentes-jovens que depositam nas vestimentas de marcas o passaporte de acesso para inserção em grupos e espaços sociais. Ainda, as referidas marcas também são selos que traduzem o status e poder almejados para garantir a sobrevivência e ascensão nesses espaços, seja da comunidade ou da internação. Por outro lado, porém, as vestimentas Seaway e Cyclone também são grafadas nesse contexto de vulnerabilidade social, marcadas por estigma, preconceito e exclusão, fato igualmente demonstrado na presente pesquisa.
Sobre a utilização de adornos entre os adolescentes-jovens, dentre os 23 pesquisados, 18 utilizavam adornos, correntes, pulseiras, brincos, relógio e anéis de ouro/prata, e apenas cinco não utilizavam nenhum tipo. A pesquisa demonstra o uso massivo desses itens entre eles em todos os espaços verificados, ou seja, em todos os pavilhões visitados e áreas de circulação dos adolescentes-jovens no Case/PE e ainda em todos os adolescentes-jovens participantes de audiências.
Neste caso, como em outros, os elementos materiais – vestimentas e adornos – identificados são de duas marcas principais entre os adolescentes-jovens pesquisados, Seaway (|Figura 2) e Cyclone (Figura 3). As referidas marcas de roupas podem ser observadas nas camisas e bermudas utilizadas pelos adolescentes-jovens no interior do Case/PE, nos diversos pavilhões visitados e durante as audiências na Vara da Infância e Juventude da Comarca de Ipojuca. Especificamente, entre aqueles participantes das audiências, a marca Seaway é ainda mais forte. Outras marcas de roupas também são percebidas, porém de forma mais rara, como a Maresia, a Cyclone, a Hang Loose e a Nike.
Este fato é observado também a partir das falas de Bruno: “É minha marca preferida. Tenho camisa, bermuda…”; de Emanoel: “Ah, essa aqui é da geral!”, referindo-se à marca Seaway; e do adolescente-jovem Carlos: “Gosto da Seaway, mas só tenho uma bermuda”. A marca Seaway foi comumente observada durante a pesquisa, em diferentes espaços sociais de circulação e em todos os pavilhões visitados, principalmente o tipo bermudas e shorts.
Lucas diz: “Ah! Gosto da Cyclone e Nike… São caras. Mas também tenho algumas da Seaway, mas não muitas. Não gosto muito dessa marca, não”. Sobre o valor das marcas mais caras, Lucas responde: “Quem não gosta de coisa boa, doutora? A gente tem que andar bem pra seguir o bando!”
Especificando as imagens representativas, tatuagens e cortes de cabelos utilizados pelos adolescentes-jovens pesquisados, também foi observada a presença dessas imagens de forma massiva. Notadamente entre os adolescentes-jovens pesquisados, dentre 23 deles, somente dois não possuíam tatuagens ou cortes de cabelo alusivos a essas imagens, que são os adolescentes-jovens do Case/PE declarados evangélicos.
É o caso de Fernando, que estava internado no pavilhão intitulado por ele e pelos companheiros como o “Pavilhão das ‘Bença’”, por somente acolherem adolescentes e jovens evangélicos. No caso de Fernando, a referência é a Igreja Universal. No momento da minha visita, Fernando vestia uma bermuda Seaway, que, segundo ele, durante uma breve conversa, seria uma “bermuda de malandro”, demonstrando a capacidade de expressão de significados através das vestimentas e adornos. Indagado sobre a relação dele, jovem evangélico, com a marca, informou que não a utilizaria mais quando saísse da Funase.
Sobre a afirmativa feita pelo adolescente-jovem, em relação à marca Seaway ser uma marca de malandro, o mesmo processo de estigmatização reflete na marca Cyclone, neste caso, de forma muito mais acentuada.
Na literatura e na música, as marcas Seaway e Cyclone são exaltadas, tanto como indicativos de estudo nas áreas de consumo, quanto fontes de expressão e identidade social. Na música Cyclone (2011), da banda baiana A Bronkka, marcas de vestimentas famosas são exaltadas, e, especificamente, a marca Cyclone é citada para afirmar que esta não é utilizada por ladrão:
[…] Cyclone não é marca de ladrão é a moda do ghetto mais com toda discriminação eu imponho respeito. Cap pro lado, camiseta e bermudão, Cyclone vou de Cyclone. É de Cyclone, vou de Cyclone. Se tem Adidas, Billabong, Seaway, Mahalo e Nike, Maresia, Fido dido e a bruxa.
Dentre as imagens representativas nas tatuagens e cortes de cabelo, percebe-se a exposição de diversos nomes e símbolos. Especificamente nas tatuagens, foi possível observar nomes, principalmente de filhos, desenhos e símbolos que variavam entre times de futebol, bandas de música, grupos da comunidade que frequentavam, entre outros (Figura 4).

Os diferentes adolescentes-jovens institucionalizados no Case/PE, cada um com a sua vivência diária, costumes e rotinas, demonstravam o desejo de serem aceitos nos grandes grupos ali existentes, extrapolando, assim, a necessidade de inclusão e reconhecimento apenas no seu pequeno grupo. A ideia de fazer parte do “bando”, de ser superior através da utilização de expressões de poder, como tatuagens com desenhos de cifrão, ou de se fazer presente e respeitado a partir da utilização de uma marca de roupas, por exemplo, foram situações comuns observadas entre os adolescentes-jovens durante a realização da pesquisa.
A mediação foi um importante ponto de discussão neste trabalho, uma vez que, através do consumo material de produtos de marcas famosas, os adolescentes-jovens buscam a circulação em diferentes espaços sociais, apesar de atrelados ao sentimento de imposição de poder promovido pelos bens materiais. A ostentação de produtos de marcas famosas e a utilização de adornos, por exemplo, demonstram a busca pela expressão de riqueza e poder promovido por tais bens materiais.
Os desenhos de cifrão tatuados no corpo também demonstram a relação existente entre dinheiro e poder, não sendo diferente de quando expressadas através do consumo de bens materiais. Esse consumo material de marca detalha a construção da identidade social de um adolescente-jovem. Segundo Rocha (1995, p. 36), “a indústria cultural repousa no solo das emoções codificadas, sentimentos obrigatórios, sistemas de pensamentos e representações coletivas da sociedade que a inventa, permite e sustenta”.
A ascensão por meio desse poder e status, almejados através do uso de vestimentas de marcas famosas entre os adolescente-jovens, é disputada através da construção de um estereótipo preconceituoso e excludente promovido por essas mesmas roupas de marcas. Tal discussão demonstra a vulnerabilidade social fortemente vivenciada por adolescentes-jovens de periferia, que lutam diariamente para garantir a sobrevivência e os mínimos direitos sociais, de identidade e representatividade e ainda para fugir de estigmas depositados nas vestimentas por eles utilizadas. É a busca incansável, travada pelos adolescentes-jovens periféricos, de inserção e ascensão social, livre de qualquer forma de preconceito e exclusão.
De certa forma, os adolescentes-jovens buscam, através do consumo material de produtos de marcas, mediar os diferentes contextos sociais nos quais estão inseridos, como a institucionalização no Case, por exemplo. A intenção dessa mediação é a de reafirmar uma identidade social já construída anteriormente e de buscar um reconhecimento social diante de um ambiente já tão excludente.
CONCLUSÃO
As trajetórias expostas a partir da pesquisa traduzem diferentes histórias de vida de adolescentes-jovens, que compartilham do mesmo contexto de privação de liberdade, mas com determinantes sociais que os inserem em mundos diversos, marcados por situações de vulnerabilidade, violação de direitos, preconceito e exclusão, e ainda pela busca de sobrevivência e de visibilidade social.
A necessidade de construção de identidades sociais entre os adolescentes-jovens pesquisados, inseridos no sistema socioeducativo de privação de liberdade, torna-se um fator de mediação social entre eles, que almejam a garantia dessa sobrevivência e inserção. A vulnerabilidade social vivenciada na comunidade onde residem é estendida, muitas vezes, a outros espaços sociais, justificando a utilização da mediação social para reconhecimento de seus pares e grupos sociais eleitos por eles. É um sistema de compensação social almejado, principalmente, entre adolescentes-jovens periféricos, diante das privações presentes em suas vidas cotidianas.
A construção de status e poder como estratégia de visibilidade são também aspectos buscados pelos adolescentes-jovens, principalmente espelhados pelos produtos de marcas famosas eleitas pela comunidade, espaços e grupos sociais. A ostentação dessas marcas, fenômeno bem presente nas comunidades, por exemplo, passa a ser uma expressão dessa rotina de consumo, pois, além de retratar a afirmação de diversos papéis necessários para o enfrentamento de questões sociais presentes na vida desses adolescentes-jovens, ainda proporcionam o acesso ao mundo idealizado de consumo.
Os campos pesquisados, o Case do Cabo de Santo Agostinho/PE e a Vara da Infância e Juventude da Comarca de Ipojuca/PE, foram espaços sociais que ratificaram essa busca pelo reconhecimento e inserção social de adolescentes-jovens em privação de liberdade, com a utilização desse consumo como estratégia de circulação e mediação social nos espaços em que estão inseridos.
Nos resultados da pesquisa, foi possível ratificar a utilização de vestimentas da marca Seaway e Cyclone, além de outras marcas citadas pelos adolescentes-jovens de comum consumo. A Seaway foi associada a um misto de significados, retratados pelos próprios adolescentes-jovens, sendo declarada como um importante item de inserção social na comunidade e no interior do Case/PE, como um objeto de acesso e ascensão entre seus pares e grupos e ainda como um importante item de status, poder e reconhecimento social.
Assim, a partir dos resultados da presente pesquisa, torna-se evidente a forte relação existente entre o consumo de bens materiais de marcas pelos adolescentes-jovens e a busca por inserção e visibilidade social. A importância de reconhecimento de seus pares e grupos, no interior do contexto de privação de liberdade, é acompanhada pela necessidade também de sobrevivência entre eles. É um contexto de mediação social que promove a construção de identidades sociais muito almejadas nesses diferentes espaços de privação de liberdade.
A expressividade através do mundo material retrata as distintas realidades sociais entre os adolescentes-jovens, porém traz à tona também uma reflexão sobre a transformação da inserção social, da sobrevivência e da própria vida humana em mercadorias. São diversas vidas, adolescências e juventudes evidenciadas pelo cometimento do ato ilícito, mas também histórias marcadas pela forte vulnerabilidade social que ultrapassa os muros das instituições de privação de liberdade, a exemplo da desigualdade social, da exclusão e do tolhimento de direitos que vivenciam, inclusive, nas próprias comunidades de periferia.
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Notas
Autor notes
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