artigo
Recepção: 11 Setembro 2022
Aprovação: 2 Dezembro 2022
DOI: https://doi.org/10.11606/issn.1984-5057.v14i2e204299
RESUMO: Este trabalho busca refletir sobre a midiatização dos rituais de consumo na cultura sneaker no contexto publicitário contemporâneo a partir de diálogos teóricos entre a perspectiva sociológica do algoritmo de Gillespie, a antropossemiótica dos rituais de consumo de McCracken e Perez e as contribuições de Flusser sobre a criatividade programada nos usos das imagens técnicas. Como objeto empírico, o artigo analisa o lançamento do Gucci Virtual 25 em abril de 2021, um sneaker disponível apenas em realidade aumentada e vendido a US$ 12 no aplicativo da grife italiana. Como resultado, foi possível averiguar que as especificidades nos rituais de compra e uso – mediados algoritmicamente – hipervalorizam a midiatização do ritual de posse que, por sua vez, torna-se o principal atrativo publicitário para o ritual de busca.
PALAVRAS-CHAVE: Algoritmo, Rituais de consumo, Midiatização, Realidade aumentada, Publicidade.
ABSTRACT: This work seeks to reflect on the mediatization of consumerism rituals in the sneaker culture in the contemporary marketing context from theoretical dialogues between the sociological perspective of the algorithm of Gillespie, the anthroposemiotics of consumerism rituals of McCracken and Perez and the contributions of Flusser on programmed creativity in the use of technical images. As empirical object, the article analyzes the Gucci Virtual 25 release in April 2021, a sneaker available Only in augmented reality and sold for 12 US$ at the Italian designer label’s app. The result allowed to verify that the specificities in the buying and using rituals – algorithmically mediated – hyper-valorize the mediatization of the possession ritual that, then, becomes the main marketing attractive for the search ritual.
KEYWORDS: Algorithm, Consumerism rituals, Mediatization, Augmented reality, Publicity.
RESUMEN: Este trabajo hace una reflexión sobre la mediatización de los rituales de consumo en la cultura sneaker en el contexto de publicidad contemporánea a partir de diálogos teóricos entre la perspectiva sociológica del algoritmo de Gillespie, la antropo-semiótica de los rituales de consumo de McCracken y Perez, y los aportes de Flusser sobre la creatividad programada en el uso de imágenes técnicas. El objeto empírico analizado es el lanzamiento del Gucci Virtual 25 en abril de 2021, un sneaker disponible solo en realidad aumentada, que es vendido por al menos USD 12 en la aplicación de la marca italiana. Los resultados mostraron que las especificidades en los rituales de compra y uso –mediados por algoritmo– sobrevaloran la mediatización del ritual de posesión, que se convierte en el principal atractivo de publicidad del ritual de búsqueda.
PALABRAS-CLAVE: Algoritmo, Rituales de consumo, Mediatización, Realidad aumentada, Publicidad.
INTRODUÇÃO
A formação de comunidades de consumidores em torno dos bens materiais, bem como suas interações com marcas e conteúdos publicitários, está cada vez mais condicionada pelas lógicas algorítmicas. A mediação numérica atua na produção de sentido na mesma velocidade que a torna mensurável dentro de novas zonas de contato em que os consumidores se encontram e compartilham conteúdo. Para o sistema publicitário (TRINDADE; PEREZ, 2014) e para a própria publicidade como lógica dominante na contemporaneidade (POMPEU, 2021), emergem formas mais claras de se ler o indivíduo e seus rituais midiatizados (PEREZ, 2020), colocando-os em visibilidade na rede, tanto na perspectiva de sujeito consumidor, quanto na sua condição de usuário fornecedor de dados.
Este trabalho irá refletir sobre as formas de atuação do algoritmo na identificação dos rituais de consumo e na consequente “programação da criatividade”. Para isso, pretende-se aproximar as contribuições de Gillespie (2018) – sobre a atuação algorítmica – de uma perspectiva antropossemiótica dos rituais de consumo de McCracken (2010) e Perez (2020). Em seguida, adiciona-se a ideia de “criatividade programada” (2008) para pensar sobre uma tendência de padronização na produção e compartilhamento de imagens técnicas nas redes sociais, resultantes dos rituais midiatizados.
Embora este percurso teórico não se consolide em si como método – ainda que possa prever uma composição metodológica que se lhe adeque –, a sua construção foi pensada para atravessar algumas dificuldades da pesquisa sobre linguagem algorítmica na publicidade e dar conta do objeto empírico escolhido para este texto. Aqui, os objetivos teóricos da pesquisa se alcançam por meio do trabalho empírico, que consiste na análise do lançamento do Gucci Virtual 25, um sneaker disponível apenas em realidade aumentada e vendido a US$ 12 no aplicativo da grife italiana.
A cultura sneaker e os seus hiperconsumidores (LIPOVETSKY, 2007) ou sneakerheads – tornaram-se objeto de estudo dos pesquisadores nos últimos quatro anos dentro do Grupo de Estudos Semióticos em Comunicação, Cultura e Consumo (GESC3) da ECA-USP, compondo a pesquisa em curso “Personas do Hiperconsumo”. Este artigo, portanto, mantém ainda a preocupação de se compreender o sujeito a partir da sua relação com a cultura, com os bens materiais e com as manifestações de consumo, tendo neste momento a moda como objeto central (PEREZ; POMPEU, 2020), atravessada pela comunicação publicitária. E uma vez que tanto a moda quanto a comunicação publicitária estão conectadas pela linguagem algorítmica – e uma vez que ela tece a vida cotidiana – conhecer essa linguagem é primordial para explicar a realidade.
FORMAS DE ATUAÇÃO DO ALGORITMO E OS RITUAIS DE CONSUMO
A contemporaneidade instaurou uma relação indissociável entre o consumo e aquilo que, a partir de certo ponto de vista, vem se chamando de vigilância (BRUNO et al., 2018; ZUBOFF, 2020). É praticamente impossível anular a mediação tecnológica das nossas ações de consumo, e isso faz com que a atuação algorítmica seja continuamente moldada a partir dos nossos rituais transpostos para aplicativos, chips e sensores, que mapeiam da busca ao descarte do bem material. Essas zonas mensuráveis de contato entre consumidores evidencia o cenário de hipervisibilidade do indivíduo, conectado e monitorado o tempo todo, em uma nova lógica de consumo que articula tecnologia, comunicação, política e economia (MOROZOV, 2018; O’NEIL, 2021). A circulação se desenha a partir dos rastros de interação e compartilhamento que, convertidos em dados, alimentam as bases das grandes empresas, tendo a publicidade como elemento-chave, por meio do leilão de anúncios cada vez mais precisamente direcionados aos usuários.
Para Gillispie (2018, p. 96), “é preciso questionar os algoritmos como elementos principais do nosso sistema informacional e das formas culturais que emergem de suas sombras”, uma vez que assumimos as ferramentas tecnológicas como formas primárias de expressão, sujeitando discurso e conhecimento a lógicas numéricas controladas.
Sabemos que grande parte da expressão individual e da construção identitária se dá no consumo e é aí que o consumo midiatizado assume protagonismo, porque possibilita modos de participação e de engajamento dentro das redes sociais digitais. Segundo Trindade e Perez (2016, p. 25),
quem estrutura o algoritmo estruturará os tipos e graus e condições de interação com seus significados atrelados em rede, como também seus filtros, as possibilidades de ações dos usuários, atingindo um espectro amplo da vida social midiatizada pelos dispositivos digitais, incluindo-se aí os consumos midiáticos e o consumo midiatizado. […] Esses aspectos nos direcionam para uma série de novos fenômenos empíricos das marcas em suas formas de publicização (o sistema publicitário em suas ações nas circulações midiáticas das marcas), que valorizam a experiência e a sensorialidade.
Ainda é conflitante para as marcas pensar o consumo e a cultura material nas lógicas algorítmicas, uma vez que a materialidade segue como ponto central na experiência do indivíduo. Mas cabe lembrar, nesse sentido, que McLuhan (1969) antecipou essa discussão ao tratar o número como tato. Para o autor, o número possibilita uma materialidade na comunicação, ou seja, tatear, tornar presente, não individualizada como a palavra, mas global como linguagem tecnológica. “É a qualidade do número que explica o seu poder de criar um efeito de ícone ou de imagem comprimida e inclusiva” (MCLUHAN, 1969, p. 126). Essa perspectiva ajudou a conceber uma visão sociológica do algoritmo, compartilhada por Gillespie (2018), que se opõe totalmente a uma concepção abstrata ou extremamente tecnicista. Para o autor, essa visão sociológica deve “desvendar as escolhas humanas e institucionais que estão por trás desses mecanismos frios” (GILLESPIE, 2018, p. 98), sendo possível colocar sujeito e máquina, consumo e produção, sob as lentes da cultura. Como nas matrizes culturais de Martín-Barbero (2006), tecnicidade e sociabilidade enquadram o sujeito como um agente social dinâmico, permitindo entendê-lo como um ser comunicativo, interagente e que se constitui no atravessamento de mediações situadas em seus contextos (TRINDADE, 2018).
O mapa conceitual desenhado por Gillespie (2018) – a partir das seis formas de atuação do algoritmo – fornece um caminho interessante para as pesquisas em comunicação e consumo, tendo em vista que cada um dos aspectos citados molda a percepção de realidade, incluindo a publicidade, o consumo e seus rituais. Para o autor, as seis formas de atuação são: padrões de inclusão; ciclos de antecipação; avaliação de relevância; promessa de objetividade algorítmica; entrelaçamento com a prática; produção de públicos calculados.
1. Padrões de inclusão: as escolhas por trás do que gera um índice, em primeiro lugar; o que é excluído; e como os dados são preparados para o algoritmo. 2. Ciclos de antecipação: as implicações das tentativas dos provedores dos algoritmos de conhecer a fundo e prever completamente os seus usuários; e como importam as conclusões às quais eles chegam. 3. Avaliação de relevância: os critérios pelos quais os algoritmos determinam o que é relevante; como esses critérios nos são ocultados; e como eles implementam escolhas políticas acerca de um conhecimento considerado apropriado e legítimo. 4. A promessa da objetividade algorítmica: a maneira como o caráter técnico do algoritmo é situada como garantia de imparcialidade; e como essa alegação é mantida diante de controvérsias. 5. Entrelaçamento com a prática: como os usuários reconfiguram suas práticas para se adequar aos algoritmos dos quais dependem; e como podem transformar algoritmos em espaços de disputa política, às vezes até mesmo para questionar as políticas do próprio algoritmo. 6. A produção de públicos calculados: como a apresentação algorítmica dos públicos, para eles mesmos, molda uma noção de si desse público; e quem está em melhor posição para se beneficiar desse conhecimento. (GILLESPIE, 2018, p. 98)
Embora o autor tenha numerado essas formas de atuação do algoritmo, não necessariamente elas estabelecem uma ordem sequencial de acontecimento, mas indicam um processo que se constrói e tem objetivos claros em cada etapa. Quando colocamos essas seis formas ao lado das contribuições de McCracken (2010) sobre o percurso do significado do mundo para os bens de consumo e dos bens para os indivíduos, muitos pontos em comum são encontrados. Isso se torna ainda mais evidente quando trazemos a questão para um modelo atualizado, proposto por Perez (2020) e que contempla o consumo midiatizado e a lógica algorítmica em sua essência.
Antes de mapear os pontos em comum, faz-se necessário explicar o modelo sugerido por McCracken (2010) na condição de uma perspectiva antropológica do consumo material e que precisa de sobreposições de outros campos para que a materialidade e o número sejam colocados em conexão. A amplitude do tema escancara a busca por uma perspectiva mais ampla, com um entendimento que não subestima a materialidade e as práticas numéricas nos usos e consumos da vida cotidiana, buscando os sentidos sociais no gerenciamento da vida pelos números (VINCK, 2016).
Na tentativa de mapear o percurso do significado, sem destacar os movimentos algorítmicos, McCracken (2010) acredita que a significação parte inicialmente de um mundo culturalmente constituído e se transfere, em seguida, para o bem de consumo. Posteriormente, ela se afasta do objeto e se transfere para o consumidor individual. De forma resumida, há três localizações para o significado: o mundo culturalmente constituído, o bem de consumo e o consumidor individual; e dois momentos de transferência: mundo-para-bens e bens-para-indivíduo. Para que o processo de deslocamento de significação aconteça “de fora para dentro”, ou melhor, do mundo-para-bens, são necessários alguns instrumentos de transferências que, para McCracken (2010), podem ser exemplificados pela publicidade e pelo sistema da moda. A capacidade de fundir um bem de consumo a uma representação do mundo culturalmente constituído, por meio das especificidades de um anúncio, coloca a ação publicitária como importante método de condução dos significados. Quando a moda é adicionada, emergem vetores que destacam ainda mais a qualidade móvel do significado: originalidade, mudança e efêmero (LIPOVETSKY, 2007). É impossível pensar esses movimentos sem as modulações numéricas, uma vez que tanto a moda quanto a publicidade estão imersas na linguagem algorítmica, nos últimos anos (JENKINS et al., 2014).
Seguindo com as transferências de McCracken (2010) – com o significado já contido nos bens – o significado passa agora aos indivíduos, o que se dá por meio de quatros rituais: troca, posse, arrumação e despojamento. A apropriação do termo “ritual” por McCracken (2010) parte da concepção clássica de Van Gennep (1960) e Turner (1974) e foi elaborada a partir da realidade da América do Norte, na perspectiva em que o ritual pode ser definido como “uma oportunidade para afirmar, evocar, assinalar ou revisar os símbolos e significados convencionais da ordem cultural” (MCCRACKEN, 2010, p. 114). Sendo assim, este trabalho atenta-se para as adaptações, quando aproximadas da realidade latino-americana, e prefere se apoiar no modelo atualizado por Perez (2020), em que se adiciona o ritual de compra e têm-se cinco rituais de consumo: busca, compra, uso, posse e descarte (PEREZ, 2020, p. 59) (Figura 1).

Em síntese, o ritual de busca diz respeito às ações de seleção e coleta de informações sobre o bem de interesse, enquanto o ritual de compra é a aquisição por determinado modo de pagamento ou assinatura. Em sequência, o ritual de uso é a incorporação da cultura (i)material na vida cotidiana, fundindo o coletivo ao individual, ao passo que o ritual de posse reúne os esforços de reafirmação de propriedade (como a conservação, o armazenamento e as oportunidades de exposição). Por fim, o ritual de descarte pode ser o fim do processo, quando o bem já não oferece significados do interesse do indivíduo, ou a continuidade no reuso, na reciclagem e na ressignificação.
Em um exercício simples de preencher as lacunas dos rituais com um exemplo de consumo atual, fica escancarado como a lógica algorítmica está em tudo – em todas as etapas do processo. Isso se dá porque, quanto mais os processos comunicacional-midiáticos passam a ser dominantes nas sociedades contemporâneas – naquilo que se costuma chamar de midiatização (HJARVARD, 2014) –, em crescente atravessamento pela tecnologia digital (DI FECILE, 2020; SANTAELLA, 2016), maiores passam a ser as possibilidades de atuação dos algoritmos e de seus correlatos, como big data, inteligência artificial, machine learning etc. (BEIGUELMAN, 2021; GABRIEL, 2021, 2022). Dos sites de busca aos métodos de pagamento, passando pela exibição nas redes sociais e pelos aplicativos de troca, nossos rituais estão condicionados pelo que o algoritmo entrega e torna visível/material. A qualidade móvel do significado só circula nessas instâncias (do/a mundo/cultura para bem para indivíduo) porque estamos o tempo todo modulando e sendo modulados pelos algoritmos.
Quando trazemos as formas de atuação do algoritmo de Gillespie (2018) para dentro do quadro dos rituais de McCracken (2010) e Perez (2020), alguns cruzamentos ajudam a elucidar essa coexistência, a começar pelo ritual de busca. Os critérios de exclusão e escolha colocam o consumo em nível indicial, pois ainda não se chegou à aquisição, mas caminhos vão se construindo para isso através dos padrões de inclusão estabelecidos pelos algoritmos. Quando a compra é efetuada, os algoritmos trabalham para ler todo o perfil do consumidor a partir daquele ato firmado e se antecipar a novos movimentos na rede, gerando ciclos prévios. No momento do uso, o indivíduo obedece a certas normas dentro do que é considerado apropriado e legítimo pelo mundo/cultura, e essas demarcações são impostas pelas avaliações de relevância em que o algoritmo atua fortemente. Chegando ao ritual de posse, o mais exibicionista dos rituais, é quando o indivíduo ajusta as suas práticas para também ganhar destaque ou ser relevante, mas isso pode implicar espaços de disputa nos quais o bem de consumo – da forma como é mostrado – é a principal arma. E como último ritual, mas apenas recomeçando as formas de atuação do algoritmo, o descarte retorna ao nível indicial, pois são sobrepostos novos critérios de escolha e exclusão sobre o destino do bem.
Considerando que cada ponto elencado acima, por sua grande complexidade e pelas crescentes oportunidades que oferecem ao chamado big tech, mereceria detalhamento maior, não havendo, todavia, espaço para tanto, vale resumir. Todas as interações do usuário-consumidor ao longo dessa jornada ritualística ligada ao consumo, da busca ao descarte, por menores ou mais despretensiosas que possam parecer, convertem-se em informações dataficadas que servirão de insumo ao favorecimento de outros rituais – até que enfim se chegue ao ato da compra. É entendido aqui que o ato da compra tem em si a sua relevância mercadológica, em uma perspectiva comercial mais tradicional, mas que todos os outros movimentos também importam, dentro dessa nova lógica econômica baseada nos dados (MOROZOV, 2018).
Entre as seis formas elencadas por Gillespie (2018), entende-se que a “promessa de objetividade” é a base do processo e é atuante em todos os momentos, pois a sensação de imparcialidade nunca deve se desprender das demais. Já a “produção de públicos calculados” é enxergada como resultante da atuação dos algoritmos nos rituais de consumo e retornam do indivíduo para o mundo e para a cultura; isto é, as noções moldadas sobre o indivíduo e o público reabastecem o primeiro nível de armazenamento dos significados, o mundo/cultura, de onde a moda e a publicidade absorverão tais significados, depositarão nos bens de consumo e darão origem a novos processos rituais (Figura 2).

Apesar de a “produção de públicos calculados” ter sido posicionada no retorno dos significados do indivíduo para o mundo culturalmente constituído, é importante entendermos que esses moldes já começam muito antes dos rituais. No tópico a seguir, será abordado um caso da cultura sneaker para ilustrar o esquema e serão também absorvidas as ideias de Flusser (2008) sobre “criatividade programada” nas relações dos indivíduos com os aparatos técnicos, mediadores importantes do consumo e algoritmo.
Por também ser um dos grandes exemplos do cruzamento da publicidade com a moda – ferramentas de transferência de significados –, a cultura sneaker parece se adequar a este trabalho e ajudar a ilustrar como a concepção dos bens parte da identificação de significados desvendados dentro dos próprios rituais e programados para se repetir entre os usuários. A repetição, a padronização, o compartilhamento, são importantes indicativos de relevância, e “uma vez que os bens de consumo são pensados como um sistema simbólico, isso abre a possibilidade para de algumas formas ‘ler’ a própria sociedade através do padrão formado entre os bens” (MILLER, 2007, p. 44).
CRIATIVIDADE PROGRAMADA E O CASO GUCCI VIRTUAL 25
“Ler a cabeça pelos pés”; os rituais de consumo dos sneakerheads trazem inúmeros exemplos de como o bem material – e a sua midiatização – atua nas transferências de significados do indivíduo/comunidade para a cultura. O que esse “protagonismo dos pés” indica, em primeira instância, é o ritual de posse em sua perfeita vocação exibicionista. “Os consumidores passam muito tempo limpando, discutindo, comparando, exibindo e até fotografando muitas de suas posses, ou mesmo refletindo sobre elas” (MCCRACKEN, 2010, p. 108). Com as redes sociais e a facilidade na produção de conteúdo, esses bens são fotografados nos melhores ângulos, passam por filtros, intervenções de texto, música, tudo para criar o melhor ambiente – virtual – de exposição e, por fim, ser compartilhado (Figura 3). Como já destacamos na Figura 2, o ritual de posse se entrelaça com a prática na intenção de se adequar a padrões alinhados aos algoritmos, e, com as possibilidades das redes sociais e as interações de uma comunidade, esses padrões são facilmente identificados em forma de conteúdo, ou “imagens técnicas”.

“Pois é isso a imagem técnica: virtualidades concretizadas e tornadas visíveis” (FLUSSER, 2008, p. 24). Essas imagens técnicas são o resultado de programas que se situam no interior dos aparelhos e são comandadas por consumidores imaginadores que, embora tenham a sensação de liberdade criativa, estão dentro de limites invisíveis impostos pelos programas, mas também pela própria cultura. “Por detrás de todos estes programas co-implicados e conflitivos reside a intenção de conferir significado a um universo absurdo” (FLUSSER, 2008, p. 54). O exemplo da Figura 3, das fotografias dos pés calçados feitas pelos próprios consumidores, nova espécie de selfie forjada pela midiatização digital da ritualística do consumo, em primeira pessoa, colocando o sneaker como elemento central, leva à reflexão, pois ao mesmo tempo que revela uma democratização da produção pelo acesso aos aparelhos e pela imaginação dos usuários nas redes sociais, desperta para uma padronização motivada pela cultura e pelo algoritmo. Esse é só um dos inúmeros exemplos de imagens que seguem a mesma estética, enquadramento, propósito, e são rapidamente convertidas pela indústria de bens de consumo. A “criatividade programada”, apontada por Flusser (2008), brinca com o olhar, o imaginar e o manipular do indivíduo, mas é nesse movimento que o programa identifica os padrões e rapidamente coloca-os em relevância.
O compartilhamento das imagens cria vínculos de sentido para quem produz e para quem consome. Hoje, quando essas imagens técnicas são fruto de rituais de consumo midiatizados, os vínculos se estendem até as marcas e seus bens, colocando-as em visibilidade.
Compartilhar conteúdo é sinal de transparência, respeito e de confiança, valores importantes na construção de vínculos afetivos vigorosos, e não é diferente na edificação dos vínculos com as marcas. Por outro lado, esse obscurantismo renasce nas novas formas de manipulação, observação e vigilância das interações das marcas com seus públicos, na mediação das tecnologias digitais em seus traços numéricos que, via algoritmos, cria regimes de visibilidade, confiança, interpretando por meio de big data e mecanismo de Inteligência Artificial (IA) possibilidade de afetar os consumidores-públicos em uma nova dimensão midiatizadora. Para autores como (COULDRY; HEPP, 2017, p 122-142) a midiatização pelos big data, design thinking e IA configuram a mediação da realidade em seu estágio mais avançado de midiatização. E fica aí o desafio para entendermos o consumidor em tal contexto. (TRINDADE; PEREZ, 2019, p. 13)
Em 25 de abril de 2021, a marca Gucci lançou o seu novo sneaker, chamado Gucci Virtual 25 (Figura 4). Como se não bastasse o visual chamativo e uma combinação de cores bem ousadas até para os padrões estéticos da grife italiana, o modelo ganhou as páginas dos veículos de moda por existir somente em realidade aumentada e custar apenas US$ 12. Algumas notícias destacavam a queda no consumo de tênis e a pandemia como motivos para um lançamento de produto que não irá às ruas, mas essa justificativa rasa esconde todas as motivações sobre um bem que foi criado pelo ritual, para ser exibido, exatamente na mesma perspectiva que a própria comunidade dos sneakerheads está acostumada a reafirmar a posse sobre os seus bens.
Alinhado a uma visão de David Beer (2009), com o foco na observação de como os algoritmos são moldados e como moldam o mundo – e não no aspecto técnico em si –, esse caso da Gucci coloca os rituais de consumo, sobretudo uso e posse, as formas de atuação do algoritmo e a programação das imagens técnicas em um mesmo prisma. A criação de um bem de consumo como o Gucci Virtual 25 resgata a noção do número como tato de McLuhan (1969) e de uma materialidade inseparável do bem de consumo, ainda que ela seja possível apenas na mediação de um software.
[…] o que é necessário são descrições de “poder através do algoritmo”, focalizando aqueles que trabalham projetando aplicativos e software, concentrando-se nas aplicações e software como entidades materiais, ou concentrando-se naqueles que se envolvem com o software em suas vidas cotidianas (ou através de uma combinação dessas três áreas). (BEER, 2009, p. 999)
A avaliação do impacto social do algoritmo em diferentes aspectos comunicacionais (produção, produto ou consumidor) é urgente para a compreensão sobre a publicidade e as possibilidades interativas das marcas. No exemplo trazido para este texto, temos um bem material feito exclusivamente para a midiatização dos rituais de uso e posse, colocando as formas de atuação do algoritmo, avaliação de relevância e entrelaçamento com a prática em muita evidência.
Essa midiatização se impõe sobre uma possível “ordem de acontecimento” dos rituais – segundo o esquema de Perez (2020) – e faz com que o desejo de se alcançar o status de uso e posse – midiatizado – torne-se o grande motivo de busca e de compra. Ainda que esse movimento não seja novidade entre os consumidores de sneakers, o caso do Gucci Virtual 25 (Figura 5) evidencia uma tentativa de desprendimento entre o bem material – físico, na rua – e o pertencimento à comunidade sneaker, bem como reduz o valor para aquisição de um bem da marca de luxo.

Por outro lado, vemos que o ritual tem o poder de legitimar um bem material em realidade aumentada, pois obedece aos mesmos critérios de relevância e será colocado em visibilidade pelo algoritmo. Nas pesquisas de Kitchin (2017) sobre os usos e consequências dos algoritmos, o autor sinaliza para os mecanismos encontrados pelos usuários na tentativa de visibilidade, ou invisibilidade pelo algoritmo, evidenciando negociação, posturas ativas dos sujeitos. Muitas dessas posturas são percebidas pelas imagens produzidas e colocadas em circulação. O consumidor e seus rituais, com um aparelho nas mãos, é produtor de dados valiosos para o mercado, que devolverá produtos cada vez mais alinhados ao seu repertório cultural.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A comunicação se desenvolve numa dinâmica colaborativa e propagável (JENKINS et al., 2014) que não respeita fronteiras geográficas e confunde as dimensões espaço-temporais. O exemplo do apelo de um bem de consumo em realidade aumentada serviu para ilustrar o percurso teórico adotado neste trabalho e que é apenas uma proposta inicial dos cruzamentos de uma visão sociológica dos algoritmos, baseada aqui em Gillespie (2018), com uma visão antropossemiótica dos rituais de consumo, de McCracken (2010) e Perez (2020).
Os números como linguagem para explicar a realidade, o consumo e as ações das marcas em contextos específicos “sinalizam realizações no desenvolvimento do pensar e do sentir” (TRINDADE, 2018, p. 53), que atingem o mercado e a academia em velocidades diferentes. Seja nos avanços do design em big data, na realidade aumentada ou inteligência artificial, os algoritmos continuam fora do nosso alcance e isso não quer dizer que não devemos aspirar a iluminar seu funcionamento e seu impacto (GILLESPIE, 2018). Ainda que as pesquisas em comunicação apresentem fragilidades metodológicas, principalmente na sua parcial (in)capacidade de alcançar de forma objetiva, plena, rentável e satisfatória os nossos objetos-sujeitos de estudo, direcionar o olhar para os algoritmos e suas influências já é um passo dado rumo à interpretação do indivíduo como elemento e engrenagem dos processos estruturantes nas realidades sociais, principalmente as realidades midiatizadas, como defende Hjarvard (2014).
Este texto também aponta para um desejo dos autores em reconhecer o conteúdo produzido pelo consumidor – a partir da midiatização dos rituais de consumo – como conteúdo de marca em sua forma e sentido, descentralizando a prática publicitária e colocando-a em uma lógica de coprodução. Aqui, certamente os estudos dos algoritmos podem auxiliar nesse reconhecimento, principalmente pela avaliação de relevância, uma vez que sabe-se que eles são norteadores da atividade publicitária. O primeiro passo que se supõe aqui ter sido dado abre um caminho para entender como o algoritmo carrega – em um processo a um só tempo midiático, como suporte, mas também semiótico e cultural, efetivamente participando dos processos de transformação e construção dos valores nele imbricados – os significados previstos pela marca, que estão contidos no processo de transferência da cultura para os bens, feitos pela moda/publicidade e manifestados nos rituais. Novos e incontáveis passos ainda precisam ser dados para que o consumidor tenha o protagonismo comprovado no discurso das marcas.
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Autor notes
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