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A DENÚNCIA SOBRE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER EM CIRCULAÇÃO PELA PUBLICIDADE 1
The denunciation of domestic violence against women in circulation from advertising
La denuncia de la violencia de género en circulación por la publicidad
Signos do Consumo, vol. 14, núm. 2, e204889, 2022
Escola de Comunicações e Artes da USP

artigo


Recepção: 24 Novembro 2022

Aprovação: 28 Novembro 2022

DOI: https://doi.org/10.11606/issn.1984-5057.v14i2e204889

RESUMO: O artigo tem como tema a violência doméstica contra a mulher, com foco na denúncia, e objetiva identificar o potencial do tratamento dado à denúncia na composição de campanhas sociais sobre a violência contra a mulher. Para tanto, são apresentadas reflexões sobre a política da piedade e sobre a denúncia, conforme Boltanski, e sobre o papel da mulher na constituição da família no contexto social brasileiro. Em seguida, é tecida uma análise de uma peça publicitária, na perspectiva da semiótica peirceana. Os resultados são relevantes tanto para a produção em publicidade social, por agregar um novo olhar para a denúncia, quanto para o redimensionamento de políticas públicas relativas à violência doméstica.

PALABRAS-CHAVE: Publicidade social, Violência doméstica, denúncia.

ABSTRACT: The article has the domestic violence against women as its theme, with a focus on the denunciation, and aims to identify the potential of the treatment given to the denunciation in the composition of social campaigns about domestic violence against women. To do so, reflections on the politics of pity and on the denunciation, according to Boltanski, and on the role of women in the constitution of the family in the Brazilian social context are presented. Then, the analysis of an advertising piece, from the perspective of Peircean semiotics, is carried out. The results are relevant both for the production in social advertising, for adding a new point of view to the denunciation, and for the resizing of public politics regarding domestic violence.

KEYWORDS: Social advertising, Domestic violence, Denunciation.

RESUMEN: El tema de este artículo es la violencia de género, con foco en la denuncia, con el objetivo de identificar el potencial del tratamiento que se da a la denuncia en la composición de campañas sociales acerca de la violencia de género. Para ello, se presentan reflexiones sobre la política de la piedad y la denuncia, conforme hace Boltanski, sobre el rol de la mujer en la constitución de la familia en el contexto social brasileño. Luego, se analiza una pieza publicitaria bajo la perspectiva de la semiótica peirceana. Los resultados son relevantes tanto a la producción en publicidad social, porque añade una nueva mirada a la denuncia, como al redimensionamiento de políticas públicas relacionadas a la violencia de género.

PALABRAS CLAVE: Publicidad social, Violencia de género, Denuncia.

INTRODUÇÃO

Conforme a pesquisa de opinião “Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher – 2021”, realizada pelo Instituto DataSenado ( BRASIL, 2021), em parceria com o Observatório da Mulher contra a Violência, a maioria das mulheres brasileiras, 86% das entrevistadas, percebe aumento na violência cometida contra pessoas do gênero feminino durante o último ano. Este tipo de pesquisa é realizado a cada dois anos, desde 2005. A edição de 2021, que envolveu três mil pessoas e foi realizada entre 14 de outubro e 5 de novembro, apontou crescimento de 4% na percepção das mulheres sobre a violência em relação à edição anterior. Para 71% das entrevistadas, o Brasil é um país muito machista, 68% conhecem uma ou mais mulheres vítimas de violência doméstica ou familiar, enquanto 27% declaram que sofreram algum tipo de agressão por um homem. E ainda, de acordo com a pesquisa, 18% das mulheres agredidas por homens convivem com o seu agressor, e para 75% das entrevistadas, a mulher não denunciou o agressor por medo.

Neste artigo, a nossa atenção se volta para o fato de que as mulheres, vítimas de agressão por homens, têm medo de denunciar o agressor, que na maioria dos casos é o marido, ou um companheiro. Mas, além da vítima, quem poderia denunciar? Como as campanhas publicitárias podem contribuir para o aumento da denúncia de violência doméstica contra a mulher?

Tendo como tema a questão da violência contra a mulher, este artigo, que apresenta resultados de pesquisa em desenvolvimento, é norteado pela seguinte questão: como a publicidade social sobre violência contra a mulher pode fomentar a denúncia? Com isso, objetiva-se identificar o potencial dessas campanhas publicitárias de estimular a denúncia, e, para tanto, são apresentadas reflexões sobre a política da piedade e sobre a denúncia, conforme Boltanski, sobre o papel da mulher na constituição da família no contexto social brasileiro e, em seguida, é tecida uma análise de uma peça publicitária, na perspectiva da semiótica peirceana. Os resultados são relevantes para a produção em propaganda social tanto por agregar um novo olhar para a denúncia, quanto por fornecer subsídios para redimensionar políticas públicas relativas à violência doméstica contra a mulher.

Seguem as reflexões sobre a política da piedade.

A DENÚNCIA DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO CONTEXTO DA POLÍTICA DA PIEDADE

A denúncia de violência contra a mulher, ao menos no que se refere às campanhas de publicidade social, caminha no sentido de interpelar toda a sociedade. Este tipo de violência parece se constituir, cada vez mais, como uma situação relacionada a valores, crenças, usos e costumes, o que provoca indignação moral e assim requer ação coletiva para ser resolvida.

Isto traz problemas, pois, conforme explica Boltanski ( 1993), a sociedade moderna se mostra associável primeiramente a unidades políticas individualistas, nas quais seus integrantes representam uma humanidade comum, uma dignidade comum. Assim sendo, a relação entre o público e o privado, entre o estatuto político dos vínculos sociais e as condições psicológicas dos sujeitos, é marcada pelo distanciamento. A percepção da violência doméstica contra a mulher é construída, portanto, evocando-se o sofrimento alheio, que estabelece dois grupos, o de espectadores e o de sofredores (este último grupo constituindo-se das mulheres vítimas de violência e outras pessoas da família), entre os quais não é possível estabelecer equivalências.

Conforme Duarte ( 1996), Boltanski ( 1993) explica a figura do espectador como a do sujeito que observa sem participar, que se institucionalizou no século XVIII, a partir da possibilidade conceitual e prática de tudo ver no mundo social, mas sem ser visto, o que ele denomina de anonimato urbano. Esta ideia advém do imaginário do teatro no Século das Luzes, quando a ênfase metafórica se desloca do mundo como palco, com seus atores e suas máscaras, para a contemplação. Assim, o espectador é aquele que vê, mas à distância, não estabelecendo vínculos com o sofredor, o que não permite que ele se coloque no lugar de quem sofre. Para Boltanski ( 1993), com a emergência da sociedade moderna, o espaço público ideal se apresenta na política como lugar de conversação generalizada e de demanda por piedade.

Ainda segundo Boltanski e Thévenot ( 1991), o conflito e o consenso são as forças de integração da sociedade na modernidade. O conflito se constitui de fato como um espaço de disputas, que traz à tona discordâncias morais, e não é resultado da força de resíduos dos fenômenos como luta de classes, dominação, desigualdade, estratificação, anomia, gênero, entre outras, ou ainda, desvios. Os conflitos em torno de tais questões são incorporados ao processo de crítica e justificação. Dessa forma, a vida social parece ter duas dimensões: a das ações praticadas e a do quadro de referência que confere legitimidade a essas ações. A busca pelo bem comum, por exemplo, requer a busca de provas de que a situação seja justa; a justificação, no caso, garante a reprodução da vida social.

Para que este movimento se firme, deve-se instaurar um regime de confiança. A tradição, a geração e a hierarquia são referências no ordenamento social. Isto ocorre, no que Boltanski e Thévenot ( 1991) denominam de cité2 doméstica. Em outra cité, a cívica, ainda segundo os autores, o que conta é o interesse coletivo. Aqui, os vínculos não são firmados pela confiança, mas pela solidariedade. A relação entre as pessoas depende de adesão à vontade geral e deve garantir a ruptura do isolamento dos particulares, como se uma multidão pudesse ser transformada numa só pessoa. Para que sejam empreendidas análises das situações por meio das cités, Boltanski e Thévenot ( 1991) mencionam que se deve buscar mundos comuns, que são habitados por diversos tipos de actantes, pessoas, coisas, discursos, entre outros, compostos por planos de dispositivos mobilizados pelas pessoas para construir provas de competência.

Em linhas gerais, a partir dos autores mencionados, tanto no espaço público como no doméstico, o compromisso entre diferentes cités pode contribuir para definir situações. No espaço público, os quadros de referência podem operar em consonância com a cité industrial, por exemplo, quando uma política econômica é justificada em termos de eficiência. Já no espaço doméstico, há quadros de referência em torno do bem comum que podem entrelaçar-se com os da cité cívica, como quando a igualdade pode guiar as relações na família.

Importa a esta pesquisa a relação entre a política da piedade e a denúncia. A política da piedade, proposta por Boltanski ( 1993), conforme Duarte ( 1996), faz emergir o predomínio das relações generalizadas sobre as relações locais, a preponderância de um universalismo abstrato sobre um comunitarismo estreito, e ainda a prevalência de uma generalidade de ordem política sobre uma de ordem espiritual. Ou seja, privilegia-se a constituição de um espaço público que se vale da legitimidade calcada em uma perspectiva não particular. Isto se consolida por meio de três tópicos do sofrimento: a denúncia, o sentimento e a estetização. Como esclarece Duarte ( 1996), a expressão e a socialização do sofrimento no espaço público moderno desenvolvem uma política da piedade, na qual o sofrimento se dá com os espectadores distanciados dos sofredores, o que leva o espectador, primeiramente, a sentir piedade, e depois a se indignar. A indignação põe em ação a cólera que desencadeia a denúncia, a acusação. Deste modo, o sofredor e o seu sofrimento deixam de ser o foco, e a atenção se volta para o perseguidor, para o denunciante. A pragmática da denúncia é posta em ato nessa política da piedade. E nessa política, conforme explica Boltanski ( 1993), os envolvidos não se questionam se a miséria do sofredor é justificável, tal como ocorre em uma política de justiça. Isso se dá porque espectadores e sofredores estão distantes, uma vez que não há laços comunitários entre eles. O espectador é uma figura que expressa os vínculos políticos modernos, uma figura que não é prévia, nem local, e ao mesmo tempo é guiada por uma espécie de disposição abstrata e universal de simpatia pelo sofrimento. Assim, a questão humanitária moderna se transforma em uma política que dá ao sofrimento um tratamento à distância, mas a partir da evocação do sofrimento efetivo – coletivo, preferencialmente –, o que desenvolve uma panóplia discursiva e institucional.

Duarte ( 1996) esclarece que, para Boltanski ( 1993), a política da piedade estabelece sofredores coletivos e responsáveis pelo sofrimento. O tópico da denúncia enseja um deslocamento do sofrimento para a procura do acusado, e esse processo – marcado muitas vezes pela constituição dos “casos públicos” – frequentemente ocorre por meio do transporte da acusação para “sistemas” ou “estruturas”, como a violência urbana, a violência institucional, a violência doméstica, entre outras. A denúncia possui, portanto, uma coloração política. Para alcançar reconhecimento social e maior envolvimento dos espectadores, os críticos sociais tendem a transformar um evento em um caso, uma disputa pública que gira em torno de um processo judicial, por exemplo, que atinge muitos setores da vida social, como a imprensa, a academia, o mundo literário, a Ordem dos Advogados, entre outros.

No caso da violência doméstica contra a mulher, os agentes sociais envolvidos – a mulher, o companheiro, os filhos e outras pessoas da família que constituem o ambiente doméstico, além dos profissionais, como advogados, jornalistas, cientistas sociais e promotores empenhados no reconhecimento do problema – articulam-se na implementação de leis, de aparelhos de polícia e de justiça. Articulam-se ainda na assistência social, contribuindo para a criação de novas leis e outros mecanismos de proteção, enquanto lideranças e representantes legítimos do bem comum. Dessa forma, esforçam-se para se manterem nessas posições, para se mostrarem como defensores do bem comum, atentando para os princípios da cité cívica. Daí a criação do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, no Brasil, ativo por 24 anos, desde 17 de abril de 1997, e recriado em 3 de fevereiro de 2017.

Neste sentido, agentes sociais constroem um estatuto político para suas atuações, valendo-se de recursos sociais e coletivos, buscando o bem comum. São inúmeros os parlamentares que se mostram dispostos a assumir a causa da violência doméstica, muitos dos quais intelectuais que tentam demonstrar que sua abordagem do tema não é apenas objetiva, mas envolve também simpatia e capacidade de se colocar na condição do sofredor. Ou seja, os espectadores tentam se envolver na causa devido, sobretudo, à sua carga emotiva, do sofrimento que lhes é apresentado como inquestionável. Em suma, o sofrimento é transformado em causa, em um processo que promove o envolvimento de um número maior ou menor de atores e que atinge muitos setores da vida social: a academia, a imprensa, entre outros.

TRANSFORMAÇÕES DO PAPEL DA MULHER

Em relação ao papel das mulheres na sociedade, Lipovetsky ( 2007) as classifica em três tipos. O autor esclarece que tanto a primeira como a segunda mulher eram subordinadas ao homem e definidas em relação a ele. No entanto, no Ocidente do século XX, desponta a terceira mulher, aquela que pode ser pensada também na vida pública, com direito ao voto, ao estudo, a inserir-se no mercado de trabalho e, com a liberdade sexual, que pode decidir quanto a ser mãe, ser solteira, ou se divorciar.

No entanto, a terceira mulher, ainda segundo Lipovetsky, necessita desempenhar papéis modernos e tradicionais; ou seja, ela não se libertou das responsabilidades domésticas a elas convencionalmente atribuídas. Sendo assim, é possível refletir sobre as expectativas das pessoas em relação à mulher, no que diz respeito aos papéis da primeira e da segunda mulher, que ainda permeiam o imaginário das pessoas e coabitam o nosso cotidiano. Isto pode gerar frustações e aumentar as cobranças, gerando conflitos de diversas ordens, no âmbito familiar, principalmente.

No contexto brasileiro, a partir de Samara ( 2002), apresentamos aspectos do processo de constituição da família brasileira, do período colonial até a atualidade, o que permite a difícil distinção desses três tipos de mulher propostos por Lipovestky ( 2007). A autora tomou como base recenseamentos da população, manuscritos e impressos, dos últimos 150 anos, de onde se depreende o papel da mulher. Enfatiza que, até décadas atrás, o que conhecíamos sobre este processo estava em parte vinculado ao modelo patriarcal, posto pela literatura e que consta em Freyre ( 2006), em sua obra Casa Grande & Senzala, escrita no início do século XX. No entanto, as pesquisas recentes mostram que as famílias extensas do tipo patriarcal não foram as predominantes, e sim aquelas com estruturas mais simples e com menor número de integrantes. Isso não exclui a importância da obra de Freyre, que deve ser reelaborada em pesquisas sobre a família brasileira, a partir de critérios que levem em conta temporalidade, etnias, grupos sociais, contextos econômicos regionais, razão de sexo e movimento da população.

Samara ( 2002) destaca que, desde o Primeiro Censo Geral do Brasil, realizado durante o Império, em 1872, até a contagem estatística realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 1996, delineia-se a tendência do aumento da população feminina em relação ao total de habitantes, e ainda a expectativa de vida das brasileiras como superior à dos homens. No entanto, pelas descrições de viajantes e memorialistas, referentes aos séculos XVI, XVII e XVIII, constata-se o predomínio da população masculina e indícios de que o aumento de mulheres brancas se iniciou no final do período colonial, pois os dados mostravam a predominância do sexo feminino em áreas urbanas do Sudeste. Dessa forma, torna-se importante enfatizar que, desde o período colonial, a análise da formação da família no Brasil demanda um olhar a partir de contextos regionais.

Há que se considerar também as diferenças estatísticas regionais em um país de porte continental como o Brasil e a migração populacional, especialmente a masculina, para áreas economicamente mais atrativas, fato que ocorreu inúmeras vezes ao longo dos cinco séculos da nossa História. E isso, sem dúvida, nos remete à análise da família a partir de contextos regionais mais específicos e as diferenças existentes nos padrões encontrados nos engenhos do Nordeste no início da colonização, na economia mineradora do século XVIII e nas plantações de café durante o XIX. Somam-se a esse quadro as mudanças advindas da industrialização, do aumento da vida urbana e do fluxo imigratório que também incidem diretamente na estrutura das famílias. ( SAMARA, 2002, p. 30–31)

Alguns padrões de família, em linhas gerais, são delineados nesse período, conforme atesta Samara ( 2002). Quando a economia da Colônia dependia das plantações de cana localizadas na região Nordeste do Brasil, no início dos séculos XVI e XVII, as famílias dos engenhos viviam em mansões assobradadas, cercadas de escravizados e dependentes. Nelas, o poder de decisão era do marido, protetor e provedor da mulher e dos filhos, e à esposa cabia o governo da casa e a assistência moral à família. A descoberta de minas de ouro, em torno de 1690, deslocou o eixo econômico para o sul, o que gerou uma vida urbana mais intensa. A sociedade que então se constituía mesclava pessoas de origens diversas, com concubinatos e ilegitimidades, mulheres exercendo atividades econômicas fora do âmbito doméstico e ainda outras solteiras que tinham filhos e que chefiavam suas próprias famílias.

Ainda no século XVIII, em áreas mais pobres do Sul, a vida rural era mais modesta que a do Nordeste e os núcleos urbanos se desenvolviam. Neles, havia pequenos negócios e serviços vinculados ao abastecimento que traziam oportunidades de trabalho, que eram então ocupadas por mulheres, em espaços deixados pela migração masculina e pela falta de trabalho escravo. Assim, como explica Samara ( 2002, p. 34), “no meio urbano, os papéis informais, embora não oficialmente reconhecidos e pouco valorizados, integravam a vida cotidiana, servindo também para desmistificar, no sistema patriarcal brasileiro, o papel reservado aos sexos e à rígida divisão de tarefas e incumbências”.

Com a cultura do café, ao longo do século XIX, no Sul, em paralelo às transformações políticas propiciadas pela Independência (1822), abolição da escravatura (1888), e Proclamação da República (1889), especialmente na segunda metade do século XIX, abriram-se novas oportunidades de emprego na indústria nascente e na burocracia, e as mulheres vão ocupar uma fatia desse mercado. Conforme explicam Samara e Matos ( 1993), a política desenvolvida pela elite cafeeira paulista, que promoveu a imigração em proporções superiores às possibilidades de emprego no campo, favoreceu o crescimento da população urbana, que incorporou trabalhadores pobres, imigrantes ou não. Esse crescimento passou a exceder as necessidades do mercado, propiciando a emergência de formas múltiplas de trabalho domiciliar e temporário, alternativas importantes de emprego para as mulheres por permitir a combinação das atividades domésticas com o trabalho remunerado. Assim, mesmo com a incorporação massiva das mulheres solteiras e jovens no universo fabril, o trabalho domiciliar permitia que as que fossem casadas contribuíssem para a renda familiar, não deixando de desempenhar as funções básicas de mãe e de donas de casa para as quais tinham sido socializadas e educadas.

Samara ( 2002) enfatiza ainda que, mesmo com a incorporação das mulheres ao trabalho fora do ambiente doméstico, o marido continuava, legalmente, com a designação de chefe de família. Como exemplo, a autora menciona o Código Civil de 1916, que reconhecia e legitimava a supremacia masculina, ao limitar o acesso feminino ao emprego e à propriedade, sendo que as mulheres casadas ainda eram, legalmente, incapacitadas, e apenas na ausência do marido podiam assumir a liderança da família.

Acrescenta-se às explanações de Samara ( 2002), a nova atuação das mulheres no mercado de trabalho durante o século XX, como a prestação de serviços por médicas, advogadas, dentistas, empregadas públicas, entre outras, bem como em outras ocupações em diferentes ramos da indústria. Seguindo este panorama, a autora ressalta que a historiografia brasileira, a partir dos anos de 1970, passou a incorporar modelos familiares distintos do patriarcal e a considerar uma maior flexibilidade desse modelo por regiões, grupos sociais e etnias.

A violência doméstica contra a mulher ainda se faz presente no contexto brasileiro, apesar do aumento da quantidade de mulheres inseridas no mercado de trabalho, que contribuem para prover a família, e da existência de modelos familiares mais flexíveis. A seguir, lançamos um olhar para a publicidade social e destacamos a abordagem relativa à denúncia

RETOMANDO A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

Consideramos importante ressaltar que as campanhas publicitárias, em geral, tentam incentivar a denúncia. No site do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos 3, para incitar a denúncia contra os agressores, há canais de atendimento da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH): o Disque 100, o Ligue 180 e o aplicativo Direitos Humanos Brasil, serviços que recebem, tratam e encaminham denúncias de violações aos direitos humanos. Há uma campanha recente, cujo mote é “Denuncie a violência doméstica. Para algumas famílias, o isolamento está sendo ainda mais difícil”, que aborda a denúncia de uma forma diferenciada ( DENUNCIE..., 2020). Ela teve a duração de duas semanas e foi realizada por meio de peças gráficas, material para internet, spots e vídeos, que foram veiculados na TV, em minidoors sociais de comunidades, em mídia indoor de condomínios, em carros de som, em rádios comunitárias e, como já evidenciado, na internet. A peça que exibimos a seguir, por fragmentos, em quatro cenas (Figuras numeradas de 1 a 4), mostra uma criança pedindo ajuda, o que constitui uma denúncia de violência doméstica.


Figura 1.
“Estamos em casa o tempo todo”
Fonte: ( Denuncie..., 2020).


Figura 2.
“Não posso falar alto”
Fonte: ( Denuncie..., 2020).


Figura 3.
“Estamos sendo machucados”
Fonte: ( Denuncie..., 2020).


Figura 4.
“Ajudem a gente, vizinhos”
Fonte: ( Denuncie..., 2020).

As cenas exibem o interior de uma residência. Os objetos visíveis – luminária sobre a bancada, parte da cama – sinalizam um lugar da casa, que pode ser o quarto do menino protagonista, que faz o papel de vítima e denunciante. Ele conversa com os espectadores – possíveis vizinhos – e manda um recado por escrito, exibido em cartazes de folhas de papel. Em conversa amigável com vizinhos, diz: “Oi, vizinhos. Como vocês estão na quarentena? A gente quer que isso tudo termine logo, para poder sair e ficar perto de vocês”. Já em outro diálogo, este escrito à mão, com letras maiúsculas postas em folhas brancas, é feita a denúncia propriamente dita, bem como o pedido de ajuda (que implica em nova denúncia): “NÃO POSSO FALAR ALTO. ESTAMOS SENDO MACHUCADOS. AJUDEM A GENTE, VIZINHOS” ( DENUNCIE..., 2020).

Para análise dos efeitos ou dos interpretantes possíveis para a peça publicitária, esta pesquisa valeu-se das estratégias advindas da gramática especulativa, parte da semiótica ou lógica peirceana, conforme aplicadas em Drigo e Souza ( 2021). As estratégias implicam a compreensão de como algo pode se fazer signo, compor nosso pensamento e gerar efeitos, quer sejam emocionais, vinculados à ação-reação, quer possam desencadear reflexões. Elas requerem que, a partir de pistas postas no signo – pelos aspectos qualitativos, referenciais ou pelos atados a normas, convenções e compartilhados culturalmente –, o analista elabore um inventário de possíveis interpretantes ou efeitos então gerados no intérprete. Contudo, cabe ao analista se colocar no papel de múltiplos intérpretes do signo.

Vejamos como os aspectos qualitativos, referenciais e vinculados a regras e normas compartilhadas culturalmente – que, no caso, envolvem os modos como a denúncia se materializa com os elementos audiovisuais – podem contribuir para a geração de interpretantes (efeitos) para esta peça publicitária. A peça é um signo que está no lugar de um objeto, no caso a denúncia de violência doméstica feita por uma criança.

As cenas, em plano médio, são realizadas no mesmo recinto, com o protagonista praticamente imóvel. O movimento é percebido com a troca das folhas que mostram as frases e com o movimento de cabeça do menino, que gira ao perceber que alguém se aproxima, o que o espectador pode avaliar pela sombra que invade a cena pela porta entreaberta. Essa ausência de movimento – neste contexto diante do espectador – gera efeitos vinculados à inércia e coloca o espectador em suspensão, o que contribui para que ele permaneça imóvel, aguardando o próximo “cartaz” e compartilhando a expectativa do protagonista: a de que ninguém possa ouvi-lo. O denunciante e o espectador tornam-se cúmplices, relação reforçada pela proximidade posta pelo plano médio. A sombra que se insinua próxima à porta entreaberta gera temor, apreensão. As cores cinza e os tons azulados que compõem as cenas provocam sensações vinculadas à leveza. Assim, os aspectos qualitativos geram efeitos vinculados à estaticidade, temor e apreensão, mas esta última permeada por leveza, amenizando um possível choque.

Os aspectos referenciais, como os objetos presentes, permitem que o espectador identifique o lugar de onde vem a denúncia. O logo, no canto superior direito, mostra o órgão governamental responsável pela peça publicitária. Os textos, falado e escrito, dão conta de informar o espectador e ao mesmo tempo denunciar a violência doméstica: “ESTAMOS SENDO MACHUCADOS” ( DENUNCIE..., 2020). Esses aspectos referenciais geram efeitos, ou interpretantes, vinculados à constatação, à identificação da peça publicitária.

As regras, normas ou leis vinculadas culturalmente são aquelas atadas às cores, aos gestos, às palavras e à sombra, elementos que serão aqui elencados para assim avaliar em que medida os efeitos emocionais, ou os de ação e reação, ou os reflexivos podem preponderar. A cor cinza, conforme mencionam Chevalier e Gheerbrant ( 2008, p. 248), composta de preto e branco, na simbologia cristã, designa a ressurreição dos mortos. Tal cor, enquanto cor da bruma, causa impressão de tristeza, melancolia, enfado. A cor azul, por sua vez, está associada à tranquilidade, e é a mais imaterial das cores, sendo que nela “o olhar mergulha sem encontrar qualquer obstáculo, perdendo-se até o infinito” ( CHEVALIER; GHEERBRANT, 2008, p. 107). Sendo assim, tais cores, por seus simbolismos, contribuem para instaurar uma atmosfera de contemplação misturada à melancolia, à tristeza. A sombra, que pode ser vista pela porta entreaberta, ainda conforme os autores, é a imagem das coisas fugidias, irreais e mutantes. Neste sentido, a sombra do agressor, integrante da família, mescla as suas relações com os familiares, com afetos e agressões, instaurando uma ambiência permeada por ambiguidades. E esta ambiguidade se faz presente também na ação do protagonista, que conversa amigavelmente com os vizinhos ao mesmo tempo que denuncia e clama pela continuidade da denúncia, com a possível ajuda dos vizinhos. A sombra, por ser algo que se opõe à luz, conforme explicam Chevalier e Gheerbrant ( 2008), pode provocar temor, medo. Assim, novamente há ambiguidade, tranquilidade e temor.

Outro elemento que compõe as cenas, a porta entreaberta, pode ser interpretado como uma possibilidade de comunicação com algo oculto, secreto; a porta faz a vez da denúncia. Isto porque ela “simboliza o local de passagem entre dois estados, entre dois mundos, entre o conhecido e o desconhecido, a luz e as trevas” ( CHEVALIER; GHEERBRANT, 2008, p. 734).

Ainda em relação aos aspectos convencionais, pode-se destacar o processo de produção dessa modalidade de publicidade que, de modo geral, apresenta no final da peça, em tom imperativo, o termo “denuncie”, seguido do número de telefone, do aplicativo e dos serviços de ouvidoria de órgãos governamentais, como pode ser observado na Figura 5, na parte final da peça publicitária em análise.


Figura 5.
Denuncie
Fonte: ( Denuncie..., 2020).

A denúncia, ao ser solicitada de forma imperativa, incisiva, pode contribuir para que o intérprete, ou o possível denunciante, mantenha-se distante da situação problemática; ou seja, tal forma de incitar a denúncia pode não contribuir para a construção de um espaço para reflexão, em que o intérprete se perceba no lugar da vítima ou faça conjeturas e se sensibilize quanto à dor e ao sofrimento então gerados a elas.

No entanto, há um avanço em relação ao tratamento dado à denúncia na composição da peça publicitária, uma vez que o menino – vítima – faz a denúncia, de modo indireto, ao mostrar a folha com a frase: “ESTAMOS SENDO MACHUCADOS”. Ao atender o pedido de ajuda, posto pelos cartazes apresentados pelo menino enquanto, na sua fala, cumprimenta os vizinhos, a continuidade da denúncia pode não ser percebida por denunciantes – possíveis vizinhos – como uma denúncia de fato. O possível denunciante não presenciou a violência, não é testemunha. Há um disfarce posto pela ação do menino e que pode se prolongar nas ações de vizinhos. Por fim, cabe destacar a importância das inúmeras funções do celular, dentre elas a que permite a elaboração de vídeos. Assim, o universo de “vizinhos” – as pessoas solidárias mais próximas neste contexto – pode ser ampliado, pois o vídeo pode ser visto por muitas pessoas. Há os que compartilharão o vídeo e outros que podem ajudar a família que sofre violência doméstica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ainda que não tenhamos resultados sobre a eficácia dessa peça publicitária, sua análise, aplicando estratégias oriundas da semiótica peirceana, permite colocar em evidência o seu potencial de significados, bem como conjeturar sobre sua maior eficácia. Isto porque tal potencial, engendrado na peça, dá abertura para ações em uma ambiência que implica afetos e ideias. O momento para ação-reação, como consequência de imperativos, é amenizado.

Embora não venha uma ação-reação – que pode ser a de desviar a atenção, afastar-se do problema –, a ambiência construída perdura e pode contribuir para que a denúncia seja vista sob novas perspectivas, como fruto de maior proximidade do espectador ou intérprete com o problema da violência doméstica, e isso, no caso da peça analisada, é possível também pela transformação da tecnologia, com o celular que permite a produção de vídeos.

REFERÊNCIAS

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DENUNCIE a violência doméstica. Para algumas famílias, o isolamento está sendo ainda mais difícil. [S. l.: s. n.], 2020. 1 vídeo (30 seg). Publicado pelo canal Mulher, Família e Direitos Humanos. Disponível em: https://bit.ly/3YGd3JF. Acesso em: 10 jan. 2022.

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SAMARA, Eni de Mesquita; MATOS, María Izilda Santos de. Manos femeninas: trabajo y resistencia de las mujeres brasileñas – 1890-1920. In: DUBY, Georges; PERROT, Michelle (org.). Historia de las mujeres: el siglo XX. Madrid: Taurus, 1993. v. 5, p. 709-720.

Notas

Como citar este artigo: DIAS, A. S. B.; DRIGO, M. O. A denúncia sobre violência doméstica contra a mulher em circulação pela publicidade. Signos do Consumo, São Paulo v. 14, n. 2, p.<1st>-0, jul./dez. 2022.
1 . Uma primeira versão deste artigo, sob o título “A Denúncia e a Publicidade Social: Análise de uma Campanha sobre Violência Doméstica Contra a Mulher”, foi apresentada no GT 14 Discurso y Comunicación, no XVI Congreso de la Asociación Latinoamericana de Investigadores de la Comunicación (ALAIC) – La Comunicación como Bien Público Global: Nuevos lenguajes críticos y debates hacia el porvenir, Buenos Aires, Argentina, 26 al 30 de septiembre de 2022.
2 . As utopias que guiam os quadros de referência do bem comum são utopias realizadas, como a pólis grega na inspiração aristotélica. Essas utopias realizadas, que são as cités, consideradas chave na vida moderna, são apresentadas por Boltanski e Thevenót (2014). Os autores preconizam seis cités: i) cidade inspirada, ou a Cidade de Deus, conforme Santo Agostinho; ii) a cidade doméstica; iii) a cidade de renome; iv) a cidade cívica; v) a cidade mercantil; e vi) a cidade industrial. As cités, conforme os mesmos autores, criam contextos de justificação, que se valem de um modelo pragmático baseado na competência do julgamento, que é utilizado quando atores justificam suas pretensões à justiça e manifestam desacordo sem recorrer à violência.
3 . Disponível em: https://bit.ly/3v9oo7m. Acesso em: 10 jan. 2022.

Autor notes

Email: alex.dias@ceunsp.edu.br E-mail: maria.drigo@prof.uniso.br



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