artigo
SOCIEDADE DO CANSAÇO E IDEÁRIO NEOLIBERAL: A ABORDAGEM DO TEMA BURNOUT EM MÍDIA DE NEGÓCIOS NO BRASIL
The Burnout Society and neoliberal ideology: the Brazilian business media approach to the theme of burnout
La Sociedad del Cansancio y la ideología neoliberal: el enfoque de los medios empresariales brasileños sobre el tema del burnout
SOCIEDADE DO CANSAÇO E IDEÁRIO NEOLIBERAL: A ABORDAGEM DO TEMA BURNOUT EM MÍDIA DE NEGÓCIOS NO BRASIL
Signos do Consumo, vol. 14, núm. 2, e205035, 2022
Escola de Comunicações e Artes da USP
Recepção: 28 Novembro 2022
Aprovação: 10 Dezembro 2022
RESUMO: O presente artigo se debruça sobre o espraiamento da ideologia neoliberal na sociedade contemporânea e seus impactos no mundo do trabalho, vislumbrando igualmente suas imbricações com a comunicação e a cultura do management. O objetivo é compreender como o ideário neoliberal tem se entranhado em diferentes âmbitos da vida cotidiana, chegando a constituir o que o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han cunhou como “sociedade do cansaço”. Nela, a produtividade é superlativa e causa adoecimento, a exemplo da Síndrome de Burnout. O objeto de estudo da pesquisa diz respeito ao portal Exame, principal mídia de negócios do Brasil, a partir de um recorte que considera tanto o conteúdo editorial sobre a Síndrome do Burnout quanto a iniciativa de marketing subjacente a esse tema. A partir de conteúdos selecionados, foram realizadas análises de modo a depreender a construção de opiniões e geração de sentidos que reforçam o ideário neoliberal e os pilares da sociedade da produtividade, outra nomenclatura utilizada por Han para identificar a chamada sociedade do cansaço.
PALAVRAS-CHAVE: Comunicação e trabalho, Burnout, Sociedade do Cansaço, Neoliberalismo, Cultura do management.
ABSTRACT: This article focuses on the spread of neoliberal ideology in contemporary society and its impacts on the world of work, also looking at the imbrications with communication and management culture. The objective is to understand how the neoliberal ideology has been ingrained in different areas of daily life, coming to constitute what the South Korean philosopher Byung-Chul Han coined as “the burnout society.” In it, productivity is superlative and causes illness, such as the Burnout Syndrome. The object of study of the research concerns the portal Exame, the main business media in Brazil, based on a clipping that considers both the editorial content on Burnout Syndrome and the marketing initiative underlying this theme. Based on the selected contents, analyzes were carried out to infer the construction of opinions and generation of meanings that reinforce the neoliberal ideology and the pillars of the productivity society, another nomenclature used by Han to identify the burnout society.
KEYWORDS: Communication and work, Burnout, The Burnout Society, Neoliberalism, Management culture.
RESUMEN: Este artículo se centra en la difusión de la ideología neoliberal en la sociedad contemporánea y sus impactos en el mundo del trabajo al analizar también las relaciones con la cultura de la comunicación y la gestión. Su objetivo es comprender cómo la ideología neoliberal se ha arraigado en diferentes ámbitos de la vida cotidiana y llega a constituir lo que el filósofo surcoreano Byung-Chul Han acuñó como “la sociedad del cansancio”. En esta, la productividad es superlativa y provoca enfermedades, como el síndrome de Burnout. Se utiliza como objeto de estudio el portal Exame, el principal medio de comunicación empresarial de Brasil, a partir de un clipping que considera tanto un contenido editorial sobre el síndrome de Burnout como una iniciativa de marketing subyacente a este tema. A partir de los contenidos seleccionados se realizaron un análisis para inferir la construcción de opiniones y generación de significados que refuercen la ideología neoliberal y los pilares de la sociedad de la productividad, otro término que utiliza Han para identificar a la sociedad del cansancio.
PALABRAS CLAVE: Comunicación y trabajo, Burnout, Sociedad del Cansancio, Neoliberalismo, Cultura de gestión.
INTRODUÇÃO
Sociedade do Cansaço ( 2017) e outros títulos de Byung-Chul Han ( 2021a, 2021b) muito nos interessam pelo vigor de diálogo que suscitam acerca de construção de opiniões e geração de sentidos no ambiente organizacional. Evidenciar as imbricações entre comunicação e trabalho é aspecto essencial para desvelar os meandros de um sistema de construção de opiniões e geração de sentidos que reforça o ideário neoliberal e valida os pilares que alicerçam a sociedade da produtividade, também identificada por Byung-Chul Han como “Sociedade do Cansaço”.
Este artigo tem como pano de fundo a evolução da cultura do management no Brasil, desde a segunda metade do século XX, com um olhar mais detido nos anos de 1990. É particularmente nessa década que a sociedade calcada na produtividade encontra terreno fértil no país, com forte impulsionamento por meio dos Think Tanks ideológicos e demais redes de construção de sentido, entre as quais os veículos de comunicação especializados em economia e negócios, a exemplo da revista Exame. Buscou-se, portanto, contribuir para a compreensão de como se deu no país o movimento de transmutação do paradigma baseado em controle, disciplina, coerção e negatividade em direção ao modelo pautado em desempenho, produtividade e em uma lógica de positividade superlativa e massificada, desencadeadora de uma violência sistêmica, da qual o burnout é apenas um sintoma.
Quatro partes compõem o presente artigo. Na primeira, adentra-se as teorias de Byung-Chul Han, de modo a compreender o conceito de Sociedade do Cansaço e do Desempenho, verificando suas origens, dinâmicas e consequências. Na segunda parte, busca-se apresentar uma contextualização histórica brasileira sobre o desenvolvimento do pensamento neoliberal e a disseminação de seu ideário por meio dos think tanks ideológicos. Já na terceira parte, procura-se igualmente o fio condutor histórico da evolução da cultura do management no Brasil e de que modo ela se espraia, excedendo as fronteiras do mundo corporativo para se instaurar em outros domínios, como o social e o cultural. Por fim, na quarta e última parte, procedeu-se a uma análise do portal Exame, visando identificar como pontos observados no arcabouço teórico podem ser percebidos na tratativa que essa mídia dá ao tema do burnout. Em virtude da atual realidade da marca Exame, além do recorte editorial, tivemos oportunidade de analisar também os esforços de construção de sentido da marca para reforçar vetores do ideário neoliberal em sua comunicação com o mercado.
SOCIEDADE DO CANSAÇO E DO DESEMPENHO
Byung-Chul Han, filósofo sul-coreano radicado na Alemanha, tem desenvolvido profícuo trabalho acerca da sociedade ocidental contemporânea, debruçando-se sobre os impactos de uma cultura pautada na produtividade exacerbada, no positivismo extremado e em um individualismo tóxico, apenas para citar alguns aspectos. Na perspectiva do estudioso ( HAN, 2017), o Ocidente vai se transformando na “Sociedade do Cansaço”, expressão que cunhou para contemplar o contexto do capitalismo no início do século XXI, incluindo aspectos deletérios da evolução técnica. Se por um lado a mídia digital e as redes sociais engendram novas fronteiras de interação e ação colaborativa, de outro, oportunizam efeitos indesejáveis e danosos, a exemplo da captação sub-reptícia de dados dos usuários, da manipulação via uso de algoritmos, clusters e robôs, bem como da proliferação de notícias falsas, as denominadas fake news.
Em Sociedade do Cansaço, ensaio publicado em 2017, Byung-Chul Han ( 2017) pontua o caminho percorrido desde o modelo foucaltiano de sociedade, no qual obediência e disciplina constituíam os vetores dominantes, até o contexto atual, caracterizado pela preponderância da produção e do desempenho.
A sociedade disciplinar de Foucault, feita de hospitais, asilos, presídios, quartéis e fábricas, não é mais a sociedade de hoje. […] A sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho. Também seus habitantes não se chamam mais “sujeitos da obediência”, mas sujeitos de desempenho e produção. São empresários de si mesmos.
( HAN, 2017, p. 24)Segundo o autor, na sociedade disciplinar imperam a negatividade, a proibição, o dever e a coerção. Se nessa conjuntura o verbo modal dominante é negativo e se reflete na expressão “não-ter-o-direito”, na sociedade do desempenho o modal positivo se traduz em “poder ilimitado”. Relembrando Barack Obama e o plural da afirmação “ Yes, we can”, Byung-Chul Han ressalta, nessa expressão, o caráter de positividade que caracteriza a sociedade de desempenho. Vale salientar que, de nossa parte, imputamos como espécie de corolário da ideologia neoliberal essa máxima proferida pelo ex-presidente norte-americano.
A sociedade do desempenho vai se desvinculando cada vez mais da negatividade. Justamente a desregulamentação crescente vai abolindo-a. No lugar de proibição, mandamento ou lei, entram projeto, iniciativa e motivação. A sociedade disciplinar ainda está dominada pelo não. Sua negatividade gera loucos e delinquentes. A sociedade do desempenho, ao contrário, produz depressivos e fracassados.
( HAN, 2021a, p. 24)O modal de “poder ilimitado” seria, por si só, a porta de entrada para o adoecimento, fruto da exaustão do fazer e do poder aos quais o sujeito se obriga. Isso porque, na sociedade do desempenho, a figura do “feitor” torna-se dispensável, uma vez que a pressão pela performance e pela produtividade está interiorizada, imbricando-se com o imperativo da obediência a si próprio. É na esteira dessa dinâmica que se avolumam os casos de depressão e esgotamento. Para o pensador sul-coreano, a síndrome do burnout “não expressaria o si-mesmo esgotado, mas antes a alma consumida” ( HAN, 2017, p. 27).
[…] o sujeito de desempenho se entrega à liberdade coercitiva ou à livre coerção de maximizar o desempenho. O excesso de trabalho e desempenho agudiza-se numa autoexploração. Essa é mais eficiente que uma exploração do outro, pois caminha de mãos dadas com o sentimento de liberdade. O explorador é, ao mesmo tempo, o explorado. Agressor e vítima não podem mais ser distinguidos. […] Os adoecimentos psíquicos da sociedade de desempenho são precisamente as manifestações patológicas dessa liberdade paradoxal.
( HAN, 2017, p. 30)No livro Favor fechar os olhos: em busca de um outro tempo, Han ( 2021a) traz a ideia de que o sujeito do desempenho nunca alcança um ponto de conclusão ou encerramento, mantendo-se em uma espécie de eterno presente contínuo. Trata-se de um estado permanente de prontidão, de um aprisionamento a um movimento que nunca se acaba, em uma dinâmica afeita à lógica neoliberal.
A sociedade do cansaço atual faz o próprio tempo de refém. Ela o acorrenta ao trabalho e o transforma em tempo de trabalho. O tempo do trabalho é um tempo sem conclusão, sem início e sem fim. Ele não exala [nenhum aroma]. A pausa não marca, como pausa do trabalho, um outro tempo. Ela é apenas uma fase do tempo de trabalho. Hoje, não temos nenhum outro tempo senão o tempo do trabalho. O tempo do trabalho se totaliza como o tempo.
( HAN, 2021a, p. 32, grifo do autor)A incapacidade de chegar a uma conclusão, de alcançar um encerramento, é um desencadeador do burnout, adoecimento que leva a pessoa a se consumir. Han observa que esse “tempo que se deixa acelerar”, no qual se produz muito e pouco se descansa, é o “tempo-do-eu”, o tempo que o indivíduo toma de si e, sem o qual, acaba por ressentir a falta de tempo. Há, contudo, o tempo do outro, que o autor considera uma dádiva, que não se deixa acelerar e pode ser libertador.
A política temporal do neoliberalismo desfaz o tempo do outro, pois ele não é eficiente. Em oposição ao tempo-do-eu, que isola e singulariza, o tempo do outro promove a comunidade. Apenas o tempo do outro liberta o eu narcisista da depressão e da exaustão.
( HAN, 2021a, p. 32, grifo nosso)O sono inquieto que acompanha o sujeito do desempenho é compreendido pelo filósofo como parte da engrenagem da “Sociedade do Cansaço”, porque as pessoas levam o tempo do trabalho para seu sono e suas férias. O relaxamento seria tão somente um canal para a regeneração da força de trabalho. A recuperação não seria uma outra face, que se distingue do trabalho, mas produto deste.
Em outro ensaio, também de 2021, Sociedade Paliativa ( HAN, 2021b), o autor trata da algofobia, que se apresenta como uma angústia generalizada diante da dor. Assim, dentro da positividade que caracteriza a Sociedade do Cansaço, não há espaço para o que pode vir a provocar dor. Esta é evitada a todo o custo. Nesse caldo, surgem a coação à conformidade, a pressão por consenso e a aversão a conflitos e controvérsias que poderiam resvalar em confrontos dolorosos ( HAN, 2021b, p. 10).
Vivemos em uma sociedade da positividade, que busca se desonerar de toda forma de negatividade. A dor é a negatividade pura e simplesmente. […] Pensamentos negativos devem ser evitados. Eles devem ser substituídos imediatamente por pensamentos positivos. A psicologia positiva submete a própria dor a uma lógica de desempenho. A ideologia neoliberal da resiliência transforma experiências traumáticas em catalisadores para o aumento de desempenho.
( HAN, 2021b, p. 11–12)Esse contexto dá ensejo ao que Byung-Chul Han chama de “sociedade paliativa”. Ela não está dissociada da sociedade do desempenho. Ao contrário, plasma-se a ela. De toda forma, a denominação serve para particularizar outros aspectos inerentes ao contexto ocidental pós-moderno.
A sociedade paliativa é uma sociedade do curtir. Ela degenera em uma mania de curtição. Tudo é alisado até que provoque bem-estar. O like é o signo, sim, o analgésicodo presente. Ele domina não apenas as mídias sociais, mas todas as esferas da cultura. Nada deve provocar dor. […] a própria vida tem de ser instagramável, ou seja, livre de ângulos e cantos, de conflitos e contradições que poderiam provocar dor. […] Falta, à cultura da curtição, a possibilidade da catarse.
( HAN, 2021b, p. 14, grifo do autor)A pressão de se sentir e de ser feliz constituiria, sob o ponto de vista do ensaísta, uma nova forma de dominação. Ademais, o regime neoliberal também se revestiria de uma positividade para desacoplar o poder da dor. Haveria, segundo Han, um poder smart, que obtém a submissão sem ter de lançar mão da coerção que ocorria na sociedade da obediência. A tática agora passa por uma construção sedutora, que incute nos sujeitos o ideal da auto-otimização e da autorrealização. E é dessa forma que “o dispositivo de felicidade neoliberal nos distrai do sistema de dominação” ( HAN, 2021b, p. 27).
A sociedade paliativa despolitiza a dor ao medicalizá- la e privatizá-la. É oprimida e reprimida, assim, também a dimensão social da dor. […] O cansaço na sociedade do desempenho neoliberal não é político porque representa um cansaço-do-Eu. Ele é um sintoma do sujeito do desempenho sobrecarregado e narcísico. Ele individualiza as pessoas, em vez de ligá-las em um Nós. […] O cansaço-do-Eu é a melhor profilaxia contra a revolução.
( HAN, 2021b, p. 30–31, grifo do autor)IDEÁRIO NEOLIBERAL E THINK TANKS IDEOLÓGICOS
O pensamento de Byung-Chul Han analisado até aqui nos permitiu divisar essa lógica de dominação subjacente ao ideário neoliberal e engendrada de tal modo que os sujeitos acabam por atuar como seus próprios algozes. Ensimesmados e incentivados a um embotamento narcísico, eles se veem enredados por um sistema que faz da positividade um elemento tóxico, perverso e que produz adoecimento.
Passemos agora a uma breve análise de como esse ideário se espraiou ao longo do tempo. Não há dúvidas de que os próprios modelos de gestão fazem sua parte na difusão de princípios do neoliberalismo, mas aqui queremos nos debruçar sobre mecanismos que tiveram papel essencial na construção de opiniões e na geração de sentidos que moldaram a sociedade da produtividade – ou, conforme Byung-Chul Han, a adoecida Sociedade do Cansaço. Estamos nos referindo aos Think Tanks ideológicos.
O conceito de think tank nasce nos primórdios do século XX e vai se transformando ao decorrer do tempo, desaguando em um modelo de cunho mais ideológico, aderente aos interesses do pensamento e das práticas neoliberais. Cabe aqui um parêntese: em crise desde meados do século XIX, o liberalismo dogmático enfrentou nos primeiros anos do século XX o surgimento de dois movimentos, posteriormente denominados Novo Liberalismo e Neoliberalismo. O que coloca em crise o liberalismo dogmático, assentado na doutrina do laissez-faire, ou seja, da não intervenção estatal, é justamente “a necessidade prática de uma intervenção governamental para fazer frente às mutações organizacionais do capitalismo”, isso porque vivia-se um momento de nova composição de forças internacionais, aliado a um movimento de conflito de classes que poderia ser uma ameaça ao ideário de propriedade privada ( DARDOT; LAVAL, 2016, p. 38).
A tensão entre dois tipos de liberalismo, o dos reformistas sociais que defendem um ideal de bem comum e o dos partidários da liberdade individual como fim absoluto, na realidade nunca cessou. Essa dilaceração que reduz a unidade do capitalismo a um simples mito retroativo constitui propriamente essa “crise do liberalismo” que vai dos anos 1880 aos anos 1930 e que pouco a pouco vê a revisão dos dogmas em todos os países industrializados […]. [Essa revisão] forma o contexto intelectual e político do nascimento do neoliberalismo na primeira metade do século XX.
( DARDOT; LAVAL, 2016, p. 37–38)De um lado, o Novo Liberalismo advogava que as agendas do Estado deveriam extrapolar os limites do dogmatismo do laissez-faire, reexaminando componentes jurídicos, políticos, econômicos, morais e sociais, de modo a permitir a constituição de uma “sociedade de liberdade individual, em proveito de todos” ( DARDOT; LAVAL, 2016, p. 69). De outro lado, o Neoliberalismo se firmava como espécie de decantação do Novo Liberalismo, defendendo uma proposta mais contundente em termos de intervenção econômica e reforma social.
[…] ainda que admitam a necessidade de uma intervenção do Estado e rejeitem a pura passividade governamental, os neoliberais opõem-se a qualquer ação que entrave o jogo da concorrência entre interesses privados. A intervenção do Estado tem até um sentido contrário: trata-se não de limitar o mercado por uma ação de correção ou compensação do Estado, mas de desenvolver e purificar o mercado concorrencial por um enquadramento jurídico cuidadosamente ajustado. Não se trata mais de postular um acordo espontâneo entre os interesses individuais, mas de produzir as condições ótimas para que o jogo de rivalidade satisfaça o interesse coletivo.
( DARDOT; LAVAL, 2016, p. 69)Assim, observam os autores, o neoliberalismo combinaria a reabilitação da intervenção pública com uma concepção de mercado centrada na concorrência. Esta, por sua vez, constituiria o princípio central da vida social e individual, permitindo reconhecer que “a ordem de mercado não é um dado da natureza, mas um produto artificial de uma história e de uma construção política” ( DARDOT; LAVAL, 2016, p 70).
Voltemos agora aos think tanks a partir dos estudos de Daniel Reis Silva ( 2017, 2018), que nos ajuda a compreender o universo dessas organizações políticas independentes surgidas no início do século XX, tanto na Europa como nos Estados Unidos. Sem fins lucrativos e não pautadas por interesses privados, tinham por finalidade influenciar o processo de elaboração de políticas públicas. Não cabe aqui um detalhamento do amplo enfoque adotado pelo autor, mas tão somente um sobrevoo que nos permita compreender o processo inicial dos think tanks e a posterior apropriação do conceito para o manejo de temas e para a realização de articulações em favor dos interesses de grupos hegemônicos e conservadores.
A partir da produção de conhecimento e ideias calcados na objetividade científica e no saber de especialistas, os think tanks originalmente promoviam a condução e a disseminação de estudos e pesquisas, fomentando o debate teórico de modo a contribuir para a solução de problemas e a articulação de políticas públicas. Dessa maneira, buscavam “maximizar sua credibilidade e [ampliar] o acesso político como forma de influenciar tomadas de decisão e enquadrar aspectos do debate público” ( SILVA, 2017, p. 127). Vale ressaltar que essas organizações não atuavam no sentido de promover ou ampliar a visibilidade de seus financiadores, constituídos por filantropos e empreendedores capitalistas.
Ainda que os think tanks tivessem como principal palco os Estados Unidos, foi no Reino Unido que surgiu inicialmente sua versão ideológica, com a criação em 1955 do Institute for Economic Affairs (IEA). Conforme nos relata Silva, o modus operandi desse think tank ideológico guardava semelhanças com atividades de relações públicas, com uma sistemática que incluía a persuasão de jornalistas e formadores de opinião. “O IEA não procurava encontrar verdades científicas por meio de novos estudos – ele já possuía uma posição, e seu objetivo era vender aquele ideal para a sociedade britânica” ( SILVA, 2018, p. 7).
Se o IEA foi pioneiro, a eclosão efetiva da vertente ideológica ocorreu a partir dos anos 1970, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa. Na esteira do que poderíamos chamar de primeira geração de think tanks, a nova versão se aproveitava da aura de independência e isenção das organizações pioneiras para transmitir uma pretensa ideia de neutralidade e cientificidade, quando, na realidade, atuava como centro do pensamento libertário e conservador ( SILVA, 2018, p. 8), de cunho neoliberal.
Em outro trabalho, ao abordar as práticas indiretas de influência sobre a opinião pública engendradas por organizações privadas por meio dos think tanks ideológicos, Silva ( 2020) discorre acerca do financiamento e da criação de institutos e atores sociais supostamente independentes e neutros, mas voltados à influência da opinião pública e dos meios de comunicação. Por trás dessa trincheira, haveria uma verdadeira “artilharia” de relações públicas, com estratégias multifacetadas “que operam com o apagamento de interesses privados e revestem discursos corporativos com novas roupagens simbólicas que ocultam sua origem e aumentam a capacidade de influenciar a opinião pública e os media” ( SILVA, 2020, p. 35).
No Brasil, a intensificação dos think tanks ideológicos se deu a partir dos anos de 1990. Antes disso, já haviam chegado ao país outras iniciativas mais afeitas à primeira geração de think tanks, a exemplo da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas 1 (FGV EAESP), criada em 1954 com a colaboração da Michigan State University. Acentua-se também na última década do século XX a presença de empresas de executive search2, nas quais atuam headhunters, os chamados “caçadores de talentos”, incensados como formadores de opinião e direcionadores de tendências para o mercado de trabalho. Nessa mesma época, cresceu o número de eventos envolvendo gurus internacionais, contratados para difundir tendências e regras de atuação em um mundo cada vez mais tecnológico e globalizado.
Igualmente nesse período, grandes firmas de gestão empresarial reforçaram seus trabalhos no Brasil, contribuindo para difundir preceitos alinhados ao pensamento dominante. Ademais, processos de reestruturação e reengenharia criaram demanda para agências de emprego e consultorias de recrutamento, de seleção e recolocação profissional, sem contar a expansão do mercado para fornecedores de soluções de treinamento e desenvolvimento. Trata-se de um universo embebido no caldo cultural do neoliberalismo, a serviço de seu ideário e que, simultaneamente, opera e reforça seus preceitos.
Dentro das organizações, novas práticas de gestão foram se impondo, e a dinâmica intra e extramuros acelerou o processo de enquadramento de corações e mentes, sequestrando subjetividades. O mercado editorial de negócios conheceu grande expansão, assim como a mídia especializada na área, inclusive com o lançamento em 1998 da revista Você S/A, cujo próprio título denota aspectos do ideário neoliberal.
CULTURA DO MANAGEMENT
Neste ponto, lançamos nosso olhar sobre a cultura do management, que apresenta imbricações com os think tanks ideológicos. Tomamos por base estudo realizado por Cristina Trindade Ituassu e Maria José Tonelli ( 2014), no qual as pesquisadoras buscam mostrar como os fundamentos do mundo dos negócios ultrapassaram o âmbito econômico para se disseminar como modelo de conduta nas esferas da vida social. Assim, as modernas práticas de gestão e de organização do trabalho, bem como a lógica que lhes é subjacente, acabam por compor um ideário que se infiltra em diferentes domínios, constituindo a cultura do management. Para a dupla, trata-se de um fenômeno que a globalização só fez reforçar.
[a cultura do management pode] ser definida como um conjunto de pressupostos compartilhados nas empresas e, em boa medida, no tecido social, dentre os quais se encontram: a crença na sociedade de livre mercado; a visão do indivíduo como empreendedor individual; o culto da excelência, para o aperfeiçoamento individual e coletivo; a exaltação de figuras emblemáticas (gerentes-heróis, gurus), símbolos ou palavras de efeito (inovação, excelência, sucesso), além de tecnologias para racionalizar atividades organizacionais grupais.
( ITUASSU; TONELLI, 2014, p. 88)As autoras apontam três fenômenos que podem ser identificados como parte e/ou impacto da cultura do management, a começar pelo gerencialismo, que pressupõe a colonização de vários domínios pelo discurso da gerenciabilidade. Nessa perspectiva, a empresa “deixa de ser apenas uma entidade econômica para se tornar, de certa forma, o modo como aspectos da vida econômica, social e cultural devem ser problematizados e programados” ( ITUASSU; TONELLI, 2014, p. 88).
Já o segundo fenômeno diz respeito à cultura do empreendedorismo, com o imperativo da gestão de si e a valorização de uma certa atitude empresarial, envolvendo características como perseguir metas, ter ousadia, obter sucesso e apresentar disposição para correr riscos. Vigor, energia e autoconfiança fazem parte dos ingredientes requeridos. A lógica pressupõe que cabe a cada um fixar seus objetivos, gerir o desempenho e assumir responsabilidade integral sobre a gestão de sua vida. Nesse ponto, as pesquisadoras destacam o fato de o sucesso e o fracasso serem vistos como fruto de ações e decisões exclusivamente individuais, independentemente de fatores como origem social, oportunidades de vida etc. O empreendedorismo consistiria, assim, “num sistema de ideias, crenças, tradições, princípios e mitos próprios, sustentado por diferentes grupos sociais (no caso do Brasil, governos, universidades e incubadoras de empresas, por exemplo)” ( ITUASSU; TONELLI, 2014, p. 89).
Como terceiro fenômeno associado à cultura do management, o artigo menciona o culto da performance, algo que tem a ver com o culto da excelência, imprimindo a essa última a dinâmica da continuidade, de uma ação em curso, que não se completa, pois se prolonga no tempo. Assim, o culto à performance teria conferido à excelência uma espécie de movimento permanente.
[No caso da excelência,] não se trata mais de um valor durável ou um atributo superior, mas de um estado nunca definitivo ou uma sequência sempre ascendente de posições, numa espécie de esquizofrenia coletiva em que o risco de ser superado está constantemente à espreita. Nesse regime, a excelência é apresentada como modelo total, guia para levar a empresa à perfeição, implicando o conjunto de atores e suas funções. É a procura de um absoluto que se trata de realizar no trabalho. A gestão das empresas e a gestão de si mesmo obedecem, assim, às mesmas leis: não basta ser rentável ou viável, é preciso estar na frente, ser mais rápido, mais ativo, mais preciso, mais concreto. Um vencedor deve ser o melhor e tudo vale para atingir essa meta.
( ITUASSU; TONELLI, 2014, p. 89)O estudo traz evidências empíricas da nova ordem estabelecida no Brasil pela cultura do management. Para tanto, analisa a abordagem do tema “sucesso” pela Exame, principal publicação de negócios do Brasil, desde a criação da revista, em 1971, até o ano de 1998. Não se faz necessário descortinar neste artigo detalhes da pesquisa, mas vale aqui destacar, em linhas gerais, alguns importantes achados, a começar pela constatação de que, no país, a mídia de negócios teve contribuição relevante para a formação e difusão da cultura do management, notadamente do modelo de sucesso norte-americano, pautado no culto à personalidade.
[…] o exame dos editoriais sinalizou que o tema sucesso se valorizou nos últimos anos da análise e passou a se descolar das organizações, para focar as pessoas. Nos anos 90, elas se tornam alvo das atenções, que deixam de se concentrar nas empresas. O sucesso, então, acompanha esse deslocamento e passa a ser mais individual que organizacional. Para isso, no entanto, coube ao indivíduo assumir determinadas posturas e desenvolver certos traços, que a análise das reportagens ajudou a entender, ao tornar nítidas as características do bem-sucedido que a revista apresenta.
( ITUASSU; TONELLI, 2014, p. 106)Ituassu e Tonelli observam que o modelo de sucesso difundido pela revista não é natural, tendo sido construído historicamente, espraiando-se pelo país a partir da ação de agentes como empresas de consultoria, gurus empresariais, escolas de negócios e a mídia. As autoras concluem que, mesmo desvinculado de aspectos como altas posições hierárquicas ou altas remunerações, o sucesso continua conectado ao universo corporativo, evidenciando a cultura do management ( ITUASSU; TONELLI, 2014, p. 106).
BURNOUT E A MÍDIA DE NEGÓCIOS
Em dezembro de 2019, o banco de investimentos BTG Pactual adquiriu do Grupo Abril a marca Exame, em transação envolvendo a revista de mesmo nome, considerada a mais importante mídia de negócios do país, além de ativos digitais e a área de eventos dedicados a negócios e mercado financeiro, conforme informação publicada pelo Meio & Mensagem ( RIBEIRO, 2019). Em leilão, o banco de investimentos foi o único interessado a se habilitar dentro do prazo, arcando com o lance mínimo de R$ 72,3 milhões ( RIBEIRO, 2019).
O BTG Pactual intenciona transformar a marca numa plataforma de conteúdo financeiro, no mesmo modelo que a XP Investimentos gere a InfoMoney, que a Creditas faz com a Exponencial e o C6 Bank com o Seis Minutos. Foi o fundo Enforce, ligado ao BTG, que adquiriu a dívida da Abril junto à compra de ativos pela Cavalry Investimentos, de Fábio Carvalho.
( RIBEIRO, 2019)Quando vendida, a Exame contava com quase 50 anos de existência, criada e desenvolvida em uma empresa do ramo editorial. Já nas mãos do BTG, poucos meses após a compra, os planos para a marca haviam se alterado. Artigo veiculado pela revista Propaganda e Marketing ( PropMark), em março de 2020, traz entrevista com Pedro Thompson, CEO da Exame ( OLIVEIRA, 2020). Abaixo, algumas de suas declarações:
A Exame hoje não é mais uma empresa editorial. É uma empresa de conteúdo, mas principalmente de tecnologia. […] o core business da Exame é ser uma empresa de tecnologia e isso não só no sentido de produto, mas do perfil das pessoas, de cultura organizacional, agilidade etc. […] É algo disruptivo, para quem estava acostumado a ver uma revista e um site extensivo, é uma guinada. Estamos fazendo a transformação de uma marca que existe há 52 anos e teve a sorte de ser adquirida por uma companhia que quer transformar.
( OLIVEIRA, 2020)Sob nova gestão, a marca agregou ao negócio editorial outras três frentes de atuação: a Exame Academy, a Exame Experience e a Exame Research. Enquanto essas duas últimas referem-se a eventos (Experience) e à assessoria e recomendação de investimentos (Research), a primeira está voltada à educação executiva. Esta nos interessa de perto, dado o objeto de estudo a que nos propusemos.
Ainda no âmbito da matéria da revista Propaganda e Marketing, destacamos mais uma fala do CEO da Exame, quando comenta sobre as unidades de negócio da marca:
A principal delas continua a ser o bom jornalismo, obviamente que estamos mudando muita coisa no sentido de experiência, com um site mais responsivo e principalmente um conteúdo que transmita sabedoria prática e não conteúdo demasiadamente filosófico ou intelectualizado, mas conteúdo prático de coisas que estão acontecendo em nossa rotina. Vamos falar muito de empreendedorismo, tecnologia, gestão, de negócios, carreira, lifestyle e macroeconomia. Esse é o core da companhia.
( OLIVEIRA, 2020)Trata-se, sem dúvida, de uma fala impregnada por um léxico, uma abordagem e um ponto de vista alinhados ao ideário neoliberal. Ainda que este não seja o recorte desta pesquisa, é um aspecto importante para nossa análise, visto que, nas circunstâncias comentadas pelo executivo, o jornalismo se torna um produto não apenas a serviço da ideologia dominante, mas uma produção direta de um agente financeiro, tal qual outros exemplos explicitados anteriormente.
Nosso levantamento de matérias do portal Exame se concentrou no período de 9 de dezembro de 2021, quando da publicação da matéria “Burnout vira doença do trabalho em 2022. O que muda agora?” ( GRANATO, 2021a), a 2 de fevereiro de 2022, data na qual foi ao ar conteúdo intitulado “Pesquisa revela o estilo da chefia ‘anti-burnout’” ( GRANATO, 2022b). Uma busca pela palavra-chave “burnout” no portal traz, no período imediatamente subsequente a seu anúncio como doença do trabalho, 15 citações, ainda que nem todas elas tratem diretamente do assunto. Isso se deu porque a busca indica igualmente páginas onde houve a inserção de link que leva ao curso “Mente em foco: investindo em sua saúde para alcançar o seu potencial”, 3 iniciativa da Exame Academy.

Observa-se que nas matérias relacionadas com os números 03 ( GRANATO, 2021c), 04 ( ROVAROTO, 2021), 09 ( FLANAGAN, 2022) não é citado o termo “burnout” no corpo da matéria. Contudo, a busca traz esses titulos por conta do anúncio do curso da Exame Academy, que aproveita o tema da reportagem para realizar ação de marketing. A de número 10 ( GRANATO, 2022a) não apresenta o anúncio, mas conta com dois links para a matéria 01 ( GRANATO, 2021a), essa sim com link de propaganda da iniciativa da Exame Academy. A reportagem 07 ( KRAUSZ, 2022) faz uso do termo, mas como figura de linguagem: “Se o ESG fosse uma pessoa, diante de tanto trabalho, certamente já estaria à beira do burnout” ( KRAUSZ, 2022).
Para efeito de uma análise mais minuciosa, nossa escolha recaiu na matéria intitulada “Pesquisa revela o estilo da chefia ‘anti-burnout’”, de Luísa Granato ( 2022b), publicada no portal Exame, em 3 de fevereiro de 2022, evidenciada no Quadro 1 sob o nº 16 (e disponível também na Figura 1).
A publicação é, portanto, posterior à data em que a síndrome do burnout passou a ser considerada doença do trabalho, conforme resolução da Organização Mundial da Saúde (OMS), que entrou em vigor em 1º de janeiro de 2022 ( GRANATO, 2021a).
A matéria trata de um estudo global da Goethe University, da Alemanha, publicado no International Journal of Environmental Research and Public Health no final de 2021. Segundo a reportagem, a pesquisa buscava descobrir se é possível que os chefes consigam proteger seus funcionários da síndrome do burnout. Por ser um fenômeno ligado ao trabalho, encontrar uma solução dentro do ambiente corporativo, centrada na figura da chefia, é o foco do novo estudo ( GRANATO, 2022b).
[o estudo] percebeu que globalmente há uma ligação entre o estilo de liderança por identidade compartilhada e a redução do risco de Burnout. Ao analisar as respostas de trabalhadores por anos, foram observados níveis reduzidos de esgotamento onde havia níveis mais elevados do sentimento de identidade coletiva. A conclusão é que a percepção de pertencimento a um coletivo é benéfica para a saúde e bem-estar. E não foram encontradas evidências de que um exagero no estilo de liderança possa ter um efeito contrário: quanto mais o chefe estimular o grupo, melhor.
( GRANATO, 2022b)Sob o subtítulo “A solução é mais embaixo”, a matéria afirma que focar na alta gestão para prevenir o burnout não traria tanto efeito quanto endereçar a questão para as lideranças mais próximas, cuja ação e influência podem produzir melhor efeito.
Se engana quem acha que é necessário ter muito poder para que esse estilo de liderança surta efeito. Na verdade, focar na diretoria e no CEO é só uma parcela da solução. A identidade social é diferente da cultura da empresa. Mesmo que o presidente venda os valores da empresa, o gestor direto é quem vai moldar os comportamentos e atitudes da maior parcela da empresa. O nível da média gerência é quem tem mais capacidade de proteger a equipe do estresse – e também é quem mais recebe pressão por resultados.
( GRANATO, 2022b)Há, ainda, uma declaração da pesquisadora Joana Story, professora de gestão da Fundação Getulio Vargas (FGV), que participa do estudo como representante do Brasil: “saber que tem alguém lutando por você dá segurança psicológica. E o líder pode servir de amortecedor para o estresse e a pressão” ( GRANATO, 2022b).
Nessa matéria, podemos perceber que, se o burnout não pode mais ser terceirizado como assunto de responsabilidade direta do sujeito acometido pelo adoecimento, uma vez que a síndrome já é considerada doença do trabalho, agora a questão passa a ser do líder imediato. A síndrome se torna problema gerenciável, distante da gestão estratégica exercida pela alta cúpula, atribuída agora como incumbência da média liderança, que tem ação mais tática – e, como ressalta a própria reportagem, esses são os profissionais que recebem maior pressão por resultado.
Vale notar como a matéria que pode ser identificada na Figura 2 se apropria de uma roupagem de cunho científico para delimitar o tema do burnout como algo que demanda puramente um ajuste administrativo e uma ação do gestor médio para inspirar a equipe e criar o senso de identidade e pertencimento. Fala-se, igualmente, sobre a necessidade de adequação de recursos – palavras ao vento, se levarmos em conta que a tônica das empresas tem sido fazer mais com menos.
Ainda que nosso interesse inicial tenha sido o de verificar a tratativa do tema “burnout” editorialmente, chamou nossa atenção o fato de as matérias apresentarem links que dialogavam com o conteúdo e, de certa forma, se colocavam como solução para os problemas tratados no editorial. Um claro exemplo disso é, por ocasião do primeiro levantamento realizado, ao acessarmos a matéria “Pesquisa revela o estilo da chefia ‘anti-burnout’” ( GRANATO, 2022b), termos nos deparamos com o link “Cansaço? Estafa? Burnout? A EXAME te ajuda a resetar sua mente: clique e descubra como”, no mais direto recurso de marketing de chamamento à ação (“ Call to Action”).
O referido link direciona o internauta para um curso da Exame Academy, e aqui é interessante verificar como essa área de educação continuada se apresenta. Podemos observar que o léxico subjacente à cultura neoliberal se faz presente, E caracteriza exatamente o aspecto do inacabado que Byung-Chul Han aborda, qual seja: o permanente estado de incompletude. Ideias e expressões como “acelerar o desenvolvimento”, “mundo demandando cada vez mais novas habilidades e competências” e “ritmo acelerado de aprendizagem constante” compõem a gramática e o léxico do pensamento neoliberal, focado no indivíduo – tanto que, no próprio slogan da academia, o convite é direto: “invista seu tempo em você”.
Na Exame gerida pelo BTG Pontual, a solução para quem está cansado, estafado e com burnout é a realização do curso “Mente em foco: investindo em sua saúde para alcançar o seu potencial” ( Figura 3). O convite é de cunho individual, para que o sujeito resolva um problema que não seria do sistema, mas inerente a ele, inferindo que este precisa estar conectado com a própria saúde mental, no desejo e na ação de mantê-la sã.

No marketing do curso, o convite é para que o indivíduo aproveite a oportunidade de superar os principais males do mundo moderno, como se a ansiedade, a depressão e o estresse nada tivessem a ver com uma sociedade voltada ao desempenho superlativo, em estruturas empresariais enxutas, condições de trabalho precarizadas, entre outros fatores que se reproduzem na lógica do capital neoliberal.
No discurso de convencimento aos possíveis interessados, , endossado no quadro da Figura 4 mais uma vez a questão é colocada como sendo do indivíduo, e a saída para ser um vencedor é o autoconhecimento, uma vez que todas as conquistas ou falta delas estariam ligadas a esse fator. O curso se propõe a ensinar como lutar contra crenças limitantes e pontos fracos. A promessa é a de um aprendizado para que o profissional possa usar a personalidade a seu favor, de modo a aumentar a produtividade e ganhar mais dinheiro.

A cultura do management está impregnada tanto no editorial da Exame, quanto em seu negócio de educação continuada. A gestão do negócio em si, feita por um banco de investimento, acaba por comprometer a independência do veículo.
Como ensina Luiz-Alberto de Farias ( 2019), em seu livro Opiniões voláteis: opinião pública e construção de sentido, ações orquestradas com vistas à persuasão são determinantes na formação de opiniões majoritárias/consensuais.
A construção da realidade se dá de acordo com a capacidade de cada pessoa enxergar a partir de suas lentes pessoais e sociais, de seus óculos filtrantes da realidade, de seus filtros, pela polifonia presente nos diversos tempos e espaços a que estamos sujeitos. Essa realidade também é devidamente filtrada pela conveniência e interesse de cada qual, responsáveis por modular essas lentes, de fazer enxergar aspectos e espectros mais convenientes para si. Opiniões, muitas vezes, são construídas mais pelo interesse e pelas impressões que pela observância da realidade.
( FARIAS, 2019, p. 21)CONSIDERAÇÕES FINAIS
A primeira leitura dos ensaios de Byung-Chul Han pode trazer desconforto. Isso porque vamos nos dando conta de como o ideário neoliberal está entranhado na sociedade e em cada um de nós, fazendo com que normalizemos o que não é, absolutamente, passível de ser normatizado. Imersos na lógica dominante, vamos nos acostumando com o léxico, com as ideias e com as ideologias de uma comunicação minuciosa e estrategicamente trabalhada com o objetivo de construir opiniões e gerar sentidos que nos façam anuir com o pensamento hegemônico.
Reconstruir os passos da história de modo a compreender os desdobramentos que vivemos hoje é fundamental para encontrar caminhos de ruptura e de transformação. O presente artigo buscou contribuir nesse sentido, agregando ao estudo da instigante obra de Byung-Chul Han um panorama histórico do surgimento e da disseminação do liberalismo, lançando um olhar sobre como esse sistema avançou – e tem avançado – no Brasil. Ao optar pelo portal Exame como objeto de estudo, a partir do recorte do tema burnout, buscamos destacar como os processos de construção de opiniões e gerações de sentido permanecem vigorosos, em prol de uma ideologia neoliberal que tem aprofundado a desigualdade social e que, do ponto de vista da maioria das pessoas, vem gerando sofrimento e adoecimento. Se já existia a preocupação com a influência dos think tanks ideológicos nos meios de comunicação, o que dizer quando um banco de investimentos se torna proprietário da principal mídia de negócios do país? Isso porque, neste nosso artigo, sequer adentramos em outras questões que tornam ainda mais intrincado esse cenário, a exemplo das mídias sociais, dos clusters e dos algoritmos, que amplificam o poder de repercussão de ideias, não raro de forma temerária e arriscada.
Entendemos haver espaço para aprofundar as reflexões aqui delineadas, de modo a estabelecer conexões que colaborem para ampliar a nitidez e o alcance do retrato que buscamos compor. Este artigo é nossa breve contribuição para um debate que consideramos absolutamente necessário e premente.
REFERÊNCIAS
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FARIAS, Luiz-Alberto de. Opiniões voláteis: opinião pública e construção de sentido. São Bernardo do Campo: Metodista, 2019.
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Notas
FARIAS, L. A.; KÜNSCH, D. A.; AIELLO, T. R. Sociedade do cansaço e ideário neoliberal: a abordagem do tema burnout em mídia de negócios no Brasil. Signos do Consumo, São Paulo v. 14, n. 2, p.1-18, jul./dez. 2022.
Autor notes
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