Resumo: A literatura tradicional percebe o Direito Internacional como instrumento para a Paz. Todavia, a imaginação institucional do processo de integração europeu repropôs esse objetivo. O estudo empírico qualitativo de fontes primárias permite concluir que a origem da integração europeia se orientou para juridificar os conflitos políticos internacionais no sentido de recusar o conflito armado (rejeição da Guerra) e fomentar o conflito não-armado (rejeição da Paz).
Palavras-chave: Guerra e PazGuerra e Paz,Verittà effetualeVerittà effetuale,Integração europeiaIntegração europeia.
Abstract: Traditional scholarship regards International Law as a tool for Peace. However the institutional design of the European Integration reshapes this goal. The qualitative empirical qualitative analysis of primary sources enables to perceive that the origin of European integration was driven by the juridification of international political conflicts in order to refuse armed conflicts (refusal of War) and to foster non-armed conflicts (refusal of Peace).
Keywords: War and Peace, Verittà effetuale, European integration.
Artigos
Verità Effetuale e Paz no Direito da Integração Europeia
Verità effetuale and peace in European integration law
Recepção: 22 Novembro 2016
Aprovação: 09 Abril 2017
O tema da construção da Paz e de sua manutenção durável por meio de regras jurídicas internacionais é um dos principais e mais tradicionais estudos em Direito Internacional (CASELLA, 2008: 39 e 215-6). Sejam ou não temas privilegiados de estadistas ( FREUD, 2005 : 42) - ainda que orientados secretamente pela oitiva da livre manifestação da razão de filósofos ( KANT, 2010 : 83-5) 1 , a implantação e a garantia de uma Paz por meio da regulação jurídica internacional encontram ressonância em preocupações teóricas e aplicadas nos estudos em Direito ( KELSEN, 2011 ).
A experiência do Saber em Direito Internacional mostra ter sido constantemente exercida no âmbito da razão pura no sentido de compreender e encontrar condições de possibilidade que assegurassem o estabelecimento de relações pacíficas entre os Estados 2 . No âmbito da razão prática, os estudos em Direito Internacional se dirigiram à proposição de desenhos institucionais voltados à construção da Paz e à compreensão dos limites de tais arranjos que justificassem o fracasso ou a não-durabilidade dos regimes instituídos 3 .
Fosse por mecanismos (i) jurídico-econômicos (CASELLA, 2000; DURAN, 2013 ; FARIA, 2008 ; MILHAUD, 1926 ), (ii) jurídico-políticos constitucionalistas ( DEHOUSSE, 2002 ; FERRAJOLI, 2007 ; MARZOUKI, 2012 , 2013, 2014; PIZZOLO, 2014 ), ou (iii) jurídico-jurisdicionais ( DELMAS-MARTY, 2004 ; KELSEN, 2011 ), o Direito Internacional se renovaria continuamente para estabelecer parâmetros para a construção e a manutenção da Paz ( VERDROSS, 1929 : 502). Co-existência e cooperação 4 seriam, assim, modelos históricos de arranjos institucionais imaginados e praticados de acordo com a linguagem do Direito Internacional como respostas históricas a guerras e como promessas institucionais de reestruturação jurídica das relações internacionais em conformidade com discursos de Paz (CASELLA, 2008: 221).
Todavia, a experiência histórica da integração europeia parece ter deflagrado uma inflexão prática nos estudos sobre o papel do Direito Internacional na construção da Paz. Se desde o início desse processo de integração europeu não se verificaram mais Guerras entre os países daquele continente, não se pode ignorar que a origem institucional dessa integração era consciente (i) dos limites de se compreender a Paz como a missão do Direito Internacional, e (ii) da importância de a substituir pela ideia de juridificação dos conflitos políticos.
A partir de uma análise qualitativa de fontes primárias (documentos históricos relacionados à origem da integração europeia e o Tratado de Paris de 1951) e de fontes secundárias (revisão bibliográfica sobre a origem da integração europeia), argumenta-se que a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA) se orientou institucionalmente para afastar, ao mesmo tempo, a possibilidade de eclosão de Guerra e de instauração da Paz. Entende-se que a construção do arranjo jurídico originário dessa Organização Internacional se voltara à criação de condições de possibilidade para uma vida Política na Europa a partir do reconhecimento jurídico da veritá effetuale europeia e de sua adequada articulação normativa no interior do processo de integração.
O presente texto se desenvolve em 3 (três) movimentos lógicos principais.
Em primeiro lugar, apresenta-se a noção de verità effetuale maquiaveliana (2.1) para, em seguida, compreender o papel do Direito na recepção e na reprodução institucionais da inevitabilidade de tensões políticas permanentes (juridificação da Política) (2.2). Em segundo lugar, a partir da identificação da verità effetuale europeia do início do século XX extraída do exame de elementos históricos legados por documentos relacionados à CECA e pela respectiva historiografia (3.1), será apresentada uma reflexão jurídico-política sobre a inflexão que a origem da integração europeia produziu na compreensão do Direito Internacional no período, o que será feito por meio de uma interpretação sumária de dispositivos normativos do desenho institucional estruturado em seu Tratado Constitutivo (3.2). Em terceiro lugar, será apresentada a compreensão de que, ao seguir os princípios de um Direito Político por meio da linguagem não-coercitiva do Direito Internacional, o arranjo institucional da CECA criou um Direito Internacional fundamentalmente Político, ao mesmo contrário à Guerra e contrário à Paz - um Direito Político Internacional (4.).
Pretende-se com isso argumentar que a CECA pode ser compreendida como uma primeira experiência de um Direito Político Internacional no século XX 5 . Por meio da tradução jurídico-institucional de conflitos políticos permanentes, o Direito Internacional responsável por criar a CECA instaurara uma fôrma jurídica de convivência entre diferentes povos voltada a permitir juridicamente (freios e contrapesos) a permanência de tensões políticas sem uma resolução previamente fixada (vazio normativo). Seria esta absorção da lógica Política - contra a Guerra e contra a Paz - o elemento inaudito e inovador desse desenho jurídico-institucional internacional.
No Capítulo XV de sua obra O Príncipe, ao tratar do tema de como se deve comportar aquele que ocupa o lugar do Poder e do Direito em relação ao respectivo povo, o autor Nicolau Maquiavel apresenta a noção de verdade efetiva das coisas (verità effetuale). Nesse momento, o autor florentino reivindica que uma reflexão útil sobre a vida política e sobre sua estabildade deve necessariamente considerar menos o que se imagina sobre as coisas e mais sua verdade efetiva ( MAQUIAVEL, 2004 : 73) - e, nos Capítulos seguintes, o autor trabalha sobre a questão de como deve aquele que está no lugar do Poder e do Direito buscar ser percebido 6 .
Segundo essa perspectiva, a vida política seria caracterizada por uma lógica própria, a qual não deve jamais deixar de levar em consideração a verdade efetiva da coisa política. Essa verdade efetiva consistiria no seguinte inafastável caráter: em uma vida conjunta entre diferentes submetidos a um mesmo destino político (da pólis), as relações se estruturam em uma dupla dimensão de (i) mando-obediência, e (ii) plurivocidade de cosmovisões.
O exercício de uma autoridade pública (Poder e Direito) sobre a vida comum (mando-obediência) exige sempre um fino ajuste de mútuo reconhecimento entre aquele que a exerce e aquele que a recebe, sem ignorar que essa prática sempre será avaliada de diferentes maneiras pelas distintas unidades sociais que compõem o corpo político (louvado/vituperado, amado/temido, entre outros) (LEFORT, 1986: 381). Mais do que isso: essa diferentes unidades sociais devem de alguma forma ser levadas em consideração quando da tomada da decisão ( MAQUIAVEL, 2004 : 113-5), pois é essa dupla oposição o elemento constitutivo do laço político (LEFORT, 1986: 382; MERLEAU-PONTY, 1960: 347-8).
Em outras palavras, a ação política necessária para instituir e para manter uma vida comum entre diferentes deve ser capaz de absorver esse sabor/saber profundo da lógica da Política: reconhecer (i) a presença fundante de dois motores (desejo de dominar e desejo de não ser dominado) e (ii) a co-existência em mesma dimensão espácio-temporal de diferentes modos de habitar, de interpretar e de direcionar o mundo (escalas de existência) que dependem de si para sustentar e assegurar a permanência da vida comum. Há uma relação de dependência mútua entre o lugar do Direito e do Poder e aqueles que seguem suas determinações (LEFORT, 1986).
O princípio de uma vida Política seria estabelecido precisamente com a conjugação pública desses dois elementos em permanente tensão ( CARDOSO, 2004 : 50; VERNANT, 1981 : 31 e 71-2). Ao se reconhecer que a inevitabilidade (verità effetuale ) de tais elementos conflitivos (i principi) é a chave do desafio e do enigma da convivência Política entre diferentes em uma vida comum (LEFORT, 1992: 166 e 172-4, 2007a: 241-2, 2007b: 346, 2007c: 347-9, 2007d: 360), entende-se que essas duas dimensões devem ser consideradas continuamente por aquele quem ocupa o lugar do Poder e do Direito ou que pretende o ocupar de maneira a não enfraquecer o corpo Político (LEFORT, 1986: 403; MAQUIAVEL, 2004 : 73-4; MERLEAU-PONTY, 1960: 348).
Nesse sentido, a verdade efetiva das coisas aponta que é a virtude dessa dupla discórdia - mando/obediência e pluralidade escalar - a força que não apenas funda a vida comum Política (LEFORT, 1986: 381-3), como também promove sua renovação contínua mediante promoção de oposições (desunione) que revigoram o corpo político (LEFORT, 1992: 144-5). O lugar do Direito e do Poder será prudente na manutenção da vida Política ( MAQUIAVEL, 2004 : 115) quando reconhece e assume para si o papel de recusar a tirania e a anarquia precisamente mediante o estímulo à união dos diferentes e o fomento da transgressão no interior da ordem estabelecida (LEFORT, 1986: 423, 1992: 145; MERLEAU-PONTY, 1960: 350).
“[A]ffronter la contradiction qui déchire la société [… est] l’accueillier, l’accompagner et la maîtriser” (LEFORT, 1986: 423), ou seja, é saber utilizar esse dado inafastável da vida Política para nutrir as próprias condições de possibilidade de sua instauração e perpetuação. Estar consciente da verità effetuale implica, assim, que o lugar do Direito e do Poder deve estar atento para, a cada momento, se abrir à constante renovação mediante (LEFORT, 1986: 442, 1992: 166-7): (i) identificação das escalas de existência que compõem o princípio do corpo político sobre o qual sua autoridade se exerce (pluralidade); (ii) absorção de tal variabilidade escalar em permanente oposição no processo decisório (tensão); (iii) sem, todavia, (a) concessão de preferência a priori a qualquer uma delas (imanência), ou (b) eleição de qualquer uma delas para ocupar de maneira permanente o lugar do Direito e do Poder (vazio normativo).
Por meio da permanente incorporação e reprodução da tensão própria à verdade efetiva das coisas no centro decisório político e nomogenético se assegura a estabilidade da vida política. Afinal, “[c]omo possuíam em casa o remédio para o mal, não tinham necessidade de ir buscá-lo em outra parte.” (MAQUIAVEL, 2008: 43) - um conflito original e permanente que não torna impossível a comunhão entre diferentes do mesmo destino Político (MERLEAU-PONTY, 1960: 350).
Assim, o sinal da virtude de um regime político estebelecido entre diferentes se concentra no reconhecer, incluir e replicar em suas instituições e instâncias a liberdade para promover o embate entre as diferentes medidas de existência que o compõem e que buscam se alternar entre si na relação mando-obediência (MAQUIVAEL, 2008: 31; MERLEAU-PONTY, 1960: 345-6).
O elemento central no pensamento maquiaveliano apto a instaurar e manter de forma estável um regime de convivência de caráter Político (pluralidade, tensão, imanência, vazio normativo) entre diferentes medidas de existência é o Direito. A oposição fundante da vida comum adquire uma oportunidade para constituir e preservar de forma estável a virtuosa e enigmática relação um-e-o-múltiplo precisamente quando ela deixa de se desenvolver pela força e passa a se desenvolver pela linguagem não-violenta do Direito (MERLEAU-PONTY, 1960: 345).
Nesse sentido, é fundamental garantir em uma vida comum um meio jurídico permanente que seja um canal autorizado suficientemente aberto para dar vazão à contestação: “quando este meio irregular é inexistente, [o cidadão] recorre a meios extraordinários: e não há dúvida de que estes últimos produzem males maiores do que os que se poderia imputar aos primeiros.” (MAQUIAVEL, 2008: 41).
As instituições jurídicas exercem no pensamento maquiaveliano, assim, um papel crucial na fundação e na conservação do funcionamento da lógica Política - da vida cujos destinos diários e futuros são compartilhados entre diferentes escalas de existência. Com efeito, são tais leis os instrumentos institucionais necessários para, pela promoção da oposição entre diferente modos de vida, não garantir a ninguém a possibilidade de se colocar acima deles de maneira permanente e que sufoque total e unilateralmente as demais perspectivas (MAQUIAVEL, 2008: 41-3).
A virtude das instituições jurídicas Politicamente orientadas consiste, dessa forma, em permitir uma proximidade entre os homens que lhes garanta, ao mesmo tempo, uma distância entre si (MERLEAU-PONTY, 1960: 353-4). Unindo os diferentes sem os unificar, o Direito tem um papel de assegurar a construção e a renovação permanente da vida comum com o Outro que, no entanto, não implique uma cristalização ou uma unidimensionalização do lugar do Direito e do Poder (MERLEAU-PONTY, 1960: 345 e 348). O Direito se revela assim como o instrumento de preservação da Política, na medida em que ele é o repositório das instituições que permitem estabelecer e manter um ambiente de relações públicas que constranja as escalas de existência a se encontrarem e a entrarem em conflito, sem que este seja eliminado (LEFORT, 1992: 162 e 164).
Em outras palavras, o Direito assume um papel público fundamental dentro do pensamento maquiaveliano: juridificar as relações Políticas, para as traduzir e reproduzir dentro da linguagem não-violenta do Direito, os dois elementos fundamentais da veritá effetuale. É por meio dessa incorporação pelo Direito dos princípios (principi) da vida Política que se constitui um Direito Político - isto é, um Direito que reconhece e incorpora a verità effetuale para a operar, mediante suas próprias instituições, no sentido de manter unido o corpo político em um permanente estado de tensão jurídico-política ( GIANNATTASIO, 2015 , 2016c).
O sumo da lógica Política consiste precisamente em assegurar a revigoração contínua das tensões entre as escalas de existência, sem assegurar a qualquer deles uma preferência a priori ou permanente na ocupação do lugar do Direito e do Poder, ou no direcionamento de suas decisões. Neste particular, dois aspectos devem ser mencionados: (i) os elementos diretores do desenho institucional que replique juridicamente a verità effetuale, e (ii) as consequências para a dinâmica da vida comum pelo recurso a um Direito Político.
Em primeiro lugar, a vida comum entre diferentes se constitui a partir de uma auto-compreensão ético-política compartilhada que a compreende como questão sensível a todos e sobre a qual todos têm um dever de refletir e de decidir (LEFORT, 1992: 164). Em outros termos, não basta promover a contradição por si só. Ela deve ter como pressuposto e como objetivo uma questão em torno da qual haja uma perpeção generalizada de que se trata de algo que diga respeito a todos (MERLEAU-PONTY, 1960: 363). E, por isso mesmo, toda decisão regulatória ou política sobre ela não deve ser exclusiva de qualquer das medidas de existência (LEFORT, 1991).
Nestes termos, o Direito Político organiza por meio de suas instituições a vida Política mediante, (i) não apenas um regime jurídico baseado em normas de oposições escalares, as quais estabeleçam freios e contrapesos entre os diferentes, mas também, (ii) identificação de todos aqueles implicados no processo de tomada de decisão sobre a questão sensível comum, e (iii) inclusão destes, mediante direitos e deveres de participação, no processo de constituição da decisão nomogenética e política.
A virtude criada, reproduzida e multiplicada pelas instituições de um Direito Político se dirige, assim, para forçar as diferentes maneiras de habitar (descrever, interpretar, julgar e encaminhar) o mundo (MERLEAU-PONTY, 2004) à necessidade de entrarem em conflito entre si de maneira ininterrupta sobre uma questão sensível comum (LEFORT, 1992: 162). Para tanto, a formatação jurídica da vida Política deve ser
capaz de (a) identificar continuamente as diferentes perspectivas que podem e devem ser consideradas como devendo participar dos processos de tomada de decisão, e (b) convidá-las em pé de igualdade (direitos de participação) e de maneira tempestiva para participar desse novo desenho institucional, e
[apta a instituir] um processo decisório que (a) estabeleça institucionalmente as necessárias oposições entre perspectivas políticas pertinentes (deveres de participação), e (b) impeça que qualquer delas possa decidir unilateralmente os encaminhamentos a serem a adotados nos âmbitos doméstico e regional para solucionar a tensão política (Giannattasio, 2016c: 113).
Em segundo lugar, a adoção de uma engenharia jurídico-institucional conforme uma lógica Política não apenas institui um determinado modo de vida, como também o estimula. Esse determinado modo vida consiste precisamente em (i) estabelecer uma relação entre homens em torno de uma situação e de uma história que lhes seja comum (MERLEAU-PONTY, 1960: 363), (ii) as quais se revelam a cada momento como objeto de disputas infindáveis sobre como descrever, interpretar, julgar e orientar (MERLEAU-PONTY, 1960: 357).
O Direito Político se mostra diretamente preocupado com (iii) o estímulo ao progressivo desvelar dialéticos de sentidos e não-sentidos ( MERLEAU-PONTY, 1955 , 1996), a fim de que (iv) a oposição entre as diferentes medidas de existência possa encontrar constante acolhida institucional (MAQUIAVEL, 2008: 41-3). Com isso, essa ordem jurídico-Política se orienta no sentido de (v) não perenizar no tempo, no espaço e nas instituições qualquer direcionamento unidimensional no lugar do Direito e do Poder (LEFORT, 1992: 171; MERLEAU-PONTY, 1960: 345).
A juridificação de relações Políticas que incorporem em suas instituições o sumo da lógica Política implica a constituição de um modo de vida conflitivo, isto é, que não exclui o embate (MERLEAU-PONTY, 1960: 357). Não se trata aqui de buscar instaurar na realidade um determinado projeto ou ideal transcendente dado de maneira prévia e atemporal, mas ceder espaço para que a cada momento o processo decisório se abra à pluralidade de soluções possíveis dada pela imanência da condição humana (LEFORT, 1991).
Assim, o Direito Político não tem como objetivo pacificar os conflitos. Pelo contrário: por reconhecer neles o papel de fundação do necessário vigor estabilizador de um modo de vida comum, o Direito Político se dirige a recusar a Paz enquanto objetivo transcendente e a estimular um permanente estado de tensões mediados e autorizados pela linguagem não-coercitiva do Direito (LEFORT, 1992: 166-7). A dimensão da negatividade da vida Política é exatamente o que gera a possibilidade de convivência em regime de liberdade - e, para tanto, instituições jurídicas detêm um papel fundamental no preciso afastamento de manutenção de relações humanas tranquilizadas na discussão sobre o encaminhamento nomogenético e política de questões comuns sensíveis ( LEFORT, 1979 : 10-1 e 348, 1986: 724, 1992, 169-72).
O Direito Político recusa assim o objetivo de instaurar uma calma absoluta, pois esta tende a petrificar o corpo social em nome de imposição de medida pré-estabelecida (LEFORT, 1986: 724). Transformar tais conflitos em conflitos jurídico-políticos não significa pacificá-los, mas os intensificar por meio de normas jurídicas de direitos e de deveres de oposição - sem, contudo, implicar a dissolução (LEFORT, 1992: 171). Ao afastar a possibilidade de recurso à força e, ao mesmo tempo, a pretensão de instaurar no real a promessa de salvação de herói idealizado ou transcendentalizado, esse Direito opera pelo conflito humano imediato, a ser resolvido imanentemente pelo homem em sua condição mundana que não mascara, mas encara a divisão social (LEFORT, 1986: 754-76; MERLEAU-PONTY, 1996: 226).
A origem da integração europeia no século XX se insere em uma discussão do pós-Segunda Guerra Mundial sobre modelos jurídicos necessários para evitar o recometimento de novas guerras no continente 7 . A historiografia sobre os projetos contemporâneos de união da Europa costuma apontar que, enquanto as principais narrativas que se opuseram nos primeiros 6 (seis) anos após a Segunda Guerra Mundial foram o Federalismo e o Unionismo, a CECA se estabeleceu de acordo com uma via distinta, denominada Funcionalista ( BITSCH, 2006 ; CASELLA, 1994 : 77; CLOSA, 1994 , 1995; GIANNATTASIO, 2016d; MATTERA, 2002 ; QUADROS, 1984 : 119-24; QUERMONNE, 2008 ; RÉAU, 2008 ; REUTER, 1965 : 42, 1991, ROLLAND, 2006 : 584 e 587).
Enquanto o Federalismo percebia como única via possível a adoção de um Estado Federal Europeu Soberano único em todo o continente, o Unionismo defendia o recurso a uma Organização Internacional intergovernamental de cooperação política que não afetasse a Soberania dos Estados europeus. O Funcionalismo é percebido como um caminho intermediário: nele, a decisão em torno de questões sensíveis (gestão do carvão e do aço) passou a ser compartilhada pela operacionalização racional das Soberanias estatais ( GIANNATTASIO, 2015 : 59-61, 2016a, 2016d).
Mais do que se preocupar com estes modelos, é a questão jurídico-política sensível subjacente a tais discussões que deve ser compreendida. Será o reconhecimento dela como verità effetuale e seu encaminhamento institucional pela CECA que permitirá perceber ter havido a fundação de uma vida comum na Europa. Isso permitirá argumentar que a integração europeia foi iniciada por um Direito Internacional desenhado por instituições que juridificaram para dentro de si a lógica da Política - isto é, por um Direito Político Internacional.
A questão política central na historiografia sobre a origem da integração europeia residia em reconhecer o chamado “problema alemão” e encaminhá-lo adequadamente ( ADENAUER, 1980a : 295; JUDT, 2008 : 18; MONNET, 1970; SCHUMAN, 1963a: 85-90) 8 .
Nesse período, a Alemanha estava constrangida a um sistema jurídico-institucional internacional imperialista - no pré-Primeira Guerra Mundial (Tríplice Entente) - e revanchista - no pré-Segunda Guerra Mundial (Paz de Versailles, de 1919). Este arranjo jurídico lhe conferia uma posição subalterna nas relações internacionais europeias, principalmente em comparação com França, Reino Unido e Rússia (CASELLA, 2007; CLARK, 2012 ; COUDENHOVE-KALERGI, 2010 : 136 e 141-2; HOBSBAWM, 2002 : 32-3; SCHUMAN, 1963b: 154) 9 . Essa condição institucional constituía ainda um Poder jurídico internacional que reduzia sua capacidade de uso das relações externas (recursos, alianças e negociações) como motor de atendimento a decisões políticas internas ( BOBBITT, 2002 : 26-7 e 35; COUDENHOVE-KALERGI, 2010 : 136-7; FISCHER, 1968 ; HOSBAWM, 2002: 145-6; MAZOWER, 1998 : 38-42).
A condição no pós-Segunda Guerra Mundial era diferente 10 . Por mais que a Alemanha tenha sido excluída de iniciativas pontuais de cooperação econômica, militar e política na Europa - a Organização Europeia de Cooperação Econômica (OECE) (1948), o Pacto de Bruxelas (1948) e o Conselho da Europa (CdE) (1949), era amplamente reconhecido que ignorar o “problema alemão” poderia ser novamente desastroso. Percebia-se que a única maneira de impedir o recometimento de novas Guerras na Europa residiria em um tratamento jurídico-político da Alemanha que a colocasse em posição de igualdade nas relações internacionais europeias ( BITSCH, 2006 : 26-7; JUDT, 2008 : 112-3 e 131; MAZOWER, 1998 : 240; PRIOLLAUD; SIRITZKY, 2011 : 15-6; QUERMONNE, 2010: 14-5; RÉAU, 2008 : 133; SCHUMAN, 1963a: 108, 1963b: 154-6; WEILER, 2005 : 91).
Anunciado já em 1923 por Richard COUDENHOVE-KALERGI (2010 : 135-52) como o problema central para evitar novas Guerras na Europa, reconciliar França e Alemanha mediante uma aliança que as colocasse lado a lado nas relações internacionais europeias era objetivo percebido como fundamental para diminuir as tensões revanchistas entre ambas. Essa era a chave para a Europa decidir se se uniria ou morreria ( RIOU, 1929 ), isto é, se se engajaria em um desenho jurídico-institucional internacional renovado para criar estabilidade não-armada em suas relações, ou se preservaria suas desastrosas práticas jurídicas internacionais (SCHUMAN, 1963a: 109-10).
Como o então ex-Primeiro Ministro britânico Winston CHURCHILL (1966 : 263-6) notara em Declaração de 1946, na Universidade de Zurique, esse desenho que visasse à solução do “problema alemão” deveria se sustentar no mútuo reconhecimento de todos os países europeus poderem contribuir para solucionar questões comuns. O primeiro passo deveria ser dado conjuntamente pela França e pela Alemanha no sentido de iniciar um projeto de aproximação em que o Direito asseguraria a ambas condições iguais para definir o destino comum.
No mesmo sentido percebia nos anos 1950 o Chanceler da República Federal da Alemanha, Konrad ADENAUER (1980a : 295, 1980b: 308-10, 1980c: 311-5): era fundamental uma aproximação de reconciliação franco-alemã que desse à Alemanha iguais possibilidades de participação na solução de questões comuns sensíveis. Esta também foi a linha reflexiva de Jean Monnet, Comissário Geral do Plano de Modernização da França, em Memorando de 3.5.1950 (MONNET, 1970: 6): para ele, a inserção jurídica da Alemanha no coração da Europa em pé de igualdade era o instrumento necessário para resolver o problema alemão e alterar a lógica das relações entre França e Alemanha.
Elaborada com a ajuda de Jean Monnet, a Declaração de 9.5.1950 de Robert Schuman, Ministro das Relações Exteriores da França, incorporara essa perspectiva (SCHUMAN, 2000: 1). Ao final dela, ele convidou não apenas a Alemanha, mas os demais países europeus interessados, a iniciar um projeto político internacional novo: a integração europeia, a partir de uma questão sensível concreta: a gestão do carvão e do aço (SCHUMAN, 1963b).
A igualização jurídica das relações entre França e Alemanha foi a base do começo da integração europeia pela CECA em 1950 ( BITSCH, 2006 : 63; COURTY; DEVIN, 2010 : 21-5; MATTERA, 2002 : 26-7; PRIOLLAUD; SIRITZKY, 2011 : 16-9; QUERMONNE, 2010: 9-11; RÉAU, 2008 : 197-8; ROLLAND, 2006 : 584; WEILER, 2005 : 91). Por meio dessa experiência jurídico-institucional nova, França e Alemanha se deram a confiança necessária para se tratar em pé de igualdade em direitos e deveres que manteriam todos os implicados em uma relação permanentemente horizontal an definição dos destinos comuns referentes ao uso do carvão e do aço (ADENAUER, 1980h: 338; MONNET, 1970: 6, 2001d: 274; SCHUMAN, 1950 : 3, 1953: 2, 1963a: 105-10, 1963b: 156-8 e 168-9).
Assim, a Alemanha parecia buscar no início do século XX um reconhecimento jurídico-político no interior do sistema de relações internacionais europeus (ADENAUER, 1980h: 340), o que lhe fora sucessivamente negado até então pelo desenho institucional internacional vigente (MONNET, 1970: 6, 2001c: 259, 2001d: 274). Apenas com as iniciativas voltadas a iniciar a integração europeia por meio da construção da CECA (SCHUMAN, 1953: 2-4, 1955: 2) parece que essa questão passou a ser seriamente considerada como base jurídico-Política do Direito Internacional (GIANNATTASIO, 2016d) 11 .
Escrito em francês em sua versão original, o Tratado Constitutivo da CECA foi assinado em 18.4.1951, em Paris, entre Alemanha, Bélgica, França, Itália, Luxemburgo e Países Baixos. O documento entrou em vigor em 25.7.1952 e, conforme seu artigo 97, permaneceu em vigência por 50 (cinquenta) anos. Suas funções, suas instituições, seu pessoal foram incorporadas pelas instituições da União Europeia em 23.7.2002, conforme o Protocolo C ao Tratado que Institui a Comunidade Europeia, no Tratado de Nice, de 2001.
O exame do desenho institucional do Tratado da CECA permite perceber uma preocupação clara em utilizar normas jurídicas para promover oposições escalares constantes nas decisões jurídicas e políticas fundamentais em torno da gestão do carvão e do aço 12 . As disposições deste Tratado mostram um cuidado em construir uma cuidadosa engenharia institucional que jamais desse a qualquer um dos envolvidos a plenitude permanente na decisão sobre os destinos jurídicos e políticos no uso do carvão e do aço.
Em primeiro lugar, os autores do Tratado identificaram duas escalas de existência principais que poderiam ser consideradas como pertinentes para participar dos processos decisórios principais para uma vida em comum: (i) estatalidade e (ii) populidade. Ao lado dessas, os autores do Tratado constituíram ainda uma terceira espécie de escala de existência, a qual participaria em pé de igualdade em relação às demais: (iii) supranacionalidade 1314 .
A estatalidade é a escala de existência que carrega em si um modo de habitar o mundo vinculado à compreensão do fenômeno estatal e sua respectiva maneira Soberana de estar-no-mundo. A estatalidade se divide, na CECA, em dois tipos: (i) Estados-Membros atuando isoladamente, de acordo unicamente com sua compreensão nacional (estatalidade isolada), e (ii) Estados-Membros atuando em conjunto, dentro de uma lógica de cooperação intergovernamenal no interior do Conselho da CECA 15 (estatalidade intergovernamental).
A populidade é termo que se refere à dimensão existência dos povos europeus cujos Estados participam da vida comunitária. A participação popular no processo decisório da CECA era garantida em momentos fundamentais - relativos à fundação e à refundação contínua – da Comunidade. Todavia, a participação popular que detinha essa capacidade de selamento da legitimidade das decisões comunitárias era restrita a uma dimensão indireta, mediante a atuação dos respectivos órgãos nacionais de representação popular (Parlamentos).
A supranacionalidade se refere a duas medidas de existência criadas pelo Tratado da CECA para pensar as questões da vida comum a partir de uma perspectiva desvinculada do fenômeno soberano de seus Estados-Membros e dos diferentes interesses populares. Essa forma de habitar o mundo teria como objetivo pensar e atuar de acordo com uma perspectiva independente e apta a se contrapor a interesses nacionais, a barganhas intergovernamentais e à volatilidade dos interesses populares 16 . Ela se expressava na CECA a partir de dois órgãos comunitários distintos: a supranacionalidade da Alta Autoridade17 e a supranacionalidade da Corte18 .
O jogo político institucionalizado pelo Tratado da CECA envolvia, assim, não apenas o conflito entre Estados-Membros, mas também incluía os respectivos povos europeus e algumas das instituições da Comunidade. Todas as cinco categorias de escalas de existência implicadas na relação e dotadas de uma capacidade de disrupção da lógica comum criada pelo Tratado eram identificadas como partícipes da vida comunitária (Estados, Estados em Conselho, povos em Parlamentos, Alta Autoridade e Corte de Justiça). E, por esse motivo, eram devidamente convidadas pelas normas jurídicas dispostas no Tratado para interagir entre si em condições de igualdade e sem possibilidade de decidir por si só os destinos da vida comum.
Todo processo decisório do Tratado foi estruturado de maneira a estabelecer um intrincado sistema de freios e contrapesos, baseado em direitos e deveres de participação compartilhados entre os cinco partícipes comunitários:
na decisão de conflitos entre Estados-Membros pela Corte (arts. 33 a 35, 37, 38, 41, 87 e 89, todos do Tratado da CECA);
na formulação de normas jurídicas pela Alta Autoridade sobre a gestão comum do uso do carvão e do aço 19 (arts. 57 a 75, todos do Tratado da CECA);
na fiscalização pela Alta Autoridade do cumprimento de decisões dos órgãos comunitários por parte dos Estados-Membros e responsabilização não-coercitiva de Estados-Membros inadimplentes (arts. 86, 88, 92, todos do Tratado da CECA); e
na aprovação de modificações às disposição do Tratado e na aprovação do próprio Tratado da CECA (arts. 96 e 99 do Tratado da CECA).
Em todas as situações acima, o Tratado da CECA procurou estabelecer um procedimento de decisão complexo que exigia a presença contínua da oposição entre estatalidades isoladas, estatalidades intergovernamentais, a supranacionalidade da Alta Autoridade e a supranacionalidade da Corte. Havia assim a exigência de instauração permanente de um conflito (i) entre Estados-Membros, (ii) entre órgãos comunitários (Conselho, Alta Autoridade e Corte) e (iii) entre os Estados-Membros e os órgãos comunitários.
Por outro lado, se a populidade não atua nas situações (i), (ii) e (iii) acima, seu papel é fundamental na situação (iv). Nisso, ela detinha papel fundamental quando atuava de maneira intensa com as demais medidas de existência na aprovação de modificações ao Tratado, ou quando decidiu, a final, se todo o texto do Tratado negociado intergovernamentalmente, a partir de representantes da estatalidade isolada deveria ser ou não aprovado pelos Parlamentos nacionais. Nesse dois momentos fundantes da comunidade, a presença da populidade era fundamental para permitir o seguimento institucional da vida comum 20 .
Essa engenharia institucional garantia (i) que nenhuma das escalas de existência acima estaria excluída do processo decisório (direito de participação), mas também (ii) que todas as escalas de existência participariam do processo decisório (deveres de participação), sem ignorar a importância de estabelecer um sistema decisório em (iii) que a nenhuma das escalas de existência seria concedida uma exclusividade permanente ou atemporal nas decisões. Assim, o arranjo institucional teria incorporado em sua lógica constituinte a preocupação plena e sincera de colocar em pé de igualdade todos os partícipes da vida comunitária, sem privilegiar qualquer deles 21 .
Mais do que pretender compreender a situação política internacional na Europa no início do século XX ou buscar construir uma reflexão especificamente direiconada sobre a integração europeia ou sobre o Tratado da CECA, este estudo tem um objetivo geral mais amplo: apontar para a dimensão jurídico-institucional da relação entre Direito Internacional e Política e sua capacidade de instituir procedimentos decisórios aptos a evitar a Guerra. Há assim a pretensão de evidenciar a dimensão organizacional e Política do Direito Internacional.
O desenho jurídico-institucional internacional do início do século XX era inepto e inapto para captar e operacionalizar a verità effetuale das relações políticas internacionais europeias. Dada sua insuficiência regulatória, ele pode ser entendido como uma das origens da eclosão das duas guerras mundiais precisamente por ser inábil para encaminhar as tensões políticas para fora de uma solução armada.
Em outras palavras, o que se argumenta aqui é: (i) incapaz de (a) exercer uma compreesão ético-política jurídico-institucional que lhe permitisse (b) identificar mais um ator pertinente e (c) perceber a necessidade de o incluir em igualdade de condições mediante aberturas institucionais refletidas, e (ii) persistente em uma prática jurídica internacional (a) revanchista na relação entre vencedores e vencidos de Guerra (relação mando-obediência), e (b) zelosa de tradicionais posições imperialistas europeias (preferência a priori sobre destinos jurídicos e políticos comuns), o pensamento jurídico do período se revelou incapaz de efetuar uma renovação da imaginação jurídico-institucional (UNGER, s.d., 2001, 2004) para o ambiente internacional naquele momento.
Entende-se que, ao ignorar a importância da canalização institucional da verità effetuale para a estabilidade de relações entre diferentes povos, aquele Direito Internacional apresentava uma fissura regulatória fundamental. Ao não conseguir lidar de maneira inovadora com a repulsa mútua própria da relação mando-obediência, nem com a necessidade de fundar uma convivência horizontal conflituosa, porém não-armada, entre diferentes povos, esse desenho institucional falho pode ser compreendido como uma das possíveis causas de eclosão dos dois conflitos mundiais no início do século XX (CASELLA, 2007). Desprovido de virtude Política ordenada, restou inábil para resistir ao ímpeto nacionalista dos conflitos internacionais.
Se o afastamento da possibilidade de recometimento de Guerras encontraria no Direito o seu papel fundamental ( BRIAND, 1929 : 8; CASELLA, 2007; FREUD, 2005 ; GUIEU, 2008 : 22-6; KANT, 2010 ; KELSEN, 2011 ), isso significa que essa condição não poderia apenas ser juridicamente declarada, mas instaurada de maneira efetiva pelo Direito (CASELLA, 2008: 482; KANT, 2010 : 39).
Nesse sentido, os mecanismos jurídicos deveriam não apenas recusar o conflito armado (trégua), mas principalmente atuar positivamente no sentido de rejeitar até mesmo a possibilidade de ele ser pensado como alternativa (ameaça). Ao mesmo tempo, a regulação jurídica não deveria assumir a tarefa de um Direito nacional (monopólio legal da violência em âmbito europeu), mas permanecer dentro de um paradigma de Direito Internacional ( BRIAND, 1929 : 8; GUIEU, 2008 : 22; KANT, 2010 ; KELSEN, 2011 ).
Nesse sentido, o novo desenho institucional apenas se mostraria efetivo no afastamento de Guerras na Europa se, (i) dentro da linguagem não-coercitiva do Direito Internacional, (ii) captasse e operacionalizasse a verità effetuale europeia - isto é, se rompesse com a lógica da desigualdade (a) nas relações mando-obediência e (b) na interação entre diferentes povos, a qual era assegurada por discurso jurídico-político tradicional. Lidar positivamente com o “problema alemão” e atribuir juridicamente à Alemanha pé de igualdade nas relações seria, assim, lidar positivamente com o “problema jurídico-político europeu”.
Entende-se que essa consideração era a base Política do desenho jurídico-institucional internacional da integração europeia inaugurada pela CECA (ADENAUER, 1980g: 336; MONNET, 2001b: 179-80, 2001d: 275; SCHUMAN, 1950 : 2, 1953: 10, 1955: 2). Com efeito, sem permitir a qualquer das escalas de existência a possibilidade de se elevar sobre as demais (desaparecimento de decisão Soberana) nas decisões jurídico-Políticas fundamentais para a vida comum (imanência), o arranjo institucional da CECA teria preservado um vazio normativo que assegurava uma pluralidade escalar em tais processos decisórios. Essa pluralidade escalar era mantida regularmente pelo contínuo convite a uma tensão política juridicamente mediada pelas instituições comunitárias na escolha sobre o destino da questão concreta sensível.
Assim, ao captar e encaminhar institucionalmente a verità effetuale no continente europeu, o Tratado da CECA teria organizado, por meio da linguagem não-coercitiva da forma jurídica internacional, uma vida comum europeia em torno de uma lógica Política - portanto, por meio de um Direito Político Internacional. Nesse sentido, essa nova arquitetura internacional consistiria no uso renovado das ferramentas jurídicas existentes visando a algo novo: não a eliminação de todo e qualquer conflito, mas apenas do conflito armado (rejeição da Guerra). O conflito não-violento não apenas seria trazido para dentro das instituições jurídicas internacionais, como também seria estimulado para dentro delas surgir e se resolver (rejeição da Paz).
O Direito Internacional foi por muito tempo compreendido como um instrumento jurídico voltado para estabelecer a Paz nas relações internacionais. A obtenção e a manutenção da Paz (Internacional) pelo Direito (Internacional) seriam os objetivos fundamentais de toda uma tradição do pensamento internacional. Esse antigo propósito (Paz) teria sido o vetor das inovações jurídicas internacionais, inclusive com processos de integração política.
A análise qualitativa da origem da integração europeia permite compreender de maneira diferente essa construção. A leitura de fontes primárias (documentos históricos e Tratado da CECA) e de fontes secundárias (historiografia sobre a integração europeia) permitiu efetuar um estudo empírico da origem da CECA, o qual foi objeto de interpretação dado pela noção maquiaveliana de verità effetuale. A conjugação de tais elementos permitiu desenvolver uma análise institucional das instituições do Tratado Constitutivo da CECA (1951) que não apenas a localizou historicamente, como também permitiu extrair do interior do arranjo jurídico internacional a lógica Política subjacente a tais instituições de integração.
O trabalho se desenvolveu em três partes. Em primeiro lugar, foi apresentada a noção de verità effetuale em Nicolau Maquiavel, o que permitiu compreender o papel do Direito na recepção e no tratamento institucional de conflitos políticos. Em segundo lugar, a construção histórica da CECA foi tratada a partir de uma perspectiva histórica e historiográfica, a qual foi sucedida por um relato da análise institucional dos artigos constantes do Tratado da CECA (1951). Em terceiro lugar, propôs-se a compreensão de que a razão do sucesso da CECA foi ter sido estruturada por meio de um desenho jurídico-institucional internacional preocupado em captar e operar a veritá effetuale europeia - isto é, por meio de um Direito Político Internacional.
Assim, pode-se argumentar que o Direito Internacional constitutivo da CECA consistiu em um uso renovado de instituições jurídicas: organizar juridicamente relações internacionais de acordo com uma perspectiva pública e Política, isto é: sem Guerra (sem conflitos armados), mas também sem Paz (com conflitos não-armados).