Resumo: O artigo analisa inicialmente a ambiguidade do processo de anistia e redemocratização do Brasil. Em seguida, o foco é o papel do judiciário tanto na judicialização da repressão durante a ditadura quanto no processo de anistia. Na terceira seção é fornecida uma breve caracterização da ruptura institucional ocorrida no Brasil em 2016 e uma discussão sobre a natureza dessa ruptura. Por fim, em tom conclusivo, identificam-se relações entre os processos mencionados.
Palavras-chave: AnistiaAnistia,Justiça de TransiçãoJustiça de Transição,Golpe de EstadoGolpe de Estado,Poder JudiciárioPoder Judiciário,DemocraciaDemocracia,BrasilBrasil.
Abstract: The article initially analyzes the ambiguity of the amnesty and redemocratization process in Brazil. Next, the focus is on the role of the judiciary in both the judicialization of repression during the dictatorship and in the amnesty process. In the third section is provided a brief characterization of the institutional rupture occurred in Brazil in 2016 and a discussion about the nature of this rupture. Finally, in a concluding tone, we identify relationships between the mentioned processes.
Keywords: Amnesty, Transitional Justice, Coup D'Etat, Judiciary, Democracy, Brazil.
Artigos
Justiça de Transição e Usos Políticos do Poder Judiciário no Brasil em 2016: um Golpe de Estado Institucional?
Transitional Justice and Political Uses of the Judiciary in Brazil in 2016: an Institutional Coup?
Recepção: 29 Novembro 2017
Aprovação: 12 Dezembro 2017
Em relação aos demais países da América Latina que amargaram ditaduras civis-militares de segurança nacional na segunda metade do século XX, o Brasil apresentou uma peculiaridade que acabou por influenciar sobremaneira as características do regime democrático que se seguiu a partir de 1988: a redemocratização guiou-se sob o signo de uma anistia ambígua, que representou tanto as lutas da sociedade civil pela abertura do regime, como o empenho dos agentes da ditadura em garantir uma transição que não os responsabilizasse pelos crimes que praticaram. Este último aspecto encontrou solo fértil para prosperar, visto que ao longo de todo o período ditatorial houve um amplo e intenso processo de judicialização da repressão política, o que certamente cultivou no poder judiciário brasileiro uma grande resistência em revisar os termos dessa anistia, mesmo em período democrático. Argumenta-se nesse artigo que o ambiente criado a partir do caráter ambíguo da anistia, em especial considerando a atuação do poder judiciário, contribuiu para a ruptura da democracia ocorrida no Brasil em 2016.
No dia 28 de agosto de 1979, em plena ditadura, foi promulgada a lei de anistia no Brasil, a Lei N°6.683. Esta lei reflete uma acentuada ambiguidade, e que se transmite ao próprio sentido da palavra “anistia” no contexto político brasileiro.
De um lado, a lei foi o resultado de uma ampla mobilização social em torno da pauta da anistia aos que estavam presos, no exílio ou na clandestinidade, acusados de terem praticado crimes políticos. A demanda pela anistia representou a demanda pela redemocratização do país 1 . O largo contingente de setores da sociedade que conseguiu mobilizar (trabalhadores, artistas, intelectuais, políticos, imprensa, igreja, presos políticos, entre outros) constituiu a base sobre a qual mais tarde viriam as mobilizações pelas Diretas Já em 1984 e a participação no processo Constituinte em 1987 e 1988.
Por outro lado, a lei representou uma vitória para o projeto de transição controlada idealizado pela cúpula do regime ditatorial 2 , já que conseguiu o feito de anistiar os agentes da ditadura, impedindo qualquer investigação sobre os seus crimes, sem sequer afirmar que tais agentes teriam praticado assassinato, tortura, desaparecimento forçado e outras graves violações de direitos humanos 3 . Do mesmo modo, excluiu a anistia para os presos políticos que estavam condenados por terem tomado parte na resistência armada. E, por fim, a promulgação da lei foi apresentada como uma benesse ofertada pelo governo militar sem que se promovesse o reconhecimento da ampla participação popular neste processo.
A redemocratização do país foi balizada pelo que a lei de anistia representou. O aspecto emancipatório e popular da luta pela anistia desaguou na ampla participação da sociedade civil no processo constituinte nos anos de 1987 e 1988 e na característica avançada da lei em termos de princípios e reconhecimento de direitos fundamentais 4 . Já o aspecto autoritário e reacionário da anistia refletiu-se no esquecimento institucional dos crimes contra a humanidade praticados e sua necessária responsabilização. Tal bloqueio, devidamente afirmado pelo Poder Judiciário em todas as tentativas que foram feitas de investigar e responsabilizar esses crimes 5 , também favoreceu a ausência de reformas institucionais que buscassem esclarecer a participação dos poderes constituídos no regime ditatorial, bem como de processos de responsabilização administrativa e judicial sobre os agentes e funcionários públicos que facilitaram ou praticaram diretamente tais crimes. Em outras palavras, militares, policiais, juízes, promotores, políticos e demais funcionários públicos que participaram ativamente do processo de perseguição política aos opositores do regime ditatorial continuaram nos seus postos de trabalho como se nada houvesse acontecido.
A Constituinte foi instalada em 1987 a partir de uma emenda constitucional produzida na ordem jurídica autoritária, uma emenda à Constituição outorgada de 1967, a Emenda Constitucional N° 26/1985. Nesta mesma emenda a lei de anistia de 1979 foi reafirmada 6 , como que para sugerir que a nova Constituição a ser criada não pudesse rever os seus termos.
A despeito dessa peculiaridade, o texto da nova Constituição não reproduz mais a anistia aos crimes conexos. Além disso, em seu Art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias o constituinte firmou, com clareza inequívoca, que a anistia era devida aos que “foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares”. Assim, a anistia aos agentes da ditadura não foi recebida pelo texto constitucional de 1988. Por outro lado, também não foi expressamente repudiada. De todo modo, ao não mencionar o tema e ao assinalar o forte repúdio à tortura, considerada crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia 7 , a partir dos seus princípios e direitos fundamentais, a Constituição revela-se um local muito pouco confortável para abrigar a anistia aos crimes conexos entendida como a anistia aos crimes dos agentes da ditadura. Há uma evidente contradição principiológica e valorativa no argumento de que a Constituição brasileira de 1988 endossa a anistia a tais crimes.
Além de excluir da sua apreciação a anistia aos crimes da ditadura, o Artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias lançou as bases de uma verdadeira política de reparação aos ex-perseguidos políticos. O termo “anistia”, mesmo na legislação produzida pela ditadura sempre trouxe alusão igualmente a algum sentido de reparação e de restituição do status anterior à perseguição política. Porém, como era de se esperar naquele ambiente ainda mutilado politicamente, contaminado pelo esquecimento forçado e seguido de perto pelo autoritarismo, a lei regulamentadora dessa política de reparação sinalizada pelo texto constitucional só viria à luz cerca de 13 anos depois, mais precisamente em 2001, via Medida Provisória depois convertida na Lei N° 10.559/2002.
A nova lei de anistia, além de prever direitos como a declaração de anistiado político, a reparação econômica, a contagem do tempo e a continuação de curso superior interrompido ou reconhecimento de diploma obtido no exterior 8 , institui a Comissão de Anistia, vinculada ao Ministério da Justiça, e que fica responsável pela apreciação e julgamento dos requerimentos de anistia 9 . A Comissão de Anistia é, na verdade, uma comissão de reparação, mas que carrega consigo a própria ambiguidade do termo “anistia”, forjada no processo de redemocratização do país.
Observando a atuação da Comissão de Anistia, desde a sua criação, e, especialmente, durante o segundo mandato do Presidente Lula, iniciado em 2007, quando o Ministério da Justiça foi conduzido por Tarso Genro e a presidência da Comissão de Anistia por Paulo Abrão, percebe-se uma radical mudança na concepção da anistia como política de esquecimento. Em primeiro lugar, ao exigir a verificação e comprovação da perseguição política sofrida 10 , a lei de anistia acaba suscitando a apresentação de documentos e narrativas que trazem de volta do esquecimento os fatos que haviam sido desprezados pela anistia de 1979. Passa a ser condição para a anistia a comprovação e detalhamento das violências sofridas pelos perseguidos políticos, circunstância que por si só associa anistia à memória.
Nas sessões de julgamento da Comissão de Anistia, os requerentes que estão presentes são convidados a se manifestarem, proporcionando em muitos casos importantes testemunhos, que são devidamente registrados. Os autos dos processos contêm uma narrativa muito diferente daquela que está registrada nos arquivos oficiais. Os processos da Comissão de Anistia fornecem a versão daqueles que foram perseguidos políticos pela ditadura civil-militar, contrastando com a visão, normalmente pejorativa que sobre eles recai a partir dos documentos produzidos pelos órgãos de informação do período.
Para além da reparação econômica, a Comissão de Anistia também é conhecida internacionalmente por ter empreendido de maneira inovadora e sensível políticas públicas de memória e projetos vanguardistas como as Caravanas da Anistia 11 , as Clínicas do Testemunho 12 , o Projeto Marcas da Memória 13 , e por ter iniciado a construção do Memorial da Anistia 14 , realizado eventos e intercâmbios acadêmicos e culturais, além de inúmeras publicações que aprofundam o sentido da Justiça de Transição no Brasil e na América Latina 15 . Estes programas e projetos compunham até 2016 o Programa Brasileiro de Reparação Integral, reconhecido e celebrado internacionalmente, e faziam parte do rol dos direitos de todos aqueles que foram atingidos por atos de exceção durante a ditadura civil-militar e aos seus familiares.
Ao longo desses anos de existência e atuação da Comissão de Anistia é possível identificar outros órgãos e comissões de Estado que reforçaram e seguiram o mesmo sentido de resgate da memória política da ditadura a partir da visão das vítimas, dentre os quais destacam-se em especial a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, criada em 1995 ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso, e a Comissão Nacional da Verdade, criada em 2011 e instalada em 2012, em meio ao primeiro mandato da Presidenta Dilma Roussef.
Em seu livro “Ditadura e Repressão”, no qual promove um estudo comparado sobre a judicialização da repressão na Argentina, no Chile e no Brasil, Anthony Pereira identifica um curioso paradoxo no caso brasileiro 16 . De todos os três países, o Brasil foi aquele que mais se aprofundou na judicialização da repressão ditatorial e que construiu uma legalidade autoritária mais ampla, arraigada e vinculada à ordem jurídica anterior. Tal se deve, entre outros fatores, ao alto grau de coesão entre as elites judiciais e as forças armadas 17 , o que levou estas últimas à opinião de que o judiciário era “confiável”, e que portanto, os tribunais poderiam se prestar ao papel de intermediário entre a ação repressiva direta dos agentes de segurança pública e aqueles que eram perseguidos políticos, tidos no contexto da ditadura como criminosos e terroristas.
Se por um lado os milhares de julgamentos ocorridos na ditadura brasileira faziam vistas grossas em relação às denúncias de tortura e compactuavam com leis draconianas, como eram os Atos Institucionais e seus derivados, contando com juízes que defendiam e incorporavam a ideologia do regime, por outro, tais julgamentos contavam com um arsenal razoável de garantias e procedimentos e permitiam em grande parte dos casos evitar que os opositores políticos fossem simplesmente eliminados. Em sua pesquisa, Anthony Pereira notou também que no Brasil os advogados de defesa de presos políticos possuíam uma relativa liberdade e autonomia para atuar nas cortes políticas e conseguiram, por vezes, induzir os juízes a interpretarem a legislação autoritária de uma maneira mais benigna para os seus clientes 18 .
Na Argentina, a ausência de uma coesão entre os militares e a elite judicial levou os militares a considerarem o judiciário pouco ou de modo algum “confiável”. Não havia, portanto, mediadores institucionais entre a violência direta dos agentes da repressão e os seus alvos. A estratégia adotada foi claramente a da eliminação e do desaparecimento em massa dos opositores políticos. Contudo, se a forte coesão institucional ocorrida na ditadura civil-militar brasileira e a sua máscara de legalidade foram um dos fatores responsáveis por uma cifra menor de mortos e desaparecidos do que em relação à Argentina, elas contribuíram para manter mais arraigada no Brasil a continuidade da herança autoritária no período pós-ditatorial. Após a ditadura brasileira, nenhum juiz, por mais conivente que fosse com o regime, nenhum policial, por mais que tenha torturado e assassinado opositores, nenhum político ou dirigente, por mais que tenha aprovado, ordenado ou tenha sido conivente com a tortura, foi demitido, exonerado ou responsabilizado pelos seus atos. Muitos deles simplesmente continuaram a atuar no Poder Público, transferindo agora o foco da sua impunidade para os criminosos comuns e os suspeitos de o serem, que continuaram a ser barbaramente torturados nas delegacias e nos presídios 19 .
Com relação ao tema da anistia e da responsabilização dos agentes da ditadura, o judiciário brasileiro sempre foi reticente. No conhecido caso das mãos amarradas, no qual o sargento Manoel Raymundo Soares foi morto por agentes da ditadura por afogamento e encontrado boiando com as mãos amarradas no Rio Jacuí em 1966 20 , a provocação ao Poder Judiciário foi vã.
Após a Constituição de 1988, houve a tentativa do Ministério Público de São Paulo de abrir um inquérito civil para apurar, em 1992, a morte do jornalista Vladimir Herzog e a tentativa de reabrir a investigação do caso Riocentro 21 , em 1996, no Superior Tribunal Militar. Em ambos os casos houve o indeferimento dos pleitos pela mesma razão: incidência da anistia “bilateral” de 1979 22 . O curioso é que, no segundo caso, referente ao atentado ocorrido em 1981 no Riocentro, mesmo reconhecendo indícios de autoria de militares no crime, os Ministros do STM – agindo em desacordo com a própria Lei Nº 6.683/1979 – justificaram o arquivamento do procedimento pela incidência da anistia a crimes cometidos após 1979. A construção de uma “anistia para frente” representou um verdadeiro estelionato jurídico que contribuiu para fortalecer a noção de que – no Brasil – não haveria responsabilização dos agentes do estado de exceção: como pensar em punir os crimes de tortura, sequestro e homicídio ocorridos antes de 1979 se sobre aqueles que ocorreram depois (como o atentado ao Riocentro) também incidia – legitimamente, conforme o poder Judiciário – a malfadada causa de extinção da punibilidade?
Assim, seja antes, seja depois do estabelecimento da ordem democrática pela Constituição de 1988 a tentativa de se construir o pilar da “responsabilização” no processo transicional brasileiro sempre esteve presente como reivindicação dos que sofreram com os atos de exceção. No entanto, como se constatou, os termos da interpretação dada ao instituto da anistia impediram qualquer análise de mérito que viabilizasse alguma providência no sentido da investigação e da responsabilização. Somente após a virada do século, a partir de 2008, é que houve uma nova mobilização, por parte de organismos da sociedade civil e de órgãos vinculados ao Estado, que buscou questionar a validade da interpretação da anistia como “acordo bilateral” perante o Supremo Tribunal Federal.
Tal questionamento foi feito através da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) N° 153, julgada em abril de 2010 em dois dias de sessão e cujo resultado foi o de sete a dois pelo indeferimento, com votos que trouxeram fundamentos bastante questionáveis, inclusive sob o ponto de vista histórico 23 , chegando-se a afirmar, por exemplo, que na década de 70 a sociedade foi às ruas pedir uma anistia ampla, geral e irrestrita com o sentido de estendê-la aos torturadores do regime de força, quando em verdade o famoso bordão se referia aos presos políticos condenados pela atuação na resistência armada, e que, no final, acabaram não sendo mesmo anistiados pela Lei N° 6.683/1979 24 .
Um dos argumentos mais tortuosos e que apareceu tanto no voto do relator, Ministro Eros Grau, como no voto do Ministro Gilmar Mendes, foi o de que o impedimento formado pela anistia de 1979 à investigação e responsabilização dos crimes da ditadura vinha de uma imposição de compromisso da EC N°26/1985 à Constituinte de 1987, isto é, afirmaram que uma das bases da ordem democrática de 1988 vinha justamente de uma Emenda à Constituição autoritária e outorgada de 1967, o que limitava a soberania da Constituinte.
Talvez esta decisão do STF seja um dos pontos de inflexão mais nítidos em direção à ruptura institucional que se consumou no dia 31 de agosto de 2016 com a conclusão do processo de impedimento da então Presidenta Dilma Roussef. Ao reproduzir em pleno regime democrático a mesma interpretação que a ditadura forjou para a Lei de Anistia de 1979, pode-se dizer que o STF alojou o “golpismo” em seus gabinetes e decisões.
Após a decisão do STF na ADPF 153, tomada em abril de 2010, o Brasil sofreu em novembro de 2010 a condenação na Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Gomes Lund e outros, também conhecido como Caso Guerrilha do Araguaia. A decisão deixa claro que o Supremo Tribunal Federal não fez o devido controle de convencionalidade e que a sua decisão na ADPF 153 contraria as obrigações internacionais brasileiras, já que “as disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos carecem de efeitos jurídicos” 25 .
A partir da condenação do Brasil na Corte, o Ministério Público Federal assumiu a orientação interna de levar adiante ações de responsabilização penal dos crimes da ditadura junto ao Poder Judiciário brasileiro. Foram dezenas de ações penais iniciadas pelo Ministério Público Federal a partir da condenação do país no Caso Araguaia, mas o poder judiciário tem negado sistematicamente o seguimento das ações, ora apoiado no argumento da anistia, ora no da prescrição 26 , contando inclusive com algumas decisões que chegam a fazer apologia ao regime ditatorial.
Argumenta-se neste artigo que, no âmbito do poder judiciário brasileiro, a reafirmação em tempos democráticos de uma certa tolerância e complacência, para não dizer, em alguns casos, defesa da tomada do poder pelos militares em 1964, e o bloqueio a medidas justransicionais de responsabilização e de pleno repúdio à ditadura civil-militar, representaram um claro flanco pelo qual alojou-se a participação do poder judiciário em novo processo de ruptura institucional, ocorrido agora em 2016, há quase 20 anos da promulgação da Constituição democrática.
O que aconteceu no Brasil no ano de 2016, com a saída de Dilma Roussef da Presidência da República, pode ser explicado sob diferentes ângulos e a partir de uma multiplicidade de fatores 27 , mas revela inegavelmente uma grave ruptura institucional que traz diversos paralelos com aquela ocorrida em 1964 com o golpe civil-militar que depôs o Presidente João Goulart 28 . Diferentemente de 1964, em 2016 não houve a deposição pelas armas e a participação das Forças Armadas. Seguiu-se um caminho semelhante àquele já percorrido por Honduras e Paraguai.
Em Honduras, no ano de 2009 o Poder Judiciário, provocado pelo Ministério Público hondurenho, emitiu ordem de prisão ao então Presidente Manuel Zelaya, que retirado de pijamas da sua casa pelo Exército foi ilegalmente deportado para a Costa Rica. No Paraguai, no ano de 2012 o então Presidente Fernando Lugo foi deposto pelo Parlamento em um processo relâmpago de impeachment no qual teve apenas duas horas para se defender de acusações vagas e atípicas relativas a um suposto fraco exercício das suas funções. No Paraguai não foi difícil obter o impeachment, visto que o Congresso estava dominado pela oposição conservadora.
O que há de comum entre esses casos recentes, incluindo-se aí o brasileiro, é o fato de serem países latino-americanos, de os governos atingidos serem considerados de esquerda, com políticas populares voltadas ao combate das desigualdades sociais, e de terem sido utilizadas as instituições estatais para ao mesmo tempo retirar tais governantes do poder e ostentar uma aparência de legalidade e normalidade institucional. Em todos esses casos, igualmente, tratou-se de implantar uma agenda de reformas de cunho neoliberal, com fortes restrições de direitos sociais conquistados nas últimas décadas.
Em obra recente, Anibal Pérez-Liñán identifica na América Latina, após as transições realizadas com o fim das ditaduras civis-militares de segurança nacional, a tendência de interrupção de mandatos presidenciais por meio de juízos políticos. Tal tendência acentuou-se a partir dos anos 90 e indica um novo modo de instabilidade política na região 29 . Entre a derrubada do Presidente brasileiro Fernando Collor em 1992 e o ano de 2004, Pérez-Liñán catalogou a deposição de dez presidentes latino-americanos. Em seu estudo comparativo, Pérez-Liñán identifica a confluência de quatro fatores desse novo processo: a ausência de participação das forças armadas, a existência de protestos sociais de grande expressão em face de denúncias de corrupção ou diante de crises econômicas, a presença da mídia como uma espécie de vigilante moral público da sociedade e um baixo nível de apoio parlamentar ao presidente eleito, além da participação decisiva do parlamento na deposição do Presidente na moldura constitucional.
A pergunta que fica aqui indicada é se esta nova modalidade pode ser considerada em alguns casos um golpe de Estado. Carlos Barbé assinala que nos anos 70 do século XX a forma mais frequente de golpe de estado foi a que envolveu a participação de militares 30 , do que pode se deduzir, em acordo com a definição do autor, que não é um elemento obrigatório e necessário a ativa participação militar.
Conforme Barbé, na história do conceito de golpe de Estado, que inicia com a obra de Gabriel Naudé (Considérations politiques sur le coup d'État - 1639), identifica-se uma mudança de atores quanto à sua promoção ativa. Originalmente o conceito apontava para atos de exceção praticados pelo soberano. Com o advento do constitucionalismo, o conceito passou a abranger também situações de mudança do governo ocorridas com a violação da Constituição vigente, e praticada pelos próprios detentores do poder político, normalmente com violência. E, por fim, o golpe militar.
Partindo dessa moldura conceitual, é possível identificar a ocorrência de um golpe de Estado quando ocorre a mudança do governo a partir de uma violação das regras constitucionais, sendo também importante a participação de grupos políticos poderosos na sua realização, e ainda que não ocorra a participação dos militares.
Também é possível delimitar o caráter de golpe para os recentes processos de deposição de governantes na América Latina recorrendo à ideia de que em Estados formalmente democráticos, ainda que de baixíssima intensidade especialmente para as camadas mais periféricas das sociedades latino-americanas, podem ser utilizadas de maneira mais ampla e “criativa” medidas de exceção, isto é, medidas autoritárias, apoiadas no decisionismo, sem amparo legal ou constitucional. Tais medidas de exceção podem promover a retirada dos governantes eleitos e deflagrar mudanças bruscas de orientação política no governo, sem que para isso seja necessária a instauração de um Estado de exceção declarado e sem que se rompa ostensivamente com os mecanismos de democracia formal 31 , contrariamente ao que ocorreu nas ditaduras civis-militares de segurança nacional.
No caso brasileiro de 2016 nota-se uma diferença crucial em relação ao padrão proposto por Pérez-Liñán, qual seja o papel decisivo do poder judiciário na ruptura institucional, fazendo às vezes de guardião moral da sociedade apoiado e reverberado pela mídia hegemônica, e com isso “justificado” em seus decisionismos violadores de cláusulas constitucionais.
A partir dos fundamentos expostos, se apresenta razoável e adequada a utilização da categoria “golpe” para tratar do processo de impeachment sofrido pela Presidenta Dilma Roussef em 2016.
No dia 02 de dezembro de 2015 o Presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha aceitou pedido de impedimento contra a Presidenta Dilma Rousseff pela prática de crime de responsabilidade contra a lei orçamentária (hipótese do Art.85, VI da Constituição Federal de 1988). A aceitação do pedido deu-se em circunstâncias polêmicas, pois ocorreu momentos depois que os deputados do Partido dos Trabalhadores (PT), partido da Presidenta, declararam que votariam contra o Presidente da Câmara em causa de cassação do seu mandato em andamento na Comissão de Ética da casa legislativa. No dia 17 de abril de 2016 ocorreu sessão plenária de votação do parecer favorável, aprovado pela Comissão Especial constituída, ao impedimento da Presidenta. O pedido foi aprovado pela Câmara com 367 votos a favor, 137 contra, 7 abstenções e 2 ausências. Nas manifestações dos parlamentares para justificar o voto pouco se tratou da acusação da prática de crime de responsabilidade pela Presidenta. O que a esmagadora maioria dos deputados disse foram homenagens a membros da família, acusações de corrupção à Presidenta (não mencionadas no pedido cuja aceitação se votava) e até homenagens a notórios torturadores da ditadura civil-militar, espetáculo que chocou a sociedade, até mesmo aqueles favoráveis à deposição da Presidenta. A aprovação do pedido na Câmara representou o momento culminante para o afastamento da Presidenta pelo Senado Federal, tornando-o praticamente irreversível sob o ponto de vista político. O placar do impedimento no Senado foi de 61 votos a favor e 20 contra, em um parlamento com ampla maioria oposicionista e conservadora, o que confere à ruptura institucional um inegável caráter parlamentar.
A denúncia que foi apreciada no Parlamento foi oferecida pelos juristas Hélio Bicudo, Janaína Paschoal e Miguel Reale Jr. Examinando-se a peça inicial, bem como as alegações finais e o relatório do Senador Antonio Anastasia do PSDB 32 , que foi designado no Senado relator do pedido aprovado na Câmara, vê-se uma doutrina absolutamente permissiva do impeachment no Direito brasileiro, que abre espaço a uma indevida fiscalização ordinária dos atos do Presidente eleito e potencializa a criminalização de atos de gestão e administração, quando deveria ser um processo excepcionalíssimo e rigoroso, adstrito às hipóteses constitucionais.
Embora a hipótese do impeachment esteja prevista na Constituição de 1988, a lei que regulamenta o seu rito e detalha as suas hipóteses é uma lei de 1950, a Lei N° 1.079/50. Esta lei teve como um dos seus redatores e entusiasta o político Raul Pilla, conhecido por seu fervor parlamentarista, e que havia sido previamente derrotado em sua campanha para que a Constituição de 1946 adotasse o sistema. A aprovação da Lei dos crimes de responsabilidade, a Lei N°1.079/50, figurou como uma espécie de prêmio menor ao bloco político parlamentarista, criando-se assim uma lei moldada por um viés parlamentarista vigente em um sistema presidencialista 33 . Interessante notar que foi Raul Pilla quem redigiu a emenda que adotou o sistema parlamentarista pra retirar os poderes presidenciais de João Goulart em 1961 34 diante da pressão dos inumeráveis grupos golpistas daquela época, militares e civis.
Vê-se, portanto, que o espírito que animou a lei do impeachment foi o parlamentarista. Contudo, o sistema no Brasil é o presidencialista. Se no primeiro a perda da maioria parlamentar pode destituir o governante, no segundo a sua destituição legal só pode ocorrer em circunstâncias excepcionais e restritas, não sendo suficiente a desconfiança da maioria parlamentar oposicionista. Necessário é que se configure um crime de responsabilidade. Afrouxar esta condição tornando-a permissiva para nela incluir múltiplas hipóteses determinadas por leis infraconstitucionais, incluindo até mesmo raciocínios extensivos e de analogia, como ocorreu no caso do impeachment da Presidenta Dilma Roussef, é fragilizar a cláusula democrática, substituindo o numeroso e expressivo respaldo popular que sustenta o mandato do Presidente da República pelo malabarismo hermenêutico de parlamentares com muito menos votos e de funcionários públicos sem representatividade alguma, como o são juízes e procuradores.
O Brasil alargou ainda mais o flanco de fragilidade democrática institucional ao submeter a Constituição de 1988 à lógica parlamentarista de uma Lei editada em 1950, e mesmo após o sistema parlamentarista ter sido rejeitado no plebiscito de 1993 por quase 70% da população. Na ausência de uma nova lei, que esteja mais adequada tanto ao sistema presidencialista como ao marco constitucional instituído a partir de 1988, seria ao menos necessário uma interpretação judicial que submetesse a legislação ordinária à lógica e à supremacia constitucional. De todo modo, mesmo considerando a existência da Lei de 1950, o processo de impeachment da Presidenta Dilma Roussef não conseguiu de modo consistente identificar qualquer crime de responsabilidade.
No caso das célebres “pedaladas fiscais” 35 , o inciso VI do Art.85 da CF de 1988 afirma que são crimes de responsabilidade atos que atentem contra a “lei orçamentária”. As peças da acusação no processo de impeachment afirmam que nesta expressão dever-se-ia incluir a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar N° 101/2000). No entanto, a questão fiscal não se confunde com a orçamentária, ainda que estejam relacionadas, existindo uma lei diferente para cada qual. Querer incluir uma lei que não é orçamentária em um dispositivo excepcional e com consequências drásticas para o mandato presidencial é dar uma amplitude muito questionável e temerária.
Indo além, o Senador Anastasia afirmou em seu parecer de admissibilidade ao processo de impedimento no Senado que, como a Lei de Responsabilidade Fiscal diz no seu Art.73 que as infrações a esta lei serão punidas com base, entre outras leis, na Lei de 1950, violar qualquer dispositivo da Lei de Responsabilidade Fiscal implica em crime de responsabilidade. A partir daí o Senador indica que a Presidenta violou o Art.36, que veda a realização de empréstimo entre o ente da federação e instituição financeira por ele controlada. No entanto, em nenhum lugar da lei se diz que a infração a este artigo é um crime de responsabilidade. Mas ainda que fosse, atrasar o pagamento de recursos aplicados para subvenção de programas que garantem direitos sociais, como ocorreu no Plano Safra, um plano público de concessão de crédito para a agricultura familiar, não é uma operação de crédito, não existindo sequer precedente judicial ou doutrinário neste sentido.
Com base na falsa premissa anterior, partiu-se para a identificação do que seria outro suposto crime de responsabilidade: a edição de decretos de crédito suplementar fora da meta fiscal, já que se a premissa fosse verdadeira não haveria superávit a autorizar os créditos, condição prevista na Lei de Orçamento de 2015. Deixando a falsa premissa de lado, a edição desses decretos seguiu rigorosamente as condições exigidas em lei, e é recurso comum utilizado por governos anteriores.
Ademais, todos os atrasos de pagamentos do tesouro às instituições financeiras federais foram quitados em janeiro de 2016 e o ano de 2015 fechou com a meta compatível aos gastos realizados, tendo a meta sido alterada em dezembro diante dos efeitos recessivos da crise econômica mundial 36 . No entanto, isso parece não ter qualquer relevância para os denunciantes do impeachment e os que os apoiaram, sob o pretexto de que se a Lei de Responsabilidade Fiscal é uma lei que protege a precaução, então qualquer ato considerado temerário vira um crime de responsabilidade, ainda que não tenha havido prejuízo aos cofres públicos e os passivos tenham sido saldados. É um “crime formal de mera conduta”, conforme está assinalado no parecer do Senador Anastasia e nas Alegações Finais dos denunciantes. Não interessa o resultado.
Em homenagem aos princípios mais elementares do Direito Penal e da cláusula democrática, exige-se que o crime ensejador da perda do mandato presidencial popular seja estritamente previsto na Constituição ou a partir dela, restando vedado qualquer juízo de analogia ou alargamento. Querer afastar essa condição para que o Parlamento decida o que quiser, com a desculpa de que se trata de um juízo eminentemente político é violar a lógica e a Constituição.
Não só o crime identificado foi fruto de um verdadeiro atentado hermenêutico à Constituição e à legislação financeira como também não se conseguiu apontar sua autoria com clareza e coerência. A Presidenta Dilma foi ao mesmo tempo acusada por ato omissivo e comissivo, como se depreende da denúncia e das alegações finais. Somente restou aos defensores do impeachment, em suas alegações finais, invocarem a “personalidade enérgica e controladora” da Presidenta para afirmar que ela foi autora dos crimes criados, ou atestarem que a Presidenta era “íntima” do Secretário do Tesouro, a ponto de não se saber “onde começava um e terminava o outro” 37 .
Para além do protagonismo parlamentar na deposição da Presidenta eleita, o poder judiciário teve também participação crucial nesse processo. O STF se negou a exercer o seu papel de limitar os abusos do Parlamento ao longo do processo fraudulento de impeachment, mesmo quando provocado 38 , sob o argumento de que se tratava de uma decisão “política” e de que não deveria intervir, lavando as suas mãos.
Ademais, para que o processo de impeachment da Presidenta Dilma fosse possivel, foi necessário um intenso processo de criminalização do seu partido e do seu governo, proporcionado por intensa campanha midiática e por ação seletiva e arbitrária do Judiciário federal, da Polícia Federal e do Ministério Público Federal.
Ao longo do ano de 2016 o Jornal O Globo estampava sucessivas manchetes e editoriais de apoio ao golpe parlamentar, assim como fizeram também quase todos os jornais da grande mídia (e entre eles a Folha de São Paulo, o Estadão e a Revista Veja) . A Rede Globo de Televisão teve papel decisivo e protagonista por meio principalmente dos seus programas de notícias e jornalismo. O Jornal Nacional dedicou edições inteiras para noticiar e analisar vazamentos seletivos e escutas ilegais enviadas diretamente pelo juiz Sergio Moro, responsável pela Operação Lava-Jato 39 . Também deu destaque para investigações ainda em andamento do Ministério Público Federal voltadas contra o Ex-Presidente Lula, seu partido e o governo da Presidenta Dilma, ao mesmo passo em que dava pouco espaço e importância às denúncias e delações envolvendo empresários que apoiavam a oposição e políticos da oposição, entre eles o candidato do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) derrotado em 2014. O auge do espetáculo midiático ocorreu na noite de 16 de março quando Moro enviou grampos ilegais de conversas entre a Presidenta Dilma e o Ex-Presidente Lula, feitos na própria Presidência da República, diretamente à Rede Globo de Televisão, contendo conversas particulares e privadas que são manipuladas e expostas à execração pública em pleno Jornal Nacional 40 . O crime praticado por Moro é ignorado pelo Conselho Nacional de Justiça e pelo STF, contentando-se este último com um simples pedido de desculpas.
Amplos setores da Polícia Federal, em trabalho conjunto com o Judiciário e o Ministério Público Federal, no bojo da Operação Lava-Jato, levaram adiante Operações de investigação, conduções coercitivas 41 , prisões e de execução de mandados de busca e apreensão que se voltaram prioritariamente contra o próprio governo da Presidenta eleita e seu Partido, por mais frágeis e inconsistentes que fossem as acusações, enquanto os documentos e delações que envolveram políticos dos partidos favorecidos com a deposição da Presidenta Dilma, em especial o PSDB e o PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro), foram sistematicamente ignorados. A operação assumiu explicitamente um viés seletivo 42 apoiado basicamente em delações de corrupção obtidas a partir de prisões provisórias sem prazo para acabarem, além de terem praticado inúmeras ações ilegais e irregulares como vazamentos para a imprensa, prisões baseadas em indícios frágeis e escutas ilegais, inclusive de escritórios de advocacia que representavam os réus.
Quando provocado o STF e outras instâncias superiores convalidaram todas as evidentes ilegalidades praticadas em especial pelo juiz Sergio Moro. O episódio mais intenso neste sentido foi a decisão do Tribunal Regional Federal da 4a Região em representação disciplinar feita por advogados contra este juiz, tomada em setembro de 2016. Por 13 votos a 1, os juízes deste Tribunal decidiram que a Operação Lava-Jato está lidando com situações excepcionais e que portanto exigem “soluções excepcionais”, e não podem ser tratadas pelo direito comum 43 . O relator chega até mesmo a citar Giorgio Agambem para definir o Estado de exceção, embora o faça indevidamente já que interpreta ser a sua descrição do Estado de exceção uma hipótese necessária em alguns casos e não uma denúncia do alastramento do seu padrão pelo mundo.
A deposição da Presidenta Dilma Roussef, assim como todas as consequencias que vieram depois para o país em termos de retrocessos e fragilização democrática, necessitou de um ambiente institucional de normalização do abuso de poder por parte do Judiciário, bem como da sua convergência com abusos de poder praticados por outros agentes públicos, entre os quais membros do Ministério Público, da Polícia Federal e parlamentares.
No processo de justiça transicional brasileiro, ainda em curso, muitas ações importantes foram realizadas, ainda que tardiamente, mas o bloqueio da pauta da responsabilização, tanto administrativa quanto penal, e a ausência de reformas públicas e legais mais efetivas no repúdio à instrumentalização das instituições estatais e de setores estratégicos como a mídia e o sistema de justiça, parecem ter contribuído significativamente para a interrupção do processo democrático iniciado em 1988.
É por demais simbólico que logo no segundo dia após consumado o processo fraudulento de impeachment, mais precisamente no dia 02 de setembro de 2016, o então Ministro da Justiça Alexandre de Moraes operou um desmantelamento da Comissão de Anistia, com a dispensa unilateral e não justificada de seis dos seus membros mais antigos e a nomeação de vinte novos membros, dos quais nenhum é reconhecido por atuar no campo dos Direitos Humanos, o que fez sem qualquer consulta à sociedade civil organizada, como movimentos de familiares de mortos e desaparecidos políticos, organizações de direitos humanos, movimentos sociais, e sem a anuência dos conselheiros dispensados. Em toda a sua existência a mudança na composição do conselho sempre se deu a partir da espontânea decisão dos membros mais antigos em saírem e a partir da consulta aos movimentos e organizações mais envolvidos com a pauta.
Houve nas primeiras reuniões do novo grupo uma clara tentativa por parte da atual equipe administrativa e de alguns dos novos membros em alterar em desfavor dos anistiandos uma série de entendimentos já consolidados na Comissão de Anistia. O ápice deste processo foi a declaração à imprensa do então novo Conselheiro Alberto Goldman de que não deveria haver a reparação pecuniária aos perseguidos, já que a reparação teria sido a própria redemocratização do país 44 . Movimentos brasileiros por Verdade, Memória e Justiça reagiram em notas 45 , e devido à pressão o referido Conselheiro acabou pedindo o desligamento da Comissão, mas o seu entendimento, hostil ao programa de reparações brasileiro, é compartilhado por alguns dos novos Conselheiros e pela própria equipe administrativa da Comissão, empossada tão logo Alexandre de Moraes assumiu o Ministério da Justiça.
Desde que Michel Temer assumiu o poder, a Comissão tem estado praticamente estagnada em todas as suas atividades. Foram pouquíssimas as sessões ocorridas até o primeiro semestre de 2017. O Conselho, incluindo-se aí a Presidência da Comissão, perdeu completamente a ingerência sobre as sessões, estando todo o andamento e todos os projetos da Comissão nas mãos da equipe administrativa, constituída de modo completamente independente em relação à própria Presidência do Conselho, o que contrasta com o modo anterior de funcionamento da Comissão desde as suas origens.
As Caravanas da Anistia foram interrompidas. O Edital Marcas da Memória não foi renovado e não há qualquer perspectiva na sua continuidade. O Projeto Clínicas do Testemunho não conta no horizonte com qualquer indício de renovação pelo governo brasileiro. E a construção do Memorial da Anistia resta interrompida e inconclusa 46 .
O golpe de 2016 articula simbolicamente um esforço revisionista de suavização do golpe civil-militar de 1964. Para além dos efeitos óbvios neste sentido que a paralisação de toda a pauta justransicional acarreta, as manifestações civis que pediram a derrubada da Presidenta eleita trouxeram consigo setores expressivos que pediam a volta da ditadura militar, tida por eles como um período sem corrupção e duro para com os comunistas ou membros da esquerda (agora identificados com o Partido dos Trabalhadores). Toda a forte campanha de estigmatização do PT e das suas principais lideranças, conduzida ao longo desse processo, teve o condão de suavizar as ilegalidades e abusos de poder praticados contra eles, bem como justificar um juízo político sem amparo constitucional, em claro paralelismo com a ruptura havida em 1964.
Nessa chave, ainda é preciso mencionar que a despeito da ampla base parlamentar do governo instalado em 2016, e justamente por isto capaz de operar retrocessos antipopulares e antissociais na legislação, a instabilidade política e econômica apenas se agravou. Nesse cenário, um general da ativa das Forças Armadas, Hamilton Mourão, depois apoiado pelo então Comandante do Exército brasileiro, General Eduardo Villas-Boas, invocou em uma palestra tornada pública pelos meios virtuais, a possibilidade de uma “intervenção militar” caso o judiciário brasileiro não afaste os políticos envolvidos em maus feitos, e na mesma ocasião fez uma defesa do papel das Forças Armadas durante a ditadura vivida pelo país 47 . O fato teve repercussão nacional e encontrou amplo apoio nas redes sociais, não raro com discursos revisionistas sobre o significado da ditadura civil-militar 48 .
De todas as forças que continuam a operar pela normalização do golpe parlamentar e das suas consequências, uma das maiores responsabilidades cabe ao Poder Judiciário, na medida em que claramente abriu mão do seu papel contramajoritário e de defensor dos direitos e garantias constitucionais 49 .
A par da ausência de depurações administrativas no corpo do Poder Judiciário após o regime autoritário, seja em relação ao pessoal integrante do aparato burocrático seja em relação aos próprios magistrados, importa aqui destacar a manutenção no regime democrático de uma expectativa moralizante a respeito da atuação jurisdicional combinada com sua presença cada vez maior nas funções de mediação institucional e social.
Para um diagnóstico coerente com os que poderiam ser apontados como os cânones democráticos mais básicos, sejam eles relativos à soberania popular ou ao espaço conferido à participação da sociedade civil organizada e à permeabilidade às demandas populares, não basta partir-se apenas das definições conceituais reservadas ao papel do Poder Judiciário em um Estado de Direito. É preciso problematizar suas continuidades históricas, sua estrutura elitista, hierárquica e pouco permeável ao exercício democrático, o que assume cores especiais no contexto latino-americano 50 .
Como lembra Cittadino 51 em um país como o Brasil, dificilmente se pode invocar a existência de uma comunidade de valores que possa ser perscrutada pela inteligência e sensibilidade superiores de algum magistrado, ou que esteja afinada a alguma tradição constitucional. A história constitucional brasileira é permeada por rupturas e continuidades que não autorizam a pressuposição quanto à existência de algum tipo de tradição. Tampouco é factível supor-se uma comunidade ética de valores compartilhados no contexto de sociedades profundamente marcadas pela desigualdade e pela assimetria nas relações de poder (se é que seria possível fazê-lo em relação a qualquer sociedade contemporânea), sem falar no intenso pluralismo que as caracterizam.
Em contextos assim, o compromisso maior e necessário do Poder Judiciário deve ser, de um lado, o de concretizar a Constituição a partir dos seus próprios marcos republicanos, abrindo mão da busca de um denominador moral objetivo que esteja para além ou para aquém da referência constitucional, e controlando com especial atenção os seus próprios arroubos ativistas, e de outro, a abertura e a permeabilidade aos grupos sociais populares organizados voltados a pautas emancipatórias de diminuição das desigualdades históricas e ao respeito e ampliação dos direitos fundamentais. Como bem adverte Ingeborg Maus,
Quando a justiça ascende ela própria à condição de mais alta instância moral da sociedade, passa a escapar de qualquer mecanismo de controle social - controle ao qual normalmente se deve subordinar toda instituição do Estado em uma forma de organização política democrática. No domínio de uma Justiça que contrapõe um direito “superior”, dotado de atributos morais, ao simples direito dos outros poderes do Estado e da sociedade, é notória a regressão a valores pré-democráticos de parâmetros de integração social. 52
Não se trata de negar ao judiciário a necessidade de que exerça a interpretação da lei ou de querer regressar a parâmetros positivistas ou de literalidade, especialmente em um marco constitucional principiológico, mas sim que se abstenha de ostentar as categorias objetivas da moralidade social e da escuta do “clamor popular”, acabando por confundir interpretação com subjetivismo ou decisionismo. Autonomia e independência judiciais não devem ser compreendidas como pretextos para abusos de poder. Dado o seu histórico de complacência autoritária, é imprescindível que se opere uma democratização na própria estrutura administrativa do poder judicial 53 e em relação à sua atividade, ampliando os controles sociais e democráticos, buscando-se criar verdadeiras pontes de diálogos e construção entre a magistratura e os movimentos sociais, sem o que se esvaem a legitimidade e a soberania popular.
Independente dos interesses e pressões internacionais que influenciaram a ruptura institucional ocorrida em 2016 no Brasil, ao examinar-se o processo a partir das próprias contradições e dificuldades internas do país, nota-se, por tudo o que já se descreveu aqui, um claro destaque para o papel concomitante do poder judiciário em omitir-se no controle dos atos parlamentares e em praticar atos de abuso de poder e de violação dos marcos legais e constitucionais, aspecto este combinado à realização de uma justiça de transição parcial e bloqueada nas pautas da responsabilização e da reforma das instituições, que seguiu de perto 54 a própria ambiguidade do processo de anistia no Brasil.