Resumo: Procuro corroborar a importância e atualidade do texto crítico de Antonio Candido denominado Dialética da malandragem. Inicio localizando-o historicamente entre uma profusão de trabalhos que contemplam a malandragem, buscando na metodologia de bases marxistas proposta por Candido, para analisar o romance Memórias de um sargento de milícias, um possível caminho para uma escuta crítica do gênero samba.
Palavras-chave: DialéticaDialética,Antonio CandidoAntonio Candido,SambaSamba.
Abstract: I intend to corroborate the importance and topicality of Antonio Candido’s critical text named Dialectic of the trickery. I start to place it historically between a profusion of works that contemplate the trickery, looking at the Marxist-based metodology proposed by Candido to analyze the novel Memoirs of a Police Sergeant, as a possible way for a critical listening ot the samba genre.
Keywords: Dialectic, Antonio Candido, Samba.
Dossiê
Pressupostos marxistas para uma escuta crítica do Samba
Marxist assumptions for a critical listening of Samba
Recepção: 11 Agosto 2018
Aprovação: 15 Agosto 2018
Cai no chão Um corpo maltrapilho Velho chorando Malandro do morro era seu filho
Lá no morro De amor o sangue corre moça chorando Que o verdadeiro amor sempre é o que morre
Menino quando morre vira anjo Mulher vira uma flor no céu Pinhos chorando Malandro quando morre Vira samba 1
(Chico Buarque / Malandro quando morre)
Houve um período no Brasil no qual textos que positivavam a malandragem e o malandro deram o tom na produção da cultura nacional. O ensaio Dialética da Malandragem – Caracterização das Memórias de um sargento de milícias, escrito por Antonio Candido e publicado pela primeira vez no início da década de 1970, auge desse período, é um dos mais emblemáticos. Nele, o crítico trabalha com um método de análise – de bases marxistas, segundo Roberto Schwarz 1 – utilizado no sentido de potencializar o romance de Manuel Antônio de Almeida.
Há que se iniciar esse texto ressaltando que a posição metodológica adotada por Candido em Dialética da Malandragem está presente em outras análises suas de romances com temáticas diversas, já que “em literatura, o básico da crítica marxista está na dialética de forma literária e processo social” (SCHWARZ, 2006, p. 129). Ainda que minha aproximação teórica tenha, inicialmente, acontecido por conta do conteúdo, a malandragem, e da sua afinidade com o universo do samba, o método da redução estrutural em Candido não deve ser reduzido, unicamente, à dialética da ordem e da desordem presente no romance de Manuel Antônio de Almeida. Preciso deixar claro que o que procuro aqui é refletir sobre possíveis desdobramentos estéticos da redução estrutural de dados externos, fundamentalmente marxista, num universo afim à malandragem: o samba.
Retomemos a história da profusão de escritos sobre a malandragem localizando sua origem no momento da emancipação política de 1822, quando a intelectualidade local estava preocupada com a questão da identidade nacional brasileira. Ocasião em que, havendo a necessidade de formalizar a separação do país da metrópole portuguesa, foram tomadas algumas medidas estratégicas urgentes, como, por exemplo, fundar faculdades de medicina visando a melhoria da saúde da população que vivia em precárias condições de higiene. Para além desse desafio, era também premente a criação de uma inteligência local. Nesse sentido, em 1826 foram fundadas as primeiras faculdades de direito e em 1839 o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Esse promoveu em 1844 seu primeiro concurso com o sugestivo título “Como escrever a história do Brasil”. “[...] após equipar o país de médicos e advogados, era preciso modelar uma história para a nação, já que, como se comentava abertamente nas páginas da revista do instituto, não há país sem história” ( SCHWARCZ, 1995 , p.52).
O alemão Karl von Martius, vencedor do concurso, apontou como a principal característica positiva da nossa história a miscigenação, defendendo o ponto de vista no qual deveria ser prioridade mostrar que, no desenvolvimento do Brasil, se acham estabelecidas as condições para o aperfeiçoamento das três raças humanas. Inaugurou, assim, o conhecido “mito das três raças” 2 . A partir de Von Martius, a ideia de que o Brasil era um laboratório racial singular constou em diversas teorias que valoravam a miscigenação de uma forma predominantemente negativa. A mestiçagem surgia nesse contexto, portanto, como uma grande incógnita, uma ambiguidade instaurada bem no meio do mito otimista das três raças.
A questão racial ainda continuou sendo, durante um bom tempo, o argumento fundamental na definição da identidade nacional; a partir do final dos anos 1920, no entanto, esse argumento passou a ser questionado e começaram a ocorrer explicações baseadas em fatores sociais, econômicos e culturais. Com base nesta mudança de referência, políticas culturais foram engendradas com o intuito de viabilizar a identidade brasileira.
Esse contexto histórico contribuiu para o surgimento de uma obra com o teor de Casa-grande & senzala (2001), que teve sua primeira edição em 1933. Embora Freyre tenha sofrido inúmeras críticas, sobretudo dirigidas à sua tese da democracia racial, Casa-grande & senzala permanece até hoje como uma obra instigante, seja pela linguagem inovadora, quase literária, que o autor utiliza na escrita do livro, seja pela positivação da mestiçagem, assumida na contramão das tendências da época. Ou, ainda, pelo significado ideológico de suas afirmações que ainda suscitam debates travados por uma legião de intelectuais, tantos anos depois da publicação do livro.
Explicações de ordem cultural na busca da identidade nacional passaram, assim, a ser predominantes no primeiro governo de Getúlio Vargas. Os intelectuais do Estado Novo criaram projetos que assimilaram o mestiço e sua cultura como símbolos nacionais: após décadas e décadas de repressão policial, a capoeira foi oficializada como modalidade esportiva nacional em 1937; a feijoada foi convertida em prato típico brasileiro 3 ; o samba passou a ser o ritmo que representava o país, aqui e lá fora. Absorver a cultura mestiça, no entanto, não significava aceitar, entre outros traços dessa cultura, o samba malandro, uma pedra no sapato do governo trabalhista de Vargas. À política getulista interessava o mestiço como símbolo, desde que apartado da cultura malandra. Assim, o chamado “samba da legitimidade” 4 , foi produto da ideologia getulista; Bonde de São Januário , de Ataulfo Alves e Wilson Batista, lançado em 1941, é um paradigma deste tipo de samba, em que o texto formalizava a valorização do trabalho e a repressão à cultura malandra.
Quem trabalha é que tem razão Eu digo e não tenho medo de errar O bonde São Januário Leva mais um operário: Sou eu que vou trabalhar
Antigamente eu não tinha juízo Mas resolvi garantir meu futuro Vejam vocês:
Sou feliz, vivo muito bem A boemia não dá camisa a ninguém É, digo bem
(Ataulfo Alves & Wilson Batista/O Bonde de São Januário )
Assim, nesse período, simultaneamente ao processo de absorção do mestiço e de sua cultura como símbolos de identidade nacional, ocorre a rejeição do malandro real e o cultivo de sua desvinculação da ideia da mestiçagem. Esse esforço culmina com a conversão em ícone nacional do personagem Zé Carioca, um malandro zoomórfico e caricato, traçado por Walt Disney sob encomenda do governo norte-americano, para as ações da política da boa vizinhança entre Estados Unidos e Brasil.
Os anos que se seguiram à era Vargas, porém, inauguraram uma nova fase na abordagem do malandro e da malandragem por intelectuais brasileiros. O tema foi se tornando cada vez mais significativo para pensadores e artistas que focaram em seu caráter transgressor, abordando-o ostensivamente a partir da década de 1960: em 1961, a peça de Nelson Rodrigues Boca de Ouro, foi encenada no Rio de janeiro. 1963 é o ano de publicação da primeira edição da coletânea de contos Malagueta, Perus e Bacanaço, de João Antonio, uma história de três malandros jogadores de sinuca percorrendo a cidade de São Paulo durante uma madrugada. Em 1966 estreia o musical Vidigal, de Millôr Fernandes, uma adaptação teatral do romance Memórias de um sargento de milícias. E 1969 é o ano da estreia da adaptação de Macunaíma para as telas. Depois de passar décadas entre a prisão e o ostracismo, o malandro capoeirista Madame Satã retorna à cena concedendo uma entrevista ao jornal O Pasquim. A entrevista contribuiu para revigorar o interesse pelo mito do malandro carioca, resgatando um tanto de realidade e um tanto de ficção, difusamente retidos nas recordações do controverso malandro, sobre o violento submundo carioca do início do século XX. E ainda, publicado pela primeira vez nesse período, na década de 1970, Carnavais, malandros e heróis – para uma sociologia do dilema brasileiro , de Roberto DaMatta, foi referência importante para o assunto.
É Gilmar Rocha quem aponta, ainda, outros textos relevantes e denomina o grande fluxo de produções teóricas surgidas a partir dos anos 1960, que assimilaram a positivação da cultura da malandragem, como “sociologia da malandragem”.
O culto à malandragem coincide com o momento político e cultural da censura e ditadura militar no Brasil. Com efeito, as representações da malandragem passam a ter mais explicitamente uma significação política entre setores intelectualizados das camadas médias, mais ou menos comprometidas com a esquerda, como forma de reação ao fechamento da vida política e cultural da sociedade brasileira. Vinculada ao folclore da sabedoria popular, a malandragem aparece como uma possibilidade de ludibriar o cerco ditatorial da censura ao se dizer o proibido através do consentido. [...] Minha hipótese é que a sociologia da malandragem produzida nos anos 70, desempenha um papel canônico na compreensão desse fenômeno social, pois as interpretações “clássicas” de Antonio Candido, na literatura, de Gilberto Vasconcelos e Cláudia Matos, na música, e de Roberto da DaMatta, no folclore, podem ser vista como uma espécie de “fundadores de discursividade” que, no conjunto, somam para a formação de uma estrutura narrativa sobre a qual se apoia o sentido da cultura da malandragem (ROCHA, 2006, p.110).
Esse é, portanto, o momento histórico em que Antonio Candido surge com o trato da malandragem como dinâmica estrutural no já mencionado Dialética da Malandragem, referencial indispensável sobre Memórias de um sargento de milícias que alterou definitivamente as leituras posteriores do romance, provocando inúmeros desdobramentos.
Em Dialética da malandragem, Candido resgata o percurso da crítica sobre as Memórias, iniciando pela posição formulada por José Veríssimo. Esse autor define-as como romance realista. Na linha traçada por Candido, segue-se a teoria da filiação à picaresca, postulada pelo crítico Josué Montello. Candido, no entanto, refuta tais argumentações, dadas as características diferenciadas das Memórias5 . Segundo sua perspectiva, Leonardo, o herói de Memórias de um Sargento de Milícias foi o primeiro grande malandro a entrar na novelística brasileira (CANDIDO, 2004, p.22). Em oposição, também, a Darcy Damasceno, outro crítico mencionado no ensaio, Candido afirma que na história do “filho de uma pisadela e de um beliscão” existem mais diferenças do que semelhanças entre o herói e o pícaro espanhol; para ele as Memórias inauguraram o gênero romance malandro.
É importante ressaltar que, no fluxo de sua Dialética da Malandragem , Candido não explicitou os fundamentos e princípios metodológicos que a regem. Será, como já esbocei, em um ensaio de Roberto Schwarz, intitulado Pressupostos, salvo engano, de Dialética da malandragem, que encontraremos um esforço para que emerjam os fundamentos marxistas do ensaio de Candido. Para Schwarz, trata-se do primeiro estudo literário brasileiro propriamente dialético para interpretar a literatura local e seus resultados são notáveis.
Em Dialética da malandragem, Candido procura entender qual a função exercida pela realidade social, historicamente localizada, para constituir a estrutura da obra. Segundo Schwarz, para além de discutir cuidadosamente o referencial crítico sobre as Memórias, principalmente no que se refere à sua filiação ao romance picaresco, o autor dialoga em seu texto com pelo menos mais duas questões: o sociologismo, ou marxismo vulgar, e o estruturalismo. “É em oposição a estes que ressaltam a atualidade e a originalidade metodológicas do ensaio, que desenvolve uma noção própria do que seja forma e de sua relação com o processo social.” Ainda para este autor, a crítica realizada por Candido reúne:
[...] uma análise de composição que renova a leitura do romance e o valoriza extraordinariamente; uma síntese original de conhecimentos dispersos a respeito do Brasil, obtida à luz heurística da unidade do livro; a descoberta, isto é, a identificação de uma grande linha que não figurava na historiografia literária do país, cujo mapa este ensaio modifica; e a sondagem da cena contemporânea, a partir do modo de ser social delineado nas Memórias ( SCHWARZ, 1979 , p.74).
Schwarz reconhece, assim, a singularidade do ensaio no que se refere à leitura de Candido das Memórias. Mas critica seu aspecto prospectivo. Vejamos.
A Dialética da Malandragem e os Pressupostos, salvo engano, de Dialética da Malandragem foram escritos durante a ditadura militar no Brasil; por isso Schwarz atentou para o fato de que as perspectivas sociais projetadas no ensaio de Candido davam a ele um caráter ideológico passível do comentário impiedoso daquele contexto ( SCHWARZ, 1979 , p.152). Isso porque a dialética da ordem e da desordem, que explica uma dinâmica social cômica, popular, historicamente determinada é generalizada, na voz de Candido, para o modo de ser brasileiro. O autor dos Pressupostos indaga se o fluxo de ilegalidades e arbitrariedades geradas no período da ditadura militar, pelo bem da modernização, não se enquadrariam, também, na dialética da ordem e da desordem, o que indicaria que “só no plano dos traços culturais malandragem e capitalismo se opõem...” ( SCHWARZ, 1979 , p.150).
Na simpatia de Candido pela capacidade de resistência e adaptação das classes populares brasileiras, Schwarz enxerga um viés valorativo filiado à ensaística dos anos 1930, mais especificamente presente nas obras de Sérgio Buarque de Hollanda – Raízes do Brasil – e Gilberto Freyre - Casa-grande & senzala. E ele explica em que medida se dá a dimensão ideológica do ensaio de Candido:
A transformação de um modo de ser de classe em modo de ser nacional é a operação de base da ideologia. Com a particularidade, no caso, de que não se trata de generalizar a ideologia da classe dominante, como é hábito, mas a de uma classe oprimida. [...] Assim, a matriz de alguns dos melhores aspectos da sociedade brasileira estaria na sociabilidade desenvolvida pelos homens pobres, à qual o futuro talvez reserve uma oportunidade. Noutras palavras, além de a identificar e valorizar, Antonio Candido a traz ao âmbito das grandes opções da história contemporânea [...]. Eis aí a posição, e porque não dizer, a originalidade ideológica deste ensaio ( SCHWARZ, 1979 , p.147-148).
Penso que essa dimensão ideológica, localizada por Schwarz na generalização da dialética da ordem e da desordem para o modo de ser do brasileiro de outros tempos e localidades, influenciaram profundamente as leituras posteriores e o curso produtivo da Dialética da malandragem. É possível que essa seja uma das explicações para o fato de que as interpretações do ensaio oscilem, na contemporaneidade, entre a utilização indiscriminada e a rejeição. A década de 1990 trouxe com ela textos críticos que passaram a questionar a assimilação do malandro e da malandragem como símbolos de identidade nacional. Os textos surgidos nessa perspectiva, de autores como João Cezar de Castro Rocha, Jessé Souza, Wanderlei Guilherme dos Santos e André Bueno, confrontam especialmente, textos sobre a cultura malandra, incluindo o de Candido na sua dimensão prospectiva.
Reforço, no entanto, que no texto em questão Candido fala da dialética em pelo menos dois sentidos:
Do lado da reflexão crítica, o seu nervo passa pela redução estrutural de uma forma social a uma forma estética, que em função dela se mostra a um tempo intuição artística e princípio de conhecimento. Mas a lei formal do romance assim descoberta e posta em funcionamento também revela e resume uma outra dialética, que Antonio Candido chamou de dialética da ordem e da desordem. A primeira acepção descende em linha direta da tradição materialista e traz para o primeiro plano o nexo entre forma e prática. Já na segunda, que se refere igualmente a um setor significativo da sociedade brasileira [...], se exprime um vínculo diverso entre os termos da questão. Dialética designa aqui a lei desse movimento, e se quisermos saber mais dela não há outro recurso além das expressões em que o próprio Antonio Candido a evoca: alternância, gangorra, balanceio etc. Só que agora sabemos que não se trata de uma simples simetria estrutural, mas de uma mediação ancorada num dinamismo social ( ARANTES, 1992 , p.44).
Entre as duas acepções citadas acima, a dialética da ordem e da desordem tem sido mais exercitada pela crítica literária, dada a sua ligação direta com a temática da malandragem que, como veremos, pautou muitas discussões sobre a identidade nacional brasileira. No entanto, o fluxo intenso de aplicações tem produzido trabalhos que não demarcam diferenças. Uma vez que, em se tratando de Candido, “há dialética por todos os lados, ou pelo menos uma inclinação muito marcada pela palavra” ( ARANTES, 1992 , p.9), há que se distinguir na leitura do texto o método dialético da redução estrutural dos dados externos, utilizado por Candido na análise de romances – e não somente na análise das Memórias de um sargento de milícias6 – da dialética da malandragem, resultante de sua reflexão sobre a relação entre a estrutura social da época e a estrutura da obra de Manuel Antonio de Almeida.
Penso que as afirmações dos autores que focam suas críticas na simpatia prospectiva de Candido pela malandragem são de cunho conteudista. Muitos consideram o texto de Candido datado pela exaltação da malandragem e limitado à essa questão.
Gostaria de propor, aqui, tendo como foco a questão do método, ainda que Candido tenha desenvolvido suas análises na esfera da produção romanesca, a possibilidade de considerarmos a produtividade da redução estrutural de dados externos na análise crítica do gênero samba.
Falar em samba, na perspectiva da estética marxista é, necessariamente, falar em malandragem.
Laurindo voltou Coberto de glória, Trazendo garboso no peito A Cruz da Vitória. Oi! Salgueiro, Mangueira, Estácio, Matriz estão agindo Para homenagear O bravo cabo Laurindo!
As duas divisas que ele ganhou, mereceu. Conheço os princípios Que Laurindo sempre defendeu. Amigo da verdade, Defensor da igualdade. Dizem que lá no morro Vai haver transformação. Camarada Laurindo, Estamos à sua disposição 7
(Haroldo Lobo & Wilson Batista)
O samba Cabo Laurindo, de Haroldo Lobo e Wilson Batista, é parte de uma série dedicada ao personagem homônimo; a série foi iniciada por Herivelto Martins no carnaval de 1943. No primeiro samba da sequência, intitulado Laurindo, o personagem sobe o morro para comemorar o fato de que a destruição da Praça Onze, anunciada pelas autoridades, ou seja, o fim de um tradicional palco de desfiles de escolas de samba do Rio de Janeiro, não aconteceu. 8
Laurindo sobe o morro gritando Não acabou a Praça Onze, não acabou Vamos esquentar nossos tamborins Procura a porta-bandeira E põe a turma em fileira E marca ensaio pra quarta-feira 9
(Herivelto Martins/Laurindo)
Wilson Baptista, em um novo samba intitulado Lá vem Mangueira, gravado também em 1943, traz o personagem como diretor de bateria da escola de samba Mangueira. Desta vez, Laurindo deixa suas atividades carnavalescas e parte para defender o Brasil na Segunda Guerra Mundial. Laurindo se torna herói.
Lá vem Mangueira
Outra vez descendo o morro com harmonia
Lá vem Mangueira
Sem Laurindo na frente da bateria
Perguntei
Conceição, o que aconteceu?
Laurindo foi pro front, este ano não desceu 10
(Haroldo Lobo, Jorge Castro e Wilson Baptista/Lá vem Mangueira )
Em Cabo Laurindo, o samba que sucede a série em 1945, os compositores Haroldo Lobo e Wilson Batista, como ouvimos, tratam de dar um final feliz para a participação de Laurindo na guerra.
Mas a história não para por aí: no samba Comício em Mangueira , de Wilson Baptista e Germano Augusto, lançado também em 1945, o cabo discursa para os componentes da escola de samba. A canção tem um tom dramático, fato que levou muitos a acreditarem na existência real do herói.
Houve um comício em mangueira E o cabo laurindo falou Toda escola de samba aplaudiu, ô Toda escola de samba chorou Eu não sou heroi Era comovente a sua voz Heróis, são aqueles Que tombaram por nós
Houve missa campal Bandeira à meio pau Toda escola de samba rezou Laurindo então lembrou os nomes Dos batuqueiros que tombaram Mangueira tomou parte na vitória Mangueira, mais uma vez na história 11
(Wilson Batista & Geraldo Augusto / Comício em Mangueira )
Finalmente, Wilson Baptista pensa em matar o impostor Laurindo num crime passional, mas esse samba nunca chegou a ser composto.
A série de composições intertextuais conta uma história falsa, uma saga para ouvintes “otários” que acreditaram na existência de Laurindo. O tom de exaltação e homenagem, quando sabemos que o conteúdo é irreal, torna-se irônico. O que, por sinal, é uma das consequências frequentes, no plano do sentido, ocorridas quando “sambizamos” 12 canções com determinados conteúdos sérios. O texto torna-se irônico, a escuta se altera, ainda que se trate da mesma canção.
O músico e professor José Miguel Wisnik sugere em um ensaio intitulado Algumas questões de música e política no Brasil (2004, p.197) um exercício de “sambização” na experiência de inverter as divisões rítmicas de dois temas musicais muito parecidos, melodicamente, na primeira frase de ambos: o samba de Noel Rosa Com que Roupa?13 e o Hino Nacional Brasileiro, “Agora vou mudar minha conduta” e “Ouviram do Ipiranga às margens plácidas”. Quem fizer essa experiência, provavelmente vai chegar a conclusões parecidas com as de Wisnik: quando cantada em ritmo de hino, Com que roupa? ganha um acento marcial e corporativo, perdendo o caráter de fala individual e irônica do cidadão precário, o sujeito do samba, que afirma entre negaceios sincopados a sua disposição irrisória de se afirmar na vida, tornando-se uma espécie de voz coletiva que brada com acentos épicos uma vontade de autotransformação (WISNIK, 2004, p.202). Ou seja, cantada em ritmo de hino, a canção Com que roupa? tende a ser percebida como uma voz menos individual e mais coletiva, menos risível e mais séria, menos cotidiana e mais histórica. Menos malandra.
Por outro lado, Wisnik sugere que cantar o Hino Nacional Brasileiro em ritmo de samba, também resulta em uma mudança de sentido, ele perderia o caráter épico e assumiria um tom de samba-enredo, gênero que tem origem justamente na junção entre a tradição da malandragem e o discurso cívico. Cantado em ritmo de samba, o Hino Nacional tende a ser menos coletivo e mais individual, menos sério e mais risível, menos dramático e mais irônico, menos histórico e mais cotidiano. Mais malandro.
No que se refere à sua estrutura o samba possui a marca das antecipações do ritmo ao pulso. São as chamadas síncopas. O ritmo quase não coincide com o pulso, mas precisa do pulso para exercer sua transgressão. Não havendo pulso, o ritmo deslocado assume a função de pulso. E enfraquece o caráter insubmisso. Dialética da ordem e da desordem. Uma espécie de redução estrutural da malandragem em seu diálogo com a lei. O gênero marcial se submete ao pulso; o samba não.
Tudo isso explica, em parte, o fato do Hino Nacional ser protegido por lei, “tanto mais severamente quanto mais autoritário for o regime” (WISNIK, 2004, p.204). Lembro que, no período da ditadura militar brasileira, o currículo escolar reservava um espaço para uma disciplina chamada “Educação Moral e Cívica”. Aprendi nessa disciplina, por exemplo, a forma oficial de se dobrar a bandeira nacional e a proibição sobre o uso da bandeira como veste. “Art. 24. É ainda proibido o uso da Bandeira Nacional [...] b) como ornamento ou roupagem, nas casas de diversão ou em qualquer ato que não se revista de caráter oficial”
Quanto à execução do Hino Nacional Brasileiro, era expressamente vedado cantar ou tocar divergindo do modo prescrito em lei: uma semínima igual a 120 no metrônomo, na tonalidade de si bemol, o canto sempre em uníssono.
O movimento das Diretas Já, ocorrido nos anos de 1983 e 1984, foi um movimento civil que reivindicava eleições presidenciais em que o povo pudesse votar diretamente para eleger o Presidente da República. A principal figura artística, presente na maioria dos palanques armados nas praças em função desse movimento, era a cantora Fafá de Belém. Em todas as ocasiões políticas ela cantava o Hino Nacional Brasileiro14 de forma livre, não marcial, livre do pulso, interpretando-o intensamente, romanticamente, como uma canção. Sem maiores rigores sobre a letra e a melodia original. É bastante significativo o fato de que o símbolo de um movimento de caráter democrático, pós-ditadura militar, tenha sido o Hino Nacional Brasileiro, com a estrutura rítmica original alterada livremente. A nação estava livre. Podemos visualizar, aqui, aquela redução estrutural dos dados externos de que nos fala Antonio Candido: a vida social assimilada pela arte. E vice-versa.
Gostaria de esboçar aqui, ainda, outra possibilidade de análise do universo musical sob a luz do método da redução estrutural. Mais uma vez atrelada à malandragem histórica e do samba .
O bandolinista e compositor brasileiro Joel Nascimento, nascido no Rio de Janeiro em 1937, tocou durante um bom tempo cavaquinho, piano e acordeom; sua vida musical tomou o rumo das rodas de choro no final da década de 1960, quando ele passou a executar o instrumento que o tornaria famoso, o bandolim.
Certa ocasião, em uma conversa informal da qual eu participava, Joel mencionou que sempre procurou imitar com seu instrumento um procedimento vocal de Jorge Veiga: um cantor de “sambas malandros, anedóticos, recheados de gíria”, dono de uma “voz anasalada que soava como um trombone de vara” 15 .
Após investigar a polca Coralina interpretada pelo instrumentista, percebi que o procedimento a que ele se referia, executado também, ostensivamente, por Jorge Veiga, é um ornamento melódico usualmente reconhecido em música como apojatura.
APOJATURA (s.f.) – Nota ou notas de ornamento colocadas superior ou inferiormente, antes da nota principal ou de apoio, com a qual dividem a duração. Dependendo da época e do estilo em que foram escritas as apojaturas têm interpretações diferentes. Para evitar ambiguidade, compositores contemporâneos preferem escrever a forma de executá-las. O termo é derivado do italiano appogiare, apoiar, sustentar ( ANDRADE, 1999 , p.21).
Definir essa conduta musical, na execução vocal de Jorge Veiga e na execução instrumental de Joel Nascimento como apojatura poderia ser suficiente; eu poderia parar por aqui uma vez que localizei o procedimento melódico que estava buscando e o relacionei com o termo sistematizado em um dicionário musical. E minha conclusão seria: a apojatura é um procedimento recorrente na estética da malandragem. O caso é que a redução estrutural expande o caminho. Vejamos.
A gravação da polca Coralina foi comentada pelo músico Pedro Amorim 16 , em encarte da coleção Princípios do Choro (2002), com as seguintes palavras: “Nesta interpretação, temos a sutileza e a boa malandragem da Penha. Dá-lhe Joel!”
Se Joel Nascimento é considerado nessa interpretação um intérprete malandro; se as apojaturas executadas por Jorge Veiga foram o motivo que levou Joel a mencioná-lo como uma de suas principais referências musicais; se as apojaturas, entre outras características, levaram Jorge Veiga a ser reconhecido como intérprete malandro, é importante refletirmos um pouco mais sobre esse ornamento musical, no contexto da cultura malandra.
Jorge Veiga era um pintor de paredes pobre, que costumava cantar durante seus afazeres, e que ingressou na carreira artística cantando no rádio, com a ajuda de um de seus patrões. Certamente os traços de suas interpretações foram desenvolvidos de forma intuitiva. Jorge Veiga, como a grande maioria dos cantores populares da época, não aprendeu a cantar em escola de música, o uso da apojatura certamente teve origem na vida, na prática imitativa, no tino musical. Tampouco Joel Nascimento, que passou por uma escola musical mais sistemática, reconheceu e se referiu à sonoridade malandra de Jorge Veiga, que procurava imitar, como apojatura.
Como explicar a associação de um ornamento musical a conteúdos da cultura malandra? Que relação é possível de ser estabelecida entre essa cultura e a sonoridade produzida por uma nota que aparece na melodia como um obstáculo, um deslize melódico, uma passagem sonora rápida, com a função de valorizar a nota de apoio principal que vem em seguida, o destino melódico?
Penso que a voz de Jorge Veiga e a execução instrumental de Joel Nascimento assimilaram uma conduta social do malandro. A capacidade de indução, o engodo, a ginga que permite ao corpo do malandro mencionar um movimento para executar outro. A apojatura sonoriza o comportamento dissimulado. Essa assimilação, que transita do plano da vida para o plano da arte, é a malandragem estética. Na malandragem estética a apojatura imprime na interpretação conteúdos axiológicos que remetem à toda a história do malandro e da malandragem no Brasil.
A passagem breve por um som para atingir outro é a formalização musical de aspectos encontrados no universo do malandro, tal como o conhecemos na vida, na cognição e na arte. Sobre esse universo o dicionário musical pouco tem a dizer. As atuações do cantor Jorge Veiga e do instrumentista Joel Nascimento remetem a práticas exercidas no universo real da malandragem. Reduzidas à procedimento vocal, instrumental e, em última instância, sonoro, o externo se tornou interno numa estrutura musical, corroborando, salvo engano, a pertinência e importância do método dialético proposto por Antonio Candido em nossos dias. Mais vivo do que nunca.