Dossiê
A invisibilidade do Esporte e da Cultura como Direitos da Criança e do Adolescente
The invisibility of Sport and Culture as Rights of Children and Adolescents
A invisibilidade do Esporte e da Cultura como Direitos da Criança e do Adolescente
Revista Direito e Práxis, vol. 10, núm. 2, pp. 1430-1460, 2019
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Recepção: 27 Fevereiro 2019
Aprovação: 23 Março 2019
Resumo: O presente artigo problematiza a invisibilidade do esporte e da cultura como direitos fundamentais de crianças e adolescentes. Parte-se de dois exemplos em cada um dos temas, mais especificamente no que diz respeito ao direito ao esporte, inclusive à profissionalização dos centros de treinamento de atletas, e ao direito à cultura de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa, tudo para apontar a falta de prioridade orçamentária para efetivação dessas políticas públicas.
Palavras-chave: Esporte, Cultura, Direitos da criança e do adolescente.
Abstract: This article aims to problematize the invisibility of sport and culture as fundamental rights of children and adolescents. Two examples are given on each issue, specifically regarding the right to sports and the professionalization of athlete training centers and the right to culture of adolescents in compliance with socio-educational measures to point out the lack of budget priority for the implementation of these public policies.
Keywords: Sport, Culture, Rights of Children and Adolescents.
Introdução
Decorridos quase 30 anos da Convenção dos Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU), ainda muitas são as hipocrisias e os desafios, especialmente em realidades periféricas e economicamente dependentes do sistema-mundo, não raro envolvidas com o “desenvolvimento do subdesenvolvimento”1, como infelizmente é o caso do Brasil.
A proposta do presente texto foca em dois direitos garantidos tanto pela Convenção quanto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) e pelo Estatuto da Juventude (Lei 12.852/13) que ainda não são suficientemente “levados a sério”2 pelos poderes e, inclusive, pelas instituições do Sistema de Garantia de Direitos (SGD3): a cultura e o esporte.
Crianças, adolescentes ou mesmo jovens, na realidade brasileira, estão muito longe do (re) conhecimento da cultura e do esporte como direitos fundamentais, não obstante tais direitos sejam reconhecidos como parceiros e “vizinhos” desde o texto normativo expresso da própria Constituição.
Como bem expõem tragédias recentes ocorridas no recém-iniciado ano de 2019, muito do que o Brasil ainda não é como país, enquanto espera-se um desenvolvimento social que se anteponha à pura e simples exploração econômica, passa pela hipocrisia, subalternidade e descaso com que são tratados os direitos fundamentais das crianças, dos adolescentes e dos jovens no que diz respeito à cultura e ao esporte.
Cultura e esporte que, antes de serem concedidos como direitos fundamentais para serem efetivados “se” e “quando” der, sem a devida prioridade, precisam ser compreendidos de modo integrado e articulado com diversos outros direitos correlatos, como, por exemplo, lazer, educação, profissionalização e proteção do trabalho etc.
Após breve apresentação descritiva dos campos da cultura e do esporte na perspectiva eminentemente legislativa a partir de determinado recorte, pretende-se examinar, igualmente sob certa delimitação, qual o espaço efetivamente ocupado pelo poder público e pelo Sistema de Garantia de Direitos (inclusive o próprio sistema de justiça), respectivamente, para a promoção e para a fiscalização desses esquecidos e relevantes direitos.
1. O direito à cultura e ao esporte na legislação brasileira
Passa-se a expor de maneira brevemente descritiva qual a localização da cultura e do esporte na legislação brasileira vista sob três perspectivas: a Constituição Brasileira de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 e o Estatuto da Juventude de 20134, o que, tanto no primeiro como no segundo caso, precisa ser feito sempre à luz da Convenção dos Direitos da Criança da ONU de 1989, normativa internacional da qual o Brasil é signatário e que, portanto, integra o ordenamento jurídico nacional, seja pelo Decreto n. 99.710/905, seja na forma do artigo 5º da Constituição e seus parágrafos segundo e terceiro6, sempre devendo servir como referência hermenêutica.
A Convenção dos Direitos da Criança, definida, no seu artigo 1º, como “todo o ser humano menor de 18 anos”, em diversos de seus dispositivos, demonstra a importância dos direitos culturais e esportivos. Veja-se.
De início, o artigo 4o dispõe que, com relação aos direitos culturais, os Estados Partes adotarão “medidas administrativas, legislativas e de outra índole com vistas à implementação [...] utilizando ao máximo os recursos disponíveis e, quando necessário, dentro de um quadro de cooperação internacional”.
O artigo 23 assegura “direito a uma vida plena e decente” de modo a garantir dignidade, autonomia e facilitar participação ativa na vida em comunidade, deixando claro que o desenvolvimento pessoal inclui o domínio cultura.
O artigo 27 exige que o Estado reconheça “direito a um nível de vida suficiente”, inclusive para permitir o desenvolvimento ˜físico, mental, espiritual, moral e social˜, sendo seguido pelo artigo 30 que, especialmente para as minorias étnicas, religiosas, linguísticas ou de origem indígena, assegura o direito de cada criança ter “a própria vida cultural”.
O artigo 31 assegura expressamente “o direito de participar em jogos e atividades recreativas próprias da sua idade e de participar livremente na vida cultural e artística”, inclusive com o alerta de que para o respeito e a promoção desses direitos cabe aos Estados partes o encorajamento da “criação de oportunidades adequadas, em condições de igualdade, para que participem da vida cultura, artística, recreativa e de lazer“.
1.1. O direito à cultura e a sua construção na Constituição da República de 1988
Independente de segmento etário, diversas são as passagens da Constituição Brasileira sobre a cultura.
O artigo 4º, parágrafo único, menciona a necessidade de se buscar a integração cultural com os povos da América Latina.
O artigo 5º, LXXIII, assegura a possibilidade de ação popular a qualquer cidadão para proteger o patrimônio cultural.
O artigo 23, III, estabelece a competência comum entre os entes federados (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) para a proteção de obras e bens de valor histórico, artístico e cultural; o mesmo artigo 23, no seu inciso V, afirma que essa mesma competência comum precisa proporcionar os meios de acesso à cultura.
Da mesma forma, o artigo 24, VII, assegura a competência legislativa concorrente para a União e os Estados para a proteção do patrimônio cultural e para tratar da cultura ao lado da educação, do ensino, do desporto, da ciência, da tecnologia, da pesquisa, do desenvolvimento e da inovação.
Posteriormente, o artigo 30, no inciso IX, estabelece ser competência dos Municípios a proteção do patrimônio histórico-cultural local.
Mais adiante, em capítulo que trata “da educação, da cultura e do desporto”, no artigo 210, fala-se da importância de fixação de conteúdos para o ensino fundamental de modo a assegurar uma formação básica comum e o respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.
Até que se chega aos pouco estudados artigos 215 e 216 da Constituição, que tratam da cultura como direito que o Estado deve garantir a todos o seu pleno exercício, inclusive com acesso às fontes e origens, com apoio e com incentivo, estabelecendo algumas diretrizes.
O artigo 215 fala em cultura popular, indígena e afro-brasileira e de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional; no mesmo dispositivo, no seu parágrafo terceiro, prevê-se um “Plano Nacional de Cultura” de modo a conduzir a determinados objetivos.
O artigo 216, por sua vez, trata de conceituar a ideia de cultura, prevendo a possibilidade de fundos estaduais de fomento à cultura, enquanto que o artigo 216-A trata de delimitar o que seja “O Sistema Nacional de Cultura”, definindo os seus princípios e a sua estruturação, aspecto último que prevê, entre outras iniciativas, conselhos, conferências, planos, programas e sistemas.
Com todas essas proposições, não se pode dizer que a Constituição não tenha se preocupado com a cultura como direito. Por outro lado, daí a ocorrer o efetivo cumprimento dessas normas na realidade vai uma grande distância.
1.2. O direito à cultura na perspectiva do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90)
Já na abertura do Estatuto da Criança e do Adolescente, no artigo 4o, estabelece-se como dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público “assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes” à cultura e ao esporte.
Conforme se observa no Capítulo IV do mencionado Estatuto, composto pelos artigos 53 a 59 no Título II que trata de direitos fundamentais, percebe-se que a concepção do direito à cultura se deu de modo conjunto não apenas com a educação e o lazer, mas também com o esporte.
Especificamente em relação à cultura, o artigo 58 estabeleceu que o processo educacional deve respeitar “os valores culturais [...] próprios do contexto social da criança e do adolescente, garantindo-se a estes a liberdade da criação e o acesso às fontes de cultura”.
Para além disso, no mesmo sentido, alcançando também o esporte, o artigo 59 estabeleceu que “os municípios, com o apoio dos estados e da União, estimularão e facilitarão a destinação de recursos e espaços culturais voltados para a infância e juventude.
Mais adiante, o artigo 71 definiu que a criança e adolescente têm direito à cultura, tudo de modo a respeitar sua “condição peculiar de pessoa em desenvolvimento”.
1.3. O direito à cultura de acordo com o Estatuto da Juventude (Lei 12.852/13)
Nos parâmetros da legislação brasileira, enquanto o Estatuto da Criança e do Adolescente bem define criança como todo ser humano com até 12 anos incompletos, posicionando o adolescente como aquele que tem de 12 a 18 anos incompletos – e se a Convenção da Criança da ONU de 1989 atende a toda esta faixa etária, o Estatuto da Juventude, embora considere jovens sob ponto de vista legal todas as pessoas com idade entre 15 e 29 anos (artigo 1º, parágrafo primeiro), tem sua aplicação prioritária para jovens de 19 a 29 anos (artigo 1º, parágrafo segundo).
O Estatuto da Juventude, ao longo dos seus 48 artigos, que se divide em duas grandes partes (os Direitos e as Políticas Públicas de Juventude – artigos 1º a 38 e o Sistema Nacional da Juventude – artigos 39 a 48), a partir da definição de oito princípios estruturantes já no seu artigo 2º (autonomia, emancipação, valorização e promoção da participação social e política, reconhecimento do jovem como sujeito de direitos, promoção de bem-estar, desenvolvimento integral, respeito à identidade e diversidade, promoção da vida segura, solidariedade, não discriminação e valorização do diálogo e convívio), deu um significativo destaque para a cultura como direito.
O Capítulo II do referido conjunto de normas expõe, ao longo de 11 sessões, quais os direitos relacionados à juventude, o que se faz na seguinte ordem: direito à cidadania, à participação social e política e à representação juvenil; à educação; à profissionalização, ao trabalho e à renda, à diversidade e igualdade; à saúde; à cultura; à comunicação e à liberdade de expressão; ao desporto e ao lazer; ao território e à mobilidade; à sustentabilidade e ao meio ambiente e, por fim, à segurança pública e ao acesso à justiça
Ainda que não se possa dizer que houve uma ordem de prioridades, e se houve, qual teria sido o critério adotado, chama atenção a localização topológica privilegiada da cultura, tratada nos artigos 21 a 25.
Em resumo, pode-se dizer que a apresentação do direito à cultura para o jovem preocupa-se com uma definição do seu conceito e alcance no artigo 21, estabelece obrigações ao poder público no artigo 22, bem como define aspectos específicos práticos do seu funcionamento para determinadas atividades no artigo 23, enquanto os artigos 24 e 25 tratam de questões relacionadas ao orçamento e financiamento.
O artigo 21, no seu conjunto, compreende a cultura como um bem ou serviço em relação ao qual o jovem tem direito de acesso e participação na construção dessa política, o que deve ser feito de modo a respeitar uma criação livre e diversa, contempladas a percepção do impacto da cultura na construção da identidade e no resgate da memória social.
Garantir, propiciar, incentivar, valorizar, promover e assegurar são os verbos que o artigo 22 utiliza para estabelecer as obrigações do poder público7, ora com propostas mais gerais preocupadas com a participação, incentivo e mobilização dos jovens (incisos I e III), ora com as condições do seu acesso aos bens e serviços culturais com a promoção de conhecimento, programas e projetos, inclusive com a inclusão digital (incisos II, IV, V e VII), ora refletindo sobre especificidades como a valorização da cultura camponesa (VIII) e a garantia de acessibilidade e adaptações razoáveis para os jovens com deficiência (IX).
No que diz respeito à questão do financiamento da política de incentivo ao jovem, o artigo 24 peca pela generalidade ao dizer que “o poder público destinará, no âmbito dos respectivos orçamentos, recursos financeiros para o fomento de projetos culturais destinados aos jovens e por eles produzidos”. Sem nenhum critério objetivo ou articulação com outros parâmetros normativos, notadamente a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/00) ou as normas de direito financeiro, como a Lei 4.320/64, por certo que a previsão será letra morta, tal como infelizmente ainda ocorre com a prioridade absoluta orçamentária com previsão no artigo 227 da Constituição e no artigo 4º do Estatuto da Criança e Adolescente.
Tal problemática abstração não é resolvida pela tentativa de estimular o Fundo Nacional de Cultura a financiar espetáculos direcionados às necessidades específicas dos jovens no âmbito da produção cultural ou mesmo a possibilidade de direcionamento de parcela do imposto de renda por pessoas físicas e jurídicas (artigo 25).
De outro lado, como um pequeno ganho concreto previsto no referido Diploma, jovens estudantes e de famílias de baixa renda foram contemplados com o direito a um pagamento pela metade do preço para acesso à cultura e outros eventos a ela direta ou indiretamente relacionados, conforme prevê o artigo 23 do Estatuto da Juventude.
1.4. O direito ao esporte e a sua posição na Constituição da República de 1988
A despeito do artigo 227 mencionar a cultura e não o esporte de modo expresso, o que não deixa de ser uma preocupante invisibilidade de um direito autônomo que deveria ter sido reconhecido de modo expresso, por certo que, para bem assegurar o direito à saúde, ao lazer e à liberdade, de acordo com outras normas constitucionais, entre as quais a promoção da dignidade da pessoa humana como fundamento da República (artigo 1º, III, da CR), há de se compreender que o esporte também encontra-se protegido na perspectiva da doutrina de “proteção integral” que reconhece crianças e adolescentes não mais como objetos, mas como sujeitos de direito.
Assim sendo, é certo que não somente os filhos das classes abastadas têm direito ao esporte nas atividades das escolas privadas de contraturno, ou nos condomínios residenciais estruturados, não apenas para aqueles praticantes de esportes de alto rendimento e que habitam centros de treinamento ou formação, mas a crianças e adolescentes de todas as classes sociais, sobretudo aquelas que se encontram em instituições de acolhimento (ou simplesmente “abrigos”, denominação antes usual e que ainda é a mais conhecida) ou ainda, no caso de adolescentes, inclusive aqueles que respondem pela autoria de atos infracionais.
O texto constitucional faz menção ao esporte no título VIII, da Ordem Social que apresenta como objetivo o bem-estar e justiças sociais (artigo 193, CR), aparecendo ao lado da Seguridade Social, da Ciência e Tecnologia, da Comunicação Social, do Meio Ambiente, dos Índios e da Família, da Criança, do Adolescente e do Idoso, no capítulo III destinado à “Educação, Cultura e do Desporto”, cujos princípios foram estabelecidos em apenas um artigo, o 217 e seus incisos e parágrafos.
Segundo o inciso II do artigo 217 “é dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um”, observada “a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento”.
Nesse contexto, é indiscutível a relevantíssima contribuição das práticas esportivas por todas as crianças e adolescentes, as quais trazem notórios benefícios para o bem-estar e, assim, contribuem para uma formação saudável física e mental desses sujeitos em condição de desenvolvimento.
O artigo 217 lido de modo conjugado com a interpretação sistemática proposta ao artigo 227 lança o desafio da universalização das práticas esportivas nos mais diversos espaços, incluindo a escola, especialmente considerando que a maior parte da população infanto-juvenil brasileira não dispõe de recursos para frequentar e arcar as despesas de um clube ou mesmo aptidão física para a prática esportiva de alto rendimento para treinamento e desenvolvimento de performances reveladas muitas vezes desde cedo.
A escola deve ser o principal espaço para a promoção, o incentivo e o fortalecimento do desenvolvimento esportivo para a formação integral de crianças e adolescentes de modo conciliado com a educação formal.
A despeito disso, o desporto educacional em especial parece estar ainda incipiente nas escolas públicas, com poucas exceções, observando-se um movimento mais expressivo em determinadas redes de ensino particular que incentivam a prática esportiva de atletas talentosos com a concessão de bolsas de estudo, unindo o interesse de ambas as partes: alunos que muitas vezes têm dificuldade em acessar um ensino de melhor qualidade por não disporem de recursos para arcar com as mensalidades; escolas em condições de contar com atletas talentosos para alcançarem melhores resultados em competições esportivas, razão pela qual introduzem diferentes modalidades esportivas para adquirirem visibilidade desportiva (e consequentemente, muitas vezes, de mercado).
Lamentavelmente, não raro os bancos de dados e as informações disponíveis na raiz do Observatório Social dos Direitos da Criança e do Adolescente (por exemplo, o Sistema de Informação para Infância e Adolescência, conhecido como “SIPIA”), indicam ausência de mínima efetivação do direito ao esporte em escolas públicas por ausência de quadras ou outros espaços para a prática de aulas e campeonatos, sendo notória a ausência ou mesmo a precarização na relação de trabalho e emprego de profissionais da educação física para a coordenação adequada das atividades.
1.5. O direito ao esporte na perspectiva do Estatuto da Criança e Adolescente (Lei 8.069/90)
Tal como já mencionado, o “esporte” aparece pela primeira vez no Estatuto, elevado à categoria de Direito Fundamental, no artigo 4o, no qual confirma a solidariedade entre família, sociedade (incluindo também a “comunidade”) e do poder público com o dever de assegurar com absoluta prioridade o direito ao esporte, dentre os demais.
Para tanto, esclareceu em parágrafo único como se efetivar a referida prioridade absoluta. No caso da garantia ao direito ao esporte, duas alíneas indicam serem fundamentais para a efetivação da garantia: “c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas e d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude”, sem o que não será possível sua efetivação que deve estar ligada ao artigo 217, inciso II, da Constituição.
A despeito de o Estatuto ter corrigido a lacuna da Constituição, que ao esporte para crianças e adolescentes não chegou a fazer previsão expressa, ainda assim faltam marcos normativos fundamentais para melhor instrumentar a sua exigibilidade, determinando ações, programas e políticas consolidadas em lei para garantir a efetividade do direito ao esporte.
O próprio texto do Estatuto da Criança e do Adolescente no tocante ao assunto, decorridos quase três décadas da sua elaboração (com diversas e sucessivas reformas), já poderia ter sido bastante aprimorado.
Uma dessas ausências reside na falta de inclusão de centros de treinamento ou “alojamentos”, onde habitam adolescentes atletas em formação esportiva em determinados clubes, no rol de “entidades de atendimento responsáveis pela manutenção das próprias unidades assim como pelo planejamento e execução de programas de proteção e socioeducativos destinados a crianças e adolescentes ...” (artigo 90 e incisos da Lei 8.069/1990). Isso, na interpretação de alguns atores do Sistema de Garantia de Crianças e Adolescentes, que entendem só estarem obrigados ao que está expressamente previsto no artigo 90, prejudica a obrigatoriedade de fiscalização prevista no artigo 95 da mesma Lei.
A previsão do artigo 59 do ECA, pela sua generalidade e falta de maior delimitação de critérios objetivos que assegurem o seu cumprimento, deixa muito a desejar.
Embora o esporte possa ser integrado à esfera de outros direitos, a falta de uma previsão mais específica para o assunto contribui para a invisibilização de um tema que, tal como o direito à cultura, mereceria maior destaque, inclusive para a melhor regulamentação do desporto educacional e de alto rendimento para crianças e adolescentes.
1.6. O direito ao esporte e o Estatuto da Juventude (Lei 12.852/13)
O direito ao desporto e ao lazer foram objeto de previsão expressa do Estatuto da Juventude, como se depreende dos artigos 28 a 30. A prática desportiva, nos termos do artigo 28, foi alçada à condição de instrumento ao “pleno desenvolvimento” na condição do “desporto de participação”8.
No âmbito dos “direitos dos jovens”, o artigo 29 prevê a necessidade de uma “política pública de desporto e lazer destinada ao jovem” que considere diagnóstico, estatísticas oficiais, incentivo ao esporte com critérios que promovam a equidade, valorização do desporto e paradesporto e oferta de equipamentos comunitários que permitam a prática desportiva, cultural e de lazer.
Por derradeiro, o artigo 30 prevê que “todas as escolas deverão buscar pelo menos um local apropriado para a prática de atividades poliesportivas”.
É de se perguntar: O quanto que o assunto já não foi discutido nos espaços democrático existentes (por exemplo, Conferências Nacionais da Juventude e Conselhos da Juventude) sem maior efetividade e realização? Qual é a exigibilidade da referida legislação para a efetiva “democratização do esporte”, o que já era uma exigência das Conferências Nacionais da Juventude de 2008, 2011 e 20159? Quais os critérios objetivos para assegurar uma mudança de realidade e maior acessibilidade à prática desportiva como direito?
Definitivamente, é uma pena que o Estatuto da Juventude tenha chegado para acrescer direito ao desporto, ainda que numa regulamentação bastante tímida, quando se sabe que antes dele já havia (e ainda há) uma franca negativa de vigência na concretização do que já está previsto na Constituição e no Estatuto da Criança e do Adolescente.
2. Exemplificando a invisibilidade e negação de direitos de esporte e cultura: dois exemplos
Diante de uma proposta metodológica que pretende transitar do abstrato ao concreto, com alguma dialética, expostos os contornos da legislação brasileira referente à cultura e esporte, optou-se pelo recorte de dois exemplos que os ora subscritores entendem como simbólicos para demonstrar a “negação” dos referidos direitos.
2.1. O “direito ao esporte” e a “profissionalização precoce dos adolescentes atletas das categorias de formação ou de base
Os atletas infanto-juvenis de alto rendimento são mais vítimas do que efetivamente beneficiários do pouco que o mundo do Direito lhes promete. Não raro, quanto maior o talento detectado, cada vez mais antecipada é a chegada de uma vida efetivamente profissional, ainda que travestida de “formação esportiva”. A expectativa e a busca de resultados exitosos para os times e empresários aos quais estão vinculados não raro implica na sua profissionalização precoce, em colisão com os termos do artigo 7o. inciso XXXIII, da Constituição (“proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos”).
Com frequência, assiste-se a questionamentos e abordagens, até mesmo por operadores do Sistema de Garantia de Direitos de Crianças e Adolescentes, sobre os “direitos dos atletas das categorias de base”. Vale abordar aqui possíveis equívocos e conflitos sobre o tema, os quais, inclusive, podem fazer necessária interlocução com a temática do “trabalho infantil”10.
Antes de mais nada, devemos ter em mente que antes de serem “atletas”, tratam-se crianças e adolescentes que, como exige a Constituição no já mencionado artigo 227, para além da vinculação a determinado desporto, precisam ter assegurados, com absoluta prioridade, “o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
A despeito disso, em realidades periféricas como a nossa, a chaga do “trabalho infantil” infelizmente ainda é algo não só corriqueiro, mas culturalmente bem aceito pela nossa sociedade, razão pela qual a sua prevenção e o seu enfrentamento são desafios para os profissionais ligados ao direito da criança e do adolescente, mesmo nas formas mais tradicionais, indubitavelmente indignas e visivelmente exploradoras.
Essa atitude é ainda mais difícil nas atividades desportivas de maior visibilidade e com viés economicamente rentável, as quais, pela ampla assimilação, seja pela fluência cultural, seja pela rentabilidade propiciada, seja por ambos os motivos, por estarem protegidas por certo “glamour” da atividade e possibilidades de retorno financeiro imediato e alto para os padrões daqueles que pertencem a uma classe social economicamente desfavorável e que sonham em ascender profissionalmente, como, por exemplo, acontece com os jogadores de futebol das assim denominadas “categorias de base” ou formação, não raro são praticadas fora do esquadro legal.
No plano internacional, destaca-se a relevante função da Organização Internacional do Trabalho (OIT) como instrumento capaz de apontar para as diferenças entre um mero trabalho e a exploração do trabalho infantil em si. Para eles, a própria OIT reconhece que é normal crianças desenvolverem algum trabalho, a partir dos 6 ou 7 anos, através de pequenas tarefas domésticas, no sentido de ajudarem seus pais e como forma também de uma contribuição saudável para a formação deles.
Não sem razão, existem importantes estudos11 destinados a apontar as principais características da definição do trabalho infantil, no sentido de exploração ou sobrecarga que pode decorrer da privação de saúde e educação (“serem exploradas ou sobrecarregadas e, ainda privadas dos direitos à saúde e educação”), quando não é possível admitir a prática de um tipo diferenciado de violência (“crianças precocemente envolvidas com atividades de adultos, trabalhando por longos períodos e baixos salários, sob condições prejudiciais à saúde e ao desenvolvimento físico e mental, algumas vezes longe de sua famílias, frequentemente privados de uma educação de qualidade e oportunidades de formação que possibilitam chances de um futuro melhor”). Quem conhece um pouco das práticas das categorias de base não terá dificuldade em estabelecer uma relação entre a descrição acima e as circunstâncias vividas por muitos que se aventuram a viver em alguns centros de treinamentos, a maior parte deles sem condições ideias de habitação e convivência com a segurança ideal, até mesmo para os ditos “grandes clubes”12.
Segundo Lopes13, em países periféricos como o Brasil, infelizmente a prática das agremiações esportivas foca na busca incessante por resultados em detrimento da priorização concomitante dos estudos escolares ou universitários, podendo-se dizer que o desporto, de regra, prejudica o processo educacional formal, o que resultará em consequências futuras que afetarão tanto o atleta na vida adulta quanto a própria sociedade.
Mesmo que o cenário de formação dos atletas contrarie o que está previsto no quadro normativo, mais especificamente o que foi regulamentado posteriormente pela legislação especial (Estatuto da Criança e do Adolescente), no capítulo V – Do Direito à Profissionalização e à Proteção no Trabalho, essas atividades desportivas realizadas em prejuízo da formação educacional ainda são excessivamente toleradas por todas as agências de socialização, incluindo família, sociedade e Estado.
Assim, percebe-se que os atletas em formação, notadamente as crianças e adolescentes, em qualquer prática desportiva, especialmente quando esta se der de modo formal, sobretudo naquele que, como o futebol, concentra maior número de praticantes e envolvidos em âmbito nacional, precisam ser efetivamente amparados e protegidos para que suas atividades sejam prioritariamente adequadas tanto aos preceitos constitucionais de proteção integral a crianças e adolescentes quanto ao Estatuto da Criança e do Adolescente e à Convenção dos Direitos da Criança da ONU (sem prejuízo de outros instrumentos internacionais que integram o ordenamento jurídico nacional), tudo em nome do seu “melhor interesse”, que precisa se sobrepor ao interesse econômico ou competitivo de interesse da visão do desporto como mero “negócio” e “mercado”. Nesse sentido, apesar dos seus problemas14, até a própria “Lei Pelé” (Lei 9.615/98), “que institui normas gerais sobre desporto e dá outras providências”, assim dispõe em alguns de seus dispositivos15. Apesar disso, não raro sujeitos de práticas desportivas são concebidos como “objetos”, em verdadeira consagração da já ultrapassada doutrina da “situação irregular”.
Ilustrando o problema a partir de um exemplo recente e simbólico, a tragédia do falecimento de 10 (dez) adolescentes entre 14 e 17 anos no Centro de Treinamentos do Flamengo (“Ninho de Urubu”), ocorrida em 08 de fevereiro de 201916, espaço feito de “container” que somente tinha licença para funcionar como “estacionamento” e que sequer dispunha de licença do “Corpo de Bombeiros”. Analisando-se esse caso, que bem chama a atenção para desvelar as práticas na formação das categorias de base do futebol (provavelmente muito piores do que essas em clubes de menor expressão e dimensão), poderemos perceber como o conjunto de direitos fundamentais pode ficar completamente comprometido e em risco: vida, saúde; respeito, liberdade e dignidade (é digno morar em locais não aprovados para a habitação em condições de segurança?); convivência familiar e comunitária (esta última se restringe, comumente ao próprio grupo de atletas e profissionais envolvidos dentro dos muros dos centros de treinamento na maioria do tempo); educação, cultura, esporte e lazer (todos absorvidos pela prioridade no esporte de rendimento e não pelo esporte como parte integrante da formação e como direito); profissionalização e proteção no trabalho (também prejudicado por não existir a instituição do “adolescente aprendiz” através de um programa de aprendizagem específico para os atletas, de acordo com o previsto nos artigos 60 a 68 do Estatuto da Criança e do Adolescente17.
Nesse contexto, se diante das circunstâncias ficar configurado uma rotina de excesso de atividades físicas para treinamentos, agenda de jogos prejudicial ao calendário das atividades escolares, intensidade excessiva de atividades físicas, presença de lesões rotineiras por treinamentos, dificuldades em conciliar a vida estudantil com a prática esportiva com habitualidade, possivelmente estaremos diante de uma situação de exploração do trabalho infantil ou uma profissionalização precoce no futebol em desacordo com os parâmetros e limites estabelecidos na legislação nacional que levam em consideração as necessidades e peculiaridades de pessoas em fase de desenvolvimento. Nesse quadro, muitos dos ditos “programas de formação” sequer estão inscritos nos Conselhos Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente, colegiado democrático de caráter participativo-deliberativo18 que compõe uma das diretrizes da política de atendimento da infância e juventude (artigo 88, II, da lei 8.069/9019), tanto que pode deliberar especificamente sobre o assunto.
É evidente o descompasso entre as práticas formadoras e o Direito garantido no ordenamento jurídico a crianças e adolescentes. A realização da atividade desportiva de acordo com a lei, com a expectativa de profissionalização, desde que realizada na proporção, forma e momento adequado, a exemplo de programas de aprendizagem já desenvolvidos para outras formações, é a única que tem condições de desenvolver uma prática desportiva apta a contribuir para o desenvolvimento físico e psicológico de modo integrado com a vida estudantil, o que não dispensa a adoção dos devidos cuidados. Este é o desafio que há pela frente para a profissionalização de atletas, ou seja, que também possam ser beneficiados por programas de aprendizagem criados para eles em consonância com seus direitos.
Como já sinalizado, outra questão que dificulta a proteção dos atletas em formação vivendo nos denominados “centros de treinamento” é a suposta ausência de obrigatoriedade de fiscalização prevista no artigo 95 do Estatuto da Criança e do Adolescente, fato que por muitos é justificado pelo simples fato de que a categoria desses espaços como “entidades de atendimento” não estaria expressamente contemplada nas hipóteses do artigo 9020 da mesma Lei.
Acontece que os ditos “centros de treinamento”, na realidade do que efetivamente representam, ostentam uma natureza híbrida que mistura o acolhimento institucional (inciso IV) com relativa restrição de liberdade que até mesmo pode se assemelhar a algumas modalidades próprias das medidas socioeducativas, guardadas as proporções para o fato de que o atleta não praticou nenhum tipo de ato infracional, ao contrário, não raro é vítima da violação dos seus direitos.
É nesses espaços habitados por adolescentes (e, em alguns casos, até mesmo crianças...), dos quais eles saem e regressam após as atividades, afastados de suas famílias de origem e nem sempre com a clareza de quem seja o responsável por aqueles que ali permanecem, o que não raro os coloca em situação de maior vulnerabilidade do que outros espaços tradicionais de “acolhimento”.
Assim, juridicamente, não há como não interpretar que esses espaços sejam merecedores de controle das circunstâncias em que se encontram. A natureza jurídica de tais entidades é a de instituição em que crianças e adolescentes ficam sob a guarda de terceiros, coletivamente, habitando como se estivessem em “lares”, nos quais, todavia, não estão suficientemente amparados, inclusive de mínima privacidade, individualidade e convívio por afinidade.
A despeito da indiscutível natureza jurídica diferenciada desses “centros de treinamento”, a perspectiva da fiscalização e da sujeição desses espaços às normas antes mencionadas, além de todo o exposto, também decorre da adequada hermenêutica do artigo 70, que estabelece que “é dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente”.
Diante desse quadro, já é mais do que a hora de que o “sistema de direitos e garantias” ocupe-se efetiva e prioritariamente desse tema, até mesmo porque a ausência de fiscalização pode somar-se a negligência dos clubes, a mesma culpa que justifica, cotidianamente, o afastamento de crianças e adolescentes de suas famílias de origem para a sempre excepcional “institucionalização”, problema que pode conduzir do “sonho” (de um futuro melhor) para o “pesadelo” (vide a tragédia recente no CT do Flamengo, que já foi objeto de menção).
Se infelizmente muitos clubes parecem ignorar ou desconhecer suas obrigações, pior do que isso só mesmo o fato de muitas famílias serem negligentes com os cuidados devidos aos próprios filhos, na expectativa de que toda uma série de privações (e muitas vezes, de riscos desmedidos), sejam necessários para o sucesso “profissional”.
No fim das contas, não se olvide que a disposição expressa do artigo 3º da “Convenção dos Direitos da Criança” da ONU, norma na qual constam diversos desdobramentos que precisam iluminar essas indevidas e ilegais “práticas”21, inclusive uma disposição expressa que exige a existência de controle e supervisão sobre todos os estabelecimentos: “3. Os Estados Partes garantem que o funcionamento de instituições, serviços e estabelecimentos que têm crianças a seu cargo e asseguram que a sua proteção seja conforme às normas fixadas pelas autoridades competentes, nomeadamente nos domínios de segurança e saúde, relativamente ao número e qualificação do seu pessoal, bem como quanto à existência de uma adequada fiscalização”.
Como se percebe, a falta de cumprimento adequado da normativa nacional e internacional já produziu muitas vítimas. Que isso possa mudar! Até mesmo porque, a despeito da descrição do panorama normativo e dos exemplos pontuais mencionados, o problema maior alcança a própria compreensão insuficiente e, nesse sentido, nada profissional, da cultura e do esporte como políticas públicas para efetivo benefício de crianças e adolescentes.
2.2. A ausência do direito a cultura para adolescentes privados de liberdade
Se a política cultural já é invisível para a maior parte da população, incluindo crianças e adolescentes, talvez não haja maior expressão da ausência e da sua prática inexistência no que diz respeito aos adolescentes sujeitos a medidas socioeducativas, tanto em meio aberto. (prestação de serviços à comunidade e liberdade assistida, por exemplo) quanto, sobretudo, no meio fechado (semiliberdade e internação)
Apesar de existir desde 2012 um Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE22) e de a Lei 12.594/12 exigir, no seu artigo 8º, ações articuladas na área cultural de parte dos planos de atendimento socioeducativo, basta visitar qualquer unidade de atendimento para perceber que tais atividades, não se realizam de modo efetivo.
A despeito das medidas socioeducativas deverem assumir um caráter decisivo no desenvolvimento e na formação de adolescentes infratores como sujeitos de direitos, inclusive para que possam ressignificar suas condutas a partir de determinados valores de solidariedade, identidade e compromisso social, não raro são aplicadas sem a devida atenção para uma “necessidade pedagógica” diferenciada, o que poderia ser obtido por intermédio de respeito e promoção de direitos culturais.
Na esteira do disposto no artigo 31 da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, que assegura o direito de participar livremente na vida cultura da cidade, para aqueles que estão privados parcial e temporariamente da sua liberdade, bem tratou o artigo 124, XII do próprio Estatuto da Criança e do Adolescente ao assegurar que aos adolescentes infratores o direito da realização de atividades culturais, esportivas e de lazer, ainda que essas não tenham sido melhor parametrizadas ou definidas, o que acabou sendo ratificado por disposições do próprio SINASE (artigos 52 e 54, III, por exemplo).
Por certo que construir a dimensão cultural passível e factível para uma determinada unidade de internação é algo que precisa ser pensado e projetado coletiva e democraticamente, ouvindo não só os adolescentes, mas também as suas famílias e, por último, a própria sociedade.
A inclusão digital e o uso da internet, inclusive, podem assumir um papel fundamental nesse sentido, tudo de modo a respeitar o desenvolvimento da personalidade, o exercício da cidadania, a pluralidade, a diversidade e a própria finalidade social e participativa da rede, aspectos bem destacados no artigo 2º, II, III, IV e VI e artigo 3º, I e VII, todos da Lei n. 12.965/14 (“Marco Civil da Internet”).
Certo é que a dimensão cultural de uma unidade de internação não pode ser inexistente ou ignorada ou mesmo se resumir a uma pontual e insuficiente disponibilidade de um televisor ou a uma minguada apresentação por ocasião das Conferências da Infância e Juventude realizadas em todos os níveis federativos.
A efetivação da cultura no interior de uma unidade socioeducativa poderia se dar por muitos meios, não só por necessária integração intersetorial com outras pastas e setores das pessoas jurídicas de direito público, mas, em especial, por articulações entre artes plásticas23, teatro, música24, dança, literatura, cinema, entre muitas outras possibilidades de atividades criativas e capazes de despertar a integração social e a sensibilidade (por exemplo, visitas externas a exposições, feiras e museus, integração em atividades realizadas pela comunidade nas ditas “festas populares” etc).
Tocando no problema, é muito importante a reflexão do Promotor de Justiça Márcio Rogério de Oliveira:
“o que se espera da ação socioeducativa é uma intervenção pedagógica que leve o adolescente ou jovem a superar as razões que o levaram à prática de atos infracionais e a acreditar na possibilidade de construção de um projeto pessoal que lhe permita viver em paz consigo mesmo e com os outros, alcançando a própria felicidade pela via do trabalho honesto e não através de práticas criminosas [...] para atender aos objetivos de integração social e de garantia dos direitos individuais e sociais dos adolescentes e jovens a ele submetidos, o SINASE incluiu os direitos fundamentais entre os eixos estratégicos que organizam os parâmetros socioeducativos, detalhando os caminhos possíveis para se buscar a eficiência socioeducativa em cada eixo: educação formal (escolarização), esporte, cultura e lazer; saúde; convivência família e comunitária; profissionalização, trabalho e previdência; segurança). [...] Diferentemente do que possam pensar muitos gestores públicos, o acesso a atividades esportivas, culturais e de lazer não constituem um luxo ou benesse a serem eventualmente oferecidos para crianças, adolescentes e jovens. São direitos e, mais ainda, são direitos constitucionais”25.
Não por acaso, o estudo de Márcio Rogério de Oliveira refletiu especificamente sobre a realidade do Município de Belo Horizonte:
“As ações no mais das vezes não têm conexão entre si, e a existência de determinados projetos pontuais, sem uma avaliação quantitativa e qualitativa de sua execução, alcance e resultados, talvez explique os longos períodos de ociosidade que os internos dos centros de internação ainda precisam suportar, na rotina diária de suas medidas socioeducativas. Seria desejável e estratégico aproveitar estas oportunidades para transmitir valores e promover a cultura de paz. Por isso, os projetos pedagógicos de programas socioeducativos precisam ser contemplados com orçamentos específicos para desenvolvimento do eixo de esportes, cultura e lazer. Os projetos devem possibilitar, inclusive, uma oferta de atividades mais diversificadas e capazes de atender as expectativas de diferentes grupos de adolescentes, através de música, dança, teatro, artes plásticas, etc. [...] O quadro geral do sistema socioeducativo em Belo Horizonte é, portanto, de pouco investimento quanto ao parâmetro pedagógico representado pelo eixo de esportes, cultura e lazer, apesar das recomendações expressas na Constituição, nas leis e no texto referencial do SINASE. Isto determina a realidade do atendimento socioeducativo, impondo sérias limitações às equipes encarregadas do trabalho cotidiano com os adolescentes, sempre às voltas com improvisos e busca de ‘soluções criativas’ para o enfrentamento dos desafios diários [...] existe um outro viés deste eixo que não merece ser desperdiçado, qual seja, a sua dimensão pedagógica e o poder de sedução que exerce sobre a juventude. Seria fundamental aperfeiçoar as práticas pedagógicas dos programas socioeducativos mantidos pelo Município de Belo Horizonte e pelo Estado de Minas Gerais, de modo que passem a incorporar de forma mais consistente o esporte, a cultura e o lazer como ferramentas para a transmissão de valores e a formação cidadã”26.
3. A hipocrisia da cultura e do esporte como direitos para crianças, adolescentes e jovens no Estado brasileiro a partir de um problema antigo e comum: orçamento público
A despeito de todo o panorama normativo anteriormente mencionado, não é preciso muito esforço de diagnóstico para perceber que a cultura e o esporte são direitos “menores” e subalternos para o Estado brasileiro, mesmo em relação a crianças e adolescentes.
Para além da falta de consciência política, do despreparo dos governantes, do provimento político de cargos e da falta de profissionalização da gestão pública, entre outras causas, na raiz de tudo isso existe um problema significativo no mundo do capitalismo e do direito financeiro da Administração Pública: orçamento público.
Basta percorrer os orçamentos públicos para perceber que, longe da “prioridade absoluta” prometida pelo artigo 227 da Constituição e artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente, tudo o que falta são recursos públicos para o financiamento de programas e políticas de cultura e esporte.
Qualquer que seja o ente federativo a ser examinado, o resultado é desanimador.
No âmbito da União, para uma receita e despesa estimadas em aproximadamente R$ 3.381 trilhões para 201927, a previsão da despesa com os Ministérios de Cultura e Esporte28 é de, respectivamente, 2.692 bilhões e míseros 821 milhões, o equivalente a ridículos 0,079% e 0,024% do montante total.
Não é diferente com o potente Estado do Rio de Janeiro. Com orçamento líquido estimado para R$ 80,3 bilhões de despesas em 2019, apenas míseros 257 milhões de reais (0,32% do total), estão destinados para a cultura, o que ainda foi saudado como um incremento em relação ao ano anterior29; já para “desporto e lazer”, a previsão de despesa é da ordem, de pouco mais de míseros 36 milhões30 (o ridículo equivalente a 0,044%).
O mesmo cenário alcança a maior parte dos Municípios, mesmo aqueles que possuem volume substancial de recursos e que, supostamente, teriam melhores condições. No Município de Curitiba, que para o ano de 2019 teve um orçamento anual previsto na ordem de R$ 8,212 bilhões, apesar de ter sido noticiado como uma proposição que “foi amplamente debatida com a população”31, certamente muitas são as insuficiências nesse campo. Para a Secretaria Municipal do “Esporte, lazer e juventude” a Lei Orçamentária Anual (Lei Municipal n. 15.375/18) previu apenas R$ 43.506 milhões, ou seja, 0,52%; já para a “Fundação Cultural de Curitiba” e Fundo Municipal da Cultura foram previstos, respectivamente, 53.905 milhões (0,65%) e 14.244 milhões (0,173%)32
Por mais que alguém pudesse dizer que tanto a cultura quanto o esporte para crianças 33e adolescentes podem ser financiados por recursos do Fundo da Infância e Adolescência, previsto nas três esferas federativas, a realidade certamente mostraria um cenário contrário. Aqui também a prioridade absoluta é um rótulo desgastado que somente serve para embalar sonhos e fantasias dos juristas.
Considerações finais
Esporte e cultura34, mais do que direito, fazem parte da vida35 e, assim, deveriam estar na órbita do desejo de crianças e adolescentes como “seres peculiares em condição de desenvolvimento”, até mesmo porque são fatores inibidores da violência36 no sentido amplo. Mais do que isso, são “direitos fundamentais” que, nessa condição, deveriam ser maior objeto de atenção e recursos públicos de parte não só do Poder Executivo (que administra), do Poder Legislativo (que deveria fiscalizar e elaborar boas leis com programas e políticas públicas, inclusive porque a ele cabe discutir e aprovar o orçamento público), mas, sobretudo, de parte das instituições que compõem o chamado Sistema de Direitos e Garantias, entre as quais estão o Poder Judiciário e, sobretudo, seus principais demandantes, seja para questões individuais seja para a tutela coletiva, no caso, Ministério Público37 e Defensoria Pública. É como se esporte e cultura fossem direitos de “vida nua” com vigência suspensa dentro de um “Estado de exceção”38. Pode-se dizer que há não só uma invisibilidade política, econômica, como também uma certa “indizibilidade” jurídico-legal39, enfim, uma falta de reconhecimento.
Apesar disso, se o cenário das políticas públicas já é preocupante, por uma série de fatores, maior ainda é a invisibilidade do assunto no que diz respeito às áreas da cultura e do esporte. Ambos, mas este último em especial (a título de exemplo), não é direito não apenas dos filhos de uma burguesia abastada (nos seus condomínios residenciais estruturados, no contraturno das escolas de excelência, nos clubes particulares), mas deveria ser uma política pública disponível a todas crianças e adolescentes brasileiros na rede das escolas públicas brasileiras (nas quais muitas vezes os equipamentos estão mal conservados, quando não indisponíveis por obras públicas desprogramadas), inclusive aqueles que se encontram em instituições de acolhimento (ou simplesmente “abrigos”, denominação antes usual e que ainda é a mais conhecida) ou ainda, no caso de adolescentes que respondem pela autoria de atos infracionais e se encontram institucionalizados privados de liberdade.
A modesta e ao mesmo tempo pretensiosa40 proposta do presente artigo foi apresentar um breve cenário descritivo do cenário normativo (Constituição da República de 1988, “Convenção dos Direitos da Criança” de 1989, Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 e Estatuto da Juventude de 2013, tudo para mostrar que, mesmo havendo a pequena parcela da “era dos direitos” infanto-juvenis nas referidas temáticas, longe estão tais direitos de serem implementado no âmbito da realidade, podendo-se dizer que as situações a eles relacionadas podem ser configuradas como de risco e de vulnerabilidade, especialmente por “ação ou omissão da sociedade ou do Estado” (artigo 98, I, do Estatuto da Criança e Adolescente).
Ao mesmo tempo em que esse quadro foi apresentado, ainda que de maneira recortada e superficial, tomou-se dois exemplos pontuais demonstrativos da concreta negação desses direitos no plano da realidade: o direito ao esporte e a profissionalização dos atletas das categorias de base (em especial do futebol, de larga aceitação e prática na realidade brasileira) e o desrespeito do direito à cultura a adolescentes privados de liberdade por prática de ato infracional.
Antes de se restringir a uma simples “denúncia”, na melhor perspectiva do método do saudoso Paulo Freire41, quis-se “anunciar” algo a partir da constatação de que boa parte da hipocrisia e invisibilidade da cultura e do esporte como maravilhosos e potentes direitos fundamentais passa pela falta de destinação privilegiada e preferencial de recursos públicos para as áreas, como seria de rigor. A propósito, recortou-se um exemplo da realidade da União, Estados e Municípios para tentar mostrar a parte quantitativa desse descaso, ainda que não se ignore a necessidade de uma análise mais de maior alcance e com muito maior complexidade.
Dessa forma, espera-se que a presente contribuição, no limite da sua proposta, pelo menos sirva de estímulo para suscitar maior debate e reflexão crítica sobre esse tema que, tal como os direitos, ainda é um tanto quanto invisibilizado no próprio direito da infância e da juventude.
Em tempos em que se pretende rediscutir os termos da famigerada proposta de redução da maioridade penal, apostar na visibilidade de direitos do esporte a da cultura como crianças e adolescentes pode, ao contrário, fazer a “diferença” e contribuir para a construção de uma sociedade menos violenta e, como prega o artigo 3o, inciso I, da Constituição da República, “livre, justa e solidária”.
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Notas
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