Resumo: Este artigo analisa a interrelação entre a produção de imagens da nação portuguesa como “multirracial” – uma nação homogénea através da miscigenação – e a negação do racismo por parte do Estado português: a repetição da imagem de Portugal como uma país não-racista, mas sim tolerante. Esta análise centrar-se-á nos discursos de representantes oficiais do Estado português, em particular na esfera parlamentar, e em relatórios produzidos como justificação do estado do (anti)racismo em diversos contextos institucionais e no seguimento da assinatura de tratados internacionais, desde meados da década de 1980. Considero estas narrativas como um arquivo da institucionalização da negação do racismo em Portugal, em cumplicidade com o trabalho académico. Este Estado de negação revelará noções hegemónicas sobre raça e racismo, assim como a legitimação de interpretações sobre a situação das populações racializadas, principalmente em relação à situação socioeconómica. O racismo é silenciado a favor de certas narrativas sobre a pobreza, resultando numa pretensa abordagem universalista das políticas públicas. Não obstante, estas narrativas têm sido desafiadas pelos movimentos antirracistas, que reclamam outro tipo de ação política e traçam contranarrativas que não só interpelam o Estado, mas também alguns setores da esquerda progressista. Estas contranarrativas sugerem caminhos para repensar o presente futuro do antirracismo e, em particular, para a análise e o debate público sobre o poder branco.
Palavras-chave: AntirracismoAntirracismo,EstadoEstado,Negação do racismoNegação do racismo,PobrezaPobreza,PortugalPortugal.
Abstract: This article analyzes the interrelation between the production of images of the Portuguese nation as “multiracial” – a homogenous nation through miscegenation – and the denial of racism by the Portuguese State: the repetition of the image of Portugal as a non-racist country, but rather tolerant. This analysis will focus on the discourses of official representatives of the Portuguese State, particularly in the parliamentary sphere, and on reports submitted as accountability for the state of (anti-)racism in various institutional contexts and following the signing of international treaties, since the 1980s. I consider these narratives as an archive of the institutionalization of the denial of racism in Portugal, in complicity with the academic work. This State of denial will reveal hegemonic notions about race and racism, as well as the legitimation of interpretations on the situation of racialized populations, especially in relation to their socio-economic situation. Racism is silenced in favor of certain narratives about poverty, resulting in an alleged universalist approach to public policy. Nonetheless, these narratives have been challenged by anti-racist movements, which demand a different kind of political action and articulate counter-narratives that not only challenge the State, but also some sectors of the progressive left. These counter-arguments suggest ways to rethink the present future of anti-racism and, in particular, for the analysis and public debate on white power.
Keywords: Anti-racism, State, Denial of racism, Poverty, Portugal.
Dossiê
O Estado de negação e o presente-futuro do antirracismo: Discursos oficiais sobre racismo, ‘multirracialidade’ e pobreza em Portugal (1985-2016)
The State of Denial and the present future of anti-racism: official discourses about racism, ‘multiraciality’ and poverty in Portugal (1985-2016)
Recepção: 12 Março 2019
Aprovação: 10 Julho 2019
Este trabalho tem o apoio financeiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT/MEC) através de fundos nacionais e é cofinanciado pelo FEDER através do Programa Operacional Competitividade e Inovação COMPETE 2020 no âmbito do projeto PTDC/IVC-SOC/1209/2014 - POCI-01-0145-FEDER-016806 e do Fundo Social Europeu, através do Programa de Potencial Humano e pelos Fundos Nacionais através da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, no âmbito da bolsa de doutoramento PD/BD/114056/2015.
No dia 21 de Março de 2015, no âmbito da comemoração do Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial – proclamado pela ONU em 1966 –, a Comissão pela Igualdade e contra a Discriminação Racial (CICDR) em Portugal, lançou a campanha Descobre a tua cor!,2 destacada pela CICDR como a sua principal atividade nesse ano.3 “Descobre a tua cor!” convidava usuários da rede social Facebook a aceder a um website onde a sua “cor de pele” seria identificada com base numa foto que colocariam no referido site.4 Para além do mais, os/as participantes eram convidados/as a denunciar casos de racismo dos quais tivessem sido vítimas ou aos quais tivessem presenciado. Segundo o relatório da Comissão, esta iniciativa “permitia a cada um conhecer o seu panton [cor pantone] e perceber a (in)significância de tal detalhe na sua vida. Pretendeu sensibilizar-se a opinião pública para a temática da discriminação racial” (CICIDR 2015, p. 5, grifo no original). Três anos mais tarde, o Alto-Comissário para as Migrações e Presidente da CICDR, Pedro Calado, afirmou, numa entrevista radiofónica, que
os portugueses não são genericamente racistas. Mas, como todos os outros, temos preconceitos. Acho, ainda assim, que os casos que temos em Portugal são pontuais. Não temos no dia-a-dia, nas nossas ruas, nas nossas escolas, nas nossas cidades, fenómenos de tensão permanente e esse é um sinal que é importante sublinhar” (Lourenço; Cordeiro, 2018).5
Calado respondia, assim, a uma questão sobre dois “episódios graves” de agressão perpetrados por forças de segurança no país: i) o caso de uma mulher negra, de nacionalidade colombiana, agredida na cidade do Porto por um funcionário de uma empresa privada de segurança,6 ao serviço da Sociedade de Transportes Coletivos do Porto; ii) a agressão a vários jovens negros por agentes da Polícia da Segurança Pública (PSP) num bairro da periferia e numa esquadra da Área Metropolitana de Lisboa, que resultou na acusação de 17agentes pelo Ministério Público (MP).7
A campanha pública da CICDR e as declarações do Alto-Comissário são exemplos paradigmáticos da relação entre uma compreensão eurocêntrica de racismo, que é hegemónica (Cf. Hesse, 2004), e a banalidade dos diferentes regimes institucionalizados de negação do racismo em Portugal, e em outros contextos (Cf. van Dijk 1993; Goldberg 2009; Maeso 2018). Neste cenário, o racismo é visto, sobretudo, como resultado de preconceitos individuais, efeito de crenças erradas/não-científicas sobre outros povos e pessoas e, mais especificamente, da crença na existência de raças (diferenciadas pela cor da pele), que não representam a diversidade humana (visível na cor da pele), mas sim hierarquias entre populações superiores e inferiores. Segundo esta abordagem, o Estado e as relações mais amplas de poder que regulam e se inscrevem, por exemplo, nas políticas públicas e na legislação, não são consideradas responsáveis pela reprodução do racismo. Pelo contrário, são consideradas instâncias e mecanismos de proteção das vítimas de discriminação racial. Assim, as campanhas de sensibilização são vistas como boas práticas de combate ao racismo.
Há um argumento aparentemente contraditório nesta compreensão de raça e de racismo: ainda que a raça seja declarada uma fantasia, uma crença errada e, portanto, uma palavra a ser evitada ou até proibida na recolha de dados e nos textos oficiais,8 qualquer compreensão de raça para além da diferença corporal visível e do universo das ideias fomentadas por “mentes racistas”, é inviabilizada (Cf. Hesse 2007). Neste contexto, a noção de raça é simultaneamente vetada e reificada. Este aparente paradoxo encontra-se enraizado na produção de imaginários sobre Portugal, a nação portuguesa, a sua história e a sua composição racial. Assim, o antirracismo aparece, como analisado por David T. Goldberg, “reduzido principalmente, substancialmente ou completamente ao antirracialismo. […] o fim da raça substitui em graus variados o compromisso de – as lutas por – acabar com o racismo” (Goldberg, 2004, p. 211, tradução nossa; para o contexto português Cf. Sanches, 2012, p. 11-12).
A partir desta constatação, este artigo analisa a interrelação entre a produção de imagens aparentemente contraditórias da nação portuguesa (i.e. uma nação homogénea através da miscigenação) e a negação do racismo por parte do Estado português, isto é, a repetição da imagem de Portugal como uma país não-racista, mas sim tolerante. Esta análise centrar-se-á nos discursos de representantes oficiais do Estado português, em particular na esfera parlamentar, e em relatórios produzidos como justificação do estado do (anti)rracismo em diversos contextos institucionais e no seguimento da assinatura de tratados internacionais, desde meados da década de 1980. Considero estas narrativas como um arquivo da institucionalização do Estado de negação do racismo – em cumplicidade com o trabalho académico –, em Portugal. Este Estado de negação revelará noções hegemónicas sobre raça e racismo, assim como a legitimação de interpretações sobre a situação das populações racializadas em que o racismo é silenciado a favor de certas narrativas sobre “a pobreza”, resultando numa pretensa abordagem “universalista” das políticas públicas. Não obstante, estas narrativas têm sido desafiadas pelos movimentos antirracistas, que reclamam outro tipo de ação política e traçam contranarrativas que não só interpelam o Estado, mas também alguns setores da esquerda progressista.
O artigo está organizado em quarto secções. Uma primeira secção oferece uma visão global das principais narrativas sobre o racismo em Portugal desde meados dos anos 1980, em discursos oficiais em torno de temas como a discriminação racial, a extrema-direita e nos relatórios europeus. Em seguida identifico e analiso discursos sobre a nação portuguesa – a sua configuração histórica, condição multirracial/homogénea e não-racista – em particular, a partir dos relatórios elaborados pelo Estado português para o Comité das Nações Unidas sobre a Eliminação da Discriminação Racial (CERD), e com especial atenção à sua conceptualização de “minorias” e “imigrantes”. Neste contexto, debruço-me, em particular, sobre o debate em torno da condição da população Roma9 como “minoria étnica” nos relatórios do governo português elaborados no âmbito do Comité Consultivo da Convenção Quadro para a Proteção das Minorias Nacionais. Na terceira secção considero como um certo discurso sobre a “pobreza” é mobilizado para despolitizar o debate sobre racismo e racialização no mercado de trabalho, bem como a conceção de “trabalhador” e “classe trabalhadora”, com especial atenção ao racismo anti-negro. Concluo com algumas reflexões sobre os horizontes políticos do antirracismo no contexto português e europeu mais alargado, que deve questionar o poder branco e reconsiderar a relação ente raça, classe e nação como parte da formação/reprodução racializada da soberania.
A 12 de junho de 1985, Portugal formalizou a sua adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE), num período crucial para os debates sobre racismo, imigração e a possibilidade de uma legislação antidiscriminação no contexto europeu. Em dezembro desse ano, foi apresentado o relatório com o resultado dos trabalhos da Comissão de inquérito sobre a escalada do fascismo e do racismo na Europa – conhecido como o Relatório Evrigenis10 – e em 1991, o relatório com as conclusões da Comissão de Inquérito sobre o Racismo e a Xenofobia – conhecido como o Relatório Ford –, sendo ambos trabalhos comissionados pelo Parlamento Europeu. Os dois relatórios afirmavam que o voto na extrema-direita em processos eleitorais era diminuto em Portugal11 depois da Revolução de 1974 (Evrigenis, 1985, p. 58, par. 166; Ford, 1991, p. 36). Não obstante, no Relatório Ford12 era assinalado que “[h]á, contudo, muitos residentes portugueses de origem ou descendência africana ou chinesa que têm constituído o alvo da propaganda racista e da violência de grupos políticos marginais e desordeiros não organizados, nomeadamente de «skinheads» que professam o nazismo.” (Ford, 1991, p. 38). Era também apontada a resposta de representantes da população negra no país:
A violência dos «skinheads» constitui um problema tão sério para a comunidade negra que dois dos seus representantes encontraram-se com o ministro do Interior, em 16 de Janeiro de 1990, para decidir a criação de uma comissão com o objectivo de controlar e estudar a situação vivida pelas minorias étnicas em Portugal. Será composta por funcionários do Ministério do Interior, da polícia judiciária e da guarda fiscal, bem como por representantes das associações representativas dos cabo-verdianos e guineenses (Ibid., 76).
Neste relatório, o lugar do racismo no país é explicado em relação ao “passado colonial” de duas maneiras. Em primeiro lugar, considera que “apesar de os portugueses serem conhecidos pela sua herança étnica e cultural mista, de terem sido muito permeáveis a casamentos mistos onde quer que estabelecessem colónias ou territórios ultramarinos em séculos passados, […] seria errado partir do princípio que o país goza de harmonia racial”, afirmando qua a probabilidade de ser vítima de “discriminação ou rejeição racial” depende do grau de negritude: “uma pessoa filha de um ascendente negro é mais aceitável do que aquela que tem os dois ascendentes negros” (Ibid., p.75-76, grifo da autora). Em segundo lugar, ao fazer referência a incidentes de brutalidade policial, afirma que “os oficiais da polícia mais racistas são os que combateram na guerra colonial” (Ibid., 76). Ademais, são feitas alusões a “certas formas de rejeição por parte da sociedade portuguesa” sofridas pelos imigrantes de origem africana, por exemplo no aceso à moradia: “muitos senhorios recusam-se a alugar apartamentos a africanos, ou mesmo a cidadãos portugueses que sejam ‘africanos puros’” (Ibid.). Esta situação, combinada com a morosidade do “processo de legalização (autorização de trabalho e de residência)”, a carência de informações sobre o mesmo, e o “medo da deportação”, estariam a impedir a solicitação destas autorizações (Ibid.).
Perante este cenário, desde o início da década de 1990, que as organizações antirracistas denunciavam a crescente impunidade da violência e dos crimes racistas e assinalavam a responsabilidade do Estado nos processos de guetização das populações negra e Roma. E, em 1996, a organização SOS Racismo e a hoje extinta Associação Portuguesa dos Direitos do Cidadão entregaram ao Presidente da Assembleia da República uma petição,13 solicitando a adoção de uma lei contra a discriminação racial no país. Depois de quase três anos, duas propostas de lei14 foram finalmente debatidas e aprovadas, dando lugar à lei nº 134/99 que Proíbe as discriminações no exercício de direitos por motivos baseados na raça, cor, nacionalidade ou origem étnica (Cf. Falcão, 2016). No entanto, a discriminação racial não constitui, ao abrigo desta lei, crime, mas um comportamento ilícito de natureza administrativa sujeito a coima.15 Como tal, esta continua a ser uma demanda do movimento antirracista até hoje.
No decorrer da apresentação das propostas de lei na Assembleia, embora nos seus discursos, os/as deputados/as reconhecessem a necessidade e pertinência de uma lei contra a discriminação racial, o debate foi enquadrado numa abordagem comparativa dos diversos graus de racismo em diferentes sociedades e na restrição do racismo a “atos” específicos. Tal, deixou Portugal e o seu passado colonial com saldo positivo:
Apresentamos este projecto de lei sem dramatismos. Portugal não é um país racista. Não temos, felizmente, no nosso país, problemas de cariz racista com a dimensão e a gravidade dos problemas que se manifestam nos Estados Unidos, na Alemanha ou mesmo na França. (António Filipe, deputado do Partido Comunista Português; Diário da República, 1999, p. 2379)
Apesar de as múltiplas avaliações internacionais sobre esta matéria serem positivas e de o relatório do Comité das Nações Unidas sobre a eliminação da discriminação racial em Portugal feito pelo búlgaro Ivan Greavalov ter merecido aprovação e mesmo referido que nunca foi possível “atacar” Portugal por práticas racistas, mesmo no tempo colonial […]. Portugal deve intensificar medidas no sentido de evitar actos de discriminação racial e xenófoba. O racismo, tenha a cor que tiver – e sublinho, tenha a cor que tiver –, tem de continuar a ser combatido (Maria Celeste Correia, deputada do Partido Socialista; Diário da República,1999, p. 2382, grifo da autora).
Dezassete anos depois, o Governo apresentou, em março de 2017, uma proposta de lei – Proposta de Lei n.º 61/XIII – que introduzia reformas à lei 134/99, mas não contemplava ainda a criminalização16 de práticas de discriminação (sobre este debate Cf. Henriques, 2017). No seu discurso inicial, o então Ministro Adjunto do Primeiro-ministro, Eduardo Cabrita, enfatizou a alegada impecável reputação internacional do país no que dizia respeito ao combate à discriminação racial:
O tema que hoje reúne a Assembleia da República, o combate à discriminação racial e étnica em função da cor, da nacionalidade, da ascendência ou do território de origem, é um elemento central da marca da identidade portuguesa, dos princípios constitucionais, estabelecendo um País que se caracteriza pela afirmação da tolerância, pela relação com outros povos e pela capacidade de integração, quer de migrantes, quer de refugiados. […] Portugal tem sido considerado, em todas as avaliações internacionais, como um País que se destaca pelas boas práticas nesta matéria, sendo uma referência no quadro europeu, independentemente de assumirmos, nas perceções transmitidas na vida pública e cívica, questões que têm a ver ou com comunidades específicas ou com situações pontuais de conflitualidade. (Eduardo Cabrita, Ministro da Presidência, Diário da República, 2017, p. 3, grifo da autora)
Esta série de discursos políticos ilustram um padrão nos debates parlamentares ocidentais sobre políticas de imigração, refugiados, grupos minorizados/racializados, racismo e discriminação, tal como analisado por Teun van Dijk no início da década de 90. O seu estudo dos debates parlamentares na Grã-Bretanha, França, Alemanha, Holanda e Estados Unidos mostrou como na retórica e argumentação políticas, “especialmente em debates sobre imigração e assuntos étnicos em geral, é importante mostrar que o nosso partido, o nosso país e o nosso povo é humano, benevolente, hospitaleiro, tolerante e moderno” (van Dijk 1993, 72, tradução nossa). Aliás, duas das afirmações recorrentes identificadas no estudo de van Dijk, podem ser facilmente reconhecidas nos discursos de deputados/as portugueses/as. Em primeiro lugar, a “alegação de incompatibilidade”, isto é, que o racismo é incompatível com o que seria a identidade do país ou da identidade europeia no seu todo. Este argumento é central também no relatório Evrigenis, ou seja, a ideia de uma “Europa histórica”, essencialmente contrária ao racismo (Cf., Maeso, 2018, p. 854-855) – esta alegação é geralmente defendida mediante “comparações negativas com outros países” e “garantias históricas” de uma suposta longa tradição de hospitalidade e tolerância (van Dijk, 1993, pp. 73-74). Em segundo lugar, o autoelogio nacionalista, geralmente acompanhado por negações mais ou menos explícitas de racismo, que precisam de ser examinadas em relação ao contexto, debates e eventos específicos. Podem ser uma resposta direta a acusações específicas – o que não é o caso nos debates parlamentares em Portugal – ou podem aparecer como uma expressão das “normas subjacentes e valores de um consenso, ou melhor, uma inconsistência sentida entre as opiniões atuais (sobre políticas públicas, em relação a migrantes, minorias) e as tais normas e valores gerais (...)” (Ibid., 77, tradução nossa). Por exemplo, a alusão do Ministro Cabrita, opaca e ambígua, face a “questões que têm a ver ou com comunidades específicas ou com situações pontuais de conflitualidade” reconhece/desacredita o racismo, precisamente por não o nomear num debate sobre uma lei destinada a combatê-lo. Para além do mais, a referência vaga a “questões” ou “situações pontoais”, relega o problema político a algo ocasional que, de facto, nem seria propriamente sobre racismo, mas sobre “comunidades específicas” ou “conflitos”. Em 1999, a deputada Correia desvinculava o racismo da branquitude como sistema de opressão – “tenha a cor que tiver” – e aludia, complacentemente, ao relatório apresentado pelo governo português ao CERD, em março de 1998, e à resposta do Comité. Neste relatório,17 os representantes do governo português concluíam que “Portugal, quando comparado com outros países europeus, experimentava, relativamente, poucos fenómenos de discriminação e xenofobia. Porém, os movimentos de intolerância que tem vivido são, contudo, suficientemente sérios para merecer uma atenção constante” (CERD 1999a, p. 72, par. 343, tradução nossa). Durante as reuniões de discussão com o Comité foi, de facto, assinalada a série de “incidentes de violência racial em Portugal perpetrados por skinheads nos últimos anos contra população negra, estrangeira e Romani” (CERD, 1999b, p. 5, par. 18), assim como “a presença de racismo nas unidades policiais” (Ibid., p. 12, par 18), sobre o qual o Comité solicitava, à altura, mais informações.
Um dos casos de violência racista mais marcantes no Portugal contemporâneo aconteceu neste período, em 1995. Na noite do dia 10 de junho – feriado nacional18 – um grupo de homens brancos de nacionalidade portuguesa, vinculados ao movimento de extrema-direita dos chamados “cabeças rapadas”, intimidaram e agrediram brutalmente vários homens negros no Bairro Alto, em Lisboa. Alcindo Monteiro, negro, de origem cabo-verdiana, de 27 anos, faleceu na sequência das agressões brutais de que foi vítima. Dois anos depois, em 1997, 17 arguidos foram julgados e condenados por diferentes crimes, entre eles, agressão, homicídio qualificado e discriminação racial. Os arguidos recorreram a sentença do Tribunal Criminal de Lisboa, mas esta foi ratificada pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ), nesse mesmo ano.
A este propósito, destaco três afirmações do Acórdão do STJ na validação da qualificação dos crimes pela intencionalidade e motivação por ódio racial, especificamente contra “indivíduos de raça negra”. Na primeira eram referidos os “sentimentos de ódio” cultivados pelos arguidos no contexto de celebração do Dia de Portugal: “Inicialmente, os arguidos encontravam-se imbuídos do espírito de comemoração do dia da raça. São sentimentos de exaltação que poderão ter mais carga positiva do que negativa, embora terreno propício a outros mais perigosos” (STJ, 1997, grifo da autora). A segunda ratificava as palavras do acórdão do Tribunal Criminal de Lisboa que justificam a qualificação da agressão que motivou a morte de Alcindo Monteiro, dado que as “circunstâncias revelam especial censurabilidade e perversidade”: “Para os costumes e tradição do nosso povo e da nossa história, matar um homem só porque ele é negro é na verdade particularmente censurável e chocante” (Ibid., grifo da autora). A terceira considerava a intencionalidade dos arguidos em matar devido às suas “ideias racialistas”. O STJ não só ratifica a sentença como afirma que não houve nenhuma violação do direito à liberdade de consciência dos arguidos pois, “é dever dos tribunais condenar os ideais racistas, pois eles administram a justiça em nome do povo e a nossa sociedade é multirracial” (Ibid., grifo da autora). Estas três afirmações revelam como as condenações por e do racismo estão acompanhadas de um autoelogio nacionalista, que faz do povo português um povo tradicionalmente não racista. Neste sentido, são condenadas ideias racistas num Portugal “multirracial”, ao mesmo tempo que os sentimentos de exaltação nacionalista – “o espírito de comemoração do dia da raça” – são considerados como algo tendencialmente positivo.
Debruçar-me-ei sobre os discursos da multirracialidade em Portugal na secção seguinte, questionando como esta condição da sociedade portuguesa aparece imbricada com a alegada tradição não-racista do povo português, implicitamente entendido sempre como branco. O racismo e o não-racismo ficam, assim, fora do espaço da política, isto é, da história e das relações de poder, para entrar no terreno do fundacionalismo, do ôntico – do relativo ao ser-português. A portugalidade ficaria, assim, ligada, essencialmente, ao não-racismo e, ao mesmo tempo, desvinculada do poder branco.
A condição homogénea da sociedade portuguesa contemporânea e os contornos da sua “diversidade” têm sido uma questão central no conjunto de relatórios apresentados pelo Estado português ao CERD, desde meados dos anos 1980.19 Mais especificamente, o fato das autoridades portuguesas nunca terem incluído dados desagregados sobre a composição étnica da população, ou dados estatísticos sobre discriminação racial (por exemplo, no acesso ao emprego, educação ou habitação) tem sido alvo de críticas do CERD, e é uma das principais demandas de ativistas antirracistas e de alguns setores da academia.20 As autoridades portuguesas sempre invocaram a Constituição e, desde a década de 2010, a Lei portuguesa sobre Proteção de Dados para legitimar a ausência de uma recolha oficial de dados étnico-raciais.21 Embora, na verdade, essas disposições legais estabelecem as condições para a recolha e processamento de dados pessoais se obedecerem a um interesse público legítimo, ao consentimento expresso e à garantia de anonimato e não discriminação – e não apenas sua proibição.22
Neste contexto, a multirracialidade do povo português é equacionada com uma “ausência de preconceitos raciais” que “explicaria, por exemplo, como os portugueses têm sido capazes de se assentar tão facilmente no Brasil” e, portanto, “seria considerado impróprio estabelecer estatísticas com base na raça” (CERD, 1999b, p. 2 par. 5, tradução nossa). É nesta perspetiva que a população Roma é continuamente enquadrada como a única população distinta e diferenciável:
Os diversos estrangeiros que vivem em Portugal não foram considerados como minorias, mesmo que houvesse alguma fricção ocasional com a população de descendência portuguesa [Portuguese stock]. De um modo geral, poder-se-ia dizer que a sociedade portuguesa é homogénea, para além da comunidade Roma [Gypsy community] que tem permanecido deliberadamente isolada do resto da população durante vários séculos, a fim de proteger a sua cultura e tradições e, consequentemente, foi tratada separadamente no relatório. (CERD, 1999b, p. 2 par 6, tradução nossa)
A população portuguesa tem-se misturado e hibridizado [crossbred] regularmente devido as sucessivas chegadas de novos grupos étnicos que a deixaram com uma inusual tolerância e respeito pelas diferenças. Como resultado de tantos séculos de mistura, [a população portuguesa] é agora homogênea. A única parte da população que não se misturou com outros grupos é a população Romani [Gypsy], que é composta por cerca de 40.000 pessoas, o único dado demográfico que indica uma distinção entre grupos étnicos, pois se refere a um grupo étnico que se diferencia da população como um todo. (CERD, 2000, p. 12 par. 47, tradução nossa)
“Portugal é um país unitário no que se refere a sua população. Salvo a comunidade Romani com uma população entre 40,000 e 60,000 pessoas, não há minorias étnicas, reconhecidas com tal, no país (CERD, 2011, p. 3 par. 2, tradução nossa).”
A população Roma é projetada nos relatórios como uma espécie de párias por vontade própria, ou seja, uma população que teria “permanecido deliberadamente isolada do resto da população durante vários séculos” (CERD, 1999b, p. 2 par 6, tradução nossa). De fato, o processo político que explica como a população Roma foi reconhecida pelo Estado português, em 2007, como minoria étnica é revelador deste imaginário da nação portuguesa como uma unidade etno-racialmente homogénea. Este reconhecimento resultou das pressões no âmbito da ratificação da Convenção Quadro para a Protecção das Minorias Nacionais,23 em 2002, durante o primeiro ciclo de relatórios e repostas enviadas ao Comité Consultivo da Convenção entre 2004 e 2007. Em resposta à opinião emitida pelo Comité no ano anterior, o Governo português declarou que “Portugal não reconhece a existência de minorias nacionais no seu território, reconhecendo uma minoria étnica, a comunidade Roma” (Governo de Portugal, 2007, p. 2, tradução nossa).
Nas respostas ao Comité Consultivo, as autoridades portuguesas também investiram, como vimos nos relatórios enviados ao CERD, em validar a unidade e homogeneidade da nação portuguesa como a sua marca histórica. Garantia-se assim a sua aquiescência com os princípios cívicos do universalismo e a igualdade de tratamento, ao tempo que se mantinha a negação de qualquer adesão a argumentos “diferencialistas” ou étnicos. No seu primeiro relatório ao Comité em 2004, Portugal afirmava que a ratificação da Convenção foi um “ato de solidariedade política” com os países da Europa de Leste24 (Governo de Portugal, 2004, p. 2). Esta consideração viria a ser reiterada pelas autoridades portuguesas, em 2010, no comentário de resposta às opiniões do Comité sobre o segundo relatório de Portugal (Governo de Portugal, 2010, p. 2), ao mesmo tempo que reafirmava o imaginário de um Estado-Nação secularmente unitário, uma unidade étnico-politica interrompida somente pelo (recente) “fenómeno da imigração” e pela existência da “comunidade Roma”:
[…] Portugal é, possivelmente, o único país da Europa cujas fronteiras como Estado e como Nação têm sido perfeitamente e secularmente coincidentes nos últimos 800 anos. Este fato não colide com o fenómeno da imigração no nosso país – que também não é reconhecida como uma minoria nacional por outros países Europeus – assim como com a existência de uma minoria étnica, a comunidade Romani (Ibid., p. 2-3, tradução nossa).
A insistência numa “singularidade portuguesa” – definida pela homogeneidade étnica (metropolitana), a miscigenação e a interculturalidade –, é uma temática recorrente no âmbito político e científico português desde finais do século XIX, mas que adquiriu um impulso específico desde os anos 1950 no que se denominou como luso-tropicalismo. A retórica lusotropicalista constrói a portugalidade como essencialmente não-racista e historicamente vocacionada para o bom relacionamento com outras culturas e povos, tem sido renovada – desde os anos 1980 – em diversos âmbitos como, por exemplo, nos livros didáticos de história e nos museus (Cf. Castelo, 1999; Vale de Almeida, 2006; Araújo; Maeso, 2016; Maeso 2016). O que considero crucial destacar aqui é como esta singularidade se inscreve no espaço discursivo e de poder da europeidade/branquitude. Isto é, o Portugal multirracial seria “original” por refletir um modo de ser europeu, essencialmente não racista – como vimos na secção anterior, repete-se aqui a gramática da comparação com outros países. Configura-se, assim, uma população metropolitana homogénea através da miscigenação que é unitária na sua branquidade subentendida, nunca explicitada. Nas palavras de Miguel Vale de Almeida: “A linguagem da cor branca é a adotada inclusive quando a nação se define como um produto da miscigenação. Este processo foi mais longe em Portugal, já que não é uma nação neo-europeia nas Américas, mas um centro colonizador (ainda que fraco e semi-periférico)” (2006a, p. 23). Como mostram os discursos oficiais apresentados ao CERD, a singularidade da branquidade portuguesa precisa de ser atualizada e recriada, respondendo aos assuntos que dominam a política nacional e europeia, como a imigração ou a extrema-direita. Marta Araújo tem analisado como, desde os anos 1990, as narrativas hegemónicas desenvolvidas pela academia, nos debates políticos e nas políticas públicas, sobre a imigração têm estado
fortemente influenciadas pelas teorias deshistorizadas da globalização. Estas tendem a oferecer uma análise presentista, na qual o passado tem a duração de algumas décadas, tornando a dinâmica pós-colonial irrelevante e marginalizando as considerações sobre “raça” e racismo. Em Portugal, por exemplo, a maioria dos relatos oficiais de imigração assume o início dos anos 1990 como um momento-chave da imigração contemporânea. Esses relatos desvinculam a migração da história do colonialismo e a subsumem a uma lógica econômica de “fatores push and pull” (Araújo, 2013, p. 33, tradução nossa).
Neste contexto de deshistoricização e despolitização do colonialismo e dos seus legados na atualidade, a negação do racismo reifica um entendimento da “raça” como realidade biológica, expurgando-a da esfera da política. Assim, as populações racializadas ficam presas às categorias que as tornam uma certa presença, sem um abrigo político, na sociedade portuguesa. Ou seja, a nação e as suas instituições proveem narrativas e mundos de vida (ex. a narrativa dos descobrimentos; a homogeneidade étnica) nas quais as suas identidades e histórias não se podem projetar, a não ser como objeto da ação metropolitana (Cf. Sayyid, 2014, p. 112):
A sociedade portuguesa é aberta, tolerante, multicultural e acolhedora. Existe um consenso global em Portugal sobre a imigração. Os partidos políticos representados no Parlamento não utilizaram a imigração como um tema político de debate. O único partido político de extrema-direita (o PNR)25 nunca teve votos suficientes para eleger um único membro do Parlamento (a sua votação média é de cerca de 0,3% dos votos). O passado histórico de Portugal e a relação especial com a migração e culturas diferentes é uma das razões, entre muitas outras, que sustentam este consenso (CERD, 2015, p. 24-25, tradução nossa).
Desde idade dos descobrimentos,26 Portugal adquiriu uma vasta experiência de diálogo com outras culturas, uma tradição que continuou através dos processos de emigração – com cerca de 5 milhões de portugueses e seus descendentes a viverem noutras partes do mundo – e mais recentemente, de imigração (CERD, 2016a, p. 2, par. 2, tradução nossa).
Se no território metropolitano – mais “luso” que “tropical” – a população Roma aparece representada como pária por vontade própria, a população negra é encapsulada na “imigração” e, como veremos na secção seguinte, na figura do eterno trabalhador-imigrante que se vai cristalizando através das “gerações” – “independentemente de quantas gerações tenham passado, um imigrante permanece um imigrante” (Sayyid, 2004: 152, tradução nossa). A história de Portugal, contada como uma história singular, é veiculada e regulada numa relação de poder que vai do centro metropolitano - (do bom) colonizador - aos territórios colonizados:
A narrativa da mistura baseia-se na dádiva que recusa o contra-dom: alguns portugueses ter-se-iam misturado com africanos; no processo teriam criado sociedades lusotropicais; teriam oferecido materiais culturais; mas nada seria suposto ‘retornar’ a Portugal, nada cultural e muito menos étnico-racial (Vale de Almeida, 2006b, p. 366, tradução nossa).
As organizações, movimentos e ativistas antirracistas têm desafiado estas narrativas e as decisões institucionais que as acompanham, mas, só recentemente, com o fortalecimento do poder racializado,27se tem conseguido abrir fissuras no debate público e político. Na secção seguinte analiso estas fissuras e as respostas do Estado português e do espaço académico: a arte da desconversa.
Os últimos dois relatórios apresentados pelo Estado português ao CERD, em 2011 e 2015, identificavam situações específicas de discriminação relativas à população negra (referida como população afrodescendente), embora sem fazer qualquer referência a políticas públicas específicas, o qual era explicado como segue:
Em relação à população afrodescendente, Portugal tem uma abordagem integrada/holística para o combate a discriminação racial, em base a sua crença profundamente enraizada de que o fenómeno do racismo é global. Este problema requer de uma abordagem universal, que não individualize um grupo específico. Esta abordagem deriva-se dos princípios constitucionais de Portugal, nomeadamente aqueles relativos ao princípio de igualdade (CERD, 2015, p. 22, grifo da autora, tradução nossa).
O “argumento da ubiquidade” (van Dijk, 168-169) isto é, a ideia de que “o antagonismo étnico pertence a todos os tempos e todas as sociedades” e de que “o nosso próprio preconceito e discriminação brancos, europeus, são apenas um de um tipo” são a base desta explicação, que oblitera a responsabilidade política no combate à discriminação racial. Para além do mais, o argumento torna-se circular quando evoca o princípio de igualdade, consagrado na constituição, como a razão que impediria o combate à discriminação racial a partir da situação socioeconómica e política da população racializada, e da sua experiência vivida.28 Isto é, em nome da igualdade e do universalismo, o combate à discriminação não deveria ser pensado a partir da experiência histórica e da situação de quem é objeto dessa discriminação.
O fortalecimento dos movimentos antirracistas de base e a relevância do trabalho académico de intelectuais e estudantes negros/as têm desafiado esta retórica oficial.29 Neste contexto, um conjunto de associações do movimento negro e afrodescendente enviou uma Carta Aberta ao CERD, antes da sua reunião com a representação do Estado português, em Genebra para discutir o relatório apresentado em 2015 (Carta Aberta, 2016). As associações criticaram o relatório oficial e assinalaram negação do racismo na esfera das políticas públicas, bem como a necessidade de implementar políticas de ação afirmativa. Foram especificados os principais assuntos de preocupação em relação ao racismo, nomeadamente: educação; sistema de justiça e brutalidade/impunidade policial; acesso ao emprego; sistema de saúde e habitação; direitos políticos e lei da nacionalidade (com a prevalência do jus sanguinis desde 1981). De fato, durante a reunião em Genebra, o relator do Comité confrontou a adequação dessa abordagem “holística” e “universal” defendida pelas autoridades portuguesas (CERD, 2016a, p. 8 par 35), e assinalou que “várias ONG portuguesas haviam indicado que o racismo institucionalizado, o legado do passado colonial do Estado signatário, continua a determinar o tratamento recebido pelas pessoas afrodescendentes que, junto com migrantes e a população Roma, eram marginalizadas e considerados como parias [outcasts] por alguns setores da sociedade portuguesa” (Ibid., p. 5, par. 21, tradução nossa). A ausência de relatórios alternativos e das visões de ONGs no relatório do Estado foi também assinalado pelo Comité (CERD, 2016b, p. 5; p. 7).
Nas suas respostas, os representantes do estado português abdicaram da retórica da inexistência de grupos étnicos no país para neutralizar a discussão sobre o racismo, e avançaram como uma negação mais explícita da capacidade explicativa do racismo para compreender as situações de exclusão política e violência que eram denunciadas na Carta Aberta:
Dada a sua experiência pessoal de trabalho na Cova da Moura30 nos últimos 16 anos, [o Alto Comissário para as Migrações, Pedro Calado considerou que] deve ser assinalado que, enquanto a área provê um caso interessante de estudo sobre a exclusão, os problemas que são experienciados lá eram os mesmos que em outros concelhos no norte do país, onde a população é maioritariamente de origem portuguesa. A exclusão social e a pobreza não tinham cor. O problema na Cova da Moura era a pobreza mais do que a raça. As politicas públicas de combate a discriminação racial cobriram todo o país e estavam direcionadas a diferentes grupos étnicos que experimentavam as mesmas dificuldades. O Programa Escolhas31 era um exemplo de um programa que abordava um problema específico e que reúne a Portugueses nativos, estrangeiros e pessoas de descendência migrante (CERD/C/SR.2501, 2016, Meeting, p. 2 par. 3, grifo da autora, tradução nossa).
Esta afirmação retira qualquer legitimidade às experiências rotineiras de racismo e discriminação vividas pelas populações negra e Roma, e silencia os estudos e os dados que mostrariam uma outra realidade. A “pobreza” aparece como uma situação que não está ancorada em histórias políticas e contextos legais concretos, que têm condicionado de modo diferenciado a relação do Estado com a população branca “portuguesa-portuguesa” e a população racializada. Assim, o uso de categorias como “portugueses nativos”, “estrangeiros” e “pessoas de descendência migrante” reinscreve e naturaliza a fronteira entre portugualidade e não-portugalidade. Deve notar-se que estes não são meros “descritores” de “segmentos” da população residente no país, mas categorias que refletem determinados acordos políticos e jurídicos, que condicionam as posições de determinadas populações nas estruturas socioeconómicas e as formas como são governadas/reguladas. Quando o Estado português refere dados mais específicos sobre desigualdade, as interpretações favorecem uma naturalização da economia política do racismo. Por exemplo, durante a reunião com o CERD, Catarina Reis Oliveira, socióloga e diretora científica do Observatório das Migrações (OM), deu conta dos dados disponíveis relativos às disparidades salariais:
Havia reconhecidamente diferenças salariais entre portugueses e trabalhadores estrangeiros. Os salários dos migrantes eram em média 8% mais baixos do que os dos outros trabalhadores. No entanto, quando os dados foram desagregados em termos de grupos ocupacionais, mostrou-se que os salários mais baixos se deviam à grande proporção da população de certas comunidades estarem empregadas em ocupações específicas. Por exemplo, muitos estavam empregados no setor de construção, que tinha sido severamente afetado nos últimos anos pela crise econômica. Como resultado, os migrantes tinham se mudado para outros setores e muitos estavam também criando os seus próprios negócios (CERD/C/SR.2501, 2016, Meeting, p. 5 par. 22, tradução nossa)
A naturalização da posição da população “migrante” em determinados sectores económicos revela não só a despolitização de como a população racializada constitui “mão-de-obra barata”, mas configura o silenciamento dos contornos históricos e políticos da formação racial do “emprego”, da “empregabilidade” e da “precariedade”. De fato, a crise financeira e a imposição de políticas de “austeridade” em países como Portugal, Espanha ou Grécia, intensificou a mobilização coletiva e o protesto em torno da precarização das vidas e, em específico, do emprego, da proteção face ao desemprego e dos salários. Em Portugal, a Troika (o Fundo Monetário Internacional, o Banco Central Europeu e a Comissão Europeia) aprovou, em conjunto com o Estado português, um programa de “ajuste económico e financeiro”, em maio de 2011, que foi implementado durante três anos, até 2014.32 As análises sobre o efeito da política de “ajuste” têm apontado o aumento da desproteção no desemprego, a precariedade e a deficiente qualidade do emprego criado – mal remunerado, flexibilização do despedimento (CRISALT, 2015, p. 1; 2017, p. 13).
Vou-me debruçar sobre alguns dos dados e as interpretações de um estudo publicado em 2017 pelo OM, Condições de vida e inserção laboral dos imigrantes em Portugal: efeitos da crise de 2007-2008, cofinanciado pelo Fundo Europeu para a Integração de Nacionais de Países Terceiros (FEINPT).33 O estudo pretendeu “compreender os efeitos da crise económica na imigração, quer sobre a entrada e a permanência de estrangeiros em território nacional, quer sobre as suas consequências ao nível da inserção laboral e das condições de vida dos imigrantes oriundos de países terceiros em Portugal” (Esteves, 2017, p. 27). Este trabalho segue as análises que, desde final dos 90, se têm focado na “inserção laboral” da população imigrante, com incidência nos chamados “imigrantes dos PALOP” – Países Africanos de Língua Oficial Portugal (Cf. entre outros: Baganha; Ferrão; Malheiros, 1999; 2002; Peixoto, 2008; Pereira, 2008; 2014). Vou destacar duas questões ligadas tanto à abordagem do estudo como aos dados compilados pelo mesmo, que apontam ao mesmo tempo que silenciam/naturalizam os efeitos da institucionalização do racismo.34
Em primeiro lugar, saliento a utilização despolitizada da categoria imigrantes/nacionais de países terceiros e categorias subsequentes como “imigrantes pioneiros” (p. 26; 30), “imigração laboral” (p. 18) ou “migrantes ‘pós-laborais’” (p. 79). A categoria imigrantes/nacionais de países terceiros35 é produto de uma série de leis e políticas de controlo e regulação da entrada e permanência de força de trabalho de população nascida fora do espaço da União Europeia e dos direitos políticos que os Estados-membro outorgam. O espaço europeu de “livre circulação” é constituído a partir de lógicas coloniais e imperiais de regulação, que impõe a não-circulação, o controle e a morte legalizada de populações categorizadas na não-europeidade. Assim, como assinala De Genova, seguindo a palavra de ordem do movimento político dos Chicanos nos Estados Unidos – “Não atravessámos a fronteira, a fronteira nos atravessou”36 –, não é a “mobilidade” que constitui determinadas populações como “migrantes”, mas, pelo contrário, são “as fronteiras [que produzem] migrantes” (2015, p.3, tradução nossa).
Neste estudo, os “tipos” de migrantes são considerados como refletindo as opções dos ditos “fluxos de entrada” e os diferentes “stocks” de estrangeiros (i.e. “imigrante laboral” ou “migrante pós-laboral”) que naturalizam os seus contornos raciais produzidos pelos diferentes regimes de controlo e regulação: “o status jurídico e a condição social do que convencionalmente designamos ‘(i)migrante’, de fato implica que é sempre um espectro bastante variado e heterogéneo de distinções jurídicas e desigualdades e diferenças sociais: […] é precisamente o trabalho dos regimes de imigração e das leis de cidadania, ordena-las e classifica-las hierarquicamente (De Genova, 2015, p. 3-4, tradução nossa). A institucionalização jurídico-política da raça é silenciada mediante uma linguagem técnico-legal de “controle de fluxos migratórios”, “migrantes (i)legais”, “imigração qualificada”, “inserção laboral irregular”, entre muitas outras, ou com categorias específicas da geopolítica pós-colonial de cada Estado, como é a categoria de PALOP ou lusofonia no caso de Portugal.
Porém, no trabalho publicado pelo OM apenas há referências aos denominados processos extraordinários de regularização de cidadãos estrangeiros “indocumentados” desde a perspetiva da “integração” e os “fluxos de imigração” (p. 52; 76; 94), mas sem considerar a relevância da história política da Lei da nacionalidade em Portugal – uma história de governação racial (pós-)colonial. Com a mudança da Lei n.º 37 de 1981 passou a privilegiar-se o Jus sanguinis, fazendo com que um elevado número de população negra e afrodescendente nascida em Portugal, veja negada a nacionalidade portuguesa (Cf. De Sousa, 2017; Fernandes; Rodrigues, 2017). A Campanha por outra Lei de Nacionalidade,37 organizada por diferentes associações e coletivos tem sido, desde 2017, a principal promotora do debate público sobre esta questão.38 Admite-se, no entanto, que na investigação “não foi possível analisar de que forma a aquisição de nacionalidade portuguesa facilita a incorporação de cidadãos naturais de países terceiros no mercado de trabalho português e europeu”, um processo que é destacado, entre outros aspetos, “por ser um sinal positivo de desejo de integração na sociedade de acolhimento” (p. 39). Esta interpretação neutraliza a relação de poder (pós-)colonial na qual a lei de nacionalidade está enraizada, como se de um “desejo individual” de ser português se tratasse.
Em segundo lugar, destaco a análise dos dados sobre desemprego, concentração em determinados empregos “pouco qualificados”, e a relação com o “grau de instrução” e habilitações académicas. Como foi exposto pelos representantes dos Estado português na reunião com o CERD, em 2016, o estudo aponta também que a crise afetou determinados setores como a construção, onde se concentram um número elevado de trabalhadores “imigrantes de países terceiros” e, sobre tudo, dos PALOP:
Para os cidadãos dos PALOP, nomeadamente cabo-verdianos, a construção ainda é uma das atividades empregadoras mais relevantes (21,1% e 21,2%, respetivamente), apesar de as atividades administrativas e dos serviços de apoio terem já uma expressão digna de nota (16,5% e 19,8%, respetivamente). A presença mais antiga em Portugal associada a um melhor conhecimento do mercado de trabalho e à aquisição de qualificações, poderá ter-lhes permitido alguma mobilidade profissional ascendente, apesar de vários estudos apontarem frequentemente para um limitado potencial de mobilidade […] (p. 87-88, grifo da autora).
Assim, os cidadãos dos PALOP e, em particular, os cidadãos cabo-verdianos, são considerados “imigrantes pioneiros” – desde os anos 1960 –, mas a sua situação não parece refletir um suposto processo de “integração” e “inserção”, que conta já com meio século. Por exemplo, sobre o acesso à pensão ou reforma, segundo os Censos de 2011, cerca de 30% dos cidadãos portugueses tinham como principal meio de vida a reforma, sendo 5% dos cidadãos dos PALOP e 7,3% dos cabo-verdianos (p. 85-86). Em relação à taxa de desemprego, segundo os Censos de 2011, as mulheres com nacionalidade portuguesa tinham uma taxa de desemprego de 13,5% e os homens de 12,3%, uma diferença de 1,2 p.p. Quando comparada com a população estrangeira, as disparidades são consideráveis: a taxa de desemprego para mulheres estrangeiras era de 19,2% e para homens de 17,9%, mais 5 p.p. que a taxa para residentes com nacionalidade portuguesa. Se consideramos os valores para cidadãos dos PALOP, maioritariamente negros/as, a taxa é significativamente mais elevada – mulheres guineenses, 28,4%; angolanas, 26,4% e cabo-verdianas, 20,2%; homens guineenses, 35,3%; cabo-verdianos, 36,6%, e angolanos, 31,7% (p. 65) –, com diferenças que vão dos 7 aos 23 p.p. acima dos valores registados para residentes com nacionalidade portuguesa. Dados sobre o acesso a prestações e medidas de proteção social, como subsídio de desemprego ou rendimento social de inserção (RSI) - que auxilia indivíduos ou famílias em situação de grave carência económica- revelam uma situação de maior desproteção, que derivam de uma precariedade estrutural em termos contratuais – sem descontos para Segurança Social –, assim como de carência de documentação “regularizada” de residência (p. 66). Segundo os dados de desemprego registrado, considerando o número de inscritos nos centros do IEFP, em 2008, 94% dos registados eram cidadãos com nacionalidade portuguesa e 6% estrangeiros; em 2014, 95,1% e 4,9% respetivamente (p. 67).
Os dados revelam que a população negra, afrodescendente, com nacionalidade estrangeira – já que os únicos dados disponíveis são por nacionalidade – está sujeita a formas institucionalizadas de negação de direitos políticos e de precariedade socioeconómica, com menores possibilidades de usufruir de prestações de proteção social, concentração em determinados setores de baixa e média qualificação e mais expostos às fragilidades da economia portuguesa. A relação entre qualificações e a concentração em determinados sectores e tipos de ocupação revela uma grande disparidade entre cidadãos com nacionalidade portuguesa e cidadãos dos PALOP e, em particular, cidadãos cabo-verdianos. Segundo os Censos de 2011, embora os níveis de escolaridade entre portugueses e cidadãos cabo-verdianos sejam semelhantes – mais do 40% não tem nenhum grau de instrução ou só o 1º ciclo do ensino básico –, e o grau de instrução dos cidadãos dos PALOP é superior – (p. 89), mais do 40% de cabo-verdianos estavam empregados em trabalhos não-qualificados, sendo menos do que 15% para os cidadãos com nacionalidade portuguesa (p. 91).
A exclusão e pobreza não têm cor? A Plataforma Gueto, movimento social negro, pan-africanista, antirracista e anti-imperialista, participou na manifestação que teve lugar em Lisboa, no dia 15 de setembro de 2012. O movimento “Que se lixe a troika! Queremos as nossas vidas!” foi um dos principais organizadores desta mobilização – principalmente através das redes sociais – em 40 cidades do país, com cerca de 1 milhão de manifestantes para pedir o fim do acordo com a Troika, do programa de “ajuste económico” assinado e protestar contra o orçamento de estado que estava a ser negociado para 2013.39 A faixa da Plataforma Gueto na manifestação apresentava o seguinte slogan: “Vivemos austeridade europeia. Desde o esclavagismo, ao mercantilismo, colonialismo, imperialismo, neoliberalismo. Cinco séculos de indignação”. Ora, estas palavras trazem uma outra historicidade da noção de “austeridade” e do sentimento de “indignação” que foram centrais nas mobilizações em Portugal e em outros países do Sul da Europa, tais como a Espanha. Face à experiência das classes médias e operárias brancas, onde a precariedade – apesar da sua condição cada vez mais estrutural – foi sobretudo lida como afetando uma geração que já não iria usufruir do tipo de emprego e prestações sociais dos seus pais e avós – a indignação também estava propiciada pelos cortes nos salários e pensões, e nos subsídios de férias, que afetava determinados setores sociais –, “cinco séculos de indignação” conta uma outra história, marcada pela escravização racial e o colonialismo.
Dois anos depois, na mobilização do 1º de Maio de 2014, as mulheres da Plataforma Gueto organizaram uma passeata contra o Racismo no Trabalho, slogan que se podia ler nas camisolas pretas que vestiam as e os manifestantes. Na publicação na rede social Facebook sobre a mobilização, a Plataforma Gueto afirma:
Negros e negras estão sobre-representados em setores como a limpeza, trabalho doméstico, a hotelaria, a restauração e a construção civil no mercado de trabalho cada vez mais racializado. Constroem casas onde nunca poderão viver; limpam corredores de universidade que não poderão frequentar; cozinham em restaurantes onde não poderão comer; auxiliam em hospitais onde nunca serão atendidos; são lojistas em lojas onde são clientes indesejáveis; caixas em supermercado onde cada vez é mais difícil encher o carrinho de compras; cuidam dos filhos das patroas durante muito mais tempo do que alguma vez poderão cuidar dos seus (Plataforma Gueto. Post publicado em 2 de maio de 2014).40
Porém, as mobilizações e denúncias da população racializada não foram alvo da mesma atenção mediática que se abateu sobre as manifestações contra a Troika e as políticas de austeridade em Portugal, um aspeto generalizado no contexto europeu. Como assinalam Emejulu e Bassel, a partir da experiência no Reino Unido, “a austeridade é um tipo de produção de conhecimento que gera atenção no âmbito das políticas públicas e da ação dos movimentos sociais sobre a deterioração das perspetivas econômicas de grupos da classe media e a classe operária brancas” (2017, p. 119, tradução nossa). A economia política do racismo é uma realidade negada institucionalmente através do imaginário de uma nação unitária e multirracial, onde os “cidadãos” racializados devem estar no seu lugar, mas um lugar que não é nunca interpretado como o produto do Estado racial (Cf. Goldberg, 2002) e dos setores da sociedade que se beneficiam dele ou cujo beneficio é percebido como legítimo: a relação intrínseca entre nação, raça e branquitude permanece incontestada.
Portugal é um país colonialista e os países colonialistas têm uma cultura de indigenato na sua relação com as pessoas que são diferentes. Assim, toda a sua produção legislativa e jurídico-administrativa arreiga-se claramente neste postulado de que há gente e há indigente! E isto vê-se através da sua organização urbana e territorial, através da sua organização política e através da sua organização económica (Mamadou Ba, ativista, membro de SOS Racismo. Cf. Alves; Ba, 2015).
A experiência histórica e a realidade das pessoas racializadas são negadas institucionalmente através da produção de conhecimento, bem como de interpretações que naturalizam a economia política do racismo e, portanto, uma ordem mundial racista. É neste sentido, que, tal como aponta Luísa Semedo, a possibilidade de uma crítica a esta ordem acaba por ser barrada, pela retórica da “pobreza equivalente” ou das “vivências dos brancos pobres”41 (Semedo, 2019). O contexto europeu, e mais especificamente da União Europeia, tem sido palco de intensas discussões sobre os discursos racistas contra os países considerados periféricos – nomeadamente do Sul da Europa, alvo dos programas de “ajuste económico” (Cf. Van Vossole, 2016) – ou sobre o esquecimento e invisibilização das experiências da classe operária branca de modo a compreender o seu voto a favor do Brexit no Reino Unido42, analisado através do preconceito de classe (Cf. Mckenzie, 2017). Neste contexto, como relembra Akwugo Emejulu, na sua análise dos debates sobre o Brexit,43 embora, ao que parece, alguns “t[enham] decidido ‘ver’ o racismo”, a branquitude, como relação de poder, permanece invisível: “A branquitude é assim reformulada como testemunha do racismo, mas sem qualquer obrigação de desmantelar a supremacia branca, o sistema de hierarquia racial permanece firme no lugar, com a brancura preservada, incontestada e intacta” (2016, n.p, tradução nossa). Neste contexto, pensar o presente-futuro do antirracismo deve ir para além de apontar o dedo ao racismo das classes operárias brancas, para reconsiderar a relação de poder entre raça, classe e nação.
No contexto britânico, Lisa Mckezie considera que ‘o que o referendo [Brexit] salientou até que ponto o Reino Unido está dividido pela classe, e a localização geográfica; foi explicitado que a metade da população não é visível para a outra metade. As pessoas que foram uma vez categorizadas como ‘a classe operária respeitável’ têm sido desvalorizadas nos últimos 30 anos, e agora são ‘resíduos’” (2017, p. S278, tradução nossa). A análise de Mckenzie encontra-se encapsulada no espaço do Estado-Nação, na relação entre classe e “democracia britânica”, ignorando que se trata também de configurações históricas imperiais, isto é: “aquilo que é ser britânico não pode ser compreendido separadamente do império e dos modos de governação imperiais que permaneceram dominantes até bem entrado o século XX” (Bhambra, 2017, p. 92). Tal, silencia como o debate do Brexit foi dominado pela retórica nacionalista, a imigração e os direitos de cidadania. A desvalorização da classe operária branca remete para o sentido de “perda” (Ibid.) de determinados privilégios e, como Mckezie aponta, de “respeitabilidade”. Uma perda que está ancorada na legitimidade do ganho, no direito como trabalhador a usufruir, mas que não é considerado desde o ponto de vista do “trabalho”, isto é, da “classe operária”, mas sim a partir da racialização da mesma (ibid.). Daí o olhar privilegiado sobre a classe operária branca – a sua desvalorização, privação de direitos. Assim, “o conhecimento produzido pela austeridade […] reforça uma compreensão do senso comum sobre a desigualdade económica que assume a ordem social racializada da supremacia branca. […] a presunção generalizada de que a pobreza é uma característica central do Outro racializado e pode ser, portanto, ignorada” (Emejulu; Bassel, p. 119, tradução nossa).
As análises das crises económicas derivadas da financeirização e a precarização da posição de benefício das classes médias e operárias brancas no contexto europeu tendem a silenciar a relevância do poder branco como estruturante do racismo. Proponho que repensar o presente-futuro do antirracismo requer uma análise da supremacia branca entendida como relação de poder, uma análise que questione os contornos raciais, (pós)coloniais, do “(des)abrigo” político. Neste sentido, os discursos identificados e analisados ao longo deste artigo mostram que a negação do racismo é, ao mesmo tempo, uma afirmação da nação como ponto de partida e chegada de uma identidade nacional branca essencialmente não racista. O (anti-)racismo fica encapsulado no ôntico, numa qualidade do ser – a idiossincrasia do ser-português – e fora, portanto, das relações de poder, da materialidade da economia política/direitos políticos. Mais ainda, a portugalidade é definida pela sua homogeneidade étnico-racial, uma branquitude que, no entanto e ao contrário de outras, se teria dado ao mundo – “deu mundos ao mundo”. A multirracialidade, entendida assim como o dom que Portugal deu ao mundo (Cf. Vale de Almeida, 2006a), neutralizaria a relação histórica entre portugalidade e poder branco. Neste contexto, as populações racializadas e as suas experiências históricas não podem pertencer à nação, devem ser contadas como exteriores ou inclusive contrárias à comunidade política europeia: entre o eterno trabalhador-imigrante e o pária por vontade própria. Assim, o presente-futuro do antirracismo está num movimento contra e para-além da nação. Parafraseando a S. Sayyid (2014, p. 114), a população racializada existe a pesar dos estados-nação, não pela sua causa. O presente-futuro do antirracismo deve questionar como a (re)existência das populações racializadas é constituída na dependência de mostrar lealdade política à nação – ex.: desde venerar os Descobrimentos a não usufruir do direito de resistência à ordem policial de identificação44 –, considerando que foi essa mesma “incapacidade” para ser leais e, portanto, sujeitos políticos (i.e. usufruir da soberania do Estado-Nação imperial em construção) que foi esgrimida pela ideologia colonial-imperial e os seus dispositivos de governação, para legalizar a escravização racial, o trabalho forçado e a ocupação e exploração de territórios. Importante ainda é considerar como historicamente a racialização do poder soberano tem constituído a não-europeidade como uma ameaça à ordem política e, portanto, as populações assim demarcadas ficam fora da negociação dos direitos e deveres da comunidade política. As diversas formulações aqui identificadas articulam o Estado de negação do racismo e efetivam, na sua repetição, a soberania política branca (Cf. Hesse 2017), naturalizando o lugar político e económico das populações racializadas – nas palavras de Mamadou Ba, “há gente e há indigente!”. Neste contexto, somos obrigados a questionar radicalmente uma luta centrada no acesso a direitos – um acesso conformado num arranjo político que consistentemente tem negado a existência política dos outros racializados – e a colocar no centro da análise e da luta política o desafio que supõe “aprofundar e alargar as oposições transnacionais e multiculturais às instituições e ideologias da supremacia branca e do privilégio branco” (Ibid., p. 601, tradução nossa).