Dossiê
Recepção: 12 Abril 2019
Aprovação: 10 Julho 2019
DOI: 10.1590/2179-8966/2019/43887
Resumo: O artigo propõe uma leitura da controvérsia sobre a constitucionalidade do abate ritual de animais em tradições de matriz africana a partir do conceito de “racismo religioso”. Os autores sugerem que a compreensão adequada do Recurso Extraordinário 494601 passa pelo reconhecimento da parcialidade (noutras palavras, da “branquidade”) das noções liberais de “(in)tolerência” e pela explicitação dos dispositivos de racialização e de normativa branca acionados no caso. Ainda, sinalizam que a depreciação e a criminalização das práticas tradicionais de alimentação em comunidades de terreiro, como circuito de (re)produção de vida na diáspora africana, revelam, entre outras coisas, a própria necropolítica estatal, como modo da distribuição desigual de morte que tem como vítima preferencial a população negra. Conclui-se que a potência da decisão do Supremo Tribunal Federal, fruto de um embate não apenas entre moralidades mas entre nomoi, depende da narrativa em que esteja situada e de um compromisso constitucional com uma agenda estruturalmente antirracista.
Palavras-chave: Racismo religioso, Tradições de matriz africana, Comunidades de terreiro, Constitucionalismo, Branquitude normativa.
Abstract: The article proposes a reading of the controversy concerning the ritual sacrifice of animals in Afro-Brazilian traditions drawing from the notion of “religious racism”. The authors make a case for the partiality (in other words, the “whiteness”) of liberal notions of “(in)tolerance”, focusing on racialization and white normativity as devices for a deeper understanding of Extraordinary Appeal - RE 494601. Engaging with such a perspective, they point out that the repression and criminalization of traditional food practices in terreiro communities, which conform a circuit of life (re)production in the African Diaspora, reveal the State's necropolitics as a mode of selective distribution of death having black people as its main victims. Thus, the paper concludes that the impact of the Constitutional Court’s recent ruling, resulting not only from a conflict of moralities but also from a conflict of nomoi, depends on the narrative that situates it and on the constitutional commitment to a structural anti-racist agenda.
Keywords: Religious racism, African-Brazilian traditions, Terreiro comunities, Constitutionalism, White normativity.
As cores das/os cortes: uma leitura do RE 494601 a partir do racismo religioso
Não matamos o animal, damos a ele um novo nascimento.
(Stella de Azevedo Santos, Mãe Stella de Oxóssi, 2012)
Nenhum conjunto de instituições jurídicas ou normas existe em separado das narrações que o situam e lhe proporcionam significado. Para cada constituição existe um épico, todo decálogo possui uma escritura.
(Robert Cover, (1983) 2018)
A cor das Cortes1: normatividade, branquitude e racialização2
A representação do poder judiciário ou da justiça é normalmente feita por uma mulher, branca, segurando uma balança em uma das mãos e na outra uma espada. Em algumas representações ela está vendada, em outras não. Quase todas as cortes de justiça convivem – em quadros, estátuas, mosaicos e tapeçarias – com essa representação (Cf. Resnik; Curtis, 2011). Nada mais ambíguo do que essa imagem, em que tudo leva a crer que a justiça e os seus espaços ou, dito de outra maneira, as Cortes de justiça, são aquelas em que não se vê e por isso mesmo se garante imparcialidade. Mas essa venda sobre os olhos da mulher é moderna. A imagem dos antigos era de uma mulher que via e por que via empunhava a espada e a balança para dizer da justiça (divina) e do direito. Pois bem, esse artigo não é sobre a representação da justiça e esse incipit é apenas uma chamada de atenção para o fato de que, não de hoje, gênero, raça, e a capacidade ou não de enxergá-los (sua gender e colourblindness) participam de modo definidor das imagens e dos imaginários da justiça e suas Cortes, ora de olhos bem abertos – por vezes mesmo panópticos, como nos alerta Stolleis (2014) – ora de olhos vendados. Uma mitologia de raízes greco-romanas que, desde então, nos impõe seu nomos, sua fabulação, sua cor e que, no Brasil, costuma vir associada aos símbolos cristãos em repartições públicas e plenários de tribunais, impondo também sua religiosidade e cosmologias particulares.3 Essas categorias são centrais no presente trabalho que aborda o abate ritual de animais e o conceito de “racismo religioso” a partir dos debates suscitados pelo julgamento do Recurso Extraordinário 494601/RS no Supremo Tribunal Federal. Tomando como contra-narrativa a justiça de Xangô – ícone cosmopolítico do povo iorubá, em sua terra natal e na diáspora – a imagem de oju obá, os olhos do rei4, comparece para propiciar outras leituras do caso, leituras quiçá menos sacrificiais da diferença.
Pois bem, eis a pergunta que nos co-move, que é motor e motivo de nossa pesquisa: qual a cor das Cortes? Em 2018, o percentual de magistradas(os) negras(os) não ultrapassou a média de 19% nas Justiças Estadual, Federal e do Trabalho (Brasil/CNJ, 2018: 12). Quase no mesmo período, por sua vez, a população carcerária brasileira contava com 64% de pessoas autodeclaradas pretas e pardas5. Os números confirmam não só o que a experiência insinua, mas o que os movimentos sociais6 e pesquisadoras(es)7 denunciam: com a desigualdade de condições e oportunidades parelham o genocídio da população negra e sua criminalização/encarceramento, duas facetas do mesmo racismo estrutural.
Resta ‘clara’ a cor do sistema de justiça. Desta quase clarividente clareza dependem os recortes, categorias e enquadramentos por ele manejados no exercício da função jurisdicional, isto é, aquilo que as Cortes enunciam quando calam.8 Uma das coisas sobre a qual silenciam é precisamente sua própria branquitude, silêncio esse que a torna tão mais eficaz quanto menos tematizada. Afinal, é generalizando o ponto de vista do privilégio estrutural que a normatividade branca funciona como dispositivo de padronização do “humano” – leia-se, da naturalização do homem/mulher branco/a9 como o universal:
A normatividade branca opera não para posicionar as pessoas brancas como as melhores – o ideal – mas como as mais humanas. Ela ameaça o tecido de uma sociedade multicultural não exatamente por alardear a superioridade branca, mas por utilizar diferenças reais ou imaginadas entre brancos e outros grupos para minar a humanidade destes. (...) A branquitude serve a uma função normativa ao definir o leque de atributos e comportamentos humanos esperados ou “neutros”. Outras categorias raciais emergem como desvios dessa norma, o que as coloca fora da proteção da lei e da sociedade civil. A função normativa da branquitude tem implicações importanes, porém subteorizadas, para o tratamento da branquitude enquanto categoria jurídica. (Morris, 2016: 950-952, tradução dos autores)
Articular branquidade/branquitude (Frankenberg, 2004) com/como normatividade (social e jurídica) é pensar “raça” não como substância mas como efeito de processos de racialização em que a diferença é construída como desvio do referente “normal” entronizado – normal porque branco e branco porque normal, tautologicamente.
O conceito de racismo estrutural (De Almeida, 2018), do qual o racismo institucional é uma faceta, põe em evidência os padrões estéticos (no plano da corporalidade) e éticos (no plano da aceitabilidade) assumidos como neutros pelos órgãos do Estado. Aplicados aos casos concretos, esses pressupostos reforçam a branquitude, sem necessariamente proferir juízos racialmente explícitos:
A normatividade branca funciona, em grande parte, estabelecendo a perspectiva a partir da qual a aceitabilidade é julgada. Se julgarmos nossas instituições da perspectiva dos grupos minoritários, ao contrário, poderemos concluir que elas são fundamentalmente ilegítimas. (...) Legisladores que propõem um diploma normativamente branco por exemplo, provavelmente o conceberão, ou ao menos o descreverão, em termos racionalmente neutros. Não obstante, a legislação discriminará minorias raciais se tão somente experiências e comportamentos brancos informarem os pressupostos de seus autores sobre o que é comportamento “tipicamente” ou “ordinariamente” americano. Em vez de proclamar juízos raciais, a normatividade branca se esconde por detrás de uma tela de objetividade e colorblindness. Frequentemente os participantes num sistema de normatividade branca negam que a raça tenha qualquer papel em suas ações e decisões. (Morris, 2016: 955-956, tradução dos autores)
A problematização seletiva dos ritos sacrificais – que teve no batuque e nas demais tradições da diáspora negra seus alvos preferenciais – participa dessa espécie de discriminação racial velada. Velada porque, embora nenhum dispositivo legal ou ato jurídico faça menção direta ao espectro racial da questão, são as práticas de matriz africana – mesmo quando realizadas por pessoas não-negras – aquelas objeto de criminalização. É dizer: o que se racializa e se repudia no abate religioso de animais é, antes de mais nada, a sua africanidade, a sua negritude de origem, assim como nas oferendas em espaços públicos, amiúde consideradas como “poluição ambiental”, e nas cerimônias e toques com atabaques, acusadas de “poluição sonora”.10 Assim, defendemos que as ações e decisões institucionais que levaram, inicialmente, à proibição legislativa dessas práticas tradicionais no Rio Grande do Sul (com posterior excepcionalização da regra para as religiões afro-brasileiras) e, em seguida, à judicialização desta exceção pelo Ministério Público (chegando ao Supremo Tribunal Federal via Recurso Extraordinário 49460111) podem ser lidas como performances e enforcement da branquitude. O racismo é, destarte, a chave de interpretação da questão.
Nosso ponto de vista fica mais perceptível quando, por detrás do argumento autoproclamado “racialmente neutro” da defesa dos animais (que motiva o projeto de lei do Código de Proteção aos animais) ou da tese dita “juridicamente imparcial” da inconstitucionalidade da proteção especial aos(às) afro-religiosos(as) se vislumbram compromissos ontológicos (pressupostos compartilhados sobre o que realmente existe) e axiológicos (pressupostos compartilhados sobre o que realmente merece existir) marcadamente “brancos”. Ou seja, nosso ponto de vista fica mais perceptível quando, por detrás da venda da mulher branca com uma balança na mão e na outra a espada, estão olhos bem abertos a capturar as cores do mundo. Por “brancos” quer-se enfatizar que tais compromissos legitimam determinados modos de existência (nomeadamente aqueles que se aproximam de uma matriz eurocêntrica) e deslegitimam outros (aqueles que se reivindicam como de matriz africana) fazendo emprego de cortes entre “humano” e “desumano” (frequentemente entendido tanto como “primitivo” quanto como “cruel”) na relação entre “humanos” e “não-humanos” (sejam eles, no caso, os animais sacralizados, sejam eles as divindades africanas, como os orixás). Sujeitos, crenças e práticas são, por meio dessa operação, dispostos e classificados num continuum cromático12 que, lembrando premissas evolucionistas do século XIX (e, amiúde, invocando-as expressamente, ao propor que as religiões de matriz africana deveriam “evoluir”13), aloca em cada extremo oposto “natureza” e “cultura, “barbárie” e “civilização”. Não por acaso, cultura e civilização pertencem, nessas representações, ao polo branco-europeu. Assim, pode-se dizer que não apenas as Cortes têm, fenotipicamente, uma cor, mas que também a tem o direito mesmo, se o entendermos, na esteira de Geertz (2013), como um modo específico de imaginar o mundo.
1. A cor dos cortes: necropolítica e racismo religioso
Num imaginário jurídico dominado por representações de branquitude, o corpo negro é o corpo matável-aprisionável nos mesmos contornos em que o corpus negro – as epistemes afrocentradas do candomblé, do batuque e das demais tradições do complexo rizomático do “Atlântico Negro” (Cf. GILROY, 2001) são demonizáveis-descartáveis. Noutras palavras, o epistemicídio do saber negro é dimensão simbólica, conexa ao genocídio da população negra, num projeto colonial de extermínio-subjugação. É por esse motivo que as noções liberais de “(in)tolerância” e “diversidade” estão longe de dar conta de um conflito que é, em princípio, de ordem não exatamente multicultural, mas de mundos normativos e de modos de ser neles. É sintomático que seja exatamente um caso que põe em jogo e em cheque as premissas brancas desses mundos normativos, ao mobilizar – antes, durante e depois de seu julgamento – tantos atores – em seguidas ocasiões o plenário da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul esteve repleta de partidários de ambas as posições e o do STF de lideranças do povo de terreiro – e a instigar tantos ódios, sobretudo de grupos animalistas que, entre outras coisas, propagaram versões mal intencionadas ou, no mínimo, ignorantes das práticas religiosas – como a ideia de que cachorros, gatos e outros animais de estimação seriam nelas abatidos14. O caso esgarça as fronteiras e possibilidades do discurso da diversidade e da tolerância. Nem toda a diferença é igual, há diferenças mais diferentes que outras. O conceito de racismo religioso parte da desigualdade das diferenças e não de sua homogeneidade para acentuar “a gravidade e, sobretudo a especificidade da experiência de uma violência perpetrada contra as religiões de matriz africana, que tem no racismo o seu sustentáculo de legitimação e ação destruidora”, posto que as agressões por elas sofridas “não se circunscrevem a um caráter puramente religioso, mas a uma dinâmica civilizatória repleta de valores, saberes, filosofias, cosmogonias, em suma, modos de viver e existir negroafricano amalgamados nas comunidades de terreiro” (Deus, 2019: 15). Vale recordar que o conceito foi central nos debates travados com o movimento negro e os povos de terreiro na formulação do Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável para Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana (2013-2015), onde o termo “racismo” aparece 28 vezes (Cf. Brasil, 2013).
Outrossim, os dados oficiais sobre violência religiosa no Brasil confirmam a especificidade dos processos que atingem comunidades de terreiro. No espectro quantitativo, elas são vítimas incontestavelmente majoritárias de agressões físicas, morais e simbólicas. Qualitativamente, os meios pelos quais são perpetradas tais violações sinalizam uma truculência, sistematicidade e coordenação que inserem a problemática no campo estrutural do racismo e da supressão de direitos (Cf. Fonseca e Adad, 2016).
Isso se comprova com a série de estereótipos veiculados pelos antípodas das liturgias afro-brasileiras, dentro e fora das instituições públicas, e o pouco ou nenhum conhecimento de causa que revelam sobre seus procedimentos e sentidos. Em geral, o argumento animalista é acompanhado do posicionamento das práticas impugnadas no campo do fetichismo e de um passado indesejável. Nesse sentido, são eloquentes algumas passagens da Ação Direta de Inconstitucionalidade movida pelo Ministério Público:
É de salientar que as religiões de matriz africana apresentam um cunho mágico, não havendo espaço para a idéia de salvação nem de fixação no além; o que se busca é “a interferência concreta do sobrenatural neste mundo presente, mediante a manipulação de forças sagradas, a invocação de potências divinas e os sacrifícios oferecidos às diferentes divindades, os chamados orixás” (...) (Ministério Público do Rio Grande do Sul, 2004: 6, grifos nossos)
Em tônica de positivismo oitocentista, confere-se dos debates registrados no acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul o pronunciamento:
No mérito, com a devida vênia, divirjo do culto Relator, pois entendo que a vida deve prevalecer, sempre. O Direito Natural nos assegura isso, seja em relação aos seres humanos, seja quanto aos animais. Eu não detectaria a questão da crueldade (ou não). Penso que o fato em si, de sacrificar um ser humano ou seja um animal, é ‘humanamente’ indesejável, em que pese o respeito que merecem os cultos defensores do abate como o de sacrificar animais. (...) A morte provocada, é algo cruel em si, seja ela perpetrada com requintes ou não. Aí reside -na essência- a divergência com o douto posicionamento do colega relator. A HUMANIDADE tem de evoluir para a preservação da VIDA. (Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, 2006: 20)
Magia (em oposição a “religião”), “desumanidade” (em oposição a respeito à “vida”) e primitivismo (em oposição a “evolução”), notas que ecoam o conjunto de vozes fantasmáticas sobre um grande outro (o “Negro” e o “Indígena”, em especial, mas também o “Oriente” ou o “Islã”, noutro vieses), aquilo que Achille Mbembe define como a “razão negra”:
Numa primeira instância, a razão negra consiste portanto num conjunto de vozes, enunciados e discursos, saberes, comentários e disparates, cujo objecto é a coisa ou as pessoas «de origem africana» e aquilo que afirmamos ser o seu nome e a sua verdade (os seus atributos e qualidades, o seu destino e significações enquanto segmento empírico do mundo). (...)Tal razão não passa de um sistema de narrativas e de discursos pretensamente conhecedores. É também um reservatório, ao qual a aritmética da dominação de raça vai buscar os seus álibis. A preocupação com a verdade não lhe será alheia. Mas a sua função é, antes de mais, codificar as condições de surgimento e de manifestação da questão da raça, à qual chamaremos o Negro ou, mais tarde e já no tempo colonial, o Indígena (...) Neste contexto, a razão negra designa tanto um conjunto de discursos como de práticas - um trabalho quotidiano que consistiu em inventar, contar, repetir e pôr em circulação fórmulas, textos, rituais, com o objectivo de fazer acontecer o Negro enquanto sujeito de raça e exterioridade selvagem, passível, a tal respeito, de desqualificação moral e de instrumentalização prática (Mbembe, 2014: 57-58)
“Fazer acontecer o Negro enquanto sujeito de raça e exterioridade selvagem” parece a descrição mais precisa para o trabalho em que instâncias oficiais e oficiosas se achavam empenhadas no RE 494601. Ao longo dos mais de quinze anos em que a controvérsia sobre o abate religioso se estendeu, conscientes ou inconscientes dos parâmetros de branquitude que os orientavam, esses agentes estatais “pretensamente conhecedores” (no irretocável predicado de Mbembe) empreenderam uma essencialização e subalternização da identidade de afro-religiosas(os), uma operação de racialização que vinculou negritude (ainda que cultural, quando não biológica) e desqualificação moral. No fundo, como o excerto do voto acima “esclarece”, uma operação que lhes negava o status mesmo de humanidade. Parecendo cambiar o sinal da subjetividade, animais se tornam, nesse quadro, sujeitos de direitos ao passo que sujeitos de direitos são lançados na esfera da animalidade (“bárbaros”, “primitivos”, “selvagens”).
Daí a provocação lançada por Hédio Silva Júnior, advogado dos amici curiae União de Tendas de Umbanda e Candomblé do Brasil e Conselho Estadual da Umbanda e dos Cultos Afro-Brasileiros do Rio Grande do Sul – CEUCAB/RS, no RE 494601, quem, em sua sustentação oral em agosto de 2018, no STF, demarcou argutamente a ironia:
(...). Há estatísticas no Brasil que comprovam que nas periferias das cidades jovens negros são chacinados como animais, mas não há comoção na sociedade brasileira, não vejo instituição jurídica ingressar com medida judicial para evitar que jovens negros sejam mortos como cães nas periferias, mas a galinha da macumba (...) parece que a vida da galinha da macumba vale mais do que a vida de milhares de jovens negros. É assim que a vida de preto é tratada no Brasil (...) a vida de preto não tem relevância nenhuma, não causa comoção social, não move instituição jurídica, mas a galinha da religião de preto, ah, essa vida precisa ser protegida! (Silva Júnior, 2018, transcrição dos autores)
A ironia suprema, isto é, rigorosamente falando, a ironia soberana do caso é aqui escancarada: confrontando os dados alarmantes sobre homicídios de jovens negros15 (muitos dos quais cometidos pelas forças de segurança pública) com o nível de proteção que essas vidas encontram nas instituições do Estado, insinua-se a conclusão de que estas estariam mais dedicadas à salvaguarda dos animais destinados a abate ritual do que à defesa das pessoas negras. Trata-se de uma política da raça que, como sustenta Mbembe, regula a economia da morte, distribuindo “sacrifício” como função assassina do Estado:
Que a “raça” (ou, na verdade, o “racismo”) tenha um lugar proeminente na racionalidade própria do biopoder é inteiramente justificável. Afinal de contas, mais do que o pensamento de classe (a ideologia que define história como uma luta econômica de classes), a raça foi a sombra sempre presente sobre o pensamento e a prática das políticas do Ocidente, especialmente quando se trata de imaginar a desumanidade de povos estrangeiros – ou dominá-los. Referindo-se tanto a essa presença atemporal como ao caráter espectral do mundo da raça como um todo, Arendt localiza suas raízes na experiência demolidora da alteridade e sugere que a política da raça, em última análise, está relacionada com a política da morte. Com efeito, em termos foucaultianos, racismo é acima de tudo uma tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder, “aquele velho direito soberano de morte”. Na economia do biopoder, a função do racismo é regular a distribuição de morte e tornar possível as funções assassinas do Estado. (MBEMBE, 2016: 128)
Num outro circuito de saber-poder biopolítico, que gira em sentido contrário às práticas sacrificiais performadas pelo Estado (e que, foucaultianamente, detém mesmo um alto potencial disruptivo, ou seja, de operar um curto-circuito nos modos estatais de distribuição de morte), o abate religioso afro-brasileiro ritualiza a vida que engendra mais vida (comunitária e social), diviniza a produção/reprodução coletiva e relacional da vida:
Compreende-se que o cosmos candomblecista poderia bem ser representado por uma enorme boca que necessita ser ressarcida permanentemente, ou como um ventre, onde se gesta a vida biológica, a vida espiritual (o honko, quarto iniciático), e onde se deposita a comida que irá gerar novas formas de vida energética. Com efeito, segundo a cosmovisão do Candomblé, tudo come, comem os altares para que sejam instituídos, comem, dessa forma, as divindades, comem os objetos rituais, come a cabeça que é a vasilha da identidade e morada da divindade, comem os lugares centrais do templo, comem as pessoas na mesa com as divindades, comem as doenças para que estas não comam o paciente. Nesse quadro, alimentos, animais e pessoas, participam de uma cadeia de sentidos baseada na nutrição biológica e espiritual, que produz união, ordem cósmica e sentidos sociológicos. (Ferreira Dias, 2019: 7)
Se, segundo Derrida, “o sacrifício carnívoro é essencial para a estrutura da subjetividade, isto é, também para o fundamento do sujeito intencional e, se não da lei, pelo menos do direito” (2007: 35) cabe perguntar se o que as instituições tanto temem e abominam no abate religioso não é justamente o fato de que este devolva uma imagem nada redentora delas mesmas. A diferença que faz diferença é que, neste último caso, trata-se não de um sacrifício de comunhão, mas de predação; não um modo de relação, mas de aniquilação: a necropolítica escamoteada na defesa “da vida” e “da sociedade”.
3. A cor do recorte: branquitude narrativa e (in)justiça cognitiva
A cor atribuída ao corte16 se revela, ao fim, no contraste com a branquitude epistêmica e aparece como desvio dela, sob o recorte do julgamento. Estamos menos diante de uma divergência entre moralidades públicas, numa arena simétrica de disputa democrática, do que de um desencontro entre mundos normativos e pressupostos existenciais (ou civilizatórios, para parte da literatura). Uma questão menos jurídica, se podemos dizer, do que política, ou melhor, cosmopolítica17 (Latour, 2004; Anjos, 2006).
Na literatura constitucional, já em 1983, no seminal Nomos and Narrative, Robert Cover (2004) provocava seus leitores a considerar casos como o presente numa intricada trama de signos por meio da qual o direito se (desa)fia. O léxico da ação normativa, sugere o arrojado ensaio, se inscreve não na letra da lei, mas na sua narração:
A tradição jurídica é, portanto, parte integrante de um mundo normativo complexo. A tradição não inclui somente um corpus juris, mas também uma linguagem e uma mitologia – narrações que situam o corpus juris sobre aqueles que expressam suas vontades através dele. Esses mitos estabelecem os paradigmas para o comportamento. Eles constroem relações entre o universo normativo e o material, entre as restrições da realidade e as demandas por uma ética. Esses mitos estabelecem um repertório de movimentos – um léxico de ação normativa – que podem ser combinados em padrões de significado derivados de estruturas de significado herdadas do passado. (Cover, 2018: 193)
Trinta e seis anos depois, o texto reverbera no contexto do Recurso Extraordinário 494601, julgado em março de 2019, porém ainda à espera da redação do acórdão final, ou, como talvez o figurasse o próprio Cover (2004), à espera de uma narrativa que lhe faça justiça. Essa narrativa demanda um ato de especial compromisso das(os) ministras(os) e delas(es) exige um movimento de alteridade, para além de sua autoridade judicial. Exige o reconhecimento de que cada tradição jurídica – seja a tradição dos terreiros, que se pretendeu debater, seja a da Suprema Corte, que se pretendeu legítima para debatê-la – produz sentido constitucional justamente na medida em que articula seus repertórios interpretativos particulares, noutras palavras, na medida em que apela à sua mitologia jurídica própria18.
A singular leitura de Cover nos conclama a tra(n)çar os enredamentos que o caso apresenta de modo mais complexo, mais colorido do que a popularizada e polemicista versão liberdade religiosa x meio ambiente. Se nos ativermos unicamente ao suposto conflito de dispositivos constitucionais, captaremos uma tensão entre duas vertentes jurisprudenciais que o STF vem consolidando: de um lado, a proteção das crenças e cultos, de que o precedente da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4439 sobre ensino público religioso é testemunha – um precedente, registre-se, no mérito nada merecedor de aplauso, haja vista o conceito fraco de laicidade que adota ao desconsiderar as assimetrias de poder e o racismo nos conflitos inter-religiosos; de outro, a proteção dos animais, ilustrada recentemente pela decisão da ADI 4983 referente à prática da vaquejada, em si bastante contestada e na qual se identifica um uso instrumental da técnica em substituição ao enfrentamento sério da tensão entre valores constitucionais, posto que a passagem de “sofrimento” a “crueldade” exige uma operação valorativa mais complexa do que a se ousou, do que, não surpreendentemente, deflagrou um backlash legislativo19.
Ambos os standards, porém, parecem pobres para a objeto do RE 494601. A nosso ver, a formulação “direitos religiosos” v. “direitos dos animais”, embora não despida de relevância, está longe de esgotar a problemática. Em primeiro lugar, ela ostenta uma falsa dicotomia, ou, no mínimo uma dicotomia enviesada, uma vez que é precisamente nos terreiros (das inúmeras denominações existentes), à semelhança de outras comunidades tradicionais, que se operam cosmopolíticas distintas da moderna, esta sim, responsável pela degradação ambiental calamitosa, o que, novamente, remete aos cortes coloniais da “questão ambiental” e levou a se cunhar o conceito de “racismo ambiental”20 e articuladoras dos termos “natureza” e “cultura”. Assim, ao lado da importante garantia de exercício desembaraçado das crenças e cultos de matriz africana, vemo-nos premidos pela necessidade de assegurar os direitos à identidade, à diferença, à alimentação, ao patrimônio cultural e ao modo de vida desses povos tradicionais. Mais do que isso, no julgamento do RE 494601, uma sociedade constitutivamente plural se pergunta sobre o conteúdo e a extensão da (in)justiça cognitiva.
Explicamo-nos. O imperativo primeiro de justiça é, como diria Derrida (2007), um adequado endereçamento. Endereçar adequadamente o tema do abate religioso de animais e seus sujeitos requer, antes de mais nada, levar a sério a defasagem semântica de qualquer tradução cultural. Noções ocidentais como “sacrifício” e “religião” não têm validade cognitiva universal e requerem muitas cautelas ao serem manejadas no caso.
É sob essa ótica que as tradições de diversas matrizes africanas, cultivadas e ressignificadas na diáspora negro-africana, conquanto devam ser lidas também em sua dimensão espiritual (sobretudo para a garantia de direitos análogos às demais confissões, o que lhes tem sido historicamente confiscado), não podem ser reduzidas a esse âmbito. Tratam-se de povos tradicionais21 que, organizados em comunidades de terreiro, de vida, partilham saberes, princípios e valores civilizatórios específicos. Vivem um nomos, como diria Cover, seu mundo normativo legítimo e que merece tutela constitucional.
Conforme afirma Risério, “o terreiro é o espaço-lugar de uma potência sagrada, mas, também, marco tópico de uma diferença” (2007: 174). Identidade e diferença são reivindicadas e exigem cotejar a demanda por direitos neste caso com outros já decididos pelos STF, como o da ADI 3239, por exemplo, na qual às comunidades quilombolas foram atribuídas “identidades distintivas de grupo étnico-cultural”.22 A consequente aplicação do regime jurídico da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (“Artigo 8o1. Ao aplicar a legislação nacional aos povos interessados deverão ser levados na devida consideração seus costumes ou seu direito consuetudinário”) e do Decreto Federal 6.040/2007, olvidados no julgamento do STF, teria o efeito não só de expandir o quadro de referências normativas da Corte Constitucional, mas também de ampliar o horizonte narrativo do presente caso.
Entre os saberes, princípios e valores que integram o modo de vida tradicional dos povos de terreiros destacam-se as práticas alimentares, tão centrais na experiência comunitária que ganham significado litúrgico. Em grande medida, a comunidade, de que também os ancestrais e as divindades participam, se constitui por meio da comensalidade: todo o alimento é consagrado e partilhado. É, a bem dizer, uma comensalidade constituinte, que faz coletividade política. Não por outro motivo o próprio Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional manifestou-se nos autos:
Além do uso religioso, destacamos que para os sistemas alimentares tradicionais de matriz africana o abate doméstico de animais tem a finalidade de compartilhar o alimento entre a comunidade e seus ancestrais, ou seja, para o autoconsumo. O cerceamento ao direito de acesso e consumo destes alimentos coloca os povos tradicionais de matriz africana em situação de insegurança alimentar.23
Nas palavras de Wanderson Flor do Nascimento, observa-se nesses sistemas tradicionais “a alimentação como um processo que, ao mesmo tempo, procura manter o caráter orgânico do corpo plenamente ativo e, também, movimentar e fortalecer os laços comunitários – que são partes do mesmo.” (2015: 63-64). É por esta razão que não há nem desperdício nem crueldade, mas celebração da vida coletiva, de acordo com seu nomos:
A imagem de crueldade que se atribuem a estes rituais não faz sentido no interior desta percepção da realidade que não apenas vê uma continuidade entre vida e morte, como evita tanto quanto possível a morte provocada. (…) A crueldade não pode existir nestes rituais, sob o risco de perturbar as forças vitais que o ritual e a própria alimentação buscam organizar e equilibrar. (NASCIMENTO, 2015: 68)
A imputação de “crueldade” que, sem conhecimento de causa, se faz aos ritos de matriz africana reproduz, de fato, discursos etnocêntricos e epistemologicamente racistas. Bem recorda Talal Asad que a mobilização de estigmas de “crueldade” foi uma estratégia recorrente dos colonizadores em múltiplas localidades, pois “na tentativa de proibir costumes que os europeus consideravam cruéis, não era a preocupação com o sofrimento indígena que dominava seu pensamento, mas o desejo de impor o que eles entendiam como padrões civilizados de justiça e humanidade sobre a população colonizada” (ASAD, 2003: 110).
A colonialidade/branquidade dessas formas hegemônicas de conhecimento perpetra uma injustiça cognitiva, violando “o direito de diferentes formas de conhecimento coexistirem sem serem marginalizadas pelas formas de conhecimento oficiais, patrocinadas pelo Estado” (Visvanathan, 1998: 42). No caso do Código de Proteção aos Animais, a chancela pública (institucional) de determinados circuitos de saber-poder (autointitulados “científicos”) sobre outros (classificados como “tradicionais”) eviscera essa injustiça da maneira mais violenta: sob a forma de deslegitimação e criminalização dos “métodos [de ‘sacrifício’ animal] não preconizados pela Organização Mundial da Saúde” (art. 2º, VII da Lei Estadual 11.915/2003). Como sobejam memórias nas delegacias (desde a obrigação, ainda no sec. XX, de solicitar alvará para terreiros junto à polícia, passando pela persecução ao “curandeirismo”, em curso até hoje24), esse patrocínio oficial ou oficioso de determinados modos de ser e de conhecer pelo Estado promove sacrifício maior: o epistemicídio.
4. Colorindo o constitucionalismo: por um compromisso antirracista
O Supremo Tribunal Federal não endossou a proibição: rejeitou por maioria o Recurso Extraordinário 494601, com ligeiras ressalvas individuais, adotando a tese de repercussão geral segundo a qual “é constitucional a lei de proteção animal que, a fim de resguardar a liberdade religiosa, permite o sacrifício ritual de animais em cultos de religiões de matriz africana”25. Mas essa é só uma parte da história. Argumentamos, levando às últimas consequências a formulação de Cover, que a abrangência da decisão da Corte Constitucional depende não apenas de seu dispositivo, mas da narrativa na qual esteja inserida26. É dizer: uma narrativa constitucional que reconheça a perseguição às religiões afro-brasileiras como ínsita ao racismo estrutural, na modalidade de racismo religioso, e que demande das instituições públicas o compromisso com uma agenda radicalmente antirracista27 é a caixa de ressonância que ampliaria a potência do caso. Na acepção que lhe confere Cover, este compromisso se pauta pela consideração engajada de todas as possíveis implicações de uma interpretação judicial para os mundos normativos concorrentes, e não apenas para a tradição jurídica majoritária, e pelo alinhamento autocrítico da Corte Constitucional contra a violência que institui a ela mesma, sob pena de jurispatia.28 Aqui, diríamos, não somente a violência originária do direito posto, mas a violência da branquitude normativa que o organiza.
Não que alusões à discriminação, ao preconceito e aos ataques contra terreiros tenham estado ausentes dos votos. Nos pronunciamentos de diversas(os) ministras(os) a matéria foi tangenciada, ainda que sem menção explícita ao conceito de “racismo”, opção que fragiliza a leitura do caso por relegar a questão à esfera das atitudes e posturas individuais e não das estruturas sociais de atribuição de valor e distribuição do poder:
A proteção deve ser ainda mais forte, como exige o texto constitucional, para o caso da cultura afro-brasileira, não porque seja um primus inter pares, mas porque sua estigmatização, fruto de um preconceito estrutural – como, aliás, já reconheceu esta Corte (ADC 41, Rel. Min. Roberto Barroso, Pleno, DJe 16.08.2017) –, está a merecer especial atenção do Estado. (Min. Luiz Edson Fachin)
Se a interpretação da lei não fosse preconceituosa, não haveria necessidade da exceção (…) aqueles que sustentaram a necessidade de vedação à crueldade e maus tratos aos animais como se isso fizesse parte da sacralização erraram de longe, bastava ter ido uma vez a um terreiro de candomblé e assistido ao seu ritual. (Min. Alexandre de Moares)
Também reconheço que a inclusão [na legislação sul-rio-grandense] da referência aos cultos e liturgias das religiões de matriz africana se dá exatamente pela circunstância de haver preconceito na sociedade, contra tudo que se tem na Constituição e nas leis no Brasil. Mas é um pouco mais do que preconceito aos cultos, é em relação a uma origem tragicamente não acabada daqueles que em grande parte são descendentes de linhagens africanas. (Min. Cármem Lúcia)
Esta questão que hoje é trazida à baila versa exatamente sobre preconceito religioso, o que é mais dramático, um preconceito religioso que cresce a casa cada dia. Nos últimos 6 meses, a imprensa oficial noticia que mais de 200 casos de intolerância religiosa contra as religiões de matriz africana foram praticados. Mais recentemente foram incendiadas casas que praticavam essas religiões de matriz africana, de sorte que esse julgamento é um momento ímpar, porque é preciso dar um basta a esta situação e este basta virá pela decisão da Suprema Corte deste país. (Min. Luiz Fux)29
A “interpretação preconceituosa” da lei, ou seja, a seletividade no exercício de poder de polícia administrativo para fiscalização e sanção dos terreiros, cada vez mais frequente, foi salientada como razão para a necessidade de especial proteção. Vislumbra-se, não há dúvida, um avanço no tratamento do tema, em sua interação com o racismo institucional. O voto do Min. Fachin chegou a evocar a Ação Declaratória de Constitucionalidade 41, que teve por objeto as cotas raciais no serviço público federal e que, em sua fundamentação, chama atenção para “a necessidade de superar o racismo estrutural e institucional ainda existente na sociedade brasileira. A nosso juízo, os debates ressentiram-se, porém, de uma falta de integração mais explícita aos precedentes constitucionais que balizam a conceituação do racismo na Corte, quais sejam, o HC 82.424 (notório caso Ellwanger, em que o tema foi primeiramente assentado), o ADCT 186 (sobre reserva de vagas nas universidades públicas) e a ADI 3239 (debatendo direito ao território das comunidades quilombolas). Segundo os standards neles fixados, caberia construir para o RE 494601 uma narrativa constitucional do compromisso antirracista, filiando-o a uma linhagem que não só assume a existência do racismo no Brasil como o entende como estruturante das relações sociais (portanto, das relações de poder), exigindo políticas públicas e ações afirmativas. Essa posição implicaria, igualmente, no reconhecimento das desigualdades de força e representatividade política que atravessam o campo religioso, percebendo-o realisticamente como um mercado em que a concorrência e o conflito caminham lado a lado com o diálogo e os valores espirituais (Cf. SILVA, 2007). Mais do que nunca, em tempos de acirramento dos discursos de ódio e de hostilização contra religiões de matriz africana, como o comentário do Ministro Luiz Fux enfatiza, o Supremo Tribunal Federal se vê defrontado com a tarefa de revisitar o princípio da laicidade já não como um dado ou uma norma posta, mas como questão num mundo que não se secularizou.30
Ao mesmo tempo em que é imperativo voltar a refletir sobre as interações Estado-religião ou, dito de outro modo, sobre as formas pelas quais as religiões se fazem presentes no e pertencentes ao espaço público (Cf. Giumbelli, 2008), também é preciso situar o constitucionalismo. Parte do projeto de constituição radical31 como abertura, potência e processo que temos empreendido diz respeito às constituições radicadas, isto é, à necessidade de reposicionar as práticas e teorias constitucionais não apenas numa perspectiva latinoamericana, mas igualmente na geopolítica do Atlântico Negro enquanto modernidade alternativa. Traduzindo coverianamente: cambiar o registro narrativo do constitucionalismo. A Revolução Haitiana e a Constituição de 1805 a que deu vida são exemplos de experiências radicadoras e radicalizadoras – no caso, radicadoras e radicalizadoras dos ideais de emancipação iluministas, refinados com os seus próprios. Ou seja, as(os) haitianas(os) foram mais revolucionários que as(os) revolucionárias(os) francesas(es), rompendo a filtragem colonial da autoria e invertendo seus sinais (Cf. Buck-Morss, 2009). O eloquente silêncio sobre ambas na história do constitucionalismo comumente ensinada pelas escolas de direito é índice da branquitude de suas narrativas:
Portanto, se é pretendido não só a reconstrução dos relatos sobre o constitucionalismo no mundo moderno, mas também que a prática constitucional hoje se desvincule do seu estreito compromisso com o aniquilamento físico, cultural e simbólico da população negra em diáspora, faz-se necessário uma teoria jurídica mais comprometida com a heterologia, a crítica política e as estruturas rizomórficas mobilizadas pelas experiências de errância do Atlântico Negro. Uma teoria desconfiada de narrativas totalizantes embebidas no esquecimento das estruturas identitárias da inscrição africana nas Américas. Talvez, um constitucionalismo do Atlântico Negro, o qual esteja apto a lidar com as formas diferenciadas dinamizadas pela diáspora negra de enfrentamento, rejeição ou apropriação das estruturas identitárias rígidas legadas pela modernidade e pelo colonialismo, entre elas o direito moderno e ao arcabouço dos estados-nação. (Queiroz, 2017: 195)
Colorir o constitucionalismo, despertando-o de seu sono colonial e des-vendando sua falsa imparcialidade de cor (colourblindness), é programa antirracista dos mais urgentes. Sob essa ótica, conquanto favorável às religiões de matriz africana, a posição do Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 494601 é sintomática dos cortes raciais que a Corte empreende e da ambiguidade da própria narrativa em que ela situa o caso e a si mesma em face dele. Até que possam ver como oju obá, continuarão sendo menos Thémis ou Iusticia do que Xangô – o rei que bem enxerga as diferenças materiais encobertas pela igualdade formal – o signo de justiça dos povos de terreiro.
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