Artigo
A concretização inventiva de si a partir da perspectiva do outro: Notas a uma Antropofilosofia Decolonial em Viveiros de Castro
The inventive embodiment of oneself from the perspective of the other: Notes to a Decolonial Anthropophilosophy in Viveiros de Castro
A concretização inventiva de si a partir da perspectiva do outro: Notas a uma Antropofilosofia Decolonial em Viveiros de Castro
Revista Direito e Práxis, vol. 10, núm. 4, pp. 2367-2398, 2019
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Recepção: 02 Novembro 2018
Aprovação: 10 Agosto 2019
Resumo: Esse artigo reivindica a inscrição da antropologia americanista na obra de Viveiros de Castros no seio de uma teoria-prática da descolonização permanente do pensamento. O esquema conceptual à disposição no perspectivismo e multinaturalismo ameríndio, se levado à sério, muito mais do que simplesmente inverter ou reverter a summa divisio tradicional entre natureza e cultura, propõe a problematização das assimetrias constitutivas de cada ponto de vista particular. A experiência de pensamento viabilizada pela antropologia dos povos ameríndios permite não simplesmente repensar a relação entre humanos e não-humanos, ou entre natureza e cultura, mas, ao exigir um especial engajamento de todos que entram em contato com a problemática associada a esses dualismos, garante sustento e apoio para a crítica das fronteiras e obstáculos tradicionais erigidos pela imagem dogmática do pensamento filosófico. O presente artigo propõe um debate em duas partes com o perspectivismo ameríndio teorizado pelo antropólogo brasileiro. Em um primeiro momento, serão expostos os principais delineamentos dessa antropofilosofia, concebida como uma rede de relações. Na segunda parte, tentar-se-á apontar brevemente algumas implicações desse projeto para uma ética performativa radical, nas quais o humanismo ameríndio e o xamanismo cosmopolítico serão considerados. Se, diferentemente do pensamento europeu, a humanidade é assumida pelos ameríndios como elemento dado a todas as individualidades existentes, que humanidade é essa que, paradoxalmente, deve ser constantemente reafirmada in actu em sua relação com o corpo, sob pena de perecer diante da lógica da predação? Não há qualquer privilégio metafísico do homo sapiens no contexto da “ontologia amazônica da predação” (que, todavia, antes de ser uma ontologia é uma pragmática radical), pois, onde há intencionalidade por todo canto, o humano não pode estar inequivocamente seguro de sua condição.
Palavras-chave: Perspectivismo ameríndio, Multinaturalismo ameríndio, Descolonização do pensamento, Alteridade performática radial, Eduardo Viveiros de Castro, Antropofilosofia, Ontologia amazônica da predação.
Abstract: This article claims the inscription of Viveiros de Castros’ amerindian anthropology at the core of a practical-theory of a permanent decolonization of thinking. The conceptual scheme available in Amerindian perspectivism and multinaturalism, if taken seriously, much more than simply reversing the traditional boundary between nature and culture, proposes to problematize the constitutive asymmetries of each particular point of view. The experience of thought made possible by the anthropology of the Amerindian peoples allows us not simply to rethink the relationship between humans and nonhumans. It rather provides sustenance and support for a criticism of traditional boundaries and obstacles erected by the dogmatic image of philosophical thought. This paper proposes a two-part debate with Amerindian perspectivism theorized by the Brazilian anthropologist. At first, the main outlines of this anthropophilosophy, conceived as a network of relationships, will be exposed. In the second part, we will try to briefly point out some implications of this project towards a radical performative ethics, in which the Amerindian humanism and the shamanic cosmopolitics will be taken into account. If, unlike European thought, humanity is taken by the Amerindians as an element given to all existing individualities, what humanity is it that, paradoxically, must be constantly reaffirmed in its relation to the body, under penalty of perishing in the face of predation’ schema? There is no metaphysical privilege of homo sapiens in the context of the “Amazonian ontology of predation” (which, however, before being an ontology is a radical pragmatics), because where there is intentionality everywhere, the human cannot be unambiguously sure of its condition.
Keywords: Amerindian perspectivism, Amerindian multinaturalism, Decolonization of thought, Radial performance alterity, Eduardo Viveiros de Castro, Anthropophilosophy, Amazonian ontology of predation.
Introdução
O que ainda dizer do Homem? Seu fim já foi anunciado e não é de hoje. A crítica ao conceito de Homem é, talvez, tão antiga quanto o próprio conceito e, inobstante a ancestralidade da questão, a factualidade de seu fim se apresenta como um persistente (e resistente) embaraço para a filosofia ocidental. A questão a respeito do Homem (do humano, da humanidade, de sua cultura, enfim) parece ser tanto inevitável como intransponível. A dificuldade no trato do tema é tanto signo do peso metafísico que a tradição do pensamento ocidental lhe impõe, como da fissura (fêlure, crack) de todo seu edifício axiomático, apontando para outras dimensões de mundo.
A fenomenologia desse encontro com o absolutamente diferente é concretamente experimentada (e experienciada) a partir daquilo que a antropologia denomina de “choque cultural”1, consequência de um trabalho de campo2 responsável não somente pela invenção do alheio, mas também pela contrainvenção do que há de mais próprio àquele que passa pelo experimento/pela experiência3. Assim, se o problema do Homem no paradigma da filosofia ocidental parece se consubstanciar na constante crise face ao esgotamento da própria questão, talvez seja o momento de considerar outras vias de inquirição que levem em conta a experiência do “choque” e possibilitem a contrainvenção daquilo que está mais próximo4.
É preciso considerar, com as Metafísicas Canibais de Viveiros de Castro, a necessidade de um Anti-Narciso5. Isto é, é preciso repensar a relação entre o humano e o não-humano de modo a permitir a (contra-)invenção de novos registros de possíveis, ao contrário da solução usual que passa pela constante reativação da mesma questão como mera função fática6. Nesse intuito, se a filosofia ocidental faz grande questão do conceito/problema da humanidade humana, Viveiros de Castro denuncia a condição dos índios amazônicos (em especial o caso dos Araweté) que problematizam, ao contrário, o conceito/problema dos corpos e suas respectivas perspectivas7.
Considerar o esgotamento do problema da humanidade humana a partir da assimetria (dos corpos) aberta pelo perspectivismo ameríndio não implica uma mera reabilitação do conceito/problema, reavivando as cores e a vivacidade de um paradigma cujo horizonte aponta para o esgotamento. Não se trata de um possível (ou desejável) retorno em direção a um ponto supostamente “mais original” ou a uma “tradição perdida”. O projeto à disposição no perspectivismo ameríndio, se levado à sério, não é conservador ou reacionário, mas simplesmente selvagem8. Muito mais do que simplesmente inverter ou reverter a summa divisio tradicional (i.e., “tradicional” aos olhos do ocidente9) entre natureza e cultura, o perspectivismo ameríndio sugerido por Viveiros de Castro propõe a problematização das assimetrias constitutivas de cada ponto de vista particular10. Relações diferenciais que não se deixam sedentarizar. Contra a lógica das Grandes Partilhas sedentárias, propõe-se a disseminação de uma lógica radicalmente diferenciante11. O pensamento ameríndio não é simplesmente o contrário do europeu, mas o seu absolutamente outro, afinal, na análise das multiplicidades indiciadas nos dualismos, percebe-se que o “trajeto não é o mesmo nos dois sentidos”12. Dizendo em outras palavras, o selvagem não é um anti-europeu. Aquilo que europeu enxerga no selvagem é incomensurável em face daquilo que o selvagem vê quando está diante de um europeu.
Como hipótese de trabalho, acredita-se que a experiência de pensamento viabilizada pela antropologia dos povos ameríndios permite não simplesmente repensar a relação entre humanos e não-humanos, ou entre natureza e cultura, mas, ao exigir um especial engajamento de todos que entram em contato com a problemática associada a esses dualismos13, garante sustento e apoio para a crítica das fronteiras e obstáculos tradicionais erigidos pela imagem dogmática do pensamento filosófico (i.e., a “nossa” filosofia, segundo Lévi-Strauss14).
Se o livro intitulado “Metafísicas Canibais” é uma resenha acabada de uma obra inacabada (e infinita), que terá sido denominada “Anti-Narciso: Da antropologia como ciência menor” e cujo objeto é a inscrição da antropologia americanista no seio de uma “teoria-prática da descolonização permanente do pensamento”15, este breve artigo corresponde a um comentário da enésima ordem que, eo ipso, propõe-se a jogar o jogo da leitura entre a obra presente (Metafísicas Canibais) e a ausente (O Anti-Narciso) e, tal como um fractal, abrir-se na abertura que nos lega o pensamento ameríndio. Mise en abyme antropofilosófica16.
O presente artigo propõe um debate em duas partes com o perspectivismo ameríndio teorizado pelo antropólogo brasileiro. Em um primeiro momento, serão expostos os principais delineamentos dessa antropofilosofia, concebida como uma rede de relações17. “Viveiros de Castro” interessará menos como nome próprio (eventual suporte de um argumento de autoridade qualquer), do que como cluster das diversas linhas de força que o atravessam e constituem o plano de suas Metafísicas Canibais.
Na segunda parte, tentar-se-á apontar brevemente quais as implicações éticas desse projeto de “descolonização contínua do pensamento” a partir da problematização das assimetrias dos corpos entre si. Se, diferentemente do pensamento europeu, a humanidade é assumida pelos ameríndios como elemento dado a todas as individualidades existentes18-19, que humanidade é essa que, paradoxalmente, deve ser constantemente reafirmada in actu em sua relação com o corpo20, sob pena de perecer diante da lógica da predação? Não há qualquer privilégio metafísico do homo sapiens (do “homem humano”) no contexto da “ontologia amazônica da predação”21 (que, todavia, antes de ser uma ontologia é uma pragmática radical), pois, onde há intencionalidade por todo canto, o humano não pode estar inequivocamente seguro de sua condição.
I.
As Metafísicas Canibais, i.e., tanto o nome de uma resenha acabada de uma obra inacabada como o possível epíteto para a antropologia ameríndia, atendem a um movimento que as atravessa transversalmente na forma de um agenciamento entre três interlocutores que se relacionam em rede (i.e., enredam-se), quais sejam: (i) o autor do denominado “Anti-Narciso”, (ii) Deleuze e Guattari e (iii) Lévi-Strauss. Muito mais do que pontos dos quais partiriam determinadas linhas de coerência, esses nomes próprios são na verdade fruto das confluências e inflexões das múltiplas linhas de força que cortam o pensamento de Viveiros de Castro22. A confluência dessas linhas múltiplas, uma se envelopando na outra, desenha o milieu hiperbólico por onde o pensamento selvagem é capaz de proliferar23.
Essa antropologia possui um objetivo duplo, qual seja, promover num único movimento a leitura cruzada entre antropologia e filosofia, informada tanto pelo pensamento amazônico como pelo “estruturalismo dissidente”24 de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Com o desenvolvimento desses objetivos, percebe-se que o destino visado por esse movimento também é duplo na medida em que pretende “aproximar-se do ideal de uma antropologia enquanto exercício de descolonização permanente do pensamento e propor um outro modo de criação de conceitos que não o ‘filosófico’, no sentido histórico-acadêmico do termo”25. Os deslocamentos mútuos entre (uma) filosofia e (uma) antropologia, portanto, caracterizam o Anti-Narciso na sua crítica à imagem do pensamento selvagem26.
O projeto duplo com duplo objetivo é ele-próprio desdobrado em outras duas experiências típicas do pensamento ameríndio, caracterizadoras de uma teoria cosmopolítica indígena27, quais sejam: (i) o perspectivismo e (ii) o multinaturalismo. O multinaturalismo é perspectivista, na exata medida em que o perspectivismo é multinaturalista. Ambos os conceitos antropofilosóficos se entrelaçam e formam um quiasma na tarefa de tradução/transformação do pensamento selvagem e, em especial, do pensamento ameríndio que agencia a multiplicidade na cultura, ou ainda, a cultura enquanto multiplicidade, anunciando o surgimento de uma outra antropologia na exata medida que, com Viveiros de Castro (e sua rede de interlocutores), “[t]oda experiência de um outro pensamento é uma experiência sobre o nosso próprio”28.
O quiasma entre perspectivismo e multinaturalismo é sentido como uma espécie de curto-circuito entre duas pretensões aparentemente contraditórias, quais sejam: (a) o perspectivismo ameríndio pressupõe que cada ente vê a si próprio (e aos seus) como humanos, ao passo que todos os demais são considerados como não-humanos, seguindo uma lógica de correspondências no seio das relações de predação (ou seja, os jaguares seriam humanos entre os jaguares, mas espíritos-predadores para os queixadas e assim por diante seguindo a contiguidade das diferenças corporais); (b) o multinaturalismo se caracteriza pela afirmação da humanidade (ou da cultura) como característica universal de todos os entes inseridos no contexto da cosmopolítica de predação, o que daria suporte teórico à “doutrina das roupas animais”29.
Assim, a humanidade performada do perspectivismo e a humanidade universal do multinaturalismo se agenciam no estruturalismo sem estrutura da mitologia ameríndia. Essa antropologia menor, declaradamente inspirada na filosofia de Deleuze e Guattari, desenha uma cartografia de movimentos aberrantes30 implicados no perspectivismo multinaturalista a partir das categorias-mestras de aliança e filiação. Como propõe “a questão é (...) a possibilidade de conversão das noções de aliança e de filiação, classicamente tomadas como as coordenadas da sociogênese humana tal como efetuada no elemento do parentesco, em modalidades de abertura para o extra-humano”31.
Viveiros de Castro, ao analisar o corpus da obra de Deleuze e Guattari, reconhece que o Anti-Édipo “está firmemente amarrado a uma concepção antropocêntrica da socialidade; seu problema continua a ser o problema da hominização, a ‘passagem’ da Natureza à Cultura”32 e que seus autores “parecem crer, por exemplo, que a aliança diz respeito ao parentesco, e que o parentesco diz respeito à sociedade. Por uma vez, eles se mostram excessivamente prudentes”33. Para o antropólogo, o Anti-Édipo não chega a conduzir suas próprias premissas às últimas consequências. A radicalização que caracteriza o projeto guattaro-deleuzeano somente é atingida com Mil Platôs, a partir do deslocamento das atenções para o problema dos devires (“relação real, molecular e intensiva que opera em um registro outro que o da racionalidade ainda apenas morfológica do estruturalismo”34). O devir é o outro nome das denominadas multiplicidades intensivas que operam a todo instante para além da metáfora ou metamorfose, não significando “imitar, aparecer, ser, corresponder”35, fugindo, portanto, da lógica mimética, mas uma forma de “participação ‘antinatural’ (contre-nature) entre o homem e a natureza; ele é um movimento instantâneo de captura, simbiose, conexão transversal entre heterogêneos”36.
Como desdobramento dessa ressignificação do tema da aliança, a passagem para algo além do estruturalismo é realizada por Viveiros de Castro em função de sua experiência pessoal na análise operada sobre os hábitos e costumes dos índios Araweté, em especial em torno do canibalismo. O povo Araweté promove uma espécie de transfiguração da tradição Tupinambá, na medida em que todo canibalismo Araweté é simbólico e póstumo. A devoração das almas dos Araweté mortos é operada por divindades (Maï), como etapa no processo de transformação dos devorados em seres semelhantes aos devoradores. A relação diferencial entre Araweté e Tupinambá não está, simplesmente na dimensão simbólica, contudo, mas no que Viveiros de Castro denomina de “deslocamento pragmático”, ou seja, na específica “torção ou translação de perspectivas que afetava os valores e as funções de ‘sujeito’ e de ‘objeto’, de ‘meio’ e de ‘fim’, de ‘si’ e de ‘outrem’”37. Nessa dinâmica, “o ‘eu’ se determina como ‘outro’ pelo ato mesmo de incorporar esse ‘outro’, que por sua vez se torna um ‘eu’, mas sempre no outro, através de outro (‘através’ no sentido solecístico de ‘por meio de’)”38. O rito canibal não corresponde, sob essa óptica, a uma simples devoração do corpo físico, mas a uma dinâmica necessária de subjetivação e autodeterminação recíproca, pelo que o Eu se afirma desde o Outro. Devorada, é a alteridade “como ponto de vista sobre o Eu”39.
Nessa dinâmica diferenciada-diferenciante, encontra-se a diferença entre a antropologia multiculturalista europeia (que busca descrever a experiência humana desde “o ponto de vista do nativo”) e a antropologia multinaturalista nativa (que promove a autodescrição desde “o ponto de vista do inimigo”). Como conclui Viveiros de Castro, “‘[a]través’ de seu inimigo, o matador araweté vê-se ou põe-se como inimigo, ‘enquanto’ inimigo. Ele se apreende como sujeito a partir do momento em que vê a si mesmo através do olhar de sua vítima, ou antes, em que ele pronuncia sua própria singularidade pela voz do outro. Perspectivismo”40. Assim, destaca-se uma noção essencial às comunidades ameríndias, as quais ante a necessidade de a todo momento constituírem o Eu como Outro, não existem senão fora de si, pelo que “sua imanência coincide com sua transcendência”41.
Nesse contexto, interessante é a posição ocupada pelo xamanismo. Os xamãs, espécies de diplomatas diretos nessa cosmopolítica em que a humanidade é universal são seres capazes de atravessar as fronteiras entre o humano e o não-humano, assumindo as perspectivas específicas dos outros, na tarefa de autodeterminação pelo Outro. Essa cosmopolítica que permite aos xamãs deslizarem entre os registros intensivos da humanidade universal não corresponde a nenhum relativismo à la lógica europeia. Antes, trata-se de um exercício das diferenças por elas mesmas, na medida em que toda perspectiva é única e total e, portanto, trata-se de uma multiplicidade irredutível a uma totalidade superior. Ao se afirmar a humanidade de todos os seres, não se está afirmando que todos têm um acesso mínimo e imperfeito à (ideia de) humanidade (como se da imanência, agora capturada por uma transcendência, fosse possível afirmar uma igualdade homogeneizante e totalitária). Ao contrário, parte-se da afirmação de que “[t]odo ponto de vista é total, e nenhum ponto de vista é equivalente a nenhum outro”42. O xamanismo é transversal, uma vez seu devir-outro não corresponder a uma mera assimilação do outro (como defenderia uma “hermenêutica romântica”), mas à afirmação radical do outro como alteridade irredutível. Não se assimila nada, já que as perspectivas não são equivalentes. Como Viveiros de Castro sempre faz questão de lembrar, “o Outro dos Outros é sempre outro”43.
A aliança que o xamã firma com os outros opera uma contiguidade na fronteira, por isso é sempre transversal. Trata-se de um devir que opera na pura exterioridade, em que as relações estabelecidas são sempre abertas à determinação do Outro pelo Outro. Esse modelo não é produtivo, mas predatório, em que o desejo opera não (somente) uma produção (como se pensava no Anti-Édipo), mas um roubo e um dom, uma relação mediada necessariamente pelo Outro, em que o Eu, para se afirmar, precisa devir-Outro. A cosmopolítica empreendida pelos xamãs -- espécies de preceptores do esquematismo cósmico --, é capaz de comunicar e administrar perspectivas cruzadas de forma a torná-las apreensíveis.
A afirmação da experiência de pensamento (experiência “de entrada no pensamento pela experiência real”44) que constitui o Anti-Narciso permite que “a ficção se tornasse antropologia, mas uma antropologia que não é fictícia”45. Para essa ficção, que toma as ideias indígenas como verdadeiros conceitos e permite a construção de uma linguagem menor46 dentro da disciplina antropológica, interessa a projeção do mundo possível que essas ideias permitem construir, tanto por não haver mundo pronto e acabado a ser vislumbrado antes mesmo da divisão entre o visível e o invisível que constitui o horizonte do pensamento, como pela recusa à explicação transcendente do contexto. Em suma, o modelo indígena de pensamento, diferente do europeu, procura projetar algo de si mesmo desde o ponto de vista de um outro. Propõe-se a “ocupação do ponto de vista do inimigo”47 como forma elementar de subjetivação a partir do constante devir-Outro do Eu, segundo a qual a “interiorização do Outro é inseparável da exteriorização do Eu; o domesticar-se daquele é consubstancial ao ‘enselvajar-se’ deste”48.
Na forma das conclusões de Viveiros de Castro, os índios pensam que todo o vivente, tanto os humanos como os não-humanos, a despeito de suas diferenças corpóreas, pensam de forma estruturalmente igual, pelo que, a partir da premissa da homogeneidade da alma de todo vivente, podem ser produzidas diversas perspectivas diversas e divergentes49. O problema antropológico, então, está na contínua tradução das diversas narrativas dos excluídos, não no sentido da descoberta de um significado velado, mas na subversão de sua língua maior, por meio da “conversibilidade mútua entre antropologia e mitologia”, ou no sentido de que o canibalismo é a antropologia indígena (em níveis diversos e não necessariamente simbólicos), de modo a permitir “multiplicar nosso mundo, ‘povoando-o de todos esses exprimidos que não existem fora de suas expressões’”, já que “não podemos pensar como os índios; podemos no máximo pensar com eles”50.
Como consequência dessas concepções, Viveiros de Castro propõe reinscrever o pensamento de Lévi-Strauss no contexto dos alicerces ameríndios de pensamento. O pensamento lévi-straussiano é caracterizado como essencialmente dividido, ainda que essas divisões não constituam oposições ou antagonismos inconciliáveis. Primeiramente, no nível de sua personalidade teórica, o estruturalismo é sincronicamente dividido entre duas figuras que se implicam mutuamente, na tensão da qual decorrem, i.e. entre “um herói cultural e um trickster, o personagem da mediação (mas que também é instaurador do discreto e da ordem) e o contrapersonagem da separação (mas que é ao mesmo tempo o mestre do cromatismo e da desordem)”51. Trata-se, a toda evidência, de uma superposição intensiva de dois estados do discurso estrutural de Lévi-Strauss. Em segundo plano, a obra de Lévi-Strauss pode ser dividida diacronicamente, em pré-estruturalista (As estruturas elementares) e pós-estruturalista (Mitológicas). O estruturalismo das Mitológicas é considerado como “um estruturalismo sem estrutura”52 (e, portanto, um “pós-estruturalismo”), em que a mitologia ameríndia é concebida como uma multiplicidade aberta, na qual “todo mito é uma versão de um outro mito, todo outro mito abre para um terceiro e um quarto mitos, e os n-1 mitos da América indígena não exprimem uma origem nem apontam um destino: não tem referência”53.
O mito devém pouco a pouco a própria máquina de sentido que (se) agencia na superfície do perspectivismo multinaturalista. A tarefa de tradução, que não constitui o mito, senão na medida em que o mito é tradução, implica uma espécie de abertura e fechamento da estrutura mítica pela qual se permite pensar a infinidade de narrativas míticas. Como destaca Viveiros de Castro, “Todo ‘grupo’ de mitos termina por se revelar situado na intersecção de um número indeterminado de outros grupos (...). Os grupos devem se fechar (clore); mas o analista não pode se deixar encerrar (enfermer) dentro deles”54. O mito ameríndio, portanto, em certa medida impõe a fuga e a mediação a todo instante, não havendo fechamento, senão na medida da abertura, ou melhor, há sempre um desequilíbrio ou uma espécie de assimetria de perspectivas que impõem a repetição do movimento de fuga como necessidade interna55.
A dinâmica de predação do Outro pelo Outro conflui para a imagem desse estruturalismo sem estrutura do mito. De Deleuze e Guattari a Lévi-Strauss, Viveiros de Castro enreda sua antropofilosofia de forma a permitir que a mise en abyme antropofilosófica assuma a seguinte palavra de ordem: “Contra o mito do método, o método do mito”56.
II.
A humanidade araweté (bïde)57 e a humanidade ocidental (άνθρωπος) compõem dois polos do problema que ora é cercado e avaliado. Não se trata de afirmar uma contradição propriamente dita entre ambas58, mas de se pensar a condição de metaestabilidade que possibilita a diferenciação e as defasagens entre cada qual59. Afinal, entre o mundo ameríndio e o mundo ocidental não há um absoluto abismo intransponível, haja vista que o encontro (e o confronto) entre mundos diferentes não é somente possível como inevitável60. Entre esses diferentes mundos há uma série de instabilidades e inconsistências que permitem a ambos manterem-se vivos, garantindo a perpetuação do problema da tradução (e contaminação) de um sistema-mundo para o outro e, consequentemente, do equívoco61.
Roy Wagner, de certa forma, propõe exatamente isso com sua análise a respeito da distribuição do inato (ou do dado) e do contingente (ou do âmbito de agência), ou melhor, nos termos que serão empregados a seguir, entre fundo e figura, em uma determinada cultura. Problematizar o conceito de humanidade à luz dessas experiências convida a pensar a respeito da proliferação das diferenças em meio aos planos desenhados pelas diferentes conformações entre fundo (o inato) e figura (o contingente). Afinal, se os ocidentais pensam a humanidade (e eo ipso sua cultura) como figura, ou melhor, como o âmbito extensivo do atual-diferenciado sobre um fundo natural, no qual a categoria da espécie humana está necessariamente inserida com todos os demais não-humanos, os ameríndios pensam a humanidade como o fundo intensivo virtual-diferenciante sobre o qual as diferentes (e diferintes) figuras corpóreas tomarão parte na (cosmo)política da predação, motivo pelo qual a participação na espécie não está nunca terminantemente garantida62. Para os ameríndios, “a referência comum a todos os seres da natureza não é o homem como espécie, mas a humanidade como condição”63. Viveiros de Castro esclarece: “Para nós, a espécie humana e a condição humana coincidem necessariamente em extensão, mas a primeira tem primazia ontológica; por isso, recusar a condição humana a outrem termina, cedo ou tarde, em uma recusa de sua co-especificidade. No caso indígena, é a condição que tem primazia sobre a espécie, e a segunda é atribuída a todo ser que se postula compartilhar da primeira”64.
No contexto em que o humano está em todo canto, que tudo é intencionalidade e que os processos de subjetivação não têm fim, a humanidade é outra coisa totalmente diferente. Essa parece ser a lição principal do perspectivismo e multinaturalismo ameríndio. No contexto das Metafísicas Canibais, a distinção entre humanos e não-humanos não se faz nunca de uma vez por todas (i.e., nunca se sedentariza de forma absoluta). Em um mundo onde “tudo pode ser humano, então nada é humano inequivocamente”65. Há uma proliferação das diferenças que não se deixa capturar pela lógica do transcendente. Tanto no seio da experiência de mundo araweté, como na relação equívoca que se estabelece no encontro entre o pensamento ocidental e o pensamento selvagem, podem ser verificados diferentes concepções do humano.
Verifica-se uma proliferação de orientações sobre o humano, a partir da leitura das práticas araweté. Afinal, e esta é a tese principal a ser defendida neste momento, o conceito antropofilosófico desenvolvido por Viveiros de Castro para pensar o humano araweté (bidë) possuiria ao menos três dimensões a merecer destaque, quais sejam: (i) humano enquanto plano universal (espécie de tabula rasa) a partir do qual os entes cósmicos participam da (onto-)lógica da predação66; (ii) humano enquanto linha trópica de diferenciação intensiva que se estabelece a partir do encontro com a perspectiva do inimigo67; e (iii) o humano como ponto tópico que reclama constante (re-)afirmação por meio da enunciação da própria perspectiva como dominante68.
O plano, tropos e topos (ou o plano, a linha e o ponto) – A imagem do pensamento selvagem pressupõe uma topologia e uma topografia totalmente diferentes daquelas da imagem do pensamento ocidental69. Pensar as diferenças radicais entre essas cartografias é uma tarefa antropofilosófica.
De certa forma, as três dimensões do conceito ameríndio de humano apontam para uma estrutura hiperbólica (não-euclidiana) perante a qual cada uma envelopa as demais, sem nunca uma totalizar ou englobar totalmente a outra, não havendo necessidade ou pertinência na perquirição sobre qual estrutura seria mais “fundamental” em relação às demais (não há uma “estrutura de estruturas”, diria Viveiros de Castro70). A passagem para uma determinada dimensão não é propriamente uma solução para a problemática apresentada em outra, na medida em que qualquer passagem só é possível levando em conta a necessária procrastinação do problema como modo de vida71.
Perspectivismo e multinaturalismo ameríndio, ao assumirem a condição universal (e eo ispo problemática72) do humano, imprimem uma lógica do movimento que conjura a sedentarização, lançando-se contra os humanismos consumados ou finalizados (i.e., incapazes de devires) na medida em que propõem um “humanismo interminável”73, perante o qual nunca se pode estar certo de qual é a perspectiva dominante74. Esse outro humanismo é experimentado/experienciado a partir de uma pragmática que radicaliza a própria concepção de mundo ao interiorizar a relação no conceito. É disso que Viveiros de Castro trata ao discutir a característica “pronominal” das expressões indígenas que são geralmente traduzidas pelo ocidental por “humano”75.
Embora Viveiros de Castro não indique a fonte, a teoria linguística de Jakobson, com base nas análises do dinamarquês Otto Jespersen, identifica o gênero de fenômenos semelhantes a partir do nome de shifters76. E aqui talvez seja interessante uma breve explicação do fenômeno. Um shifter corresponde a uma específica conformação da relação entre mensagem e código (conteúdo e expressão), as quais podem tanto ser utilizadas, como simplesmente referidas (i.e., instrumentalizadas para outros usos). A depender do caso, portanto, entre (i) mensagem utilizada, (ii) mensagem referida, (iii) código utilizado e (iv) código referido é possível estabelecer relações de circularidade (M/M ou C/C) ou de sobreposição (M/C ou C/M) que redundam em quatro relações fundamentais, quais sejam: (i) Mensagem utilizada/Mensagem referida (discurso indireto), (ii) Código utilizado/Código referido (nome próprio), (iii) Mensagem utilizada/código referido (discurso autônimo, típico de circunlóquios, sinônimos e traduções) e (iv) Código utilizado/Mensagem referida (shifters). Um shifter, portanto, caracteriza-se pelo fato de seu código não poder ser definido sem referência à mensagem, ou melhor, os shifters correspondem a uma categoria verbal a meio caminho entre o índice e o símbolo e, por isso, são denominados de “indexical symbols”77.
O que importa destacar é que, para Jakobson, o pronome é apenas uma espécie do gênero de categorias verbais denominadas de shifters78. Jakobson entende que a unidade elementar da comunicação seria a do evento narrado79, a partir da qual diversas outras combinações são possíveis. Os shifters, portanto, corresponderiam a uma aquisição linguística tardia80.
Esses pontos são essenciais para se conceber a diferença entre a cosmopolítica ameríndia e a metafísica ocidental. Primeiramente, como Viveiros de Castro parece sugerir, o perspectivismo e o multinaturalismo ameríndio são caracterizados, primordialmente, pelo fato de a estrutura pronominal que os determina não corresponder a uma mera aquisição tardia e inessencial da fala, como apontado por Jakobson, mas à estrutura axial da enunciação. Para o ameríndio, o enunciado (procès de l’énoncé) não possui nunca um valor absoluto, capaz de ser desvinculado do evento de enunciação (procès de l’énonciation)81.
Com outras palavras, a performance assume posição de destaque. O estruturalismo sem estrutura do mito, sugerido por Viveiros de Castro, aponta para uma abertura última do pensamento precisamente para o evento de enunciação82. É nesse sentido, embora por uma via totalmente diferente, que Viveiros de Castro pode afirmar que “[t]odo ‘grupo’ de mitos termina por se revelar situado na intersecção de um número indeterminado de outros grupos; e dentro de cada grupo, cada ‘mito’ é igualmente uma interconexão; e dentro de cada mito...”83. O mito, nome coletivo para a multiplicidade da rede mítica, corresponde a uma mise en abyme antropofilosófica. Esse estruturalismo sem estrutura predefinida é possível pois o marcador pronominal corresponde a uma categoria fundamental do pensamento ameríndio, garantindo a proliferação de séries míticas.
Em segundo plano, a afirmação da posição determinante da estrutura pronominal para o araweté não é nunca a posição do “eu”, como no caso do ocidental, mas aquela do “tu”. A predação da perspectiva do Outro, como se disse acima, é capaz de produzir outros Outros. A noção de humano ameríndio (bidë) e de cultura que lhe é correspondente é tributária desse processo de seriação performativa que nunca pode se desdobrar fora das redes pragmáticas da (onto-)lógica da predação. A afirmação da humanidade é inserida sempre na referência ao evento da predação.
O evento predatório corresponde de fato a uma espécie de captura e, na medida em que todos são humanos e em última medida todas as relações são sociais84, de uma espécie de canibalismo. Trata-se de um “[c]ontexto anormal no qual o sujeito é capturado por um outro ponto de vista cosmológico dominante, onde ele é o tu de uma perspectiva não humana, a Sobrenatureza é a forma do Outro como Sujeito, implicando a objetivação do eu humano como um tu para este Outro”85. As posições do “eu” (cultura) e do “ele” (natureza) são mediadas pela possibilidade constante do “tu” (Sobrenatureza) que para se tornar eficaz deve ser capaz de capturar. Como alerta Viveiros de Castro, aquele que “responde a um tu dito por um não humano aceita a condição de ser sua ‘segunda pessoa’, e ao assumir, por sua vez, a posição de eu já o fará como um não humano”86-87. A defesa da própria condição humana, perante a ameaça de um predador, está na (re)afirmação (mais que simbólica) da própria humanidade, pelo que é preciso constantemente “afirmar o próprio ponto de vista; quando o humano diz que também é uma pessoa, o que ele está dizendo é que é o eu, não o outro: a verdadeira pessoa aqui sou eu”88. O que importa, em cada caso, é a enunciação, não o enunciado. Tudo é subjetivado a partir do que ameaça o enunciante e, não raras vezes, toma seu lugar (i.e., o sujeito vivo-enunciante se torna o sujeito do morto-enunciado). É exatamente a partir dessa experiência que deve ser compreendida a crítica a todo humanismo acabado, seguro-de-si e estagnado, conforme a proposta de descolonização permanente do pensamento.
Ora, em resumo dos últimos parágrafos, foram identificadas duas diferenças essenciais entre o multiculturalismo ocidental e o multinaturalismo ameríndio. Primeiramente, diferentemente do ocidental, o ameríndio tem na estrutura pronominal não uma aquisição tardia e inessencial da fala, mas uma estrutura transcendental, determinando a condição de possibilidade de seu próprio ser. Em segundo plano, a perspectiva determinante para a individuação do marcador pronominal não é aquela do “eu”, mas a do “tu”, por meio da canibalização do “ponto de vista do inimigo”89.
A predação da perspectiva do inimigo (o “tu”) é, para o perspectivismo ameríndio, constitutiva de qualquer subjetividade própria (o “eu”). É no contexto desse encontro (i.e., no contexto da caça e da guerra), que o próprio corpo coletivo da tribo se constitui na sua contraposição com os demais. O “socius se constitui precisamente na interface com seu exterior, ou, em outras palavras, que ele se põe como essencialmente determinado pela exterioridade”90. Essa ocupação do ponto de vista do inimigo91 é responsável pela assimilação das narrativas míticas responsáveis pela constituição do socius ameríndio, sempre em contraponto com uma dada exterioridade. 92
O mito selvagem não é estático e ancestral, mas dinâmico e performático. Viveiros de Castro afirma que o mito ameríndio é sem-referência, mas talvez fosse mais elucidativo dizer que o mito não possui referência abstrata. O mito problematiza a própria referência que somente pode ser afirmada no ato de sua enunciação (como na estrutura pronominal). A problemática referência do mito constitui a sua universalidade93. Trata-se de uma referência virtual cujo destino é sua cristalização por meio da prática perspectivista. Fala-se de cristalização como uma complicação do binômio virtual-intensivo/atual-extensivo. O mito corresponde a um agenciamento específico no qual o atual e o virtual não correspondem simplesmente a dois estados diferentes de uma sequência diacrônica, mas às fases sincrônicas de uma estrutura responsável por um contínuo deslocamento de perspectivas94. A repetição como conceito da diferença pura, responsável pela contínua (des)territorialização de corpos.
Toda essa discussão implica profundas consequências para o desenvolvimento de uma teoria ética das interações entre humanos e não-humanos, entre natureza e cultura, as quais merecem ser devidamente levadas em consideração. Afirmar que a humanidade não está nunca assegurada ou que, a despeito da existência de um plano englobante (verdadeira tabula rasa) em que “tudo é humano”, no qual todos têm acesso ao mesmo fundo de cultura e perante o qual, em razão dessa mesma universalidade, não há garantia alguma que impeça um ente de simplesmente passar para o lado dos algozes, é determinante para a lógica de predação da cosmopolítica ameríndia.
Ao contrário da humanidade ocidental, fincada na certeza de uma disjunção exclusiva, segundo a lógica do gênero e espécie, a qual todavia não consegue senão pensar a diferença a partir do mesmo, a humanidade ameríndia pensa a diferença radical no sentido da pura repetição dos processos de seriação assimétrica, internalizando a relação nos termos e permitindo pensar em múltiplos devires prosopomórficos, para além (ou aquém) da castração típica da subjetivação ocidental. Se o pensamento selvagem parte do princípio “tu não és mais que os outros”95, como adiantou Pierre Clastres, e se a definição do que são “os outros” deve ser consequentemente ampliada no sentido da proposta multinaturalista de Viveiros de Castro, o homem-humano ameríndio não possui qualquer estatuto especial garantido na escala hierárquica e metafísica em comparação aos outros seres, ao contrário do que acredita o homem ocidental96, mas é apenas um nódulo na rede de relações de predação que se estabelece sempre in actu. Em outros termos, enquanto o homem europeu tem a tarefa existencial de “tornar-se o que se é” atendendo à exortação délfica milenar, o homem ameríndio corre sempre o risco de já ter passado para o lado do não-mais-humano97. Em suma, a humanidade ameríndia não prescinde do ato de enunciação a partir da perspectiva do inimigo, responsável pela contínua reafirmação de sua condição humana. Uma das consequências éticas dessa humanidade ameríndia, longe de firmar um relativismo vitalista, é justamente a ideia de que a reafirmação da minha condição humana depende da afirmação contígua da perspectiva do inimigo, ou seja, da alteridade radical.
Como antropologia selvagem, na veia aberta por Pierre Clastres, as Metafísicas Canibais se expressam como contínua conjuração da metafísica do unum (ou do proprium)98 e, consequentemente, como convite à proliferação das diferenças e da disseminação das concepções de humano99. Aponta-se para uma ética performativa radical capaz de desconstruir (e aqui importa considerar em que medida a desconstrução seria necessariamente um construtivismo) os binômios estanques da lógica ocidental: humano e não-humano, natureza e cultura, dentro e fora, fundo e figura, enfim. Mais do que uma posição simetricamente oposta em comparação a do ocidental (o que determinadas leituras antropológicas não se cansam de evidenciar, talvez rápido demais), o pensamento ameríndio aponta em direção a uma assimetria entre sociedades ocidentais e sociedades ditas “primitivas” (ou contra o Estado)100. Reprisando a exortação pregnante de Viveiros de Castro, para quem “o Outro dos Outros é sempre outro”101. Essa assimetria está inserida em dois diferentes regimes de espacialização do problema em conformidade a diferentes topologias e topografias.
Se para o pensamento ocidental, o humano é a figura daquele que se desloca no espaço já delimitado e formatado em fronteiras, para o pensamento ameríndio o humano é o pano de fundo sempre capaz de subverter qualquer fronteira estabelecida em favor da instauração de uma cosmopolítica entre todos os viventes. Se para o ocidental, o humano é aquele cuja propriedade é não possuir especificamente um proprium, podendo assumir tanto as características de um animal, como as de um anjo, a depender de uma específica disposição do espírito, para o ameríndio, o humano é o anti-proprium, sempre preparado para a transgressão de fronteiras e a assunção da perspectiva de um terceiro, evitando-se justamente a constituição de qualquer perspectiva privilegiada, transcendental ou redundante. Se para o ocidental o solipsismo é o principal receio epistêmico, para o ameríndio o principal receio vital seria a desintegração do corpo canibalizado.
Contra a violência epistêmica do pensamento ocidental, que, a partir da lógica dos aparelhos de captura, cria tanto a Cultura como o Homem que se tornam objetos dessa mesma captura102, o pensamento ameríndio propõe uma contra-violência (o que não é o mesmo que uma não-violência) sempre preocupada em conjurar-antecipar essa captura a partir de seu discurso “só-sujeito”103. Enfim, contra a violência epistêmica do Estado, contra a captura da cultura hegemônica, contra os modelos de subjetivação do homem ocidental, o pensamento ameríndio apresenta um estruturalismo sem estrutura para seu humanismo interminável.
Considerações Finais
Retorne-se à questão: o que ainda dizer do homem? Seu fim (eskhaton) já foi anunciado. Inobstante, e esta foi uma premissa importante deste trabalho, não basta anunciar o esgotamento. É preciso ressignificar a narrativa escatológica para sensibilizar o pensamento às humanidades intermináveis anunciadas pelo pensamento ameríndio.
Como dito, o perspectivismo e o multinaturalismo ameríndio agenciam o conceito de humano não a partir da lógica da falta (i.e., como mera negatividade), mas conforme a ontologia da predação, em cuja “dialética só há Mestres”104. Tal (onto-)lógica selvagem, fincada na perspectiva do inimigo, cuja humanidade é referencial compartilhado por todos os partícipes de sua cosmopolítica, é capaz de enfrentar a captura/estagnação do pensamento que se resolve na reafirmação de binômios por demais conhecidos, tais como: humanos/não-humanos, natureza/cultura, dentro/fora, figura/fundo, enfim. Em face das capturas ocidentais, o pensamento ameríndio permite vislumbrar um modelo de disseminação dos conceitos de humano.
Essa disseminação não corresponde a uma experiência homogeneizante. Muito pelo contrário. É caso de pensar a disseminação das multiplicidades, mas também, e talvez principalmente, das assimetrias e desequilíbrios. Considerar o “humanismo universal” ameríndio sob a justa luz, implica evitar toda e qualquer afirmação apressada e simplória no sentido de que todos os entes envolvidos na cosmopolítica indígena seriam equivalentes em dignidade, tal como procede, por exemplo, uma ingênua crítica da relação entre homem e animal a partir de determinado paradigma jurídico contemporâneo. Ao contrário, a lógica da predação, em toda sua imanência, associa intrinsecamente direito e poder (segundo o que o direito de cada qual se estende até onde vai sua potência), na medida em que cada perspectiva luta para se perpetuar na cadeia de predação105. O humanismo universal implicado no xamanismo transversal ameríndio é fruto de uma “geometria das relações”106 entre os viventes, marcada por “um desequilíbrio perpétuo”107.
Afirmar que as diferentes perspectivas sobre o humano (e eo ipso as diferentes conformações da humanidade) não se equivalem implica sugerir uma abertura radical às alteridades. Radical em dois sentidos mínimos, pode-se dizer. Primeiramente, pois na dialética “só-Mestres”, nenhuma espécie em particular pensa encontrar-se no vértice absoluto da cadeia de predação, ou mesmo personificar a posição de absoluta precariedade. O xamanismo transversal araweté corresponde a um “dispositivo de intercâmbio entre os viventes e os Maï”108, num contexto de pensamento “pronominal” perante o qual, cada conformação da humanidade (i.e., a humanidade-queixada, a humanidade-jaguar, a humanidade-humana, enfim) compartilha uma série de referentes entre si, de modo que cada uma encontra-se tensionada no seio da relação de predação. Se o homem-humano é um espírito para o queixada, o jaguar pode se encontrar em posição de enxergar o homem-humano como só mais uma presa. A ocupação com a alteridade, portanto, surge na medida em que a relação entre viventes e Maï não é nunca estabelecida num único sentido. Há sempre o risco de assumir uma posição que já não é mais a “sua” posição humana. Neste sentido, a cadeia de predação não implica na mera lógica da “lei do mais forte”, ao contrário, aponta para uma relacionalidade ética de tensa deferência à alteridade radical do outro, na medida em que a cadeia de predação nunca personaliza uma posição absoluta e segura.
Em segundo lugar, pois ao compartilhar determinados referentes, os viventes proliferam diferentes expressões da humanidade. Por isso, trata-se de uma humanidade interminável, afinal, o “outro dos outros é também Outro”109. Perceba-se, porém, que o “Outro” de Viveiros de Castro não é nem o marcador da falta, nem o marcador da transcendência, mas um agente de disseminação. A metafísica da predação ameríndia é responsável por uma antropologia que vive de equívocos (os quais devem ser entendidos não como “falha subjetiva”, mas como “dispositivo de objetivação”110). Ser determinado pelo ponto de vista do inimigo exige que cada perspectiva prolifere diferentes narrativas de mundos diferentes (trata-se da “circulação infinita de perspectivas”, as quais se abrem umas às outras, como fractais), sob a condição de cada ponto de vista assumir, a todo instante, o perigo absoluto de já não mais corresponder à perspectiva dominante da relação de predação.
Essa disseminação de disseminação evoca uma condição profundamente ética, a qual assumiria uma conformação efetivamente prosopomórfica (e não propriamente antropomórfica que tome o homem-humano como ideal de forma), perante a qual a expressão se constitui como elemento indispensável. O xamanismo ameríndio corresponde a uma arte ético-política singular, “[p]ois a boa interpretação xamânica é aquela que consegue ver cada evento como sendo, em verdade, uma ação, uma expressão de estados ou predicados intencionais de algum agente”111. Saber personificar é necessário justamente porque é necessário personificar para saber112. Viveiros de Castro sintetiza: “se no mundo naturalista da modernidade um sujeito é um objeto insuficientemente analisado, a convenção interpretativa ameríndia segue o princípio inverso: um objeto é um sujeito incompletamente interpretado”113. A impessoalidade interpretativa, ou ausência da capacidade de determinar sua relação social (e política) com aquele que conhece, não tem relevância ontológica.
Não se trata nem de um animismo voluntarista, nem de um relativismo, mas de um relacionismo114. Não sugere animismo voluntarista, no sentido de que os animais se assemelham aos homens-humanos, tidos como paradigmas existenciais. O perspectivismo assume que animais e humanos são difereintes de si mesmos, numa diferença intensiva. Também não supõe a multiplicidade de representações subjetivas sobre a mesma natureza externa total e indiferente às representações, como no modelo relativista. Toda perspectiva é total. O que muda de ente para ente é o próprio mundo que cada qual vê. Trata-se de uma perspectiva total e não de uma simples representação parcelar da realidade.
A diferença entre os pontos de vista está no corpo, ou seja, a capacidade perspectivista em Viveiros de Castro é uma potência do corpo. Corporeidade é entendida não como diferença fisiológica, mas sim como as capacidades e afecções que singularizam cada espécie de corpo na constituição de seus hábitos. Esse “maneirismo corporal” expõem uma diferença que só pode ser apreendida em termos de intensidades “(...) para outrem, uma vez que, para si mesmo, cada tipo de ser tem a mesma forma (a forma genérica do humano): os corpos são o modo pelo qual a alteridade é apreendida como tal. Não vemos, em condições normais, os animais como gente, e reciprocamente, porque nossos corpos respectivos (e perspectivos) são diferentes”115.
Essa ontologia ameríndia levada a sério por Viveiros de Castro acenaria para uma ética performativa radical. Na medida em que estabelece uma respectividade dos corpos, permitiria levar a cabo a tarefa de finalizar o humano e, ao mesmo tempo ressignificar a narrativa do esgotamento, ao inserir o problema da performance no loop constante da repetição enquanto processo absoluto de diferenciação (eterno retorno da diferença). Não haveria de se falar em utopias ou distopias, mas na radicalização da (onto-)lógica do equívoco, capaz de superar as amarras epistêmicas para conferir a possibilidade de simplesmente transbordar para além das formas (e fôrmas) estabelecidas dos horizontes transcendentes.
Uma ética performativa radical, também, na medida em que essa respectividade dos corpos assinala, retomando a inspiração em Roy Wagner, para uma concretização inventiva de si a partir da perspectiva do outro, tanto do ponto de vista do sujeito quanto da vida social. Havíamos ressaltado três imbricadas dimensões de pensar o humano araweté na antropofilosofia a partir de Viveiros de Castro. Um humano enquanto plano universal no qual todos os entes participam da humanidade, não como uma constante autônoma, mas como variável de uma função, em que todos são mestres, e nunca se pode estar certo de qual é a perspectiva dominante. Um humano que elege como princípio de movimento a inclusão de atributos do inimigo, implica um socius ameríndio no qual o que o sujeito assimila do outro são os signos da alteridade do próprio inimigo.116 Um humano que reivindica constantemente a afirmação enunciativa de sua perspectiva como pessoa. Em todas as três dimensões se expressa um humanismo comutador, no qual, segundo Viveiros de Castro, o “eu” e o “outro” intra-humanos se comutam. Esse mesmo humanismo perspectivista, segundo o qual as diferentes subjetividades que povoam o universo são dotadas de pontos de vista radicalmente distintos se comutam, está pressuposto também no contexto do xamanismo. Nesse último, certos humanos possuem a capacidade de cruzar as barreiras corporais e adotar a perspectiva humana das subjetividades não-humanas. Uma espécie de campo cosmopolita na qual a comutação/condução entre o “eu” e o “outro” se dá de forma interespecífica.117 Como afirma Viveiros de Castro, “não há lugar para um ‘nós’ senão o já determinado pela alteridade”118
Uma continuidade possível da presente investigação partiria para a apreciação e aprofundamento da discussão a respeito dos modos de ser da antropofilosofia de Viveiros de Castro. Trata-se de alçar o “quomodo?” à condição de palavra de ordem.
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Notas
Autor notes