Dossiê
Recepção: 15 Setembro 2019
Aprovação: 24 Setembro 2019
DOI: 10.1590/2179-8966/2019/45691
Resumo: O artigo analisa o sentido da categoria pessoa tal como exposta por Karl Marx em O capital e desenvolvida por E. B. Pachukanis em Teoria geral do direito e marxismo. Sustenta a hipótese de que o sujeito de direito não passa de forma de manifestação do valor enquanto suporte subjetivo ou titularidade de seu próprio movimento de autovalorização, portanto, de elevação do capital a sujeito efetivo do processo de produção capitalista.
Palavras-chave: Marxismo e direito, Dialética de Karl Marx, Crítica do sujeito de direito.
Abstract: The article analyzes the sense of the category person as expounded by Karl Marx in Capital and developed by E. B. Pashukanis in General theory of law and Marxism. The hypothesis sustained is that the subject of law is no more than a form of value manifestation as a subjective support or titularity of his own self-valorization movement, therefore, for elevating capital to effective subject of the capitalist production process.
Keywords: Marxism and law, Dialectics of Karl Marx, Criticism of the subject of law.
“Aqui, as pessoas existem umas para as outras apenas como representantes da mercadoria e, por conseguinte, como possuidoras de mercadorias. Na sequência de nosso desenvolvimento, veremos que as máscaras econômicas das pessoas não passam de personificações das relações econômicas, como suporte das quais elas se defrontam umas com as outras”. Karl Marx
Introdução
“Toda relação jurídica é uma relação entre sujeitos. O sujeito é o átomo da teoria jurídica, o elemento mais simples e indivisível, que não pode mais ser decomposto. É por ele, então, que começaremos nossa análise” (PACHUKANIS, 2017, p. 117; 2003, p. 109)1.
Ao estabelecer (corretamente) este ponto de partida teórico para a crítica marxista do direito, é provável que Pachukanis não tenha vislumbrado o contragolpe que mais cedo ou mais tarde receberia no interior desta mesma crítica. De fato, o que se observa é a recepção descuidada desta importante orientação metodológica; categoria cujo sentido não tem sido investigado em seus fundamentos, de modo condizente com sua importância estratégica. Surpreenda-se ou não, o marxismo parece ter se enamorado dos pressupostos epistemológicos da própria dogmática jurídica burguesa, suposta inimiga a ser combatida2.
Ora, se é verdade, como afirma o autor russo, que uma das incumbências da teoria geral do direito consiste no desenvolvimento dos conceitos jurídicos fundamentais, o que inclui categorias tais como norma jurídica, relação jurídica e sujeito de direito; que estas abstrações representam as definições mais próximas da forma jurídica, e, no fundo, não refletem senão relações materiais específicas, as relações sociais burguesas; que o marxismo não deve renunciar à análise desses conceitos, sob pena de explicar apenas a origem e interesses de classe contemplados pela regulamentação jurídica, mas não a existência desta regulamentação enquanto forma social histórica; enfim, que a análise marxista deve seguir os passos de Karl Marx e adentrar no território do inimigo, isto é, “ao expor a análise destas categorias abstratas, revelar seu verdadeiro significado – em outras palavras, demonstrar as condições históricas da forma jurídica” (PACHUKANIS, 2017, p. 80; 2003, p. 61-62).
Não é menos verdade, então, que a crítica marxista deve imprimir esta exigência a si mesma, ou seja, submeter à análise rigorosa suas próprias conclusões teóricas. A partir do momento em que assume como ponto de partida os conceitos fundamentais da teoria jurídica tradicional, o marxismo precisa efetuar a crítica constante e radical de seus próprios pressupostos teóricos para saber se não há neles qualquer resíduo ou aproximação indevida com relação às categorias forjadas pela teoria geral do direito3.
Aliás, esta exigência não deveria causar estranheza: ela foi adotada pelo próprio Pachukanis. Ou seria exagero afirmar que os pontos-chave de sua obra são quase todos atravessados pelo debate teórico autocrítico com os camaradas que se debruçavam, tal como ele, sobre os principais problemas da teoria geral do direito?
Desse modo, a tarefa começa já com a obra do autor russo. Se, por um lado, é patente que ele promove um avanço colossal no que concerne ao status científico da crítica marxista do direito - desvendando, a partir das figuras econômicas expostas por Marx em O capital, a gênese das categorias jurídicas utilizadas pela Teoria geral do direito - deve-se reconhecer, por outro lado, que há uma série de pontos cegos em seu trabalho, isto é, a ausência de um conjunto de mediações categoriais que simplesmente escaparam à sua análise, seja porque não estavam compreendidas nos limites teóricos de seu escrito, seja porque não figuravam no horizonte histórico de suas preocupações científicas4.
Mas o esforço não pode interromper-se aí, pois a análise marxista que se seguiu a Pachukanis não renunciou apenas à abordagem crítica de sua obra. Pior do que isso, acolheu determinadas categorias fundamentais de sua teoria intensificando o resíduo idealista que se encontra em algumas passagens, reiterando, com isso, a ausência de mediações categoriais que deveriam ter sido hauridas diretamente em Marx.
Daí que um problema fundamental vem afligindo a crítica marxista: a categoria do sujeito de direito, fixada por Pachukanis como ponto de partida para a análise do fenômeno jurídico, tem sido recepcionada de modo acrítico pelos autores e autoras que se seguiram ao teórico russo, o que resulta numa certa reificação do conceito e, como consequência, em uma indesejável aproximação com os pontos de vista defendidos pela teoria tradicional.
Consciente ou inconscientemente, tem-se atribuído à pessoa da qual fala Marx em O capital determinados atributos conceituais, certos aspectos categoriais que a dotaram de alguma substancialidade, isto é, autonomia autorreferencial. Consequentemente, têm sido desfeitos certos nexos categoriais, determinadas mediações de sentido que a ligam umbilicalmente a outras categorias fundamentais da arquitetura conceitual de O capital – nexos cuja demonstração constitui parte do esforço e, portanto, do avanço teórico realizado de modo pioneiro pelo autor russo. Como resultado, o sujeito de direito, exposto por Marx e desenvolvido por Pachukanis como criatura, adquire paradoxalmente o status de criador, autêntico propulsor da constituição e movimento de certas formas sociais no capitalismo5.
Nesse sentido, e contrariando a leitura que tem predominado, este artigo sustenta a hipótese de que pessoa a que se refere Karl Marx em O capital, identificada corretamente por Pachukanis como a figura do sujeito de direito, não deve ser compreendida senão como forma de manifestação do valor enquanto suporte subjetivo de seu próprio movimento, isto é, forma específica de uma relação social em que indivíduos não figuram senão como representantes de uma magnitude de valor que pode se materializar em mercadoria ou dinheiro, subsumindo à forma de pessoa ou sujeito de direito na medida em que, e apenas enquanto, funcionarem como sustentáculo consciente do movimento de autovalorização. Uma vez que este movimento imprime ao valor a qualidade de capital - pois o transforma em substância e sujeito automático do processo efetivo - fica claro que a pessoa ou o sujeito de direito não é nenhum sujeito no sentido substantivo do termo, mas cumpre função meramente acessória e subordinada às vicissitudes da acumulação capitalista. Sublimam-se, pois, quaisquer aparências de uma eventual autonomia desta forma enquanto potência constitutiva de relações sociais, tanto quanto dos atributos que lhe são imprimidos pelo movimento econômico: propriedade, liberdade, igualdade e autonomia da vontade.
Assim, o objeto deste artigo gira em torno da obra de maturidade de Karl Marx, sobretudo o Livro I de O capital. Trata-se de analisar a exposição categorial da mercadoria, do processo de troca, da circulação do dinheiro e da transformação deste em capital. A análise cuidadosa da exposição dialética marxiana permitirá a extração de um sentido mais preciso da categoria da pessoa ou sujeito de direito, com o que se pretende uma certa reconstrução teórica desta figura a partir da obra de Pachukanis. Não parece exagero afirmar que o autor russo concentra esforços nos três primeiros capítulos de O capital, isto é, analisa a exposição da forma mercantil e da circulação simples de mercadorias, mas relega a segundo plano a ressignificação que tais categorias experimentam quando entra em cena a circulação do dinheiro como capital6. De fato, é aí que o valor se constitui como substância e sujeito do processo efetivo, o que o transforma em capital e o eleva a forma dominante do modo de produção. Desse modo, Teoria geral do direito e marxismo também figura como objeto de análise crítica, ou seja, ponto de partida e de retorno da pesquisa.
As conclusões apontam para certos lugares-comuns que deverão ser revisitados. A famosa e já assentada tese de Pachukanis, segundo a qual a forma do direito não significa senão o outro lado da forma mercantil precisa ser repensada, uma vez que a mercadoria não passa da forma particular de manifestação do valor em seu movimento de autovalorização. Assim, a forma de pessoa ou sujeito de direito adere não apenas ao possuidor da mercadoria, mas também do dinheiro; ainda mais, a qualquer um que esteja na titularidade de uma expressão de valor, mesmo que fictícia. Ademais, o movimento de autovalorização do valor, que o transforma em capital, exclui da forma da pessoa ou sujeito de direito qualquer possibilidade de autodeterminação ou potência constitutiva de relações sociais, relegando-a ao status de simples criatura - por mais que, de um ponto de vista unilateral, apareça como criador7. Por último, o fetiche da forma- pessoa deve ser compreendido mais adequadamente, não como simples aparência de ascensão e domínio da vontade do indivíduo sobre a mercadoria que está sob sua guarda – como sugere Pachukanis – mas como projeção fantasmagórica do próprio valor que, ao se revelar objetivamente no preço da mercadoria ou no dinheiro, oculta astutamente sua forma subjetiva na figura aparentemente autônoma do sujeito de direito. Conclui-se, então, que a forma por excelência da pessoa não é a pessoa natural, mas, antes, a pessoa jurídica, que constitui a síntese mais pura do valor enquanto suporte subjetivo de seu movimento.
Finalmente, mas não menos importante, o método utilizado não pode ser outro que não a própria dialética materialista de Karl Marx, tal como apresentada em O capital. Do que se trata é do cuidado na delimitação de suas categorias, mediações conceituais e estruturas significativas, de modo a divisá-la do método idealista, de corte hegeliano. Inúmeras razões justificam esta precaução; ficamos com aquelas ressaltadas pelo próprio autor:
Meu método dialético, em seus fundamentos, não é apenas diferente do método hegeliano, mas exatamente seu oposto. Para Hegel, o processo de pensamento, que ele, sob o nome de Ideia, chega mesmo a transformar num sujeito autônomo, é o demiurgo do processo efetivo, o qual constitui apenas a manifestação externa do primeiro. Para mim, ao contrário, o ideal não é nada mais do que o material, transposto e traduzido na cabeça do homem (...) A mistificação que a dialética sofre nas mãos de Hegel não impede em absoluto que ele tenha sido o primeiro a expor, de modo amplo e consciente, suas formas gerais de movimento. Nele, ela se encontra de cabeça para baixo. É preciso desvirá-la, a fim de descobrir o cerne racional dentro do invólucro místico (MARX, 2013, p. 90-91; 1962, p. 27, passim)8.
1. A pessoa como representante da mercadoria
Um dos méritos colossais de Pachukanis foi ter identificado a gênese material da figura do sujeito de direito. A teoria tradicional, absolutamente alheia a esta questão, parte do sujeito como um dado que não precisa ser explicado, ou, quando pretende uma explicação, enreda-se em artifícios lógicos-abstratos9. Para Pachukanis, contudo, “a análise da forma do sujeito deriva diretamente da análise da forma da mercadoria” (PACHUKANIS, 2017, p. 119; 2003, p. 111). A sociedade capitalista é antes de tudo uma sociedade de proprietários de mercadorias e as relações entre indivíduos assumem a forma de uma relação entre coisas que se medem pelo valor:
Mas, se a mercadoria se manifesta como valor independentemente da vontade do sujeito que a produz, a realização do valor no processo de troca pressupõe um ato voluntário, consciente, por parte do possuidor da mercadoria (...) Dessa maneira, o vínculo social entre pessoas no processo de produção, reificado nos produtos do trabalho e que assume a forma de princípio elementar, requer para a sua realização uma relação particular entre as pessoas enquanto indivíduos que dispõem de produtos, como sujeitos “cuja vontade reside nessas coisas” (...) Por isso, ao mesmo tempo que um produto do trabalho adquire propriedade de mercadoria e se torna portador de um valor, o homem adquire um valor de sujeito de direito e se torna portador de direitos (PACHUKANIS, 2017, p. 120; 2003, p. 111-112, passim).
A ligação umbilical que existe entre a troca mercantil e a relação jurídica, isto é, a correspondência entre o guardião da mercadoria e o sujeito de direito, Pachukanis haure diretamente em Marx, no início do capítulo 02, do Livro I, de O capital:
As mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado e trocar-se umas pelas outras. Temos, portanto, de nos voltar para seus guardiões, os possuidores de mercadorias. Elas são coisas e, por isso, não podem impor resistência ao homem. Se não se mostram solícitas, ele pode recorrer à violência; em outras palavras, pode tomá-las à força. Para relacionar essas coisas umas com as outras como mercadorias, seus guardiões têm que estabelecer relações uns com os outros como pessoas cuja vontade reside nessas coisas e agir de modo tal que um só pode se apropriar da mercadoria alheia e alienar a sua própria mercadoria em concordância com a vontade do outro, portanto, por meio de um ato de vontade comum a ambos. Eles têm, portanto, de se reconhecer mutuamente como proprietários privados. Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, seja ela legalmente desenvolvida ou não, é uma relação volitiva, na qual se reflete a relação econômica. O conteúdo dessa relação jurídica ou volitiva é dado pela própria relação econômica. Aqui, as pessoas existem umas para as outras apenas como representantes da mercadoria e, por conseguinte, como possuidoras de mercadorias. Na sequência de nosso desenvolvimento veremos que as máscaras econômicas das pessoas não passam de personificações das relações econômicas, como suporte das quais elas se defrontam umas com as outras (MARX, 2013, pp. 159-160; 1962, pp. 99-100, grifo meu)10.
A análise de Pachukanis, recepcionada de modo quase unânime pela crítica marxista do direito11, concebe a relação jurídica como relação entre possuidores de mercadorias, isto é, o enlace de vontades por meio do qual valores de uso em quantidades que expressam valores equivalentes são intercambiados, transferidos de um guardião para outro. De acordo com Marx, este enlace de vontades é a relação jurídica, que reflete, por sua vez, a relação econômica subjacente: o conteúdo econômico é expresso pela forma do direito. Daí o lugar-comum de que o esforço teórico de Pachukanis se resume à aproximação entre a forma do direito e a forma da mercadoria.
Sob a perspectiva da arquitetura conceitual de O capital, entretanto, o ponto de vista do autor russo restringe sua análise ao momento designado por Marx como “mundo das mercadorias” (MARX, 2013, p. 169; 1962, p. 109). Esta expressão, que talvez devesse ser considerada uma genuína categoria12 no interior da estrutura de sentido da obra, indica a predominância quase exclusiva da forma mercadoria como elemento central das relações de sociabilidade humanas, pelo menos até o capítulo 03, do Livro I, de O capital.
Em outras palavras, a lógica mercantil, que sob o manto do fetichismo domina o circuito de relações sociais, impõe que a relação de troca entre indivíduos seja mediada por coisas que contemplam necessidades específicas de seus possuidores, isto é, objetos físicos-metafísicos, fantasmagóricos, que, dotados de quantidades equânimes de trabalho humano abstrato, movimentam-se aparentemente por vontade própria. Como estes objetos não podem ir ao mercado sozinhos, dependem de seus guardiões. Não por outra razão, a relação do sujeito de direito com uma coisa é cara à exposição teórica de Pachukanis:
Na verdade, não há dúvida de que a categoria de sujeito de direito abstrai-se do ato da troca mercantil. Justamente nesses atos o homem realiza na prática a liberdade formal de autodeterminação. A relação mercantil transforma essa oposição entre sujeito e objeto em um significado jurídico particular. O objeto é a mercadoria, o sujeito, o possuidor da mercadoria, que dispõe dela nos atos de aquisição e alienação. Justamente no ato de troca o sujeito revela, pela primeira vez, a plenitude de suas determinações (PACHUKANIS, 2017, p. 124; 2003, pp. 116-117).
Pois bem, este artigo pretende chamar a atenção para um ponto importante da passagem extraída do capítulo 02, do Livro I, de O capital. No lugar de colocar em destaque a relação que os guardiões das mercadorias mantêm entre si, isto é, o enlace de vontades que os possuidores destas coisas dotadas de valor devem empreender para que o intercâmbio de equivalentes ocorra e a relação jurídica tenha lugar, busca-se ressaltar que, por ocasião da troca, “as pessoas existem umas para as outras apenas como representantes da mercadoria”, de maneira que “as máscaras econômicas das pessoas não passam de personificações das relações econômicas, como suporte das quais elas se defrontam umas com as outras” (MARX, 2013, pp. 159-160; 1962, pp. 99-100, passim).
Aparentemente trivial, esta passagem revela, no entanto, uma categoria importante da dialética marxiana, cujo sentido passara despercebido pela maioria dos intérpretes de O capital. Trata-se da representação (Vorstellung)13, que, na relação de oposição com outra categoria fundamental, apresentação (Darstellung), adquire sentido específico e estratégico na arquitetura conceitual da obra de Marx, sobretudo no que concerne ao desdobramento do conceito de forma social, absolutamente relevante para o pensamento do autor alemão e também para a formulação de Pachukanis, cujo objetivo central é a análise da forma jurídica.
Nesse sentido, a partir da exposição de Marx sobre a mercadoria e as formas do valor (capítulo 01, do Livro I, de O capital), isto é, a relação entre coisas mercantis e a exteriorização, a partir da oposição interna entre valor de uso e valor que subjaz à mercadoria, das formas simples, desdobrada, e universal do valor; e, finalmente, da forma-dinheiro; quer dizer, partindo da exposição do movimento dialético por intermédio do qual, da relação social entre valores de uso que assumem a forma-mercadoria emergem as determinações contraditórias do valor e do valor de troca, Jorge Grespan observa:
A “apresentação” consiste, portanto, na exteriorização do conflito interno, que se exterioriza justamente por ser luta de opostos dentro de uma mesma totalidade social – a mercadoria. E consiste também, a partir daí, na forma pela qual essa exteriorização oculta a oposição interna (...) São as “contradições” e a impossibilidade de “desenvolvimento da mercadoria superá-las” que implicam a apresentação de novas formas; a forma surgirá sempre de um conflito. Além disso, importa enfatizar que a forma é “criada” pela apresentação do conflito imanente: tendo o sentido de um canal, uma dimensão “em que” as contradições “podem se mover” sem, por isso, desaparecerem, a própria “forma” resulta do desenvolvimento das “contradições efetivas”. Isto é, em primeiro lugar, a forma não preexiste como categoria, mas é “criada” pela apresentação; em segundo lugar, ela é “efetiva”, um “método” enquanto caminho da realidade, e não enquanto procedimento teórico de um saber puro e dos seus sujeitos (GRESPAN, 2019, pp. 106-107, passim).
Apresentação designa, então, a maneira como as relações sociais engendradas pelo modo de produção capitalista se constituem enquanto realidade efetiva, isto é, como modo de existência real do ser social e as contradições internas que constituem o seu núcleo existencial efetivo, ou seja, o ininterrupto movimento relacional pelo qual se exterioriza a oposição interna constitutiva da mercadoria (valor de uso e valor) e os respectivos métodos ou canais de escoamento desta sociabilidade, quer dizer, as formas de relacionamento entre coisas e indivíduos por meio das quais as contradições devem se movimentar, já que não podem ser suprimidas no interior da dinâmica social capitalista.
Intrinsecamente relacionada à apresentação, a categoria da representação haure sentido próprio, específico, designando a encarnação ideal ou simbólica do movimento de exteriorização de oposições contraditórias, mas que encerra em si a síntese do movimento - ocultando, entretanto, a contradição subjacente que efetivamente o constitui.
Representar significa, portanto, assumir, ideal ou simbolicamente, e de modo aparentemente autônomo (sem conexão visível com o movimento anterior), os caracteres ou determinações da apresentação, ou seja, do desdobramento de relações sociais efetivas constituídas pela dinâmica contraditória de exteriorização da oposição entre valor de uso e valor inerente à forma mercantil e que se solidifica na superfície como fetiche da mercadoria.
Assim, a propósito da famosa reflexão de Aristóteles sobre o valor, evocada por Marx no capítulo 01, do Livro I, de O capital (MARX, 2013, pp. 135-136; 1962, pp. 73-74) e, logo em seguida, sobre a dedução da forma-dinheiro a partir dos desdobramentos da forma do valor (MARX, 2013, pp. 141-145; 1962, pp. 79-84), Jorge Grespan explica:
O novo termo – representação – surge como expressão do valor da primeira mercadoria pela segunda, não na segunda; isto é, do valor da mercadoria sob a forma relativa pela equivalente, que teria adquirido então um poder expressivo próprio. A cama “apresenta” o seu valor na casa, e a casa “representa” o valor da cama “diante da cama”. Num primeiro momento, a representação pode ser definida como movimento simétrico ao da apresentação, no sentido de que se coloca em um lugar de onde defronta a colocação determinada pela apresentação (...) Assim, a oposição entre apresentar e representar configura-se pelo embate da medida real, de fato apresentada, com a medida que Marx chama de “ideal”. O dinheiro se determina já de início como medida de valor ao representá-lo no preço das mercadorias, mesmo antes da realização da troca, quando ainda não está presente em efetivo (...) E apresentando-se como puro valor de uso, as mercadorias delegam o papel de representar à mercadoria cujo corpo confronta o delas como algo radicalmente distinto, cuja matéria encarna o “sensível suprassensível” do fetichismo: “o preço, ou a forma de dinheiro das mercadorias, como forma de valor delas em geral, é uma forma diversa da forma corpórea palpavelmente real delas, portanto, é uma forma ideal ou representada” (GRESPAN, 2019, pp. 115/116-117, passim).
É precisamente nesta chave interpretativa, sem afastar os monumentais avanços de Pachukanis, que se deve interpretar a passagem que inaugura o capítulo 02, do Livro I, de O capital. O caminho para a compreensão da forma do sujeito de direito deve passar menos pela constatação de que a pessoa da qual fala Marx é um guardião da mercadoria ou seu possuidor e mais por sua determinação de representante da mercadoria, quer dizer, mero suporte de uma relação econômica.
Sob este enfoque, a pessoa ou sujeito de direito é uma forma social, isto é, um modo específico de sociabilidade cuja estrutura é determinada pelas relações de produção e circulação constitutivas da sociedade capitalista. Enquanto representante da mercadoria, a pessoa é forma-síntese de um movimento contraditório subjacente, que consiste na exteriorização da oposição entre valor de uso e valor que subsiste no interior da mercadoria, mas tem que se desdobrar na relação necessária entre produtos mercantis. Ao contrário da forma-dinheiro, entretanto, que consiste no aspecto objetivo dessa exteriorização, a forma do sujeito de direito é representação no aspecto subjetivo, ou seja, suporte-titularidade da relação mercantil. Na medida em que a forma da pessoa representa a mercadoria, ela assume, ideal ou simbolicamente, e de modo aparentemente autônomo, as determinações oriundas do movimento da apresentação, constituindo-se, pois, como a própria mercadoria, não no sentido de objeto, mas enquanto consciência e vontade autônoma14.
A pessoa deve ser compreendida, então, como forma social de representação, isto é, suporte-titularidade da relação mercantil ou a própria mercadoria enquanto projeção subjetiva, dotada de consciência e vontade15 adequadas às necessidades e vicissitudes materiais de seu intercâmbio recíproco universal, ou seja, o processo generalizado de troca.
A partir deste ponto de vista, a concepção de Pachukanis sobre o sujeito de direito pode ser ressignificada. O autor apreende esta forma a partir da noção, correta, mas insuficiente, de que a pessoa à qual se refere Marx consiste no guardião da mercadoria, isto é, o possuidor da coisa que a leva ao mercado para ser trocada. Nesse sentido, o sujeito de direito deixa de ser compreendido como personificação de uma relação econômica para ser alçado a uma forma social que de alguma maneira concorre com a mercadoria, isto é, que expressa quase o mesmo grau de autonomia da forma mercantil. Ao lado da mercadoria surge, então, o sujeito de direito, que, com seus atributos de liberdade, igualdade, propriedade e autonomia da vontade põe em marcha o processo econômico capitalista. Pachukanis anota:
Do mesmo modo que a riqueza da sociedade capitalista assume a forma de uma enorme coleção de mercadorias, também a sociedade se apresenta como uma cadeia ininterrupta de relações jurídicas. A troca de mercadorias pressupõe uma economia atomizada. A conexão entre as unidades econômicas privadas isoladas estabelece uma conexão, caso a caso, por meio do contrato. A relação jurídica entre sujeitos é apenas o outro lado das relações entre produtos do trabalho tornados mercadoria (PACHUKANIS, 2017, p. 96; 2003, p. 84).
Importa esclarecer, para evitar mal-entendidos, que a concepção de Pachukanis não está errada. Ela é, no bom sentido do termo, radical, pois apreende o fenômeno pela raiz. A ressalva que se deve fazer é que ela não é suficientemente radical, ou seja, não submerge em toda a radicalidade da dialética marxiana exposta em O capital. O problema mais candente, no entanto, não é esse, mas o modo como a crítica marxista que se constituiu a partir do autor russo tem aprofundado (injustificadamente) as inconsistências (justificáveis) do mestre. Nesse sentido, em uma passagem que parece muitíssimo sofisticada, mas que, no fundo, não revela senão alguma incompreensão, Bernard Edelman observa:
Devo precisar meu propósito. O que quero demonstrar é que o sujeito de direito, na sua própria estrutura, é constituído sobre o conceito de livre propriedade de si próprio; é que esta Forma, que é a forma-mercadoria da pessoa – o conteúdo concreto da interpelação ideológica da pessoa como sujeito de direito –, apresenta este caráter, inteiramente extraordinário, de produzir em si, isto é, na sua própria Forma, a relação da pessoa com ela própria, a relação do sujeito que se toma ele próprio como objeto. Este caráter, de fato espantoso, designa a relação jurídica de si consigo; indica que o homem investe a sua própria vontade no objeto que ele constitui, que ele é para ele próprio um produto das relações sociais. O que vou, pois, descrever, definitivamente, é a necessidade para a pessoa humana de tomar a Forma Sujeito de Direito, isto é, em última instância, de tomar a forma geral da mercadoria (EDELMAN, 1976, p. 93).
Ora, enquanto representante da mercadoria, o sujeito de direito não pode tomar a forma geral da mercadoria, isto é, encerrar em si a oposição contraditória entre valor de uso e valor, pois, neste caso, a pessoa humana ou o homem não passaria de escravo. O sujeito de direito não pode, portanto, ser a forma-mercadoria da pessoa, mas apenas a projeção da forma-mercadoria enquanto pessoa, isto é, uma forma social projetada, que funciona como suporte-titularidade da própria mercadoria. O sujeito de direito não é, portanto, nenhum proprietário de si mesmo e tampouco se relaciona consigo mesmo, porquanto não desfruta de qualquer autonomia. Pelo contrário, a forma do sujeito não passa de produto da relação das mercadorias com elas mesmas, ou seja, mero suporte-titularidade que resulta do movimento universal do intercâmbio mercantil16.
A dificuldade de se compreender adequadamente a forma do sujeito de direito resulta da relativa insuficiência da tese fundamental de Pachukanis, a saber, de que a forma do direito deve ser apreendida a partir da forma da mercadoria. Uma vez que as insuficiências desta associação sejam superadas, será possível expor com mais clareza os contornos fundamentais desta forma social, e, consequentemente, da categoria que a exprime.
2. O capital como substância e sujeito do processo efetivo
Se Karl Marx encerrasse O capital no capítulo 02, do Livro I, então a obra de Pachukanis seria irretocável. Teoria geral do direito e marxismo contemplaria todos os problemas teóricos fundamentais do campo jurídico e não restaria muito mais a fazer.
O capitalismo, por outro lado, seria uma sociedade de simples produtores de mercadorias, isto é, indivíduos que, com base em seus trabalhos próprios e manuseando as substâncias da natureza, criariam bens destinados às necessidades concretas suas e dos demais membros da comunidade. A partir do intercâmbio livre e igualitário do excedente, ou seja, daquilo que ultrapassasse as imposições do autoconsumo, todos teriam acesso aos produtos necessários à sobrevivência. A justiça reinaria entre os homens de bem.
Não é isso, entretanto, o que ocorre. O modo capitalista de produção impõe uma sociedade de classes fundada na exploração, isto é, na extração do trabalho excedente. A crítica marxista tem que lidar com essa contradição. Evitá-la contraria o método marxiano. Por isso, a análise do fenômeno jurídico precisa seguir a exposição de Marx para além do momento em que os guardiões das mercadorias levam suas coisas ao mercado.
Acompanhando de perto a exposição categorial desenvolvida no Livro I de O capital, percebe-se que, inicialmente, o processo de troca visa a contemplar necessidades concretas dos possuidores de mercadorias. Toda mercadoria é um não-valor de uso para o seu guardião e valor de uso para outrem; simultaneamente, toda mercadoria é suporte de valor ou valor de troca para seu possuidor, o que viabiliza seu acesso ao mercado.
No capítulo 01, Marx mostra como a oposição interna à mercadoria (valor de uso e valor) tem de se exteriorizar na oposição externa entre duas mercadorias, pois a objetividade de valor é puramente social, ou seja, só se manifesta numa relação social entre mercadorias. O desdobramento desta exteriorização, que alcança tantas mercadorias quantas sejam as necessidades sociais concretas em jogo, resulta na forma equivalente geral, uma mercadoria particular cujo valor de uso funciona como expressão de valor de todas as outras mercadorias. Daí se deduz a gênese da forma-dinheiro.
O capítulo 03, portanto, concentra-se na exposição das funções do dinheiro, que emergem do processo de circulação das mercadorias. Analisando-o com rigor, percebe-se como o surgimento do dinheiro - que é uma necessidade e uma imposição do processo de generalização do intercâmbio mercantil - quebra a troca direta de mercadorias, tal qual exposta no começo do capítulo 02. A relação inicial, que consistia na troca de uma mercadoria por outra (M-M), desdobra-se, agora, na troca de mercadoria por dinheiro (M-D).
Do ponto de vista jurídico, o contrato, que antes representava uma troca direta ou escambo (M-M), agora representa uma venda e compra (M-D). A relação jurídica expressa nova complexidade, novas determinações, pois seu conteúdo não se resume mais a duas formas particulares do valor (duas mercadorias), mas envolve também a forma universal deste (o dinheiro). Após o intercâmbio, para que o possuidor do dinheiro tenha acesso a outra mercadoria, que contemple suas necessidades concretas, precisa retornar ao mercado e efetuar uma compra. Tem-se, portanto, uma compra e venda (D-M)17. O circuito completo, isto é, a troca da mercadoria por dinheiro (M-D) e a subsequentemente troca deste por outra mercadoria (D-M), é o que Marx chama de circulação simples de mercadorias, que se expressa pela fórmula M-D-M:
Essas duas mutações antitéticas da mercadoria se realizam em dois processos sociais antitéticos do possuidor da mercadoria e se refletem em dois caracteres econômicos antitéticos desse possuidor. Como agente da venda, ele se torna vendedor e, como agente da compra, comprador. Mas como em toda mutação da mercadoria suas duas formas – a forma-mercadoria e a forma-dinheiro – só existem ocupando polos antitéticos, também o mesmo possuidor de mercadorias, como vendedor, confronta-se com outro comprador e, como comprador, com outro vendedor. Como a mesma mercadoria percorre sucessivamente as duas mutações inversas, passando da mercadoria a dinheiro e de dinheiro a mercadoria, assim o mesmo possuidor de mercadorias desempenha alternativamente os papeis de vendedor e comprador. Estes não são fixos, mas, antes, personagens, constantemente desempenhados por pessoas alternadas no interior da circulação de mercadorias (MARX, 2013, p. 184-185; 1962, p. 125).
Do ponto de vista jurídico, a pessoa apresenta novas determinações. Para Pachukanis, como assinalado, o sujeito de direito reflete o guardião da mercadoria. Isso vale apenas para o momento do intercâmbio direto ou escambo, e, ainda assim, com ressalva, pois o sujeito deve ser compreendido menos como guardião e mais como representante da mercadoria. Mesmo esse último ponto de vista, crítico a Pachukanis, precisa ser ressignificado agora, já que na troca mediada pelo dinheiro, isto é, na circulação simples de mercadorias, a pessoa reflete o vendedor e o comprador que são, como afirma Marx, formas opostas. O sujeito não representa mais apenas a mercadoria, mas também o dinheiro.
A pessoa deve ser compreendida, então, como representante das formas do valor: sua forma particular e universal. O sujeito de direito é o suporte-titularidade da mercadoria e do dinheiro ou mercadoria e dinheiro enquanto projeção subjetiva, volitiva e consciente das necessidades e exigências de seu movimento de intercâmbio.
Mas não devemos parar por aí. A exposição de Marx no capítulo 03 vai mais longe:
A circulação de mercadorias distingue-se da troca direta de produtos não só formalmente, mas também essencialmente (...) Vemos, por um lado, como a troca de mercadorias rompe as barreiras individuais e locais da troca direta de produtos e desenvolve o metabolismo do trabalho humano. Por outro lado, desenvolve-se um círculo completo de conexões que, embora sociais, impõem-se como naturais, não podendo ser controladas por seus agentes (...) Por isso, diferentemente da troca direta de produtos, o processo de circulação não se extingue com a mudança de lugar ou de mãos dos valores de uso. O dinheiro não desaparece pelo fato de, no final, ficar fora da série de metamorfoses de uma mercadoria. Ele sempre se precipita em algum lugar da circulação deixado desocupado pelas mercadorias (...) A substituição de uma mercadoria por outra sempre faz com que o dinheiro acabe nas mãos de um terceiro. A circulação transpira dinheiro por todos os poros (MARX, 2013, p. 185-186; 1962, p. 126-127, passim).
Como observa o autor alemão, a circulação simples de mercadorias (M-D-M) difere essencialmente da troca direta (M-M). Nesta, ambas as mercadorias (M) caem sob as necessidades do consumo e o intercâmbio não deixa rastro. Naquela, os dois extremos desaparecem (M), mas o meio-termo (D) é preservado. O sentido da lógica mercantil é sutilmente modificado, pois ganha destaque a forma universal do valor: o dinheiro (D).
Em outras palavras, de acordo com a exposição marxiana, a circulação simples, na medida em que transpira dinheiro, produz, como resultado, a lenta e gradual autonomização do valor, isto é, sua constituição enquanto abstração real e autônoma, que paulatinamente se descola de suas formas concretas de manifestação, os valores de troca efetivos. Embora a autonomização ainda seja tênue nesta etapa, quer dizer, o valor ainda tenha que gravitar em torno do valor de troca, ela pode ser claramente percebida na figura do entesourador18.
Do ponto de vista jurídico, ganha destaque a função do dinheiro como meio de pagamento, e, consequentemente, o ajuste de vontades que se consubstancia no contrato de venda e compra a prazo. Novas determinações são impostas à figura do sujeito de direito. Se, em princípio, qualifica-se como simples guardião de mercadorias; passando, depois, à figura de comprador e vendedor, o rompimento espaço-temporal provocado pelo dinheiro nessa função, ou seja, a cisão entre os momentos da alienação da mercadoria e a realização de seu preço (o pagamento), dá ensejo às figuras do credor e do devedor. Marx observa:
Na forma imediata da circulação de mercadorias, que consideramos até o momento, a mesma grandeza de valor esteve presente sempre de um modo duplo: como mercadorias, num polo, e como dinheiro, no outro. Os possuidores de mercadorias, portanto, só entravam em contato entre si como representantes de equivalentes mutuamente existentes. Mas com o desenvolvimento da circulação das mercadorias, desenvolvem-se condições por meio das quais a alienação da mercadoria é temporalmente apartada da realização de seu preço (...) O vendedor se torna credor, e o comprador, devedor. Como aqui se altera a metamorfose da mercadoria ou o desenvolvimento de sua forma de valor, também o dinheiro recebe outra função. Torna-se meio de pagamento. O papel de credor e devedor resulta, aqui, da circulação simples de mercadorias. Sua modificação de forma imprime no vendedor e no comprador esse novo rótulo (MARX, 2013, p. 208; 1962, p. 148-149, passim).
A modificação no desenvolvimento da forma de valor da mercadoria imprime ao dinheiro a função de meio de pagamento. Consequentemente, a pessoa expressa novos papeis, de credor e devedor19. Importa compreender que, neste momento da exposição marxiana, se existe a mercadoria de um lado da relação, não existe o dinheiro do outro, isto é, não há contraprestação monetária imediata. O ajuste de vontades não pode ocorrer entre guardiões de mercadorias porque uma das partes não a possui (sequer o dinheiro). Isso não significa, entretanto, que a equação de valor não esteja formada, pois a figura do devedor representa subjetivamente uma forma particular do valor materializada objetivamente num título de direito privado, uma promessa de pagamento futuro20.
O contrato se realiza porque o devedor funciona, no presente, como representante de uma soma de valor a ser resgatada no futuro. Embora não represente a mercadoria ou o dinheiro, a pessoa representa subjetivamente uma forma do valor, quer dizer, é o suporte-titularidade de uma magnitude de valor potencialmente realizável. Fora desta determinação econômica, ou seja, ausente a titularidade de uma soma futura de valor que pode ser resgatada, o negócio não se realiza. Ao contrário do que uma leitura mais apressada pode sugerir, o contrato, neste caso, não repousa de modo nenhum na singela vontade das partes, mas na relação econômica de intercâmbio entre mercadoria e título de direito. Este, o título jurídico, representa dinheiro. Afinal, como afirma Marx, “a relação entre credor e devedor possui a forma de uma relação monetária” (MARX, 2013, p. 209; 1962, p. 150).
Nada se compara, entretanto, à mudança radical de sentido que experimentam mercadoria e dinheiro quando envoltos no movimento que os transforma em capital21. Essa transformação opera-se, de início, na própria circulação. Marx explica:
Inicialmente, o dinheiro como dinheiro e o dinheiro como capital se distinguem apenas por sua diferente forma de circulação. A forma imediata da circulação de mercadorias é M-D-M, conversão de mercadoria em dinheiro e reconversão de dinheiro em mercadoria, vender para comprar. Mas ao lado dessa forma encontramos uma segunda, especificamente diferente: D-M-D, conversão de dinheiro em mercadoria e reconversão de mercadoria em dinheiro, comprar para vender. O dinheiro que circula deste último modo transforma-se, torna-se capital e, segundo sua determinação, já é capital” (MARX, 2013, p. 223-224; 1962, p. 161-162).
Na circulação simples (M-D-M), o ponto de partida é uma mercadoria específica (M), isto é, um valor de uso que atende a certas necessidades concretas, dotado de valor de troca. O meio-termo é o dinheiro (D), a forma universal do valor. O ponto final é outra mercadoria (M), diferente da primeira e que deve contemplar necessidades distintas. O início e o fim do ciclo contemplam valores de uso destinados ao consumo, ou seja, ao atendimento de necessidades concretas e específicas. O valor se conserva no circuito, mas não se expande.
Na circulação do dinheiro como capital (D-M-D), o ponto de partida é o próprio dinheiro (D). O meio-termo é uma mercadoria (M), um valor de uso que atende a necessidades específicas. O ponto final é novamente o dinheiro (D). Esta modalidade de circulação não tem como finalidade atender a quaisquer necessidades concretas, a não ser a manutenção do dinheiro, a forma universal do valor, no final do processo. Ocorre, no entanto, que faz todo o sentido trocar sapatos por casacos (tendo como meio-termo o dinheiro) quando o proprietário dos primeiros está com os pés quentes, mas os braços frios. Não faz nenhum sentido, contudo, trocar certa quantidade de dinheiro por outra de igual magnitude.
Sabe-se, entretanto, que “uma quantia só pode se diferenciar de outra quantia de dinheiro por sua grandeza” (MARX, 2013, p. 226-227; 1962, p. 165). Por isso, a circulação do dinheiro como capital (D-M-D) só faz sentido se houver a ampliação do valor inicialmente lançado na circulação. Uma determinada quantia de dinheiro (D) deve iniciar o circuito, transformar-se em mercadoria (M) e encerrar o circuito retornando à forma do dinheiro, mas, agora, com um acréscimo (D’). Este acréscimo (’) é o que Marx chama de mais-valor, isto é, a diferença entre a magnitude inicial lançada na circulação e a obtida ao final do ciclo:
Assim, o processo D-M-D não deve seu conteúdo a nenhuma diferença qualitativa de seus extremos, pois ambos são dinheiro, mas apenas à sua distinção quantitativa. Ao final do processo, mais dinheiro é tirado da circulação do que nela fora lançado inicialmente. O algodão comprado por £100 é revendido por £100 + £10, ou por £110. A forma completa desse processo é, portanto, D-M-D’, onde D’ = D + ΔD, isto é, a quantia de dinheiro adiantada mais um incremento. Esse incremento ou excedente sobre o valor original, chamo de mais-valor (surplus value). O valor inicialmente adiantado não se limita, assim, a conservar-se na circulação, mas nela modifica sua grandeza de valor, acrescenta a essa grandeza um mais-valor ou se valoriza. E esse movimento o transforma em capital (MARX, 2013, p. 227; 1962, 165).
Como se percebe, o mundo das mercadorias é superado (aufgehoben) e com ele o sentido original da mercadoria e do dinheiro22. Antes, aquela não passava de uma coisa; um objeto que encerrava em si a oposição contraditória entre valor de uso e valor, tendo como finalidade principal a contemplação de necessidades concretas. O dinheiro, por sua vez, não passava de uma mercadoria especial: valor de uso cuja característica consistia em refletir a todas as outras mercadorias seus próprios valores; um equivalente geral, universalmente intercambiável. A circulação simples (M-D-M) consiste num limite dentro do qual o valor permanece encalacrado, preso às necessidades do consumo.
Nos termos da exposição marxiana, entretanto, a mudança na forma da circulação modifica radicalmente a situação23. Na circulação do dinheiro como capital a finalidade é o valor, ou melhor, mais valor do que aquele lançado inicialmente no circuito. A lógica mercantil subordina-se inteiramente à necessidade de ampliação da magnitude de valor em jogo. Se na circulação simples (M-D-M) o dinheiro funciona como ponte para o consumo, na circulação do dinheiro como capital (D-M-D’) a mercadoria funciona como ponte para a valorização do valor. Em outras palavras: a forma mercantil não passa de momento transitório que precisa ser percorrido pelo valor para que possa ampliar sua magnitude24.
A superação do mundo das mercadorias, isto é, sua ultrapassagem e conservação no interior de uma estrutura significativa modificada, altera a lógica de sociabilidade, que não é mais posta simplesmente pelas vicissitudes da oposição entre valor de uso e valor, mas comandada pela lógica da oposição entre valor de uso e mais-valor. Eis o mundo do capital:
As formas independentes, as formas-dinheiro que o valor das mercadorias assume na circulação simples servem apenas de mediação para a troca de mercadorias e desaparecem no resultado do movimento. Na circulação D-M-D, ao contrário, mercadoria e dinheiro funcionam apenas como modos diversos de existência do próprio valor: o dinheiro como seu modo de existência universal, a mercadoria como seu modo de existência particular, por assim dizer, disfarçado. O valor passa constantemente de uma forma a outra, sem se perder nesse movimento, e, com isso, transforma-se no sujeito automático do processo (...) Na verdade, porém, o valor se torna aqui o sujeito de um processo em que ele, por debaixo de sua constante variação de forma, aparecendo ora como dinheiro, ora como mercadoria, altera sua própria grandeza e, como mais-valor, repele a si mesmo como valor originário, valoriza a si mesmo. Pois o movimento em que ele adiciona mais-valor é seu próprio movimento; sua valorização é, portanto, autovalorização. Por ser valor, ele recebeu a qualidade oculta de adicionar valor. Ele pare filhotes, ou pelo menos põe ovos de ouro (MARX, 2013, pp. 229-230; 1962, pp. 168-169, passim).
O valor, que até a circulação simples era constrangido a se conformar com as necessidades e limites do consumo, portanto, que não passava de forma de expressão do intercâmbio mercantil, agora é sujeito do processo efetivo, isto é, submete às exigências de sua existência e perpetuação a mercadoria e o dinheiro, logo, o metabolismo homem-natureza e as formas de intercâmbio de sua atividade material-espiritual. Mercadoria e dinheiro são, a partir de agora, formas de manifestação do valor; momentos em que aquela abstração social real elevada a substância-sujeito aparece e se efetiva na realidade concreta, constituindo-se como potência autônoma de seu próprio movimento de autovalorização.
Portanto, já não se trata mais de simples trocas de mercadorias ou compras e vendas à vista ou a prazo, mas trocas ou compras e vendas capitalistas, que funcionam como meios de realização do mais-valor. As primeiras não deixam de existir, mas são incorporadas pelo movimento de autovalorização do valor, de modo que aquela autonomia inicial, isto é, aquela existência relativamente autônoma que aparentavam possuir no início da exposição categorial (capítulos 01 a 03) é dissolvida pela ressignificação retroativa que o capítulo 04 opera no interior da arquitetura conceitual do Livro I de O capital25.
Eis um ponto fundamental: a autovalorização do valor o constitui como sujeito do processo; portanto, como capital. Nesse sentido, dizer que o capital é sujeito significa afirmar que ele “preside a passagem de uma forma de apresentação para outra dentro de um circuito” (GRESPAN, 2017, p. 116). Desse modo, a lógica das relações sociais consiste em funcionarem como momentos de passagem de uma forma do valor a outra visando sempre a ampliação de sua magnitude.
Do ponto de vista jurídico, a circulação do dinheiro como capital amplia o conjunto de determinações da forma-pessoa, se bem que de modo obnubilado.
Se é verdade, por um lado, que o movimento D-M-D’ significa o movimento de autovalorização do valor, não é menos verdade, por outro lado, que seus momentos particulares - a compra (D-M) e a venda (M’-D’) - constituem simples intercâmbios de equivalentes, isto é, compras e vendas de mercadorias por seus respectivos valores, nem abaixo, nem acima. Não há ampliação do valor em cada compra e venda segmentada, mas apenas no conjunto do movimento, no circuito completo. Marx observa:
As duas formas se decompõem nas duas fases antitéticas, M-D (venda) e D-M (compra). Em cada uma das duas fases confrontam-se um com o outro os mesmos dois elementos reificados, mercadoria e dinheiro, e as mesmas duas pessoas, portanto, as mesmas máscaras econômicas: um comprador e um vendedor. Cada um dos ciclos é a unidade das mesmas fases contrapostas, e nos dois casos essa unidade é mediada pela intervenção de três partes contratantes, das quais apenas uma vende, outra apenas compra e a terceira compra e vende alternadamente (MARX, 2013, p. 224; 1962, p. 163).
Aparentemente, as mesmas determinações qualificam os portadores de dinheiro e mercadoria, assim na circulação simples como na circulação do dinheiro como capital. Em ambos os casos, pessoas representam as formas particular e universal do valor. Nem meros guardiões de mercadorias, nem simples possuidores de dinheiro, mas suportes-titularidades das formas do valor. Essencialmente, contudo, a coisa muda de figura, pois o valor é agora sujeito do processo efetivo, comandando a lógica de sua constituição e desenvolvimento.
As partes contratantes assumem novos papeis; cumprem funções substancialmente diferentes, ainda que não tenham consciência da nova situação. Se mercadoria e dinheiro são modos de existência do valor, isso significa o valor assumiu o comando do processo. Não se trata mais de afirmar que o valor emerge do intercâmbio de mercadorias e dinheiro, como na circulação simples, mas, pelo contrário, que esse, o intercâmbio de mercadorias e dinheiro, constitui-se como forma fenomênica do movimento de autovalorização; modos de existência do próprio valor ou valor em sua particularidade e universalidade.
Desse modo, a pessoa não pode mais ser considerada mera representante subjetiva da mercadoria ou dinheiro, isto é, das formas particular e universal do valor. O sujeito de direito constitui-se, muito mais, como forma de representação subjetiva do valor, suporte-titularidade ou valor enquanto projeção subjetiva, volitiva e consciente das necessidades e vicissitudes de seu movimento contraditório de autovalorização.
O valor se constitui, pois, como substância em processo26. Assim, mercadoria e dinheiro não passam de formas objetivas de sua manifestação, enquanto a pessoa não passa da forma subjetiva de seu relacionamento consigo mesmo. Marx explica:
Se na circulação simples o valor das mercadorias atinge no máximo uma forma independente em relação a seus valores de uso, aqui ele se apresenta, de repente, como uma substância em processo, que se move a si mesma e para a qual mercadoria e dinheiro não são mais do que meras formas. E mais ainda. Em vez de representar relações de mercadorias, ele agora entra, por assim dizer, numa relação privada consigo mesmo. Como valor original, ele se diferencia de si mesmo como mais-valor, tal como Deus-Pai se diferencia de si mesmo como Deus Filho, sendo ambos da mesma idade e constituindo, na verdade, uma única pessoa, pois é apenas por meio do mais-valor de £10 que as £100 adiantadas se tornam capital, e, assim que isso ocorre, assim que é gerado o filho e, por meio dele, o pai, desaparece sua diferença e eles são apenas um £110 (MARX, 2013, p. 230; 1962, pp. 169-170).
Como substância em processo que se move a si mesma, o valor que se autovaloriza, ou seja, o capital, é o sujeito efetivo da sociedade moderna. A lógica de organização e desenvolvimento desta sociedade e as finalidades perseguidas são determinadas por seu movimento de autovalorização27. Portanto, o sujeito de direito deve ser considerado tudo, menos um sujeito no sentido usual: substantivo ao qual se ligam certos predicados. Pelo contrário, os atributos da pessoa são atributos do capital, características inerentes à sua projeção como suporte-titularidade de seu próprio movimento de acumulação28.
3. O caráter fetichista do sujeito de direito
A pessoa ou sujeito de direito é uma forma social. Como tal, designa um modo de relacionamento entre elementos que compõem uma totalidade. O marxismo sempre indaga pelo caráter específico de toda forma social, certos aspectos próprios que permitem particularizá-la. Do ponto de vista lógico, delimita sua natureza particular, isto é, as funções que desempenha num certo contexto; do ponto de vista histórico, verifica sua existência efetiva e seu caráter mais ou menos hegemônico no interior de uma comunidade.
Como forma social que é, o sujeito de direito pode qualificar ou não um indivíduo, isto é, habilitá-lo à execução de certas funções sociais. Para que o corpo biológico humano se qualifique como pessoa ou sujeito de direito é necessário que esteja inserido numa relação de valor, ou seja, que funcione como forma de expressão subjetiva do valor ou valor dotado de consciência e vontade.
Fora desse contexto, ou seja, alheio a uma relação de valor, o indivíduo pode assumir outras formas sociais, mas não a de pessoa29. Daí o nonsense de proposições que buscam naturalizar a figura do sujeito de direito, atrelando-a essencialmente à estrutura corporal biológica do indivíduo humano. Assim, todo exemplar homo sapiens que nasce com vida é, desde logo, uma pessoa, um portador de direitos e deveres na ordem jurídica30-31.
Ora, que uma afirmação sem sentido como essa seja adotada pela teoria tradicional do direito não espanta: trata-se de ideologia jurídica em seu sentido mais puro. Que autores marxistas se aproximem desse ponto de vista, aí começam os problemas. Aproximações como essas podem ser encontradas, por exemplo, em certas passagens de Bernard Edelman:
A Forma sujeito de direito é aporética, isto é, põe um problema que não pode resolver. Se o homem32 é para ele mesmo o seu próprio capital, a circulação desse capital supõe que ele possa dispor dele em nome (ao preço) dele próprio, isto é, em nome do mesmo capital que o constitui. Podemos resumir esta aporia: o homem deve ser simultaneamente sujeito e objeto de direito. O sujeito deve realizar-se no objeto e o objeto no sujeito. A estrutura da forma sujeito de direito analisa-se então como decomposição mercantil do homem em sujeito/atributos. Vou explicar-me. Sendo o homem reconhecido como “essência”, qualquer produção do homem é produção de um proprietário: melhor, de uma propriedade que frutifica e produz a renda e o lucro. A valorização dele próprio constitui seu capital; não um vulgar capital-dinheiro, mas um capital digno da essência humana: um capital “moral” (EDELMAN, 1976, p. 94).
A sofisticação (aparente) abriga uma tautologia: se a estrutura da forma sujeito de direito analisa-se como decomposição mercantil do homem em sujeito/atributos, isso significa que o sujeito de direito se decompõe ... no sujeito de direito! Ora, homem, enquanto sujeito de direito, é uma forma social específica, portanto, sua decomposição só pode resultar mesmo numa estrutura particular em que sujeito signifique determinados atributos. Se, no entanto, para o autor, homem significa o corpo biológico homo sapiens, então se verifica precisamente aquela naturalização da fusão social da pessoa na estrutura corporal biológica humana, justamente o que o marxismo se propõe a criticar.
De qualquer maneira, se o sujeito de direito é forma de manifestação subjetiva do valor ou valor enquanto suporte-titularidade de seu movimento, e este, o movimento de autovalorização, desdobra-se objetivamente no circuito D-M-D’, então é evidente que a chave para a compreensão da aderência da forma sujeito num corpo biológico humano precisa ser procurada na análise marxiana do fetiche da mercadoria e do dinheiro:
O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho como caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, como propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete também a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social entre objetos, existente à margem dos produtores. É por meio desse quiproquó que os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sensíveis-suprassensíveis ou sociais (MARX, 2013, p. 147; 1962, p. 86).
Como se deduz da exposição marxiana, a mercadoria reflete aos homens, como sendo dela, isto é, da própria mercadoria, caracteres que são, na verdade, do trabalho humano. Características originalmente sociais, oriundas do trabalho que a comunidade realiza, aparecem como características naturais dos objetos produzidos pela humanidade. Assim, aparentemente, as coisas se relacionam entre si sozinhas, conduzindo as finalidades sociais, dotadas de plena autonomia - quando, na realidade, subterraneamente, os homens é que o fazem, embora condicionados, justamente, pela forma mercantil.
Desse modo, a forma-mercadoria, porque se impõe à produção social, submete a humanidade à sua lógica, à oposição entre valor de uso e valor, de modo que este, o valor, comanda a totalidade do processo. O caráter criativo do trabalho humano desaparece; torna-se imperceptível, já que projeta na superfície da sociedade seus caracteres como se fossem caracteres da mercadoria, inerentes a ela. Como bem observa Marx, a mercadoria enfeitiçou os homens, introduzindo em seus cérebros a convicção de que são dela os atributos do trabalho humano, convencendo-os de que as relações sociais devem ser, na verdade, relações entre coisas, pois elas é que sabem o que precisa ser feito:
É apenas uma relação social determinada entre os próprios homens que aqui assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas (...) A isso eu chamo de fetichismo, que se cola aos produtos do trabalho tão logo eles são produzidos como mercadorias e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias (MARX, 2013, p. 148; 1962, p. 86-87, passim).
O caráter fetichista da mercadoria surge da própria forma mercantil, da oposição contraditória entre valor de uso e valor, isto é, do produto forjado pelo trabalho humano concreto, destinado a contemplar necessidades determinadas que, entretanto, transfere-se às mãos de outrem por intermédio da troca. É através dela, da troca, que o bem se torna mercadoria; portanto, que o trabalho concreto nele materializado se apresenta como trabalho abstrato, simples dispêndio de força humana laboral.
As exigências práticas do intercâmbio impõem que se fixe um parâmetro de mensurabilidade, isto é, um critério a partir do qual os possuidores saibam, de antemão, quanto de suas mercadorias devem entregar e quanto de outras devem receber como contrapartida. Esse critério é o tempo de trabalho abstrato depositado em cada produto. No entanto, como os homens se relacionam entre si através das mercadorias (e não diretamente por meio dos próprios trabalhos), estas, as mercadorias, tomam a frente do processo e assumem o comando.
A troca imprime ao produto do trabalho a forma-mercadoria e, com ela, uma característica sensível-suprassensível, fantasmagórica, que consiste em refletir para os homens as características de seus trabalhos concretos como trabalho abstrato ou igualdade de trabalho, portanto, como valor que pertence naturalmente ao objeto, isto é, que está implícito nele. Assim, não é o trabalho do tecelão que vale certa quantia em dinheiro, mas é o tecido, enquanto objeto-mercadoria, que possui tal valor33. Marx esclarece:
De onde surge, portanto, o caráter enigmático do produto do trabalho, assim que ele assume a forma-mercadoria? Evidentemente, ele surge dessa própria forma. A igualdade dos trabalhos humanos assume a forma material da igual objetividade de valor dos produtos do trabalho; a medida do dispêndio de força humana de trabalho por meio de sua duração assume a forma da grandeza de valor dos produtos do trabalho; finalmente, as relações entre os produtores, nas quais se efetivam aquelas determinações sociais de seu trabalho, assumem a forma de uma relação social entre produtos do trabalho (MARX, 2013, p. 147; 1962, p. 86).
O fetiche do dinheiro, por sua vez, é o fetiche da mercadoria elevado a uma potência superior. Uma vez que todas as mercadorias expressam seus valores no valor de uso de uma delas, esta, a mercadoria cujo corpo material se torna referência comum de valor assume a forma de equivalente geral. A fusão social definitiva da forma equivalente geral no valor de uso específico de uma mercadoria a transforma em forma universal do valor ou dinheiro. O caráter fetichista do dinheiro é potencialmente superior ao da mercadoria porque ele representa o intercâmbio universal, ou seja, por ele se pode trocar qualquer mercadoria cujo valor de uso seja socialmente útil.
O dinheiro representa, assim, o valor de todas as mercadorias que compõem o mundo das mercadorias; portanto, o próprio valor enquanto entidade autônoma. Não obstante, a substância do valor é o trabalho humano abstrato e a magnitude do valor a quantidade desse trabalho. Desse modo, o dinheiro representa, em última análise, o próprio trabalho humano que, entretanto, permanece imperceptível, já que ofuscado pelo cristal monetário. Marx explica:
Sem qualquer intervenção sua, as mercadorias encontram sua própria figura de valor já pronta no corpo de uma mercadoria existente fora e ao lado delas. Essas coisas, o ouro e a prata, tal como surgem das entranhas da terra, são, ao mesmo tempo, a encarnação imediata de todo o trabalho humano. Decorre daí a mágica do dinheiro. O comportamento meramente atomístico dos homens em seu processo social de produção e, com isso, a figura reificada de suas relações de produção, independentes de seu controle e de sua ação individual consciente, manifesta-se, de início, no fato de que os produtos de seu trabalho assumem universalmente a forma da mercadoria. Portanto, o enigma do fetiche do dinheiro não é mais do que o enigma do fetiche da mercadoria, que agora se torna visível e ofusca a visão (MARX, 2013, p. 167; 1962, pp. 107-108).
Pois bem, à luz desses apontamentos, como se deve pensar o fetiche do sujeito de direito? Uma primeira leitura pode conduzir à seguinte resposta: o caráter fetichista da pessoa consiste em que ela, na relação de troca de mercadorias, aparenta dominar a coisa, pois, sem a sua vontade, isto é, a vontade do possuidor, o intercâmbio mercantil não se realiza. Assim, a vontade livre e consciente do possuidor projeta uma aparência não apenas de autonomia, como de comando do processo econômico, que se submete aos desígnios do proprietário, isto é, do sujeito de direito. Pachukanis vai por esse caminho:
Se economicamente a coisa prevalece sobre o homem, pois como mercadoria reifica uma relação social que não está sujeita a ele, então, juridicamente, o homem domina a coisa, pois, na qualidade de possuidor e proprietário, ele se torna apenas a encarnação do sujeito de direito abstrato e impessoal, o puro produto das relações sociais (...) Ao cair na dependência escrava das relações econômicas que se impõem, às suas costas, na forma das leis do valor, o sujeito econômico, já na qualidade de sujeito de direito, recebe como recompensa um raro presente: uma vontade presumida juridicamente que faz dele um possuidor de mercadorias tão absolutamente livre e igual perante os demais quanto ele mesmo o é (PACHUKANIS, 2013, p. 121; 2003, p. 113-114, passim).
O ponto de vista de Pachukanis não está equivocado. Pelo contrário, é seminal. No entanto, deixa de aproveitar toda a potencialidade da dialética exposta em O capital. Sugere, de alguma maneira, uma certa substancialidade à figura do sujeito de direito, na medida em que assinala o domínio que exerce sobre a coisa, ainda que deixe consignado que este domínio existe apenas do ponto de vista jurídico. E, o que parece mais grave, associa a forma do sujeito de direito ao homem, isto é, aos indivíduos que compõem a sociedade capitalista, afastando-se da análise da pessoa como forma social34.
Não obstante, a análise cuidadosa da exposição de Marx sobre o caráter fetichista da mercadoria permite compreender a radicalidade de sua dialética:
Se as mercadorias pudessem falar, diriam: é possível que nosso valor de uso tenha algum interesse para os homens. A nós, como coisas, ele não nos diz respeito. Nossa própria circulação como coisas-mercadorias é a prova disso. Relacionamo-nos umas com as outras apenas como valores de troca (MARX, 2013, pp. 157-158; 1962, p.97).
A relação entre mercadorias é uma relação entre valores de troca. Sabemos, no entanto, que o valor é substância e sujeito do processo efetivo, portanto, a relação entre mercadorias é uma relação do valor consigo mesmo, que se torna mais complexa quando entram em cena o dinheiro e as respectivas formas de circulação. Considerando, ainda, que o fetiche da mercadoria provém da forma mercantil enquanto tal, deve-se concluir que o fetiche do sujeito de direito precisa ser procurado na forma do sujeito enquanto tal.
Nesse sentido, os atributos que aparecem ligados à pessoa (liberdade, igualdade, propriedade privada e autonomia da vontade) e que lhe conferem certa independência com relação às coisas (mercadoria e dinheiro) são, na verdade, atributos do valor, seus próprios caracteres projetados de modo aparentemente autônomo quando se manifesta de forma subjetiva, ou seja, como suporte-titularidade de seu próprio movimento.
Assim, o fetiche da forma do sujeito de direito consiste precisamente nisso: refletir, como seus, atributos que são do valor; revelar ao cérebro dos homens, como se fossem suas, portanto, naturalizando-as na figura da pessoa, características que são do próprio valor enquanto se manifesta como suporte-titularidade de seu relacionamento consigo mesmo.
Se o fetiche da mercadoria significa que ela reflete, como seus, caracteres que são do trabalho humano, o fetiche do sujeito de direito é um fetiche de segundo grau, pois reflete como sendo da pessoa, uma forma aparentemente distinta das formas objetivas do valor (mercadoria e dinheiro), caracteres que são dele mesmo (do valor). Ao se relacionar consigo enquanto suporte-titularidade de seu movimento, enquanto sujeito de direito, o valor reflete aos homens seus próprios caracteres, mas como se fosse dele, do sujeito. Projeta uma forma aparentemente autônoma com relação ao movimento econômico, mas que não passa essencialmente das determinações subjetivas desse mesmo movimento.
O quiproquó está justamente aqui: ao mostrar-se ao cérebro humano como pessoa dotada de vontade, o valor esconde-se nos corpos das mercadorias e do dinheiro e faz parecer que existe apenas ali, nas formas objetivas de sua manifestação; no entanto, ele é o verdadeiro sujeito e está agindo desde o início, promovendo e comandando o movimento de sua autovalorização ao se manifestar subjetivamente na forma da pessoa e objetivamente na forma da mercadoria e do dinheiro.
Nesse sentido, é preciso radicalizar o ponto de vista de Pachukanis, pois este ainda reserva ao sujeito um papel de acentuada relevância no movimento de valorização do valor, como se a pessoa pudesse, de fato, ser contraposta aos objetos mercantis:
Assim, o sujeito de direito é um possuidor de mercadorias abstrato e ascendido aos céus. Sua vontade, entendida no sentido jurídico, tem um fundamento real no desejo de alienar ao adquirir e adquirir ao alienar. Para que esse desejo se efetive, é indispensável que o possuidor de mercadorias vá ao encontro de um desejo de outro proprietário de mercadorias. Juridicamente, essa relação se expressa na forma do contrato ou do acordo de vontades independentes (PACHUKANIS, 2017, p. 127; 2003, p.121).
Ora, o sujeito de direito não é simplesmente o possuidor de mercadoria abstrato e ascendido aos céus. É muito mais o próprio valor enquanto manifestação subjetiva de seu movimento, aparentemente autônomo. Desse modo, não existe nenhuma vontade do sujeito de direito, mas apenas a vontade do valor, que se manifesta como pessoa. O contrato não é o encontro entre desejos de proprietários de mercadorias, mas a relação que o valor estabelece consigo mesmo, do ponto de vista subjetivo, por intermédio do qual valores de uso de magnitudes equivalentes modificam suas titularidades.
Desse modo, as duas formas absurdas das quais fala Pachukanis35 são ainda mais absurdas do que imaginou, porque, na verdade, são apenas uma. O vínculo social da produção apresenta-se sob a forma objetiva do valor, na mercadoria e no dinheiro, e sob a forma subjetiva do valor, na pessoa. É sempre somente o valor, enquanto substância e sujeito do processo de produção, que se apresenta no movimento efetivo relacionando-se consigo mesmo. Sua apresentação objetiva é o fetiche da mercadoria; sua apresentação subjetiva é o fetiche do sujeito de direito.
O valor de uso e o indivíduo que participam da relação de valor desempenham um papel muito secundário em toda essa história: o primeiro funciona como suporte material do valor de troca; o segundo como suporte biológico, fornecedor dos sentidos que faltam ao valor. Já os papéis desempenhados pelo valor de uso e pelo indivíduo que, por razões que correm sob suas costas, não se habilitam a figurar numa relação de valor são, como afirma Marx ironizando Hegel, muito miseráveis36.
4. A forma pura do sujeito de direito: a pessoa jurídica
Se a hipótese desenvolvida até o momento estiver correta, então a forma mais pura do sujeito de direito é a chamada pessoa jurídica, e não a pessoa natural37.
Como visto, o sujeito de direito não passa da forma subjetiva do valor ou valor enquanto titularidade, dotado de consciência e vontade. A função do corpo biológico humano ao qual adere a forma da pessoa é fornecer os atributos físicos que o valor não possui, a saber, o cinco ou mais sentidos a partir dos quais se pode identificar o conteúdo concreto dos corpos das mercadorias e as magnitudes de dinheiro em jogo.
Além do mais, como formas objetivas do valor, mercadoria e direito não podem ir por si mesmos ao mercado. São coisas, portanto, dependem da consciência e vontade dos indivíduos que figuram sob suas formas para serem postas em relação, isto é, serem trocadas umas pelas outras. Esta relação de intercâmbio é uma relação de vontades, não dos indivíduos, mas das pessoas, isto é, dos indivíduos subsumidos ao valor ou valor dotado de consciência e vontade. Esse ajuste de vontades é precisamente a relação jurídica, cuja forma é o contrato, reconhecida legalmente ou não.
É justamente no interior da relação jurídica que se constituem os atributos da pessoa ou sujeito de direito. O intercâmbio por meio do qual se trocam mercadorias, mercadoria por dinheiro ou dinheiro por dinheiro, depende do reconhecimento recíproco de vontades entre pessoas. Este ato de vontade comum determina a forma da propriedade privada, pois significa que o valor adere a certo e determinado sujeito com exclusão absoluta de todos os demais. Este núcleo duro projeta os demais atributos da pessoa: liberdade, igualdade, autonomia da vontade e Bentham:
Liberdade, pois os compradores e vendedores de uma mercadoria, por exemplo, a força de trabalho, são movidos apenas por seu livre-arbítrio. Eles contratam como pessoas livres, dotadas dos mesmos direitos. O contrato é o resultado, em que suas vontades recebem uma expressão legal comum a ambas as partes. Igualdade, pois eles se relacionam um com o outro apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente. Propriedade, pois cada um dispõe apenas do que é seu. Bentham, pois cada um olha apenas para si mesmo (MARX, 2013, p. 251; 1962, p. 189-190).
Os atributos da pessoa, isto é, a personalidade jurídica, adere ao indivíduo sempre que se vê posto numa relação de valor. Na lógica dos três primeiros capítulos do Livro I de O capital, o ponto de partida do intercâmbio reside sempre numa mercadoria (M). Seja na troca direta (M-M), seja na circulação simples (M-D-M), o movimento é iniciado pela forma mercantil do valor e termina sempre nesta mesma forma. Daí se deduz que a finalidade do circuito é o valor de uso, a contemplação de necessidades concretas (por exemplo, a sobrevivência física ou espiritual do indivíduo ao qual adere a forma da pessoa).
O panorama muda de figura a partir do capítulo 04, pois ali Marx expõe o modo como o dinheiro se transforma em capital. A circulação assume a forma D-M-D’. Como vimos, o ponto de partida é a forma universal do valor: o dinheiro (D). Considerando que uma quantia apenas se diferencia de outra por sua magnitude, o movimento seria absurdo e vazio se visasse à manutenção da mesma grandeza. Por isso, o sentido desta forma de circulação só pode ser a ampliação da magnitude de valor em jogo, ou seja, a obtenção, ao final do circuito, de mais valor do que fora lançado em seu início. A circulação D-M-D’ impõe uma modificação substancial na lógica da sociabilidade que se opera pelo intercâmbio, pois a finalidade do movimento é a expansão contínua da grandeza de valor:
Ao fim do movimento, o dinheiro surge novamente como seu início. Assim, o fim de cada ciclo individual, em que a compra se realiza para a venda constitui, por si mesmo, o início de um novo ciclo. A circulação simples de mercadorias – a venda para a compra – serve de meio para uma finalidade que se encontra fora da circulação, a apropriação de valores de uso, a satisfação de necessidades. A circulação do dinheiro como capital é, ao contrário, um fim em si mesmo, pois a valorização do valor existe apenas no interior desse movimento sempre renovado. O movimento do capital é, por isso, desmedido (MARX, 2013, p. 228; 1962, p. 166/167).
Como observa Marx, a modificação de sentido imposta pela circulação do dinheiro como capital, isto é, a lógica da valorização do valor, atinge não apenas o fim do movimento, mas também o seu começo. O fim de cada ciclo individual é o início de um novo ciclo. Fica claro para o valor, portanto, que, quanto mais elevada sua grandeza inicial, tanto maior será sua magnitude final. Em outras palavras, o valor sabe que pode começar o circuito pela quantia de £100 e obter, ao final, a quantia de £110. Mas ele sabe também que pode iniciar por £200 e alcançar £220; começar por £300 e obter £330, ad infinitum.
A imposição da lógica de ampliação da magnitude de valor ao início do circuito D-M-D’ faz com que o valor busque sempre e cada vez mais um começo quantitativamente superior. No entanto, a modificação de sua grandeza ocorre ao longo do movimento, com a compra e venda da mercadoria. Portanto, para que obtenha êxito em iniciar a circulação com uma magnitude mais elevada do que aquela de que dispõe só lhe resta uma saída: associar-se a outra magnitude de valor; ampliar sua grandeza inicial por meio da unificação de titularidades distintas.
Sem perder tempo, o valor põe sua consciência e vontade em ação. Expressando-se subjetivamente, ou seja, como pessoa ou sujeito de direito, utiliza os cinco sentidos do indivíduo ao qual aderiu para procurar no mercado outra titularidade, quer dizer, outra pessoa que, além de estar disponível para o circuito, disponha de uma magnitude que seja adequada ao patamar que deseja alcançar38. Ao encontrá-la, ajustam suas vontades no mesmo sentido, fundindo as grandezas de valor que expressam e com um objetivo comum.
A fusão de titularidades distintas visando ao circuito D-M-D’ é a gênese da chamada pessoa jurídica, cuja necessidade provém da lógica de ampliação de magnitude de valor imposta pela circulação do dinheiro como capital ao início do circuito39.
Nesse sentido, é importante compreender que duas grandezas de valor expressas na forma de dinheiro (D) diferem apenas do ponto de vista quantitativo e não qualitativo:
Porém, consideradas de modo puramente qualitativo, £110 são o mesmo que £100, ou seja, dinheiro. E consideradas quantitativamente, £110 são uma quantia limitada de dinheiro, tanto quanto £100 (...) Se, então, o objetivo é a valorização do valor, há tanta necessidade da valorização de £110 quanto de £100, pois ambas são expressões limitadas do valor de troca e têm, portanto, a mesma vocação para se aproximarem da riqueza por meio da expansão da grandeza. É verdade que, por um momento, o valor originalmente adiantado de £110 se diferencia do mais-valor de £10 que lhe é acrescentado, mas essa diferença esvanece imediatamente. No final do processo, não obtemos, de um lado, o valor original de £110 e, de outro lado, o mais-valor de £10. O que obtemos é um valor de £110, que, exatamente do mesmo modo como as £100 originais, encontra-se na forma adequada a dar início ao processo de valorização (MARX, 2013, pp. 227-228; 1962, p. 166, passim).
Embora Marx trate do processo de valorização, o raciocínio aplica-se igualmente à unificação de expressões subjetivas de valor ou pessoa jurídica. Uma vez que são idênticas do ponto de vista qualitativo, a fusão de duas magnitudes resulta numa grandeza só, delimitada apenas quantitativamente (ainda que o fenômeno ocorra no início do circuito). Como observa o autor alemão, é verdade que por um momento tais grandezas podem ser diferenciadas, mas tão logo ocorra a unificação de titularidades a diferença desvanece imediatamente, pois a fusão de duas expressões subjetivas de valor resulta numa única titularidade autônoma indistinta.
O valor é astuto, pois sabe que duas cabeças pensam melhor do que uma. Passa a contar com dois indivíduos como suporte material-biológico, potencializando a eficiência não apenas da consciência, como da vontade envolvidas na dinâmica de sua valorização, isto é, na identificação das melhores condições para dar ensejo ao circuito D-M-D’.
Uma vez constituída, a pessoa jurídica em tudo se assemelha à pessoa natural, com a vantagem de que expressa de modo mais puro e cristalino a forma geral da pessoa. A razão é simples: a nova expressão subjetiva de valor, cuja fusão apaga qualquer rastro de titularidades anteriores, descola-se dos indivíduos que funcionam como suporte material produzindo uma autonomia quase absoluta. Diferentemente da pessoa natural, que está como que ancorada na escória biológica que é o corpo homo sapiens, a pessoa jurídica passa alheia às carências impostas pela condição humana, realizando com muitíssimo mais eficiência o ciclo de valorização do valor, já que não precisa se ocupar com questões terrenas, como estômagos profanos, afetos familiares etc.
Ao constituir-se como tal, a pessoa jurídica adquire os atributos da forma da pessoa ou personalidade jurídica. Na relação com outras pessoas, os indivíduos através dos quais ela se expressa e que lhe fornecem os sentidos necessários à análise da concretude dos corpos das mercadorias ou magnitudes das somas de dinheiro, sabem que apenas terão acesso a produtos alheios desde que executem o intercâmbio de equivalentes. Nisso, o reconhecimento da propriedade privada e igualdade. Suas decisões são tomadas de modo livre, com múltiplas cabeças unidas, considerando apenas e tão somente a finalidade para a qual existem: a valorização do valor. Nisso, a liberdade e Bentham.
E, principalmente, como são constituídas para ensejar a circulação do dinheiro como capital (D-M-D’), são bem-vindas em quaisquer lugares em que o modo de produção capitalista tenha fincado raízes, não encontrando óbices de natureza política ou religiosa; desconhecendo problemas de gênero, raça ou empoeirados vínculos nacionais. A pessoa jurídica tem trânsito livre no território nacional e em todo o globo terrestre.
Exigências legais relativas à sua constituição, desenvolvimento e extinção são de natureza política, isto é, expressam o maior ou menor grau de maturidade econômica e social de certa comunidade. Assim, alguns países exigem maior formalidade para o reconhecimento oficial de sua atividade, outros não. No entanto, como sua existência concreta independe da aquiescência estatal, a maioria dos ordenamentos é constrangida a reconhecer a chamada sociedade não personificada ou de fato, como artifício para não ter de admitir que a realidade jurídica independente da norma posta pela autoridade.
Ademais, a famosa personalidade autônoma da pessoa jurídica com relação às pessoas naturais que a constituem, isto é, os patrimônios independentes, não passa de tautologia praticada pelo legislador, pois a forma da pessoa jurídica é precisamente esta: a fusão subjetiva de magnitudes distintas de valor que, por serem qualitativamente idênticas, passam a ser uma única expressão de titularidade, independente das titularidades anteriores. A questão de saber se as dívidas inadimplidas da pessoa jurídica alcançam ou não o patrimônio das pessoas naturais pelas quais ela se constitui é secundária e, em princípio, exclusivamente jurídica, pois depende do que fora ajustado pelas vontades constituintes. Se os ordenamentos legais optam por regular esta questão, isso se deve ao maior ou menor grau de maturidade política da sociedade e não a qualquer exigência essencial de manifestação estatal no que concerne a seu surgimento ou existência.
Sintoma de que a pessoa jurídica constitui a forma mais pura e cristalina do sujeito de direito é o fato de que cada vez mais decisões políticas, isto é, legislações aprovadas pelo Estado, estendem sua forma a titularidades que, em princípio, não se ajustam naturalmente a ela. No caso brasileiro, pode-se citar a chamada empresa individual de responsabilidade limitada que, de acordo com o art. 980-A do Código Civil, “será constituída por uma única pessoa titular da totalidade do capital social”. Assim, a pessoa natural que pretender dar ensejo ao circuito D-M-D’ deverá ser tratada, pelo Estado, como pessoa jurídica, o que fica claro no §7º: “Somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, hipótese em que não se confundirá, em qualquer situação, com o patrimônio do titular que a constitui”.
Mais grave do ponto de vista da luta de classes, é o fenômeno conhecido como “pejotização”. Nele, a pessoa do trabalhador assalariado, cuja mercadoria força de trabalho (FT) ingressa, juntamente com as matérias-primas (MP), como mero insumo no processo de produção, simples meio-termo no circuito do capital produtivo (D - M [FT+MP] M’ - D’), é compelida a constituir-se como pessoa jurídica com vistas à redução dos custos econômicos do capital perante a qual foi incorporada. Em princípio, o trabalhador, enquanto sujeito de direito, nunca poderia assumir a forma da pessoa jurídica porque a expressão de valor da qual funciona como suporte-titularidade, sua força de trabalho (FT), encontra-se na forma de mercadoria (M). O circuito que realiza é representado pela fórmula M-D-M, ou seja, circulação simples, cuja finalidade é o valor de uso.
A imposição da forma da pessoa jurídica ao trabalhador é resultado do enfraquecimento político da classe trabalhadora no contexto da luta de classes. Enquanto pode, ela sustenta o assalariado como pessoa natural perante o capital, o que faz com que o corpo humano, de alguma maneira, figure no horizonte imediato da relação de trabalho. Quando se enfraquece politicamente, permite a generalização, sem restrições, da lógica capitalista representada pelo circuito D-M-D’ e, com ele, da universalização da expressão mais pura da forma da pessoa para este modo de produção: a pessoa jurídica. Com ela, o corpo humano desaparece do horizonte da relação de trabalho, deixando como rastro a forma vazia do ajuste de vontades entre sujeitos formalmente autônomos.
Pessoa jurídica e pessoa natural exprimem uma tautologia, pois não passam da forma da pessoa ou sujeito de direito. A primeira sua forma mais pura e cristalina, pois o corpo humano, mero suporte material-biológico do valor enquanto titularidade, desaparece do horizonte das relações sociais reificadas. A segunda uma forma débil, pois o constrange a aderir a uma estrutura de carências físico-biológicas e espirituais que sempre procura, com suas necessidades humanas, desviar a pessoa de seu foco principal: a valorização do valor.
Conclusão
Poder-se-ia argumentar que na sociedade capitalista os bens já são produzidos para serem trocados, isto é, os valores de uso são criados com a finalidade antecipada de se transformarem em mercadorias. Nesse sentido, também os indivíduos são dados à luz como sujeitos de direito, ou seja, concebidos com a finalidade de serem pessoas. Assim, a própria lógica do sistema qualificaria a todos, indistintamente, como portadores de direito e deveres recíprocos, sendo desnecessário que representem, de fato, uma magnitude de valor.
O argumento é válido e se sustenta. No entanto, não se pode esquecer de um ponto fundamental da exposição marxiana sobre a forma da mercadoria – o salto mortal:
M-D. Primeira metamorfose da mercadoria ou venda. O salto que o valor da mercadoria realiza do corpo da mercadoria para o corpo do ouro, tal como demonstrei em outro lugar, é o salto mortale da mercadoria. Se esse salto dá errado, não é a mercadoria que se esborracha, mas seu possuidor (...) Quem diz capacidade de trabalho não faz abstração dos meios necessários à sua subsistência. O valor destes últimos é, antes, expresso no valor da primeira. Se não é vendida, ela não serve de nada ao trabalhador, que passa a ver como uma cruel necessidade natural o fato de que a produção de sua capacidade de trabalho requer uma quantidade determinada de meios de subsistência, quantidade que tem de ser sempre renovada para a sua reprodução. Ele descobre, então, com Sismondi: ‘A capacidade de trabalho [...] não é nada quando não é vendida’” (MARX, 2013, p. 180/248; 1962, p. 120/187, passim).
Se a mercadoria não puder ser vendida, quem se esborracha é seu possuidor, e não ela; se a força de trabalho não puder ser alienada, não é nada para o trabalhador, a não ser cruel necessidade natural. A forma universal do valor (dinheiro) qualifica imediatamente o corpo biológico humano que a detém como pessoa; a forma particular do valor (mercadoria) o qualifica mediatamente. Ela precisa dar o salto mortal. Se o possuidor da mercadoria não puder confirmar a necessidade social de seu valor de uso, isto é, se não puder transformá-la em dinheiro, então a potência da representação subjetiva do valor não passa a ato e sua estrutura biológica não se realiza como pessoa ou sujeito de direito.
A consequência dramática dessa situação é a exposição do corpo biológico humano à vida nua, isto é, à existência sem qualificação jurídica, sem direitos. O advento de uma norma posta pelo Estado e de uma estrutura que assegure a sua eficácia, isto é, leis e decisões judiciais cujo conteúdo determine que tais indivíduos sejam tratados como se pessoas fossem, é uma questão política e não de direito. Depende, portanto, do grau de acirramento da luta de classes, e, consequentemente, da maior ou menor concentração de poder na classe trabalhadora. Ao declínio político desta, corresponde o declínio do tratamento normativo do corpo biológico humano como pessoa40-41.
O problema é que um dos aspectos fundamentais da lei geral da acumulação capitalista é a hipertrofia da parte constante do capital em detrimento de sua parte variável, isto é, o aumento de sua composição orgânica. Como consequência, a tendência inerente ao sistema é a expulsão da força de trabalho do processo produtivo; a desnecessidade social do trabalhador; sua redundância relativa. Uma vez inabilitado a vender a sua mercadoria, quer dizer, a converter sua força de trabalho em dinheiro, encontra-se na constrangedora situação de contar com uma grandeza de valor apenas em potência, consequentemente, de ser apenas potencialmente pessoa ou sujeito de direito, sem nunca passar a ato.
Que trágico destino reserva o capital ao trabalhador! Não bastasse ser regido por uma lei que o expulsa implacavelmente do processo produtivo, tem de lidar ainda com sua outra face terrível: a destruição inexorável de sua aptidão para ser pessoa.
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Notas
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