Resumo: O presente artigo analisa a especificidade do corpo reprodutivo feminino para a politização da vida natural característica de sociedades biopolíticas, a partir da análise da regulação dos direitos reprodutivos no Brasil, por meio do “Estatuto do Nascituro”, e a constituição da reprodutividade, enquanto dispositivo, como uma substância biopolítica geradora de hysteras homo sacer.
Palavras-chave: BiopolíticaBiopolítica,Corpo reprodutivoCorpo reprodutivo,“Estatuto do nascituro”“Estatuto do nascituro”.
Abstract: The present article analyzes the specificity of the female reproductive body for the politicization of the natural life characteristic of biopolitical societies, from the analysis of the regulation of the reproductive rights in Brazil, through the "Statute of the Child", and the constitution of the reproductivity as a device, as a biopolitical substance generating hysteras homo sacer.
Keywords: Biopolitics, Reproductive Body, "Status of the unborn child”.
Artigo
Corpo Reprodutivo e Biopolítica: a hystera homo sacer
Body Reproductive and Biopolitic: a hystera homo sacer
Recepção: 20 Março 2019
Aprovação: 01 Agosto 2019
A compreensão das peculiaridades do estado de exceção que impera no Brasil e sua inscrição preferencial no controle do corpo feminino tem tornado urgente a construção de um referencial capaz de compreender as interlocuções entre biopolítica e patriarcado. Tal empreendimento, no entanto, impõe revisitar os projetos teóricos de Michel Foucault e Giorgio Agamben a fim de compreender as implicações de gênero de uma teoria do direito que considera a política como a redução dos cidadãos a suas funções biológicas, e que promove o colapso da categoria política do cidadão na categoria biológica da “vida nua”.
Esta não é uma tarefa fácil, dado o silêncio, tanto de Foucault quanto de Agamben sobre a especificidade biopolítica do corpo feminino. Em que pese este silêncio, a filósofa americana Penelope Deutscher tem buscado inserir tal perspectiva tanto em diálogos com as teorias foucaultiana e agambeniana. Em The Inversion of Exceptionality: Foucault, Agamben, and ‘Reproductive Rights’ (2008) Deutscher questiona: é possível abrir um debate com Giorgio Agamben sobre o papel do corpo das mulheres na politização da vida? Que diferentes inflexões de vida, bios e zoé resultariam de uma inserção da especificidade do corpo feminino nas reflexões biopolítica? Já em Foucault's Futures: A Critique of Reproductive Reason (2017), a autora coloca a reprodução no foco da biopolítica e afirma que o “futuro” de Foucault estaria em compreender em que sentido a reprodução está presente em sua obra, e como a biopolítica produz reprodução, e que futuro a reprodução garante ou põe em perigo?
A partir destes questionamentos, o objetivo geral que orienta a realização deste artigo consiste em desvelar a especificidade do corpo reprodutivo feminino para a politização da vida natural e a inclusão implacável das mulheres no estado biopolítico e a partir dela, analisar a regulação dos direitos reprodutivos no Brasil, por meio do “Estatuto do Nascituro”, e a constituição da reprodutividade, enquanto dispositivo, como uma substância geradora de hysteras homo sacer.
Para tanto, parte dos seguintes problemas orientadores: O referencial teórico biopolítico, de Foucault e Agamben pode ser utilizado para analisar a especificidade de sua atuação sobre o corpo feminino através do controle reprodutivo? Qual a relevância do controle reprodutivo para a perpetuação do biopoder? Como hipótese inicial apresenta a constatação de que o referencial biopolítico pode indicar um arcabouço de compreensão do que denominaremos de dispositivo da reprodutividade, e de seu modo de atuação e produção de vidas nuas por meio do sexismo do útero, gerando hysteras homo sacer. Tal construção teórica será evidenciada a partir da análise da gestão brasileira do aborto e das disposições do projeto de Lei 478/2007, conhecido como Estatuto do Nascituro.
Ao reivindicar a centralidade do corpo reprodutivo feminino e do útero, seu elemento biológico fundamental, à manutenção do poder, tanto disciplinar quanto biopolítico, pretende-se auxiliar na compreensão das razões pelas quais o controle do corpo feminino e a gestão da reprodução têm se tornado espaço privilegiado de atuação do patriarcalismo conservador que tem avançado no Brasil. Considera-se que o Projeto de Lei conhecido como Estatuto do Nascituro e seu avanço na Câmara Federal possa ser tido como um símbolo deste avanço. A partir disso conclui que a teoria crítica feminista pode se tornar paradigmática de toda teoria crítica, da mesma forma que o sujeito reprodutivo feminino tenha se tornado o sujeito paradigmático do aprofundamento do estado biopolítico, em sua faceta patriarcalista.
O artigo, para sua realização, divide-se em três partes. A primeira analisa a teoria de Foucault e Agamben, avançando para uma análise biopolítica com especificidade de gênero, e para a constituição do dispositivo da reprodutividade como essencial à reprodução do biopoder. A segunda verifica de que modo o controle reprodutivo efetuado sobre o corpo feminino, aliando recortes e marcadores sociais de raça, classe e sexualidade, dentre outros, produz uma diferenciação entre vidas dignas e vidas precárias, expostas à violência, denominadas de hysteras homo sacer. A parte final, parte do estado de exceção agambeniano para analisar a constituição do dispositivo da reprodutividade e das hysteras homo sacer no Brasil, por meio da gestão do aborto a partir do Projeto de Lei 478/2007.
A pesquisa foi perspectivada a partir do método fenomenológico, assentado sobre a importância da linguagem, na medida em que não se busca um estudo a partir do qual os sujeitos - no caso, os autores do artigo - estejam “afastados” ou “cindidos” do seu objeto. Pelo contrário, o objeto e os sujeitos são constituídos pela palavra e por meio dela recebem atribuição de sentido, evidenciando o círculo hermenêutico (HEIDEGGER, 2003) e não há, portanto, qualquer possibilidade de cisão entre os sujeitos da pesquisa e o seu objeto.
Embora não seja possível ignorar o silêncio de Foucault e de Agamben (DEUTSCHER, 2017) sobre a especificidade do corpo reprodutivo feminino, busca-se demonstrar a relevância deste corpo para a biopolítica, e a especificidade de gênero na atuação do biopoder, por meio do dispositivo da reprodutividade. Isto porque, ao sugerir a intensificação, no final do século XVIII de novas formas de gerenciamentos da vida das populações - que passam a incluir preocupações e cálculos acerca da reprodução, taxa de natalidade, de mortalidade - como indícios da apreensão da vida pela política, do “fazer viver e deixar morrer” (FOUCAULT, 2010, p. 129)1, a obra de Foucault abriu-se para intersecção entre uma noção de “direitos reprodutivos” e a constituição da reprodutividade como uma substância biopolítica (DEUTSCHER, 2008).
A transformação dos mecanismos de poder a partir desta guinada representaria, “nada menos do que a entrada da vida na história” (FOUCAULT, 2015, p. 138) - ou seja, os fenômenos próprios da vida do ser humano enquanto espécie adentram no campo das técnicas políticas. Segundo o autor (2010, p. 207), “não se trata [...]de ficar ligado a um corpo individual, como faz a disciplina”, mas, pelo contrário, “mediante mecanismos globais, de agir de tal maneira que se obtenham estados globais de equilíbrio, de regularidade”, de levar em conta a vida, os processos biológicos de homem-espécie e de assegurar sobre eles não uma disciplina, mas uma regulamentação.
O que advém daí seria “uma nova racionalidade centrada na questão da vida: sua conservação, seu desenvolvimento, sua administração” (ESPOSITO, 2006, p. 47, tradução nossa)2, na qual cada nascimento adquire relevância política, e cada feto passa à condição de vida humana, pensada como um sujeito diferente e independentemente da mulher que o carrega (FLORES, 2011). A reprodução passa a ser lida como um dispositivo, constituindo um ponto de articulação entre a disciplina da sexualidade e a biopolítica da população, operando no nexo entre a administração biopolítica da vida e a biopolítica do sexo (DEUTSCHER, 2017).
Foucault (2010), compreende o dispositivo da sexualidade como “um dos domínios em que o poder disciplinar e a biopolítica se entrelaçam numa estratégia de controle ao mesmo tempo individualizante e massificador” afirma Ayub (2014, p. 62), uma vez que o “acesso ao corpo via dispositivo individualiza o controle e, ao mesmo tempo, torna possível a regulação do conjunto dos vivos”. Isso resulta no “investimento político das taxas de natalidade e fluxos de doenças que, por sua vez, acabam produzindo efeitos de conjunto sobre a população” (AYUB, 2014, p. 62) e colocando em cena o dispositivo da reprodutividade e sua relação com a reprodução e a maternidade, transformadas em limiares de vida e morte mediante lógicas biopolíticas. A reprodução, portanto, passa a ser reprodutividade, constituindo um dispositivo com o objetivo de produzir a própria vida e as condições para o “deixar viver”, servindo aos fins do patriarcalismo3.
Ao constituir-se nestes termos, o dispositivo da reprodutividade produz sujeitos femininos capazes de propagar a vida, mas também de propagar a morte através da transmissão reprodutiva, uma possibilidade que pressupõe a legibilidade da procriação como uma governamentalidade. Através dela e das relações de poder se que engendram no agir sobre uma população, no governo dos outros e no governo de si mesmo (FOUCAULT, 2015), a reprodução produz os sujeitos da procriação - mulheres - e os isola como únicos responsáveis por futuros, raças, povos e nações. Emerge assim o sentido biopolítico da reprodutividade, que representa a procriação como aparente conduta livre do indivíduo - “escolha” - mas constitui-se num modo pelo qual a vida dos povos e populações pode ser gerenciada e manipulada.
Ao analisar esta imbricação, Deutscher (2017) distingue sexualidade e reprodução, e reconstrói a hipótese repressiva de Foucault como a “hipótese reprodutiva”4 mostrando que “a realização de sexualidades perversas é também uma tomada de mães histéricas, ausentes, falidas, irresponsáveis, nocivas ou mortais” (2017, p. 71, tradução nossa)5. Para ela, a procriação é presente na História da Sexualidade como a lógica subjacente às perversões - a perversão é perversa porque impede a procriação. E a “hipótese reprodutiva” possibilita a produção da reprodução como conduta moral e agencial que é responsabilidade especial das mulheres.
A partir desta hipótese reprodutiva, Deutscher (2017) analisa as formas de poder em jogo na reprodutividade, problematizando a conduta procriativa das mulheres: quais as condições sob as quais as mulheres (mas não os homens) se tornam foco de preocupação, ansiedade e medo no contexto da procriação? Porque, em nossa história, a conduta feminina (mas não o desejo masculino) é o local de preocupação de debates sobre escolha no contexto de gestações precárias? Por que no contexto da parentalidade estão as mulheres (mas não os pais) imersos em discursos de responsabilização? Todas estas questões podem ser pensadas à luz do dispositivo da reprodutividade que, através do controle do sexo reprodutivo, promove a intensificação da disciplina do corpo acoplada à regulação das populações, articulando os "mecanismos de poder que se dirigem à vida e os mecanismos de poder que se dirigem ao sexo ou à sexualidade” (DEUTSCHER, 2017, p. 77, tradução nossa)6.
De tal modo, a diferença sexual estruturaria um espaço biopolítico biopatriarcalista, no qual poder disciplinar e biopoder coexistem: a estrutura familiar. Através de conhecimentos especializados de parentalidade, as mulheres tornam-se diferenciadas entre mães boas e más, se tornando um vetor das disciplinas em conjunto com a criança (DEUTSCHER, 2017). O pai, ao contrário, torna-se individualizado pelo poder soberano de domínio da família, pois “na biopolítica, em que o útero estabelece a cesura entre a vida que merece viver e merece morrer, esta decisão sobre o corpo feminino está entregue às mãos do homem, a partir de uma estrutura patriarcal de organização da sociedade” (WERMUTH; NIELSSON, 2016, p. 16).
Portanto, no dispositivo da reprodutividade, a biopolítica pode ser lida como um encontro do gênero com a precarização da vida, e em última instância, com a produção da morte, considerando, a partir de Esposito (2006), que o biopoder produz tanto o desejo de controlar a vida quanto os meios para criar morte. Não há contradição entre o poder de incremento da vida e o poder de matar milhões para garantir as melhores condições vitais possíveis, afinal, como afirma Bauman (2004, p. 158) “toda aposta na pureza produz sujeira, toda aposta na ordem cria monstros”. Sob condições biopolíticas, o incremento da vida da população não se separa da produção da morte no interior e no exterior da comunidade: “são mortos legitimamente aqueles que constituem uma espécie de perigo biológico para os outros” (FOUCAULT, 2012, p. 130).
Tal encontro entre produção da vida e gestão da morte, entre regra e exceção, ou entre disciplina e biopoder, no entanto, só pode se dar, em nosso tempo, na operosidade da capacidade soberana de criar espaços anômicos que suspendam direitos. E a capacidade da lei de se suspender é intensificada no contexto do dispositivo da reprodutividade, o que coloca em cena a perspectiva biopolítica de Giorgio Agamben.
Agamben, na saga Homo Sacer7 desenvolve uma linguagem distinta de soberania, vida nua e estado de exceção como as características fundamentais da biopolítica que intensificam o precário status político da mulher. Diferente de Foucault, reluta em designar como moderno o agarramento da vida biológica pelo político, considerando que “a biopolítica não é apenas uma novidade contemporânea”, mas seu avanço representa o ápice de um processo de longo prazo, até se transformar no centro das formas de poder da modernidade tardia. E o seu reflexo mais contundente é, segundo ele, a contínua indistinção entre direito e violência, e a transformação do estado de exceção em paradigma de governo contemporâneo. (AGAMBEN, 2007, p. 120).
Em comum com a perspectiva foucaultiana, afirma Deutscher (2008), também a biopolítica agambeniana, apresenta um não compromisso com o lugar das mulheres na biopolítica da vida, sendo descaradamente indiferente à diferença de gênero e a outros marcadores sociais de diferença. Segundo ela, “os corpos das mulheres estão impressionantemente ausentes dos escritos de Agamben, assim como os corpos reprodutivos”8, considerando que os exemplos de vida nua conduzidos a um estatuto de limiar pelo autor se referem ao imigrante, ao refugiado, ao internado, ao combatente inimigo, ao Museulmann (DEUTSCHER, 2008, p. 59, tradução nossa).
Portanto, conclui a autora, à primeira vista, a vida num mundo agambeniano é dissociada da reprodutividade. No entanto, talvez seja essa mesma dissociação que Deutscher considera a chave de seu potencial para a teoria feminista, um potencial intrigante de operar como uma lente para repensar os termos vida, vida nua, limiar e biopolítica: “os textos de Agamben reaparecem como uma alternativa problemática que tanto inquieta quanto reorienta esses termos” (DEUTSCHER, 2008, p. 59, tradução nossa)9.
Especialmente relevante torna-se compreender uma dimensão de intercessão entre a teoria política e jurídica de Agamben, a ideia de uma “zona de indistinção”: o colapso do dentro e fora; a impossibilidade de falar em exclusão sem falar de inclusão; de algo que está incluído para ser excluído. Esta zona é um efeito imediato de um regime de justiça no qual todas as categorias legais derivam de uma política fundada na biologia. Este regime, que Foucault chamou de estado biopolítico, está preocupado com a gestão populacional a partir de um ser que está vivo ou morto; se vive ou morre; quanto tempo pode ou deve viver; de que maneira morrerá; quão saudável é seu estado de vida e assim por diante.
Para Agamben (2007, p. 13) esta zona de indistinção, ou seja, o estado de exceção “tende cada vez mais a se apresentar como o paradigma de governo dominante na política contemporânea.” Isso ameaça transformar “a estrutura e o sentido da distinção tradicional entre os diversos tipos de constituição”, dado que o estado de exceção se apresenta “como um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo” (AGAMBEN, 2007, p. 13). Desta zona anômica, produzida a partir da redução de todos os seres vivos a organismos biológicos sob regimes biopolíticos advém o colapso das “distinções políticas tradicionais” e a impossibilidade de distinguir o cidadão protegido pela lei da “vida nua” politicamente vulnerável10.
Diante deste referencial, Deutscher (2017) propõe que o dispositivo reprodutivo deva ser analisado como um fenômeno específico a partir de uma linguagem própria, capaz de compreender os muitos espaços de “suspensão” em que a vida das mulheres se torna precária ou redutível à "vida nua" precisamente devido à sua associação com a reprodutividade. Embora a capacidade reprodutiva tenha sido tradicionalmente o pretexto de exclusão dos direitos políticos, afirma a autora (2017), tornou-se objeto de interesse biopolítico e racista para a administração da "boa conduta" da reprodução em sociedades. Consequentemente, a exclusão das mulheres do status político completo transita para a modernidade supostamente "igual", em espécies de limiares reprodutivos, uma vez que é na conexão com a reprodução que se dá o ponto em que seus direitos podem ser privados por soberanos e sua lógica patriarcalista.
Em suma, “há uma diferenciação fulcral no modo como a biopolítica opera a partir das distinções de gênero” (BITTENCOURT, 2015, p. 225), visível na relevância que o debate acerca dos direitos sexuais e reprodutivos tem adquirido no contexto latino-americano e brasileiro, movimentando o Estado na tentativa de reduzir e controlar todo o sexo à reprodução, e com isso, à sua forma heteronormativa e à sua legitimidade matrimonial. O que se vislumbra é um continuum na tentativa biopatriarcalista de controlar o poder reprodutivo das mulheres, e com isso, de seus corpos, amplamente vinculado ao projeto biopolítico de controle das massas (NIELSSON, 2018).
Assim, afirma Miller (2007) o moderno estado biopolítico automaticamente coloca a reprodução biológica no centro do que significa ser um cidadão político, o que justifica utilizar o arcabouço foucaultiano e agambeniano para ilustrar o status paradigmático do cidadão feminino - portador de um útero - como campo privilegiado de atuação do biopoder. Embora “ausente” da obra de tais filósofos, o corpo reprodutivo feminino torna-se um referente chave para a análise dos corpos em relação aos limites entre vida e morte, natureza e cultura animadas e inanimadas, humanas e desumanas (DEUTSCHER, 2008). A vida, em tal análise, deve inevitavelmente considerar um conjunto de questões políticas e legislativas em torno da reprodução, direitos reprodutivos, sexualidade e família, e a teoria biopolítica deve tornar o corpo feminino central para sua análise.
O corpo biológico, apreendido pelo soberano em um estado biopolítico torna-se o corpo do homo sacer, uma figura do direito romano resgatada por Agamben (2007) para demonstrar a ambivalência característica do estado de exceção biopolítico, bem como para dar conta da complexidade da situação do homem contemporâneo. O homo sacer é aquele ser que não é consagrado - no sentido de passagem do ius humanun (profano) para o divino (sacro) - mas que também é posto para fora da jurisdição humana. Portanto, a vida sacra é também matável sem que o ordenamento jurídico sancione quem porventura a eliminar, sendo, portanto, uma vida, ou um conjunto de vidas suscetível de ser morta impunemente, mesmo que a priori protegidas pelas cartas de direitos da modernidade (AGAMBEN, 2007).
De acordo com Ziarek (2012), é a partir desta noção que Agamben elabora uma genealogia da vida nua até os tempos modernos. “Despojada de significado político e exposta à violência assassina, a vida nua é a contrapartida da decisão soberana sobre o estado de exceção e o bando da violência soberana” (SUTTON, 2017, p. 891, tradução nossa)11. Na contemporaneidade, são os corpos biológicos, tomados e inscritos como território de atuação do biopoder que trazem consigo as marcas, sempre provisórias, das cesuras causadas pela implosão das dicotomias tradicionais da modernidade: entre vida digna e vida matável, incluída e excluída, dentro e fora, regra e exceção. Portanto, são os corpos e seu ambiente espacial imediato que constituem o campo de batalha de poderes em conflito e o espectro no qual se exibem os sinais de sua anexação e pertencimento a um poder soberano.
Dentre todos os corpos, é o corpo feminino ou feminizado aquele que, segundo Rita Segato (2014), se adapta mais efetivamente a esta função enunciativa do biopoder, porque é, e sempre tem sido imbuído de significado territorial e reprodutivo. O corpo das mulheres constitui o espectro que carrega os signos de pertencimento, dando azo a uma espécie de crueldade funcional e pedagógica que transmite uma mensagem sacrificial de domínio soberano disciplinar e biopolítico, pois se destina àquele corpo, mas também à gestão da espécie que o domínio da reprodutividade representa.
Se considerarmos que o poder é biopatriarcalista, ou seja, masculino, branco, colonial, heteronormativo e neoliberal, é no corpo feminino ou feminizado que é selado o pacto de cumplicidade, e a espetacularização do domínio do que Segato (2016) chama de “mandato de masculinidade” e seu modus operandi, a pedagogia da crueldade. Tal mandato se “transforma em pedagogia da crueldade, funcional à cobiça expropriadora, pois a repetição de uma cena violenta produz um efeito de normalização de uma paisagem de crueldade e, com isso, promove nas pessoas os baixos níveis de empatia indispensáveis para o empreendimento predador” (SEGATO, 2016, p. 21, tradução nossa)12. Neste espectro, se consolida uma confraria ou irmandade masculina, cujo pacto de pertencimento necessita de vítimas sacrificiais, e no qual a mulher, reduzida a mera vida joga um papel funcional de espaço de inscrição plena de atuação do poder, tanto disciplinar quanto biopolítico, no limbo entre regra e exceção.
Portanto, embora as estratégias biopolíticas utilizem vários recortes, como os de raça, classe, sexualidade, dentre outros a fim de estabelecerem a seletividade e a desigualdade de sua atuação, não se pode deixar de “considerar formas nas quais as mulheres são constituídas como ‘vida nua’ - despojadas de direitos básicos e expostas à violência” (SUTTON, 2017, p. 890, tradução nossa)13 através do dispositivo da reprodutividade. Isto porque é no corpo feminino que este poder atinge seu ápice, constituindo em várias esferas de existências as hystera homo sacer.
A constituição de uma hystera homo sacer se dá em espécies de limiares reprodutivos, uma vez que é justamente na conexão com a reprodução, ou a partir dela, que a vida digna é reduzida a um mero corpo biológico, justificando a violência que sobre ele incide a partir da produção, regulação e controle estabelecido pelo próprio direito. É o útero e os usos que dele são feitos que passa a representar a condição de uma vida digna ou indigna para a reprodução, e, portanto, é pelo útero que a distinção entre bios e zoé é imposta ao corpo feminino.
Neste projeto de biopoder, a reprodutividade, estruturada a partir do patriarcalismo estabelece a hierarquização e distinção valorativa das vidas humanas a partir de diferenças biológicas. O feminino, segundo Marcia Tiburi (2008, p. 53) passa a ser “um sistema simbólico, cujas teias bem armadas estão inscritas em estruturas narrativas que transmitem o discurso ideológico da dominação patriarcal, na qual deve se deitar o corpo morto de toda mulher reduzida a seu próprio sexo.” Neste processo, o útero, um elemento anatômico fisiológico, assume um lugar simbólico de justificação desta redução.
Segundo a autora (2008, p. 54), pode-se estabelecer uma analogia entre útero e lar, pois o primeiro deixa de ser “mero órgão” para transformar-se em regulador, em “elemento originário de um ser - de um corpo - e de um sistema político” e assim, de toda a vida da população. Esta transformação de um órgão em função social é operada pelo dispositivo da reprodutividade: projetar o corpo feminino - individual e social - a partir de uma presença, e por meio dela justificar todos os usos deste corpo a partir da necessidade de gestão da vida e da morte. Reduzir este corpo a uma função colaborativa ou submissa da qual dependerá sua sobrevivência, uma vez que seu direito de existência “sempre foi sustentado pela possibilidade de alcançar o lugar excelente de sua função reprodutora” (TIBURI, 2008, p. 55).
Este lugar excelente tem na maternidade sua formulação ideal, transformando mulheres em prisioneiras de seu corpo, e o lar na repetição de um desenho implícito na sua própria anatomia, que configuraria o espaço por excelência do encontro entre poder disciplinar e biopolítico ao qual nos referimos anteriormente a partir da abordagem de Deutscher. Para a autora (2017), é neste espaço estrutural que, através de conhecimentos especializados de parentalidade, as mulheres tornam-se diferenciadas individualizadas e disciplinadas entre boas e más mães, e os homens tornam-se aptos ao exercício do poder soberano.
Tais conhecimentos de parentalidade e individuação de papeis conformam o dispositivo da reprodutividade, atribuindo às mulheres, como corpos detentores de útero, a condição de "tomadoras de decisão" e a responsabilidade por escolhas morais "significativas" para a gestão da espécie, instituindo performances esperadas de subjetividade como explicação coerente de motivos, decisão reflexiva, complexidade emocional (DEUTSCHER, 2017). Isso pode ser entendido, propõe a autora, como uma forma normativa de responsabilização que também é uma "estratégia divisória", na medida em que produz mulheres que podem ser lidas como menos coerentes em suas decisões reprodutivas como sujeitos precários, falidos, cujo comportamento "irresponsável" colocaria em risco futuros individuais e sociais (DEUTSCHER, 2017).
De certo modo a redução de uma mulher à condição de vida nua é condição de possibilidade para a manutenção do biopoder. Tomando como exemplo o aborto, Deutscher (2008, p. 66, tradução nossa) destaca que, a “mulher a quem legalmente se proíbe a realização de um aborto, muitas vezes figura como uma soberana rival potencialmente assassina”14. Na estratégia de redução de sujeitos políticos a vidas biológicas, o útero figura como elemento biológico fundamental, tanto do corpo individual feminino, quanto do corpo da espécie, e por isso, para a gestão do poder, seu controle é fundamental. Neste paradoxo, enquanto a biopolítica significa o útero e o corpo que o detém poderoso, o dispositivo da reprodutividade controla este útero e este corpo, o impossibilita de integrar o corpo político, e o reduz a mera “vida reprodutiva”.
O útero, assim, representa a consolidação da exceção, e o limiar entre a inclusão e a exclusão da mulher do mundo político. Agamben, em seus escritos demonstra como a exceção permite a ligação entre o direito e a vida, o cancelamento da vida em nome do direito, enquanto a “forma extrema da relação que inclui algo unicamente através da sua exclusão” (AGAMBEN, 2010, p. 22). Embora pareça contraditório, “não é impossível vislumbrar situações que envolvam, em um mesmo ou diversos atos, uma inclusão que seja concorrente de diversas exclusões, ou mesmo um ato que seja ao mesmo tempo inclusivo e exclusivo” (NASCIMENTO, 2016, p. 22), de tal modo que a estrutura da exceção como inclusão-exclusão torna-se a base da biopolítica.
Assim, se os corpos se submetem de modo diferenciado a diferentes estratégias, o corpo das mulheres ancora, por meio da reprodutividade, duas estratégias específicas: reduzir a mulher, enquanto possível reprodutora ao seu útero; e, uma vez configurada a gravidez, distinguir e separar o feto da mulher na qual se desenvolve, relegando-as a zonas de invisibilização e convertendo-as em receptáculos de um feto.
É neste preciso momento que se introduzem as cesuras entre a vida digna de ser vivida e que merece proteção e consideração, e a vida nua, indigna e desconsiderada pelo Estado e pelo direito. Tais cesuras, a partir do dispositivo da reprodutividade operam separando úteros dignos e úteis de se reproduzirem e cumprirem esta função social e os inúteis e indignos, ou ainda os incapazes; e separando a mulher e seu útero, quando este carregar um feto. Esta diferença é destacada por Roberto Espósito, entre uma biopolítica da vida e uma biopolítica sobre a vida. Esta última se refere a uma vida submetida à administração da política, e a primeira, a uma política em nome da vida (ESPOSITO, 2006). Nela podemos compreender que “as estratégias do Estado-Igreja-grupos-pró-vida implicam uma biopolítica negativa que busca controlar o regular os corpos e as vidas das mulheres” (FLORES, 2011, p 05, tradução nossa)15.
Como resultado, têm-se a produção de sujeitos legíveis e valorizados, de um lado, e sujeitos ilegíveis ou desvalorizados de outro. No caso das hystera homo sacer, as práticas das mulheres (incluindo o aborto, contracepção, vida sexual, menstruação) e as configurações variáveis de suas vidas - incluindo raça, sexualidade, idade, classe e nacionalidade - marcam mulheres específicas legíveis ou ilegíveis como sujeitos reprodutivos que valem a pena (DEUTSCHER, 2017). Vale destacar que no espectro biopolítico, tais recortes não constituem uma simples sobreposição entre padrões de dominação independentes, mas “um entrelaçamento complexo” que não pode deixar de ser considerado em uma análise crítica sobre o controle reprodutivo e biopolítico sobre os corpos (BIROLI; MIGUEL, 2015, p. 28).
Deste modo, importante que o olhar sobre a constituição de uma hystera homo sacer incorpore elementos de interseccionalidade (CRENSHAW, 2002), considerando as diferentes opressões e cesuras instituídas e operadas pelo biopatriarcalismo. Através da noção de interseccionalidade, pode-se vislumbrar e compreender as múltiplas formas de dominação e precarização da vida, pois, em conjunto “o racismo, o patriarcado, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as possibilidades” de cada um. (CRENSHAW, 2002, p. 177). Especialmente racismo e sexismo, mas também dominação de classe e outros recortes, como sexualidade, idade e deficiência, conjuntamente definem o modo como o biopoder atuará sobre cada corpo e vida.
Em meio a esta complexidade, as desvantagens sociais, e no caso aqui exposto, o controle reprodutivo e suas técnicas biopolíticas de gestão dos corpos e dos úteros incidem sobre determinadas mulheres relativamente a determinados homens, de tal modo que uma compreensão interseccional, e também biopolítica do gênero deva considerar as hierarquias que existem também entre as mulheres. Como sintetiza Jurema Werneck (2010, p. 11), em muitos casos, as mulheres brancas, e heteronormativas, acrescentaríamos nós, são situadas em “um polo de poder e de violência”. No outro lado deste polo, as formas mais perversas de controle reprodutivo operam intensificando os processos de precarização e de produção de vidas nuas de mulheres negras, pobres, lésbicas.
No caso de mulheres lésbicas, por exemplo, a própria invisibilidade faz parte das estratégias de controle. Imersas em um dispositivo que qualifica as mulheres a partir da gestão do seu útero, Carvalho, Calderaro e Souza (2013, p. 122), destacam as dificuldades e opressões decorrentes da não reprodução e a não amamentação: tanto um quanto o outro exemplo são indicativos de “um mecanismo sutil de regulação da sexualidade que, se por um lado, foca-se na determinação das condutas em função do discurso da prevenção”, e por outro lado, reforçam “as “punições” que podem decorrer quando o corpo não trilha o percurso de uma sexualidade heteronormativa, que pressupõe uma maternidade posterior”. Neste contexto específico, o dispositivo da reprodutividade opera em conjunto com o dispositivo da sexualidade imbricando formas complexas de controle sobre os corpos e reforçando mutuamente as estruturas do biopoder.
Portanto, no manejo da reprodutividade, e sua gestão de corpos e úteros a partir de recortes e contextos específicos de opressões de gênero, raça, sexualidade e classe, dentre outros, produz-se sujeitos legítimos, aptos e úteis à reprodução, por um lado, e sujeitos indignos e inaptos por outros, operando uma distinção que irá legitimar diferentes formas de condutas estatais biopatriarcalistas sobre os corpos (NIELSSON, 2018). Esta distribuição diferencial da capacidade/responsabilidade reprodutiva torna-se mais um marcador da estruturação condicional e precária da vida reprodutiva das mulheres, na qual produzem-se conjuntamente as hierarquias que colocam mulheres negras em posição de maior desvantagem.
Quando o útero deixa de ser apenas uma possibilidade reprodutiva para abrigar um feto, este passa a compor os discursos que constituem a reprodutividade enquanto dispositivo: este passa a ser apresentado como uma criança por nascer, cuja vida há de ser protegida desde a concepção e a mulher como mãe, cujo papel é (re)produzir , conservar e preservar esta vida. Assim, observa Flores (2011), enquanto entidade biológica, separada da mulher que o desenvolve, está dotado de direitos, “por um lado, o direito à vida, e por outro o direito à palavra. Estes são os direitos mais importantes que se cruzam nas imagens da ‘criança por nascer’: a partir de sua individualização” (FLORES, 2011, p. 111, tradução nossa)16, permitindo a exigência de participação de uma humanidade abstrata, que fala em nome de alguém que não tem voz nem palavra.
Esta construção biopolítica funciona, paradoxalmente, dissociando o feto da mulher, ao mesmo tempo unindo a criança à mãe por meio de complexas relações analógicas que igualam formas de existência e reduzem a mulher à maternidade e o útero, os responsáveis por estabelecer a linha provisória entre a vida nua e a vida digna que paira sobre a hystera homo sacer.
Todas estas cesuras pelas quais o dispositivo da reprodutividade opera na produção das hystera homo sacer são produzidas dentro de espaços anômicos de exceção legitimados pelo próprio estado de direito. Conforme afirma Bittencourt (2015, p. 242), “o direito, por meio das regulamentações e de políticas públicas, tem um papel central na valoração da vida dessas mulheres, ora fazendo viver ora deixando morrer, a depender de fatores políticos e econômicos que sustentam a sociedade capitalista e patriarcal”. São as próprias instituições estatais, no espectro de exceção que permeia o Estado democrático, que constituem verdadeiros e legitimam espaços de suspensão de direitos das mulheres, reduzidas a condição de mera vida biológica no cumprimento de sua função instrumental reprodutiva.
No caso do controle reprodutivo das mulheres, a decisão soberana como ato político revela que as relações sociais constroem o contexto para politizar a vida a partir de um histórico sistema patriarcalista que tem decidido sobre seus direitos e imposto uma ordem sobre elas. Neste caso, não é um soberano único quem decide, mas um sistema patriarcalista que age através, mas não só, do domínio do Estado. Neste espaço, conforme destaca Miller (2007), a política e o direito contemporâneos têm se dedicado à construção legal de um sujeito que não apenas ocupa o espaço político como um animal biológico reprodutivo, mas que é um espaço biopolítico por si só - neste caso um útero-hystera. O útero, e por extensão, o ser biológico que o detém é, assim, o cidadão paradigmático do estado biopolítico moderno.
A fim de verificar de que modo a atuação biopolítica do Estado se perpetua para estabelecer o dispositivo da reprodutividade, analisaremos o projeto de lei, e os discursos legitimadores do Estatuto do Nascituro, em tramitação há mais de 10 anos na Câmara dos Deputados. Embora já exaustivamente analisado, é possível considerar que a centralidade deste projeto e de sua pauta nos dias atuais possa evidenciar o paradoxo biopolítico da atuação do Estado em relação aos direitos reprodutivos, e o processo pelo qual os diversos recortes, de gênero, raça, classe, etnia, definem modos diferenciados e corpos privilegiados para configurarem hysteras homo sacer.
Inicialmente é preciso afirmar que tal atuação paradoxal só é possível a partir do incremento da gestão biopolítica já explicitada acima, cujo reflexo mais contundente é, segundo Agamben (2007), a contínua aproximação, que beira a indistinção, entre direito e violência, e a transformação do estado de exceção em paradigma de governo na política contemporânea. Para o autor, a exceção representa um conceito que permeia o limite entre legalidade e legitimidade, entre o jurídico e o político, entre direito e natureza, e não diz respeito a um período breve e temporário, mas sim ao seu estado permanente, no qual o poder está situado em um espaço intermediário, uma zona invisível, porém, à luz da própria norma.
Segundo Agamben (2007), nesta zona intermediária entre política e direito encontra-se um limbo que precisa ser preenchido para fazer funcionar a ordem paradoxal do Estado: “o estado de exceção apresenta-se como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal” (AGAMBEN, 2007, p. 12). Inverte-se a lógica do ordenamento jurídico: a lei perde força e os atos do poder soberano são aplicados como tal, pois na exceção, a norma aplica desaplicando-se, configurando um espaço de caos que resulta de sua suspensão. “Não é a exceção que subtrai à regra, mas a regra que, suspendendo-se, dá lugar à exceção e somente deste modo se constitui como regra, mantendo-se em relação com aquela”. (AGAMBEN, 2007, p. 26).
Neste rumo, estado de exceção marca um patamar no qual lógica e práxis se indeterminam, e uma pura violência sem logos se intensifica quando direito e política coincidem no soberano. É ele quem decide sobre a exceção, mantendo o ordenamento jurídico à sua disposição, estando ao mesmo tempo, dentro e fora do ordenamento. É na figura do soberano que reside o paradoxo: possui o poder de manter a ordem ou declarar o estado de exceção, possui o ordenamento jurídico à sua disposição e “a decisão soberana sobre a exceção é, neste sentido, a estrutura político-jurídica originária a partir da qual somente aquilo que é incluído no ordenamento e aquilo que é excluído dele adquirem seu sentido” (AGAMBEN, 2007, p. 27).
A partir desta construção teórica, o que se vislumbra não é mais o desvio, mas o próprio modo de ser da política moderna, no qual o estado de exceção deixa de ser um sintoma passageiro de crise, passando a designar a própria regra, tornando possível distinguir entre a vida humana e a pólis, entre zoé e bios, entre a vida nua e a vida política. Sob a vigência do estado de exceção, a vida nua do ser é capturada e enclausurada pelo poder, e o campo passa a constituir o espaço privilegiado e, segundo Agamben (2007), o paradigma da modernidade, e o espaço de exercício biopolítico do poder, mesmo em regimes democráticos.
No caso da implicação do corpo feminino nos cálculos de poder, o estado de exceção, ou seja, o limbo entre direito e violência é o modo pelo qual o poder biopatriarcal opera o dispositivo da reprodutividade e a redução de vidas femininas a hysteras homo sacer. É o que demonstra a análise dos debates acerca da proibição/legalização do aborto no Brasil a partir da tramitação e discussões acerca do Estatuto do Nascituro.
O Projeto de Lei 478/200717, que “Dispõe sobre o Estatuto do Nascituro e dá outras providências” tramita há mais de dez anos na Câmara Federal e é tema recorrente no Brasil. Em seu texto original enfatiza a “defesa e proteção dos direitos do nascituro”, a proibição do aborto mesmo nos casos permitidos no Brasil, e sua transformação em crime hediondo. A ele foram apensados outros projetos de lei18 que preveem pena de detenção de um a três anos para quem realizar pesquisa com célula-tronco; concede pensão à mãe que mantenha a criança nascida de gravidez decorrente de estupro; além de aumentar as penas para prática de aborto, incluindo como crime hediondo e estabelecendo penas para quem: “causar culposamente a morte de nascituro”; “anunciar processo, substância ou objeto destinado a provocar aborto”; “fazer publicamente apologia do aborto ou de quem o praticou, ou incitar publicamente a sua prática”; “induzir mulher grávida a praticar aborto ou oferecer-lhe ocasião para que o pratique”.
Atualmente, o PL se encontra em apreciação na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher (CMULHER), tendo recebido parecer favorável pelo relator, Dep. Diego Garcia, para quem o projeto se justifica uma vez que “a mulher grávida tem a própria dignidade ampliada e merece maior atenção do Estado, por trazer em si a renovação da humanidade. Se for vítima de violência, mais ainda. Para além da licença maternidade, deve haver sistemas de apoio à gravidez. A humanidade se reinaugura em um novo humano”.
No entanto, no limiar da “dignidade ampliada” se dá a ampliação da tomada do corpo pela política, típica de sociedades biopolíticas, nas quais “os direitos do homem representam, de fato, antes de tudo, a figura originária da inscrição da vida nua natural na ordem jurídico-política do Estado-nação” (AGAMBEN, 2015, p. 28). As disposições do PL, ao atuarem sobre a restrição/punição do aborto, e na intensificação da cesura biopolítica entre o feto/nascituro, digno de proteção, e o útero, mera vida, constituem a intensificação do dispositivo da reprodutividade e a ampliação da tomada dos corpos reprodutivos pelo biopoder.
Especificamente com relação ao aborto, é possível constatar que sua proibição na lei nunca levou a abolição da prática, como um imenso rol de pesquisas e dados tem demonstrado, especialmente o completo estudo realizado por Diniz, Medeiros e Madeiro (2017) na Pesquisa Nacional do Aborto. O que advém da normatização proibitiva, ao contrário, é mais uma tênue separação de classe e raça entre mulheres que possuem condições econômicas para exercê-lo de modo seguro, e aquelas que se submetem a matabilidade das práticas abortivas inseguras. Angela Davis (2016, p. 207), ao analisar o aborto nos Estado Unidos da década de 1970, já destacava esta questão ao afirmar que,
cerca de 80% das mortes causadas por abortos ilegais envolviam mulheres negras e porto-riquenhas, nos alerta a pensar que: Quando números tão grandes de mulheres negras e latinas recorrem a abortos, as histórias que relatam não são tanto sobre o desejo de ficar livres da gravidez, mas sobre as condições sociais miseráveis que as levam a desistir de trazer novas vidas ao mundo. As mulheres negras têm autoinduzido abortos desde a escravidão. Muitas escravas se recusaram a trazer crianças a um mundo de trabalho forçado interminável, em que correntes, açoites e o abuso sexual de mulheres eram as condições da vida cotidiana. (DAVIS, 2016, p. 207).
Assim, a vida de determinadas parcelas da população passa a valer somente no âmbito de sua exclusão, tal qual o homo sacer agambeniano. Este ser sagrado, segundo Agamben (2010), poderia ser morto sem que isso configurasse um ato de violação ou homicídio, pois sua vida se resumia a seu “caráter inumano”, embora não constituíssem uma vida sacrificável. Aqui, não há possibilidade de sacrificar uma mulher que abortou, mas é possível deixá-la morrer sangrando em hospitais por recusa de atendimento médico, ou fazê-la morrer ao provocar um procedimento abortivo com inserções de objetos pontiagudos em seu próprio útero.
No caso do aborto, a exceptio biopolítica apresenta contornos claros: tanto as mulheres que mais morrem, como aquelas que mais são criminalizadas tem um perfil definido: são mulheres jovens, negras, pobres, de baixa escolaridade, conforme diversas pesquisas têm apontado. Seja o relatório alternativo produzido pelo Comitê CEDAW (2012), em relação aos abortos inseguros, ou a pesquisa por Diniz e Medeiros (2012), dentre outras, há um padrão no apontamento de que, embora o aborto clandestino aconteça com mulheres de diversas classes, raças e lugares sociais, a maior precariedade, os maiores riscos, a maior taxa de óbito, os métodos mais perigosos, ou seja, as condições que fazem imperar a vida nua, incidem “em sua maioria, em mulheres de classes sociais mais baixas, com baixa escolaridade e baixos salários, e de modo peculiar sobre mulheres negras”. (COMITÊ LATINO AMERICANO E DO CARIBE PARA A DEFESA DOS DIREITOS DA MULHER et al., 2012, p. 18)19.
A lei, neste caso, ou os intermináveis debates sobre projetos de lei como o aqui analisado, longe de acabarem com a prática, configuram a construção de densas relações de poder que implicam na constituição de campos de soberania, e vidas nuas. A luta por sua criminalização ou descriminalização não é uma luta para que seja possível sua prática, mas a luta pelo acesso e inscrição na narrativa jurídica/política de sujeitos coletivos que buscam reconhecimento na interconexão entre as lógicas biopatriarcais de poder estatal. Por isso, mesmo sem ter sido aprovado, o PL ora analisado e o debate em torno dele intensifica a constituição das cesuras que conformam os campos de soberania e vida nua que buscamos desvelar. Nas palavras de Segato (2016, p. 123, tradução nossa) “a luta pela autorização ou não do aborto é nada mais nada menos que o confronto entre partes que pretendem afirmar sua existência e capacidade de influência no cenário nacional”20.
Conforme demonstram Miguel, Biroli e Mariano (2017), imersa nestes debates no Brasil está a construção de narrativas que consolidam o avanço de uma “frente estatal-empresarial-midiática-cristã, sempre patriarcal e permanentemente colonial” (SEGATO, 2016, p. 56, tradução nossa)21. Tais narrativas se inscrevem em corpos territórios, e estabelecem as formas de sua gestão, nas quais alguns, no caso, as milhares de mulheres pobres e em sua maioria negras que abortam clandestinamente estão destinadas a morte para que em seu corpo o poder soberano grave sua marca. Para além do útero, recortes como raça, classe social, idade, deficiência, região de nascimento, dentre outros contribuem para a constituição desta narrativa, que criminaliza e mata majoritariamente mulheres negras e pobres.
São estas as mulheres submetidas às agulhas de tricô introduzidas no útero, às beberagens com chás, às medicações como o “Citotec” introduzidas no canal da vagina que configuram as verdadeiras hystera homo sacer, vidas que, no cálculo do poder não possuem valor, sendo passíveis de sacrifício em nome de um “feto”. A morte destas eleitas, paralelamente a negativa à prática pelo Estado, figura como uma morte ou dor expressiva, um enunciado da soberania sobre a hystera homo sacer, que se dirige a vários interlocutores, transmitindo uma mensagem às mulheres e à toda a confraria biopatriarcalista sobre os signos de inclusão e exclusão que permeiam o recorte biopolítico da população.
Sutton (2017, p. 895, tradução nossa), analisando o caso das mulheres que abortam clandestinamente na Argentina, conclui que “elas afirmam seus direitos enquanto humanas, mas as custas de sua exclusão do corpo político (ou ao menos são incluídas através da exclusão)”22. Ao invés de poderem exercer seus direitos ao amparo da lei, são empurradas à margem das instituições - médicas, estatais - e de qualquer proteção. Neste sentido, afirma a autora, “sua condição de vida nua é mais que um conceito abstrato. A zona de clandestinidade é o que magnifica e encarna em termos práticos a tensão entre inclusão/exclusão - a forma degradada de cidadania outorgada às mulheres pelo Estado soberano (consagrada pela lei do aborto)” (idem)23.
O mesmo Estado que restringe os direitos básicos de autonomia corporal também expõe tais mulheres a violências que ameaçam sua integridade corporal e suas vidas. Portanto, ao contrário da ampliação da dignidade, prometida pelo relator, a narrativa do PL promove a precarização da vida. “O Estado soberano trata as mulheres como seres carentes de direitos fundamentais”24 e por meio da clandestinidade “as mulheres que praticam abortos clandestinos estão sujeitas à ‘intempérie’, expostas à violência e ao perigo e sem a proteção de um Estado soberano que cria as condições para a clandestinidade em primeiro” (SUTTON, 2017, p. 895, tradução nossa)25, habitando uma zona de indistinção nas quais podem ser mortas sem consequência, um limiar no qual direito e violência se encontram em uma lei que, sob a justificativa de fazer viver, acaba não só deixando, como fazendo morrer. Consolida-se, assim, o estado de exceção.
As mulheres que se submetem a abortos não permitidos estão, por definição, fora da lei, mas também estão condicionadas pela lei quando tomam decisões vitais sobre suas próprias vidas e corpos. Embora o poder soberano do Estado produz o mundo oculto da clandestinidade através da penalização do aborto, nos últimos tempos, o Estado tem começado a tornar visível sua presença em determinados pontos do processo de aborto, por exemplo, através de corporações pré e pós aborto, que gozam de diversos graus de aplicação e institucionalização (SUTTON, 2017, p. 895, tradução nossa)26.
A exceptio fica evidente quando confrontada com a contradição presente na atuação estatal: o mesmo Estado que proíbe o aborto, transformando mulheres em útero reprodutor e condenando aquelas que recorrem à prática a condição de vidas nuas, também esteriliza compulsoriamente mulheres indesejadas à reprodução, para que não tenham mais filhos27, ou impõe uma série de restrições às mulheres que desejam realizar uma esterilização como a laqueadura. Na síntese de Flávia Biroli (2016, p. 29), “entre as mulheres pobres, negras e indígenas da América, o racismo e o controle populacional fundamentaram políticas de controle que promoveram a esterilização”, de tal modo que eugenia, racismo e a busca do controle social da pobreza sempre acabaram fundamentando políticas que transformaram o corpo das mulheres em objeto de intervenções28.
No caso do Estatuto do Nascituro, o Estado parece criar uma fachada de responsabilidade a respeito da dignidade ou do valor intrínseco da vida. Segundo o parecer do Relator na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher,
é nossa responsabilidade como criadores de políticas públicas. Dar suporte aos direitos, atentar para a proteção dos mais vulneráveis, facilitar a percepção de seu valor, nas luzes e sombras da vida, ou, pelo contrário, defender a destruição do mais fraco, em situações complexas, em nome do interesse de minorias que, no caso, representam, de rigor, os mais fortes, em face dos humanos efetivamente mais vulneráveis da existência, por estarem absolutamente indefesos, reféns”29
Ademais de tais intenções, o que se verifica é que “a deriva mortal, a implicação da vida no poder soberano é [...] o verdadeiro significado da biopolítica. [...] a morte é o revés implícito de qualquer programa de proteção e produção da vida” (BAZZICALUPO, 2017, p. 95-96). Portanto, a partir da crítica biopolítica, o PL representa a relação entre poder soberano e produção de vidas matáveis, “nuas”, neste caso, a constituição da matabilidade pelo útero.
Exemplo desta constatação é o disposto em seu artigo 13, que concede ao “nascituro concebido em um ato de violência”, uma série de benefícios que, em última instância, visa coibir a prática do aborto nestes casos. Tais disposições renderam ao projeto o apelido de “Bolsa Estupro”, especialmente por propor criminalizar o aborto nos casos de gravidez resultante de agressão sexual, prevendo ao nascituro "direito a pensão alimentícia equivalente a 1 (um) salário mínimo, até que complete dezoito anos" e estabelecendo deveres ao estuprador identificado e seu direito a reconhecimento de paternidade.
Este dispositivo consolida a gestão biopolítica da reprodutividade a partir de uma aliança entre o dispositivo da sexualidade, no caso da cultura do estupro (NIELSSON; WERMUTH, 2018), e o dispositivo da reprodutividade, no caso da “bolsa estupro”. Isto, pautado por uma perversidade típica do biopatriarcalismo e da pedagogia da crueldade que se conjugam na completa redução deste corpo a condição de vida nua em função de seu gênero, seu sexo, e seu útero: a cultura do estupro coloca o corpo feminino como uma vida a disposição da satisfação dos desejos de poder masculino a obrigando a engravidar por meio de uma violência, e o dispositivo da reprodutividade a obriga a manter a gravidez, figurando como útero reprodutor do poder que a violou. Todo este processo consolida a exceptio: é o soberano quem decide sobre o uso do corpo e da sexualidade e do útero.
O estupro, cabe ressaltar, não é tido como um crime individual, mas como um crime público, político, pois, conforme sintetiza Rita Segato (2013, p. 20, tradução nossa) se dirige ao aniquilamento da vontade da vítima, cuja redução é significada “pela perda de controle sobre o comportamento de seu corpo e o agenciamento do mesmo pela vontade do agressor. A vítima é expropriada do controle seu espaço-corpo”30. Por isso a violação/estupro é o ato alegórico por excelência da soberania: poder e controle legislador sobre um território e sobre o corpo do outro anexado a este território, ou, como propusemos, a transformação do próprio corpo como espaço de atuação de poder.
O estupro, assim, conjuga em um único ato a dominação física e moral do outro, pois não existe poder soberano que seja somente físico. Sem a subordinação psicológica e moral o que subsiste é o poder de morte, e este não permite fazer viver. Sem domínio da vida a dominação não é completa, pois se consuma na exibição do poder de morte frente aos destinados a permanecerem vivos. Por isso, o “traço por excelência da soberania não é o poder de morte sobre o subjugado, mas sua derrota psicológica e moral, e sua transformação em audiência receptora da exibição do poder de morte discricionário do dominador” (SEGATO, 2013, p. 21, tradução nossa)31.
É justamente a qualidade de violência expressiva que visa exibir o controle absoluto de uma vontade sobre outra que qualifica o estupro. E com a lógica prevista no Estatuto do Nascituro, à dominação física e moral do outro proporcionada pelo estupro, alia-se a dominação reprodutiva, fazendo com que o fruto deste domínio figure como sua máxima expressão. O poder biopolítico une dominação física, moral e reprodutiva, na qual o feto torna-se o telos ou a finalidade da violência e do poder: a expressão viva de que se tem em mãos a vontade do outro, perpetuando a gestão populacional e o futuro deste poder. “Domínio, soberania e controle são seu universo de significação” (2014, p. 21, tradução nossa)32.
Se considerarmos que tal aliança se dá em plena vigência dos dispositivos e garantias constitucionais, legitimada pelo direito, seu portador, percebe-se que o dispositivo da reprodutividade consolida a gestão biopolítica dos corpos femininos através do estado de exceção. Neste caso, lei e violência, direito e força se confundem na redução das mulheres à seres precários: à uma mulher, supostamente uma cidadã plena sob a Constituição, cabe, pelo próprio direito, o mandato de realização de um “tributo sacrificial” (SUTTON, 2017, p. 296, tradução nossa)33.
É à consolidação deste mandato que o Projeto de Lei contribui. Um mandato que marca uma forma de exclusão da cidadania plena, uma exceção à universalidade dos direitos aos integrantes. O útero fertilizado ou não, parece aprisionar a própria pessoa na exceptio da plena cidadania e dos direitos humanos, e o dispositivo da reprodutividade leva a mensagem deque a mulher reprodutora deve ser reduzida a um ventre, sem subjetividades, desejos ou determinação sobre seu corpo. “Se ela há de permanecer dentro da lei, dentro do corpo político, então deve aceitar sua redução á ‘vida reprodutiva’.’” (SUTTON, 2017, p. 896, tradução nossa)34
E como o próprio Estatuto do Nascituro prevê, como parte deste pacto, o poder soberano estatal também diz a mulher que se ela se negar, poderá ser penalizada e mais que isso, poderia chegar a morrer, nos marcos da legalidade. Ao negarem-se a ser vidas reprodutivas, as mulheres entram em uma zona de tensão e indistinção entre inclusão/exclusão, justificada pelo poder normativo, que as incorpora excluindo, ou seja, que as inclui por meio da clandestinidade e da punição. Sob a vigência do estado de exceção, a vida nua do ser (zoé) é excluída da legalidade ao mesmo tempo em que é capturada e enclausurada em seu poder, e no limiar entre inclusão/exclusão, para a hystera homo sacer, é a punição que as inclui em um sistema que, até então, lhes legou a clandestinidade como destino inexorável ao cumprimento do papel reprodutivo.
O presente artigo buscou refletir sobre os modos pelos quais uma perspectiva biopolítica da reprodutividade poderia fundamentar uma reflexão crítica acerca do paradigma dos direitos reprodutivos da modernidade, considerando a relevância que a especificidade do corpo reprodutivo feminino vem adquirindo em um contexto de expansão da politização da vida natural e a inclusão implacável das mulheres no estado biopolítico. Diante deste quadro, buscou revisitar os referenciais teóricos de Michel Foucault e Giorgio Agamben, a fim de encontrar elementos capazes de contribuir para a análise da especificidade da atuação biopolítica sobre o corpo feminino, por meio do controle reprodutivo, e, de um modo mais profundo, para a compreensão da relevância que o controle reprodutivo representa para a perpetuação de um estado biopolítico.
Neste sentido, a partir da obra de Penelope Deutscher, procurou evidenciar que o referencial biopolítico indica um arcabouço de compreensão do dispositivo da reprodutividade, e de seu modo de atuação e produção de vidas nuas por meio do sexismo do útero, gerando verdadeiras hysteras homo sacer. Para compreender de que modo o dispositivo da reprodutividade age no Brasil, analisou, em um segundo momento, a regulação dos direitos reprodutivos e a política brasileira de gestão do aborto, a partir das disposições e dos argumentos envolvidos nos intermináveis debates em torno do projeto de Lei 478/2007, conhecido como Estatuto do Nascituro. Este projeto, e seu avanço na Câmara Federal pode ser considerado um símbolo desta centralidade do controle reprodutivo perpetuada pelo biopoder, demonstrando assim como se dá a constituição da reprodutividade, enquanto dispositivo, como uma substância geradora hysteras homo sacer.
Ao reivindicar a centralidade do corpo reprodutivo feminino e do útero como elemento biológico fundamental à manutenção do poder, tanto disciplinar quanto biopolítico, pode-se compreender as razões pelas quais o controle do corpo feminino e a gestão da reprodução têm se tornado espaço privilegiado de atuação do patriarcalismo conservador que tem avançado no Brasil. Como bem conclui Rita Segato (2018, p. 01, tradução nossa), a “pressão desenvolvida em todo o continente em demonizar e punir o que denominam de “a ideologia de gênero”, e a ênfase na defesa do ideal de família como sujeito de direitos a qualquer custo”35 precisam ser compreendidas como confirmação de que, “longe de ser residual, minoritária e marginal, a questão de gênero - a ordem patriarcal - é a pedra angular e centro de gravidade do edifício de todos os poderes”36, inclusive do poder soberano em sua versão biopolítica.
A partir de tais análises, conclui que a teoria crítica feminista pode se tornar paradigmática de toda teoria crítica, da mesma forma que o sujeito reprodutivo feminino, não um mero corpo universal e abstrato, mas aquele que em sua especificidade vivencia concretamente e de modos diferenciados a partir de marcadores sociais, especialmente de raça, classe e sexualidade, os arbítrios da reprodutividade, tenha se tornado o sujeito paradigmático do aprofundamento do estado biopolítico, em sua faceta patriarcalista. No espaço biopolítico representado pela exceção, no qual a inclusão e exclusão se dão pela vontade soberana, a vida de uma pessoa é tomada como um objeto de poder, corpo biopolítico e sem voz, tornando-se ponto de partida da soberania. No caso específico da hystera homo sacer, revela-se a perversidade de um processo no qual a inclusão de um corpo biológico, e seu órgão fundamental, o útero, ao sistema político normativo ajuda este próprio sistema a produzir vulnerabilidade e vida nuas.
O controle reprodutivo, assim, a partir do dispositivo da reprodutividade, possibilita a construção, inclusive normativa, mas também discursiva, das mulheres, e de algumas mulheres mais do que outras, como um gênero de segunda classe, na interseção entre o útero e outros eixos de desigualdade social e econômica - especialmente raça e classe - que estruturam diferentes graus de violência e vulnerabilidade. Como resultado desta tomada do corpo reprodutivo feminino pela biopolítica, tem-se a configuração de uma vida nua produzida no limiar entre gênero, sexualidade, útero e biopoder.