Resumo: O objetivo deste trabalho é analisar a experiência histórica dos movimentos de desobediência civil a partir de seus exercícios éticos prévios voltados ao preparo de si que funcionavam como fase fundamental para a prática da ação direta desobediente. Para tanto, lança mão das reflexões do Foucault tardio que, com o fim de pensar as possibilidades de rearticulação das relações de poder na estrutura socionormativa, explorou em seus últimos escritos a necessidade de um trabalho sobre si como condição ética para a atitude crítica e o desassujeitamento.
Palavras-chave: Desobediência civilDesobediência civil,ÉticaÉtica,FoucaultFoucault.
Abstract: The goal of this work is to analyze the historical experience of civil disobedience movements from their previous ethical exercises which aimed at self-preparation and functioned as a fundamental phase for the practice of the disobedient direct action. For this, we use the reflections of the late Foucault who, in order to think about possibilities of rearticulation of power relations in the socionormative structure, explored in his last writings the need for work on oneself as an ethical condition for a critical attitude and desubjection.
Keywords: Civil disobedience, Ethics, Foucault.
Artigo
Ética e a dimensão (des)constituinte da desobediência civil: uma leitura a partir de Michel Foucault
Ethics and the (dis)constituent dimension of civil disobedience: a reading based on Michel Foucault
Recepção: 17 Janeiro 2019
Aprovação: 08 Setembro 2019
Segundo o tradicional Dicionário de Política organizado por Norberto Bobbio, a desobediência civil pode ser compreendida como “uma forma particular de desobediência, na medida em que é executada com o fim imediato de mostrar publicamente a injustiça da lei, e com o fim mediato de induzir o legislador a mudá-la” (BOBBIO, 1998, p. 335). Tal definição traz um elemento crucial para se compreender a relação entre desobediência civil e o quadro jurídico constituído: diferentemente de uma mera contestação ou protesto, a desobediência civil é marcada pelo descumprimento da lei, com o objetivo de alterar o ordenamento jurídico, em parte ou na íntegra. Trata-se, portanto, de uma ação que tenta realocar o poder constituinte na dimensão da sociedade civil, despindo a lei de sua aura simbólica e tornando evidente que sua eficácia depende, em última instância, de sua observância pelos cidadãos. E é exatamente devido a essa instauração articulada do conflito, que escancara a natureza agonística do político e reativa a disputa acerca da normatividade que vinculará (ou não) as condutas de determinada comunidade, que a desobediência civil deve ser compreendida como um ato de (des)constituição, que inclusive pode se dirigir revolucionariamente à transformação do ordenamento político-jurídico em sua integralidade (como, por exemplo, na Índia de Gandhi), ao contrário do que consta do tímido conceito liberal apresentado por Bobbio, no qual a desobediência civil é apenas um mecanismo de autocorreção pontual de um ordenamento já dado.
Com efeito, esse caráter (des)constituinte originário da desobediência civil tem sido invisibilizado na medida em que, com o intuito de legitimar sua prática, a teoria jurídica a desloca do limiar político-jurídico para o interior da ordem constituída, o que por vezes acaba por turvar seu potencial revolucionário. Por esse motivo, é crucial revisitar algumas reflexões acerca da desobediência civil, com o objetivo de compreendê-la não enquanto mera expressão interna e corretiva do poder constituído, mas antes como prática originária de uma nova ordem político-social, potencialmente revolucionária e, portanto, (des)constituinte.
Nesse processo, algo que se destaca nas experiências históricas de desobediência civil é a preocupação interna aos movimentos de caráter ético, não apenas na dimensão dos valores que fundamentavam e orientavam suas posições, mas especialmente nos exercícios corporais praticados pelos seus integrantes como forma de preparo de si e constituição de uma subjetividade vinculada aos objetivos e princípios pelos quais se lutava.
Para analisar essa dimensão pouco explorada da desobediência civil, seguimos as pistas lançadas por Frédéric Gros em seu livro (Des)obéir, no qual o autor sugere que o ato da desobediência seja compreendido como atitude crítica nos termos traçados por Michel Foucault, ou seja, como uma insubordinação refletida voltada ao desassujeitamento e que exige um processo prático de subjetivação ética. Com isso, propomos então que a natureza (des)constituinte da desobediência civil torna-se clara quando focamos em sua dimensão etopoiética, visto que o estabelecimento de uma nova subjetividade é fundamental para se pensar uma nova ordenação social.
Assim, a primeira parte do trabalho contará com um breve levantamento das reflexões teóricas acerca da desobediência civil, com o objetivo de se apontar os problemas de algumas dessas abordagens clássicas. Em seguida, buscaremos na obra de Michel Foucault uma caixa de ferramentas para se pensar a desobediência civil, com destaque para suas reflexões tardias acerca das implicações entre ética e política, especialmente aquelas que aparecem ao final do curso de 1984, O governo de si e dos outros II: a coragem da verdade. Por fim, esclarecida a matriz filosófica a partir da qual sustentamos nossa hipótese analítica, voltaremos aos movimentos históricos de desobediência civil, salientando a importância de seus exercícios éticos para a ação (des)constituinte.
A ideia de desobediência civil2 se liga ao clássico ensaio de Henry David Thoreau Civil disobedience, de 1849, originalmente intitulado Resistance to civil government, no qual o escritor discorre sobre os motivos de não pagar os impostos devidos ao Estado que seriam direcionados para financiar a guerra expansionista contra o México. Porém, mais do que um mero exercício teórico-argumentativo, essa obra é um protesto político alinhado à própria prática do autor, que chegou a ser preso pelos atos de resistência que não apenas professava, mas também materializava por meio de suas ações.
Segundo Rafaelle Laudani, é importante que esse texto de Thoreau seja lido como uma tentativa de proteger o espírito original da Declaração de Independência Norte-Americana no contexto pós-revolucionário (2012, p. 121), configurando uma “reformulação da teoria moderna do direito de resistência baseada em uma concepção concreta da política e, de maneira mais específica, em uma interpretação particular da relação entre o indivíduo e as instituições políticas” (LAUDANI, 2012, p. 124).
Todavia, se com Thoreau a desobediência civil era pensada no âmbito puramente individual e diretamente relacionada à objeção de consciência, no seu desenrolar histórico o conceito passou a se ligar cada vez mais a ações de dimensão coletiva. Tanto que, no século XX, tal prática passa a ser associada à noção de ação direta, à negativa de participação política que se daria simplesmente por meio do voto - e que implica a representação do indivíduo por uma autoridade externa -, convertendo grupos organizados em protagonistas das mudanças que se deseja alcançar, e se colocando como uma alternativa ao reformismo proposto pela via instrumental dos partidos políticos (LAUDANI, 2012, pp. 128-129). Tal é a vertente inaugurada por Mahatma Gandhi na luta pela independência indiana, e continuada por Martin Luther King na batalha pelo fim do segregacionismo e em prol do reconhecimento dos direitos civis das pessoas negras nos Estados Unidos. Em ambos os casos, a coletividade, a publicidade, a ilegalidade e o caráter pacífico da desobediência civil tornam-se elementos essenciais do conceito3.
Na medida em que a desobediência civil é redefinida, passando de um mero ato individual de objeção de consciência para uma prática coletiva calcada em valores compartilhados, ela é percebida a partir de uma concepção de pertencimento comum em um contexto social plural (LAUDANI, 2012, pp. 145-146). Configura-se então uma espécie de prática em que, por meio da instauração de conflitos capazes de evidenciar a arbitrariedade de certas discriminações, uma minoria constitui sua subjetividade em torno de uma identidade. Tal se dá com o objetivo de convertê-la em uma política de reconhecimento para assim redefinir os limites de sentido relativos ao pertencimento a uma comunidade política democrática. Dessa forma, a principal estratégia da desobediência civil passa a ser o recurso a valores fundamentais, naturais e não positivados para questionar a lei injusta.
Por conseguinte, uma das principais características da desobediência civil é que ela toma como base para a ação princípios socialmente valorizados, princípios esses que seriam, em tese, fundadores do ordenamento político-jurídico. E é exatamente por isso que, ainda que formalmente ilegal, ela tem a pretensão de ser considerada legítima, consubstanciando-se como um dever cidadão a ser reconhecido pelo maior número possível de pessoas - inclusive pelas autoridades públicas -, não se confundindo com a mera negação individualista da lei ou com a desobediência criminal.
O problema que se coloca é que, uma vez que a justificativa em tais bases axiológicas encontra respaldo nos fundamentos positivados pelo Estado Democrático de Direito, não demorou muito para que a desobediência civil passasse ser analisada pelas tradições políticas liberal e constitucionalista como um instrumento de autocontrole, um mecanismo estrutural de correção da ordem político-jurídica, a ser usado em situações específicas. Tratar-se-ia de um instrumento de reajuste das engrenagens próprias de um sistema que se revela desvirtuado dos seus princípios fundamentais, com o intuito de corrigir o poder constituído e assim evitar que ele se transforme em mecanismo de opressão.4
Em outras palavras, a desobediência civil passou a ser pensada como uma prática cidadã legítima de interpretação da lei (DWORKIN, 1978), porém, que só teria lugar em uma sociedade quase justa, bem-ordenada em sua maior parte (RAWLS, 2000, p. 402), de modo que para a prática da desobediência civil seria necessário que os cidadãos reconhecessem e aceitassem a legitimidade da Constituição (RAWLS, 2000, p. 403). Com isso, a desobediência civil deixa de ser uma forma de despotencialização do poder governamental e de questionamento de sua forma geral instituída.
É inegável que tal perspectiva teve um importante papel legitimador da desobediência civil no discurso público, na medida em que a diferencia da mera ação criminosa.5 No entanto, ao inscrevê-la nos limites do poder constituído, os autores liberais e constitucionalistas acabam por negar seu potencial de mudança radical ao apartá-la dos atos de caráter revolucionário, modificando estruturalmente seu sentido original (LAUDANI, 2012, p. 141). Em outras palavras, ao ser analisada dentro de critérios aceitáveis de estabilização do poder constituído, seu caráter emancipatório é reduzido (MATOS, 2016, p. 54).
É preciso, portanto, repensar a desobediência civil não simplesmente como estratégia de pressão política, mas enquanto “mecanismo político-jurídico constituinte de novas possibilidades de vivência social” (MATOS, 2016, p. 65), dotado da força (des)constituinte necessária “para se abater o poder constituído e substituí-lo por um poder constituinte contínuo e permanente” (MATOS, 2016, p. 75). Em outras palavras, em um contexto democrático a desobediência civil deve ser compreendida “enquanto fonte de juridicidade e não seu resultado ou seu produto” (MATOS, 2016, p. 79).
Para tanto, uma interessante via seria analisar a prática da desobediência civil a partir dos exercícios éticos que orientavam e fortaleciam os integrantes do movimento para as ações diretas. Isso porque tais preparos corporais tinham por fim trabalhar o vínculo desses sujeitos à nova política de valores pela qual estavam dispostos a lutar, provocando um deslocamento subjetivo fundamental para a constituição de novas formas de ser em sociedade.
Esse tipo de enfoque nos processos de subjetivação, voltados à transformação dos sujeitos e à produção de uma resistência refletida, foi profundamente explorado por Michel Foucault em seus últimos trabalhos, nos quais buscava estabelecer uma relação entre ética e política, motivo pelo qual retomaremos seus estudos visando tomá-los como ponto de ancoragem para então continuarmos nossa análise da desobediência civil.
O problema previamente levantado de se pensar a desobediência civil a partir de um campo de valores transcendentes no qual se identificaria um ideal de justiça é tangenciado por Michel Foucault, ainda que de forma pouco aprofundada, no debate de 1971 com Noam Chomsky acerca da justiça e da natureza humana.
Em determinado momento do debate, Chomsky traz à tona as experiências norte-americanas de desobediência civil, classificando-as como uma espécie de trabalho de delimitação da legalidade por parte da sociedade para além das formas político-institucionais. Em outras palavras, para o filósofo norte-americano “a lei representaria uma gama de valores humanos a serem respeitados” (FOUCAULT, 1994, p. 500), valores esses que, diante de alguns casos (como o do Pentagon Papers6 e da Guerra do Vietnã), e quando corretamente interpretados, permitiriam razoavelmente que os comandos do Estado entendidos pela sociedade como criminosos fossem contornados, de modo que, em última instância, a decisão acerca da justiça não caberia ao poder constituído. Nesse sentido, aproximando o legal e o justo, Chomsky se negava a compreender a desobediência civil como ação ilegal, pois sua prática estaria de acordo com ideais verdadeiros de justiça, voltados a satisfazer desejos fundamentais à natureza humana (FOUCAULT, 1994, pp. 505-506).
Exposto esse raciocínio, Foucault se inquieta e se contrapõe à proposta de Chomsky de pensar a articulação das lutas sociais a partir de um ideal de justiça mais puro do que aquele mobilizado pelo Estado, uma vez que a própria ideia de justiça deveria ser compreendida como instrumento de poder que também se coloca em jogo nesse campo de forças em combate. Foucault chama atenção para o fato de que a noção de justiça aparece tanto como exigência feita pela classe oprimida, quanto como justificativa usada pelos opressores, de modo que ela seria “uma ideia que foi inventada e implementada em diferentes tipos de sociedades como um instrumento de algum poder político e econômico, ou como uma arma contra este poder” (FOUCAULT, 1994, pp. 504-505). Assim, trazendo elementos que mais tarde fundamentariam sua concepção da sociedade em termos bélicos, Foucault propõe que “mais do que pensar as lutas sociais em termos de justiça, é preciso atentar para a justiça em termos de luta social” (FOUCAULT, 1994, p. 502).
Essa inflexão apresentada por Foucault deriva da premissa que rejeita a existência de uma natureza humana, em contraposição à ideia apresentada por Chomsky. Partindo do pressuposto de que a noção de sujeito abarca não somente a experiência interior do indivíduo consigo mesmo, mas também a experiência exterior constituída na relação do indivíduo com os outros, para Foucault o sujeito é, antes de tudo, um lugar que se ocupa, sendo sempre compreendido a partir de seus posicionamentos. Por conseguinte, sua empreitada filosófica toma o sujeito não como marco zero do conhecimento, sendo não o ponto de partida do saber, e sim o de chegada.
Em vez de assumir o sujeito como fundamento de todo conhecimento e princípio de significação, Foucault o percebe como resultado de processos de assujeitamento que se perfazem a partir de discursos e práticas que circulam na malha do social e que atuam, sobretudo, nos corpos dos indivíduos, vigiando, inspecionando, regulando e normalizando os movimentos e gestos corporais, produzindo um sujeito disciplinado a partir de um corpo docilizado. Em suma, trata-se de práticas e discursos que, calcados na produção de um saber e em um regime de verdade, produzem relações de poder nas quais o sujeito se encontra implicado.
Assim, opondo-se radicalmente à moderna concepção do “eu” expressa na tradicional filosofia do sujeito, ao invés de buscar uma suposta “natureza humana” para dela destilar uma noção de justiça universal, o objetivo de Foucault é antes o de compreender a constituição da ideia de natureza humana ao longo da história, buscando historicizar os diferentes modos pelos quais, na cultura ocidental, os seres humanos se tornaram “sujeitos”7 (FOUCAULT, 1993, p. 205; FOUCAULT, 1995, p. 231).
Tendo isso em mente, e como bem observa Geoffroy Lagasnerie em La dernière leçon de Michel Foucault, a rejeição de Foucault à proposta de análise de Chomsky nos envia para uma problemática cara ao pensamento do autor francês acerca dos instrumentos da crítica: os limites de se fundar os discursos de resistência e os movimentos de insubmissão em categorias jurídicas - como a de uma “verdadeira legalidade”, pautada em uma justiça “mais pura” -, uma vez que isso implicaria permanecer no interior do regime soberania/submissão, característico de um direito “verdadeiro”, “legítimo” e “racional”, sempre derivado de uma associação de sujeitos abstratos de direitos universais (2012, p. 61). Trata-se de uma crítica que acompanhará suas reflexões genealógicas acerca do direito até 1976, no curso Em defesa da sociedade, em que o direito aparece como a consolidação silenciosa do poder dos vencedores sob os vencidos, de modo que o correto seria examiná-lo não tendo em vista uma legitimidade a ser fixada, mas sob o enfoque das lutas que ele invisibiliza e “dos procedimentos de sujeição que ele põe em prática” (FOUCAULT, 1997a, p. 24).
Todavia, para os fins deste trabalho, não nos interessa percorrer o caminho traçado por Foucault acerca da inconveniência de se pensar as lutas sociais sob a chave do direito e da justiça, mas sim investigar quais são as alternativas a esse clássico modelo fornecidas pelo filósofo, com o intuito de transportar tais reflexões para o tema específico da desobediência civil.
Para tanto, é necessário darmos um salto temporal, de 1971 para os anos 1980, quando o problema de Foucault deixa de ser o da “obediência” e se torna o da “desobediência”. Isso porque é justamente nesse momento que podemos identificar na sua obra uma inflexão: da análise das relações de poder às quais tanto se dedicara nos anos 1970, o filósofo volta agora seu olhar para as lutas de resistência. E nesse processo, ao invés de analisar a razoabilidade dos discursos que as fundamentam ou suas condições de legitimidade, o que lhe interessa é compreender os campos de possibilidades a partir dos quais os sujeitos se constituem em direção à “inservidão voluntária”, à “indocilidade refletida” (FOUCAULT, 2015) que se dão justamente como atitudes críticas dirigidas contra as relações de poder constituídas nas quais esses mesmos sujeitos se encontram imiscuídos. Nesse movimento, Foucault é direcionado para o tema da ética, que será então explorada a partir do “cuidado de si” em sua forma helenística, ou seja, enquanto técnica através da qual os indivíduos atuavam sobre si mesmos objetivando a autotransformação em direção à autonomia. E é exatamente a partir dessa nova matriz de análise adotada por Foucault para refletir sobre as lutas contra as relações de poder e governo que veremos o filósofo Frédéric Gros repensar hoje o fenômeno da desobediência civil.
No curso de 1977/1978 lecionado no Collège de France e intitulado Segurança, território, população, Michel Foucault se dispôs a analisar a especificidade da arte de governar desenvolvida entre os séculos XV-XVI - constituinte do modelo de Estado administrativo do qual as sociedades ocidentais contemporâneas são herdeiras diretas -, indicando que tal fenômeno corresponderia a uma expansão na sociedade civil da atividade pastoral desenvolvida pela Igreja católica, correspondendo à laicização de uma espécie de condução das condutas que resultava no governo do todo, mas que se dava na orientação singularizada da vida cotidiana dos indivíduos.
Essa direção da consciência desenvolvida no campo da pastoral cristã, voltada à configuração da obediência e estranha à cultura antiga greco-romana, teria se deslocado do seu foco religioso e tomado uma dimensão macropolítica, configurando então o que Foucault chamou de “governamentalidade”. Assim, ao contrário da ideia corrente de que o Estado seria “um tipo de poder político que ignora os indivíduos, ocupando-se apenas com os interesses da totalidade”, Foucault sugere que o poder do Estado é, também, uma forma de poder individualizante (FOUCAULT, 1995, p. 236), que atribui a essa individualidade “uma nova forma, submetendo-a a um conjunto de modelos muito específicos” (FOUCAULT, 1995, p. 237).
Porém, enquanto investigava as especificidades das tecnologias de governo pastoral para melhor compreender a forma da governamentalidade moderna, Foucault constatou um interessante ponto de resistência a essa prática nos movimentos populares contra os processos de cristianização, que insistiam em suas práticas heréticas e rejeitavam um certo número de obrigações (como a da confissão imposta pelo Concílio de Latrão em 1215), e que buscavam nas Escrituras outras formas de se orientar eticamente. A esses fenômenos de insubmissão Foucault denominou “contracondutas” (FOUCAULT, 2004, pp. 195-232).
Essa descoberta reverberou intensamente em seus trabalhos subsequentes, provocando uma inflexão em suas pesquisas no sentido de não mais focar nas maneiras em que os sujeitos eram constituídos para a submissão nos processos de assujeitamento, mas sim nas formas em que poderiam se constituir para a prática da resistência. Nesse viés, uma conferência posteriormente intitulada O que é a crítica?, pronunciada na Société Française de Philosophie em maio 1978, mostra-se paradigmática para se compreender esse momento de virada nos trabalhos do filósofo.
Provocando uma verdadeira torsão da questão kantiana da crítica transcendental ao deslocá-la para o âmbito material das contracondutas, em O que é a crítica Foucault sugere que a postura crítica por excelência seria muito mais uma desobediência a priori do que um questionamento transcendental (GROS, 2006, p. 163). Para além do sentido puramente epistemológico, ela corresponderia mais a certa maneira de pensar, dizer e agir em relação a algo que existe em determinada sociedade e cultura, de modo que se mostraria como uma atitude, um “movimento pelo qual o sujeito se dá o direito de interrogar a verdade sobre seus efeitos de poder e o poder sobre seus discursos de verdade” (FOUCAULT, 2015, p. 39), configurando-se, portanto, como meio para um devir, um instrumento voltado a romper com a verdade estabelecida em diversos campos, dentre eles, o direito e as relações de governo. Assim, a atitude crítica deve ser concebida como “a arte de não ser governado de tal forma”, “em nome de determinados princípios”, “tendo em vista certos objetivos e por meio de certos procedimentos” (FOUCAULT, 2015, pp. 37-38), o que se dá como uma “empreitada de desassujeitamento em relação a um jogo de poder e verdade” (FOUCAULT, 2015, p. 42).
A atitude crítica não é um elemento autônomo, já que se exerce sempre em função de um domínio estabelecido e passível de rearticulação, tomando outros como referência, de modo que “a crítica universal e radical não existe” (FOUCAULT, 2015, p. 35). Todavia, ela também não deve ser entendida como um efeito causal e necessário de um horizonte de sentido estabelecido pela moderna afirmação de direitos fundamentais. Nas palavras de Foucault, ela deve ser compreendida como uma “experiência de acontecimentalização” (FOUCAULT, 2015, p. 51).
A ideia de “acontecimento” desempenha importante função operacional na obra de Michel Foucault. Concebido como objeto central e delineador de seu método histórico, ganha destaque em uma filosofia cujo dever consiste em fazer um diagnóstico da atualidade, uma “ontologia do presente” que coloca em evidência os rastros e as descontinuidades que se repetem e atravessam a história da nossa realidade. Todavia, seu sentido é impreciso, na medida em que sofre algumas modificações no decorrer da obra foucaultiana. Incialmente, em sua fase arqueológica, Foucault utiliza a ideia de acontecimento em seu diagnóstico das epistemes, referindo-se tanto às descontinuidades discursivas quanto às formações de novas regularidades práticas. Na sequência, sob uma perspectiva genealógica, o conceito se conecta às rupturas e rearticulações relativas às relações de força que se perfazem em sua microfísica do poder. Por fim, tais análises se ligariam a uma proposta de ontologia do presente e à pergunta sobre o que somos nós.8
Não obstante, apesar de tais alterações, é possível encontrar um eixo central no conceito a partir de seu uso, e que estaria ligado a uma compreensão de certos elementos ou momentos históricos como singulares, exatamente devido à sua capacidade de reestruturar a experiência social e produzir novas regularidades às quais o filósofo precisa estar atento. Tal definição basilar pode ser encontrada em um texto de 1970 intitulado Theatrum philosophicum, comentário aos livros de Gilles Deleuze, Diferença e repetição e Lógica do sentido.9
Elogiando a torsão que Deleuze provoca na tradição metafísica e na investigação ontológica, Foucault cuida especialmente do conceito de acontecimento que perpassa Lógica do sentido, apresentando-o como aquilo submerge a aparência, rompe os ligamentos com a essência e se mostra enquanto singularidade (FOUCAULT, 1997b, p. 48), ou seja, algo que não pode ser remetido às clássicas oposições entre particular e universal. O acontecimento não é o acidente da substância aristotélica, o simplesmente “feito” ou “vivido” conteúdo empírico da história, mas antes um “sempre efeito, perfeita e belamente produzido por corpos que se entrechocam, se misturam ou se separam” (FOUCAULT, 1997b, p. 54). É antes aquilo que deve ser desvinculado de uma análise puramente lógica calcada na contínua e simples díade causa/efeito, pois, na medida em que forma novas tramas, que funda novos sentidos e novas séries causais, o acontecimento se mostra mais complexo, correspondendo ao indefinido que se repete como singular universal (FOUCAULT, 1997b, p. 59).
Nessa mesma linha, na conferência O que é a crítica? Foucault explica como se dá esse estudo filosófico que toma o acontecimento como objeto, e que ele então chama de “procedimento de acontecimentalização”:
Eu disse anteriormente que, ao invés de apresentar o problema em termos de conhecimento e legitimidade, tratava-se de abordar a questão pela via do poder e da acontencimentalização. Mas veja, não é uma questão de fazer funcionar o poder entendido como dominação, controle, como um dado fundamental, um princípio único de explicação ou de lei incontornável; ao contrário, é uma questão de considerá-lo sempre como uma relação em um campo de interações, trata-se de pensá-lo em uma relação indissociável com as formas de saber, trata-se de pensá-lo sempre de tal maneira que nós o vejamos associado a um domínio de possibilidade e, consequentemente, de reversibilidade, de reversão possível.10 (FOUCAULT, 2015, p. 57, trad. nossa)
Essa compreensão do acontecimento e sua forma de análise traz consigo uma importante concepção ontológica, que toma por premissa que algo, por mais estável e fundamental que se mostre, “nunca é tal que não possa ser de uma maneira ou de outra” (FOUCAULT, 2015, p. 57), mas o é de certo modo exatamente por se tratar de uma singularidade que se fixou “a partir de suas condições de aceitabilidade e um campo de possíveis, de aberturas, de indecisões, de retornos e de deslocamentos eventuais que os tornam frágeis, que os tornam impermanentes, que fazem desses efeitos dos acontecimentos nada mais nada menos que acontecimentos” (FOUCAULT, 2015, p. 57).11
Assim, ainda que se dê em relação a dada estrutura de forças, Foucault salienta que a atitude crítica não se manifesta como simples negatividade. Não se limitando ao mero questionamento, ela se dirige a todos e a cada um, buscando constituir um consenso geral a partir de uma nova conversão à verdade, e formando com isso uma nova comunidade de aliados e adeptos no sentido da crítica posta. Há, portanto, um elemento constituinte na atitude crítica, na medida em que ela se perfaz como combate à ordem das coisas calcada na autoridade e na tradição, com o objetivo de compor uma nova forma de se viver em conjunto. Nas palavras de Foucault:
O enraizamento da crítica na história da espiritualidade cristã também explica que a atitude crítica não se contenta em demonstrar ou refutar de modo geral, ela não fala à uma plateia imprecisa, ela se dirige; se dirige a todos e a cada um; procura constituir um consenso geral ou pelo menos uma comunidade de conhecedores ou de espíritos esclarecidos. Ela não se contenta em ter dito de uma vez por todas o que tinha a dizer. Mas a se fazer entender, a encontrar aliados, a convertê-los à sua própria conversão, ter adeptos. Ela trabalha e luta. Ou melhor, seu trabalho é inseparável de uma luta contra duas ordens de coisas: por um lado, uma autoridade, uma tradição ou um abuso de poder; por outro lado, aquilo que é o seu complemento, uma inércia, uma cegueira, uma ilusão, uma covardia. Em suma, contra os excessos e pelo despertar.12 (FOUCAULT, 2015, p. 40. Nota de rodapé “a” do manuscrito, trad. nossa)
Trata-se, portanto, de um processo que visa à desconstituição com o fim de se instaurar uma nova política da verdade, algo que, todavia, exige um trabalho ético do sujeito sobre si mesmo.
Ressaltada a natureza da atitude crítica que aqui denominamos (des)constituinte, é extremamente interessante para os fins deste trabalho observarmos como Foucault aproxima a “crítica” à ideia de “virtude”, que seria radicalmente distinta daquela concebida pela matriz pastoral, cujas técnicas teriam se consolidado na política governamental moderna-ocidental do século XVI (FOUCAULT, 2015, p. 35). No texto O que é a crítica? Um ensaio sobre a virtude de Foucault, Judith Butler destaca essa aproximação, indicando que a ação contrária à regulação e à ordem consistiria em algo a ser cultivado e delineado como “uma estilização específica da moralidade” (BUTLER, 2013, p. 164).
Em outras palavras, a virtude expressa na atitude crítica consistiria exatamente na capacidade de o sujeito se afastar de uma obediência irrefletida à autoridade, a partir de um processo de desassujeitamento como ressubjetivação e autoconstituição de si que se daria como prática da liberdade. Por isso é preciso também salientar que, apesar de relacionadas por fazerem referência aos limites à condução da vida colocados pelos próprios indivíduos, a atitude crítica e as contracondutas não se confundem. Como bem observa César Candiotto, enquanto a primeira é estetizada e implica uma reflexão sobre o que acontece no presente, as contracondutas podem ser práticas refletidas ou irrefletidas (2013, p. 228).
Dessa maneira, não cabe dizer que o interesse de Foucault pela cultura greco-romana de si enquanto estética da existência deve ser compreendido como uma proposta de regresso à ética antiga como “alternativa” aos modelos morais contemporâneos. Porém, é bastante pertinente a ligação proposta por Arnold Davidson e Daniele Lorenzini entre a conferência de 1978 acerca da atitude crítica e os estudos que Foucault dedicou ao tema do cuidado de si (DAVIDSON, LORENZINI, 2015), sugerindo, com isso, uma tentativa do filósofo de mostrar a possibilidade de se construir uma “nova ética” (DAVIDSON, LORENZINI, 2015, p. 27) que, como veremos adiante com Frédéric Gros, servirá como campo de análise para se pensar a desobediência civil.
Identificando o tema do cuidado de si originariamente na cultura grega clássica, Foucault buscará mostrar como o preceito “cuida de ti mesmo” passará por diversas transformações desde seu momento socrático-platônico até a governamentalidade moderna de viés pastoral. No entanto, é na formulação do cuidado de si no período helenístico, justamente quando a Grécia é dominada primeiro pela Macedônia e depois pelo Império romano que Foucault encontra a formulação do preceito do cuidado de si como um modo de produção autônoma do eu mediante a experiência da alteridade. Tal se dava a partir de um conjunto de práticas que implicavam a estilização e a transformação do indivíduo por meio de uma série de exercícios espirituais - dietéticos, eróticos, políticos, meditativos etc. - voltados para o fortalecimento e a tonificação de um princípio autárquico.
O ponto chave que o filósofo salienta é que o cuidado de si naquela época deve ser compreendido como um exercício de subjetivação que excedia os limites do “conhece-te a ti mesmo”, demonstrando a cisão das “técnicas do eu” do período greco-romano com o estabelecido pelo “momento cartesiano”, quando o trabalho do sujeito sobre si se tornou meramente meditativo. Assim, sendo um preceito voltado para a produção de uma subjetividade autônoma, além dos exercícios espirituais voltados à observação de si - expressos na máxima “conhece-te a ti mesmo” -, o cuidado de si englobava também exercícios cujo objetivo era preparar o corpo, de modo a torná-lo mais resistente às adversidades. Ou seja, o páthos para a constituição do eu enquanto indivíduo livre incluía necessariamente um trabalho sobre o corpo, e não somente reflexões e exercícios mentais. Segundo Foucault: “o cuidado de si é uma espécie de aguilhão que deve ser implantado na carne dos homens, cravado na sua existência, e constitui um princípio de movimento, um princípio de permanente inquietude no curso da existência” (FOUCAULT, 2006, p. 11).
No entanto, é em sua formulação cínica que o cuidado de si assume uma dimensão militante associada às reflexões anteriores de Foucault acerca da atitude crítica. Isso porque o cuidado de si cínico se desprende de uma mera conformação do eu a uma série de valores, conectando-se à prática de uma provocação pública às convenções sociais, a um dever de tornar visível as contradições entre esses valores e o modo de vida costumeiramente vivido na cidade. E é nessa reversão escandalosa da “vida que obedece à lei” que o modo de ser cínico se perfaz como combate: combate contra costumes, contra convenções, contra instituições, contra leis, contra todo um estado de humanidade. Foucault explicita:
É um combate contra vícios, mas esses vícios não são simplesmente os do indivíduo. São os vícios dos homens, e são vícios que tomam forma, se baseiam [em] ou são a raiz de tantos hábitos, de maneiras de fazer, de leis, de organizações políticas ou de convenções sociais que encontramos entre os homens. [...] O combate cínico é um combate, uma agressão explícita, voluntária e constante que se endereça à humanidade em geral, à humanidade em sua vida real, tendo como horizonte ou objetivo mudá-la, mudá-la em sua atitude moral (ethos), mas, ao mesmo tempo e com isso mesmo, mudá-la em seus hábitos, suas convenções, suas maneiras de viver. (FOUCAULT, 2011, p. 247).
Nesse viés, o filósofo francês alinha o combate cínico à parresía em sua formulação socrática, ou seja, a um dizer verdadeiro de natureza ética que, apesar de se perfazer fora dos centros políticos institucionais, tem por fim estimular os cidadãos a cuidarem de si mesmos como uma forma indireta de modificar a cidade. Afinal, para cuidar dos outros, é preciso cuidar de si mesmo (FOUCAULT, 2011, p. 132), pois é preciso que o modo de ser do sujeito corresponda ao seu discurso de verdade (FOUCAULT, 2011, p. 126). Logo, a parresía exige a virtude da coragem e um fortalecimento de si que se dá por meio do cuidado com o modo de ser, por uma arte da existência que se expressa na maneira como se vive a vida verdadeira em oposição à “vida que obedece a lei”. E é por isso que, para Foucault, o cinismo corresponde não a uma escola ou a uma categoria filosófica específica, mas a um modo de vida vinculado a um dizer a verdade tão corajoso que beira a insolência (FOUCAULT, 2011, p. 144).
Tomando essa reversão escandalosa da “vida que obedece à lei” como elemento chave para a (des)constituição das relações de governo, Foucault apresenta o modo de ser cínico como um militantismo, identificando a vida revolucionária com uma de suas continuidades transhistóricas na modernidade (FOUCAULT, 2011, p. 162). Aproximando o termo “nomisma” (moeda) de “nómos” (lei), o filósofo sugere que a máxima cínica de “mudar o valor da moeda” implicava certa atitude crítica em relação às convenções, regras e leis, e que era autenticada pela maneira como se vive (FOUCAULT, 2011, pp. 209-210). Por meio do escândalo de viver a “vida verdadeira”, pelo exemplo da “vida soberana”, o cuidado de si cínico tinha por princípio e função desvelar a artificialidade no exercício de qualquer poder de alguns sobre outros. Porém, assim como a atitude crítica não se exaure em mera ação desconstituinte das relações de governo que desagua em um campo anômico, Foucault também ressalta que a militância cínica não é pura negatividade: “é uma militância que pretende mudar o mundo” (FOUCAULT, 2011, p. 268, nota de rodapé) mostrando, na prática, a existência possível da “vida outra”. Em suma,
essa prática da verdade caracterizadora da vida cínica não tem por objetivo simplesmente mostrar que o mundo só poderá alcançar sua verdade, só poderá se transfigurar e se tornar outro para alcançar o que ele é em sua verdade à custa de uma mudança, de uma alteração completa, a mudança e a alteração completa na relação que temos conosco. E é nesse retorno a si, nesse cuidado de si, que se encontra o princípio da passagem para esse mundo outro (FOUCAULT, 2011, p. 278).
Como vimos, em 1971 Foucault se recusa a analisar as práticas de desobediência civil à luz de uma matriz ética tradicional, em que valores universais de justiça provenientes de uma suposta “natureza humana” balizariam a legitimidade ou não da ação. Já em 1984 ele apresenta uma matriz ética diferente para se pensar a ação militante, desvinculada de figura de um sujeito universal fundador. Porém, ainda que Foucault não tenha aproximado explicitamente essa ética de viés cínico à prática da desobediência civil, é possível tomá-la como uma figura do “cinismo transhistórico”, ou seja, como um eco dessa prática política que visa à transformação das condições de vida, conforme ele sugere em seu último curso (LORENZINI, 2015, p. 257).
É justamente nesse sentido que o filósofo francês Frédéric Gros, em sua recente obra (Des)obedecer, retoma o estudo foucaultiano acerca da atitude crítica, especificamente na sua relação com o cinismo e sua maneira de combater o conformismo e as convenções sociais. Segundo Gros, a desobediência civil equivale à reativação da alegoria do contrato social, tornando-o palpável não em sua dimensão securitária e calcada na interdição, mas sim enquanto momento democrático agonístico de constituição e estabilização social. Em suas palavras:
A desobediência civil é baseada na constituição de uma expressão coletiva de recusa de ser “governado de determinada forma”. Para além das posições individuais expressas por cédulas sabiamente inseridas na urna - por meio das quais gostaríamos de nos fazer acreditar que resumem a democracia -, é uma questão de retornar à essência viva do contrato: nós fazemos corpo, fazemos sociedade desobedecendo coletivamente, carregando um projeto alternativo de convivência, vibrando uma promessa social: a tecelagem das pluralidades, e não a construção de uma unidade de todos à custa da renúncia de cada um. Basicamente, o “contrato social”, esse grande mito político, essa história das origens, tem dois modos de existência opostos, irredutíveis. Pode existir como um princípio de legitimidade abstrata, referência obrigatória: “em nome” do pacto republicano, do contrato securitário, você não tem permissão para desobedecer. Então esse contrato, pura ficção reguladora, se faz sentir e conhecer por seus efeitos de realidade: a censura, a proibição, a prisão. Mas o contrato também existe no esplendor desses atos de desobediência concertada, em nome de uma sociedade mais justa e igualitária, em nome de um mundo fraterno e respeitoso. A desobediência civil manifesta a democracia transcendental. Atualiza o que nunca existiu e faz aparecer como sua sombra projetada neste momento de origem em que um coletivo decide seu destino, em que se decide para a humanidade o nobre sentido da política13 (GROS, 2017, p. 61, trad. nossa).
Todavia, em vez de tomar as contestações teóricas em sua relação com a ordem jurídica constituída, as demonstrações formais/discursivas que tecem argumentos sobre a inadequação axiológica de certas instituições político-sociais, Gros desloca sua análise do fenômeno da desobediência civil para o campo da práxis, focando na atividade dos corpos que expõem publicamente a contradição entre valores presentes nos discursos jurídico-morais, porém ausentes nas práticas cotidianas e políticas institucionais. Ou seja, ele salienta um importante aspecto específico dos movimentos históricos de desobediência civil, constantemente relegado a segundo plano por autores como Dworkin e Rawls em função do destaque dado à racionalidade do seu discurso: trata-se aqui do campo da ética enquanto prática preparatória, do elemento de conversão a si que implica a constituição de uma subjetividade conjunta como forma de incorporação da resistência e de materialização de seus ideais necessárias à prática da desobediência. Com isso, Gros se recusa a pensar a desobediência civil como instituto interno a uma ordem jurídica consolidada, deslocando-a para a esfera originária de uma normatividade que se constitui antes em termos de ethopoiesis, na relação do indivíduo consigo mesmo:
A desobediência não é nem mesmo um direito racionalmente derivado. A desobediência é um dever de integridade espiritual. Quando o Estado toma decisões injustas, quando ele se engaja em políticas injustas, o indivíduo não pode simplesmente se contentar em resmungar antes de ir dormir. O indivíduo não está simplesmente “autorizado” a desobedecer, como se fosse um direito que ele pudesse ou não pudesse apreender em nome de sua consciência. Não, ele tem o dever de desobedecer, permanecer fiel a si mesmo, não estabelecer entre ele e ele mesmo um divórcio infeliz. [...] A desobediência de Thoreau está enraizada em um trabalho ético em si mesmo, uma exigência interna refletida em suas longas caminhadas que equivalem às orações de Martin Luther King, ao fiar do algodão para Gandhi. Essa transformação, esse ascetismo, é a ética transcendental da desobediência civil. Não se desobedece autenticamente ao outro, aos outros, ao mundo como ele é, e finalmente a si mesmo como um hábito, senão a partir dessa conversão14 (GROS, 2017, p. 67, trad. nossa).
Isso não significa, é claro, que a desobediência civil deva ser igualada ao cuidado de si. Não. O cuidado de si é antes o primeiro passo para a dissidência cívica que, quando exercida em conjunto, é revolucionária (GROS, 2017, p. 80). O que Gros destaca é, portanto, a dimensão (des)constituinte da desobediência civil que está diretamente ligada a um trabalho sobre si, ao princípio ético de cuidado como processo essencial de ressubjetivação.
Na linha aberta por Gros, mas para além da relação feita por ele entre o cuidado de si e as longas caminhadas de Thoreau, os sermões pregados por Martin Luther King e a fiação do algodão de Gandhi, é possível ainda elencarmos, seguindo seu raciocínio, tanto o processo conhecido como satyagraha, empregado por Gandhi na sua campanha de independência da Índia, quanto a auto-purificação por ele ensinada e praticada por Martin Luther King, para ficarmos apenas nos casos mais exemplares15.
Podendo ser traduzida como a firmeza ou a constância da verdade, a satyagraha determina o princípio da não-agressão sem se confundir com a passividade, dado que se relaciona a uma forma de protesto não-violenta. Logo, é também uma atitude, uma maneira de viver que chama para si certa noção de verdade:
O compromisso da não-violência não exige que cooperemos em nossa humilhação. Portanto, não estamos obrigados a rastejar com nossas barrigas ao chão ou a desenhar linhas com nossos narizes ou a caminhar para saudar a Union Jack ou fazer qualquer coisa que seja degradante ditada pelos oficiais. Pelo contrário, nosso credo requer que nos recusemos a fazer qualquer uma dessas coisas, mesmo que devamos ser baleados. [...] E assim como precisamos da tranquila coragem descrita acima, precisamos de perfeita disciplina e treinamento em obediência voluntária para podermos oferecer desobediência civil. A desobediência civil é a expressão ativa da não-violência. A desobediência civil distingue a não-violência do forte e aquela do passivo16. (GANDHI, 1951, p. 57)
Como observa Orazio Irrera, na medida em que a colonização da Índia se encarregou da vida e do modo de ser dos colonizados, foi também nesse plano que ela foi desafiada, na constituição de uma força moral que se transformava em ação e teve efeitos políticos concretos (IRRERA, 2017, pp. 208-209). Por meio desse ascetismo, dessa estilização concreta das condutas, o movimento de desobediência civil na Índia se produziu a partir de uma ressubjetivação ética no sentido da descolonização. Afinal, a prática do satyagraha implica, em seu cerne, não uma simples renúncia, mas um fortalecimento de si que exige um trabalho de obediência a regras autoimpostas, um fortalecimento moral ligado a uma série de exercícios de disciplina corporal que passam pela dietética, a castidade e o desapego dos bens materiais.
Para este exercício, o treinamento prolongado da alma individual é uma necessidade absoluta, de modo que um perfeito satyagrahi tem que ser quase, se não inteiramente, um homem perfeito. Não podemos todos de repente nos tornar tais homens, mas se a minha proposição estiver correta - como eu sei que está correta - quanto maior o espírito de satyagraha em nós, melhores homens nos tornaremos. Seu uso, portanto, penso eu, é indispensável, e é uma força que, caso se tornasse universal, revolucionaria os ideais sociais e eliminaria os despojos e o crescente militarismo sob os quais as nações do mundo ocidental estão gemendo e quase sendo esmagadas até à morte, o que certamente promete subjugar até mesmo as nações do Oriente.17 (GANDHI, 1951, pp. 35-36, trad. nossa)
O sucesso da experiência indiana a partir do satyagraha se refletiu ainda no processo de autopurificação para a prática da desobediência civil contra a discriminação racial nos Estados Unidos. Tendo em mente o autocontrole e a resistência exigidos nas marchas e campanhas dos sit-ins,18 na Carta do cárcere de Birmingham Martin Luther King descreve a autopurificação como um dos quatro passos básicos para qualquer campanha pacífica de ação direta, já que era necessário preparar os corpos daqueles que se envolveriam na ação direta para que fossem capazes de receber golpes sem retaliar ou para resistir à provação da cadeia, tal como fez Luther King em diversas ocasiões. Essa etapa de preparação que trabalhava os corpos como instrumentos de exposição da injustiça era de extrema importância, na medida em que esses eram captados pelos meios de comunicação e suas imagens tocavam diretamente a opinião pública. Porém, para que tal estratégia rendesses os frutos devidos, era necessário questionar: “saberás aceitar os golpes sem devolvê-los? Saberás vencer a prova do encarceramento?” (KING, 2014, pp. 28-29). Era o que perguntava o Dr. King em seus seminários sobre autodisciplina para ação direta.
Para além das reflexões teóricas acerca da justiça, um estudo sobre a desobediência civil não pode se furtar à análise de suas dimensões práticas e históricas. Nessa esteira, desvela-se a necessidade de superarmos as abordagens que tomam a desobediência civil como mero instituto com função corretiva interna ao poder jurídico constituído, face aos riscos de, na ânsia procedimentalista que marca o Estado Democrático de Direito, limitar tal concepção e assim conter suas potências (des)constituintes. Como uma das alternativas possíveis, vislumbramos nas reflexões éticas de Michel Foucault instrumentos apropriados para se pensar a desobediência civil enquanto acontecimento e como expressão de uma atitude crítica que, como tal, assume a forma da parresía cínica, ou seja, do combate que se dá com a adequação do modo de ser com o discurso de verdade que se busca estabelecer, revertendo com isso as relações de força constituídas.
Assim, ainda que Foucault não tenha analisado os movimentos de desobediência civil em si mesmos, é possível pensá-los à luz de suas reflexões acerca das práticas e si e do papel que o trabalho ético desempenha nas lutas políticas. Dessa forma, abre-se um novo campo de abordagem que, ao invés de alocar a desobediência civil no quadro da legitimidade e da legalidade, busca compreendê-la a partir dos atos que engendram a constituição de subjetividades insurgentes e (des)constituintes.