Resumo: Uma série de estudos marxistas importantes sobre a lógica do capital foram produzidos nas últimas décadas, assim como inúmeras investigações de teóricos pós-coloniais sobre as narrativas que estruturam a discriminação racial e étnica. Com muita frequência, no entanto, essas duas correntes assumiram trajetórias diferentes ou mesmo opostas, tornando ainda mais difícil transcender as análises unilaterais reducionistas de classe e as afirmações de identidade igualmente unilaterais que contornam ou ignoram a classe. À luz da nova realidade produzida pela profunda crise do neoliberalismo e pela iminente desintegração da ordem política que tem definido o capitalismo global desde o fim da Guerra Fria, chegou a hora revisitar abordagens teóricas que podem ajudar a delinear a integralidade da raça, da classe e do capitalismo.
Palavras-chave: RaçaRaça,RacismoRacismo,FanonFanon,MarxMarx,MarxismoMarxismo,Teoria pós-colonialTeoria pós-colonial,NegritudeNegritude,ÁfricaÁfrica.
Abstract: The last several decades have produced a slew of important studies by Marxists of the logic of capital, as well as numerous explorations by postcolonial theorists of the narratives that structure racial and ethnic discrimination. Far too often, however, these two currents have assumed different or even opposed trajectories, making it all the harder to transcend one-sided class-reductionist analyses and equally one-sided affirmations of identity that bypass or ignore class. In light of the new reality produced by the deepening crisis of neoliberalism and the looming disintegration of the political order that has defined global capitalism since the end of the Cold War, the time has come to revisit theoretical approaches that can help delineate the integrality of race, class and capitalism.
Keywords: Race, Racism, Fanon, Marx, Marxism, Postcolonial Theory, Negritude, Africa.
Traduções
Racismo e a Lógica do Capital: Uma Reconsideração Fanoniana**
Racism and the Logic of Capital: A Fanonian Reconsideration
O surgimento de uma nova geração de ativistas e pensadores antirracistas que combatem o abuso policial, o complexo industrial prisional e o racismo enraizado nos EUA, juntamente com a crise sobre a imigração e o crescimento do populismo de direita na Europa e em outros lugares, torna este um momento crucial para desenvolver perspectivas teóricas que conceitualizam raça e racismo como parte integrante do capitalismo, indo além da política de identidade que trata essas questões principalmente em termos culturais e discursivos. As últimas décadas produziram uma série de estudos marxistas importantes sobre a lógica do capital, bem como inúmeras investigações de teóricos pós-coloniais sobre as narrativas que estruturam a discriminação racial e étnica. Com muita frequência, no entanto, essas duas correntes assumiram trajetórias diferentes ou até opostas, tornando ainda mais difícil a superação de análises unilaterais reducionistas sobre a classe e de afirmações de identidade igualmente unilaterais que ignoram ou se desviam da classe. À luz da nova realidade produzida pela profunda crise do neoliberalismo e pela iminente desintegração da ordem política que definiu o capitalismo global desde o final da Guerra Fria, chegou a hora de revisar abordagens teóricas que podem ajudar a delinear a integralidade da raça, da classe e do capitalismo.
Poucos pensadores são mais importantes nesse aspecto do que Frantz Fanon, amplamente considerado um dos autores mais criativos do século XX no que tange à raça, ao racismo e à consciência nacional. O esforço de Fanon para “distender ligeiramente” (como ele dizia) “as análises marxistas (...) cada vez que abordamos o problema colonial”1 representou uma tentativa importante de elaborar a dialética de raça e classe por meio de uma estrutura teórica coerente que não dissolvesse uma na outra. Isso pode ajudar a explicar o atual ressurgimento do interesse em seu trabalho. Pelo menos cinco novos livros sobre Fanon foram publicados em inglês nos últimos dois anos2 – além de uma nova coleção de 600 páginas em francês de seus escritos inéditos ou indisponíveis sobre psiquiatria, política e literatura3. Embora Fanon tenha permanecido como uma forte referência por décadas, é impressionante a extensão desse verdadeiro renascimento do interesse em seu pensamento. Isso também pode ser percebido nas muitas vezes em que suas palavras apareceram em pôsteres, panfletos e mídias sociais durante o ano passado, através daqueles que protestavam contra o abuso policial, o sistema de injustiça criminal e o racismo dentro e fora dos campi das universidades4.
Estas redescobertas constantes do trabalho de Fanon marcam uma ruptura radical com o teor dos debates entre os teóricos pós-coloniais ao longo das últimas décadas – quando o assunto predominante parecia ser se ele era ou não um “prematuro pós-estruturalista”5. Se alguém se limitar a tais discussões acadêmicas, pode sair pensando que a validade do corpo de trabalho de Fanon se baseia na extensão em que ele conseguiu desconstruir a unidade do sujeito colonial em nome da alteridade e da diferença6. No entanto, essas abordagens – algumas das quais chegaram ao ponto de afirmar até mesmo a discussão sobre o capitalismo ou sobre sua lógica unitária como uma capitulação ao imperialismo epistêmico – não poderiam estar mais longe dos motivos que impulsionam a renovação do interesse no legado de Fanon hoje7.
O que torna o trabalho de Fanon especialmente convincente é que o capitalismo contemporâneo está manifestando algumas das expressões mais flagrantes de animosidade racial que vimos em décadas. É preciso apenas observar os ataques a imigrantes de cor nos EUA e na Europa, o renascimento do populismo de direita e, acima de tudo, a ascensão de Donald Trump à presidência dos EUA. Isso levanta a questão de porque existe um ressurgimento do animus racial neste momento. Pelo menos parte da resposta é o trabalho de grupos como Black Lives Matter, Black Youth Project 100 e muitos outros que, ao se envolverem na política a partir de uma "lente feminista-negra-queer", jogam luz sobre as questões raciais de forma tão criativa quanto o movimento Occupy fez em relação à desigualdade econômica8. Em reação, um setor da sociedade burguesa decidiu abandonar a máscara da civilidade e reafirmar abertamente as prerrogativas da dominação masculina branca. O “Whitelash”9 está no banco do motorista – e não só nos EUA. Isso não deve surpreender, uma vez que as forças conservadoras sempre reagem quando um novo desafio a seu domínio começa a surgir.
O crescimento de contestações reacionárias ao neoliberalismo não está desconectado deste fenômeno. Ele exige uma séria reorganização do pensamento, uma vez que muitos concentraram tanta atenção na crítica ao neoliberalismo que pouco tiveram a dizer sobre a lógica do capital como um todo. Frequentemente se esquece que o neoliberalismo é apenas uma estratégia empregada pelo capitalismo em um ponto particular no tempo – como foi o keynesianismo em um ponto anterior. E, assim como o keynesianismo foi descartado quando deixou de cumprir seu propósito, o mesmo pode acontecer com o neoliberalismo hoje. O que derrubou o projeto keynesiano foi a crise de rentabilidade enfrentada pelo capital global na década de 1970. Os capitalistas responderam adotando o estratagema neoliberal como um meio de restaurar a lucratividade. Isso fez todo o sentido do seu ponto de vista, uma vez que é a rentabilidade – não a demanda efetiva– que em última análise determina o curso do desenvolvimento da sociedade capitalista10. As taxas de lucro aumentaram desde o início dos anos 1980 a 2000, uma vez que as forças da concorrência global, do livre comércio e da privatização foram liberadas, mas a maioria desses ganhos ocorreu no setor imobiliário e financeiro – onde a lucratividade do setor produtivo permaneceu em níveis historicamente baixos. E como grande parte do lucro do setor imobiliário e da financeirização não foi investido na economia real, houve um declínio, nas últimas décadas, na taxa de crescimento da produtividade do trabalho11. Isso pelo menos em parte explica a taxa anêmica de crescimento da economia mundial hoje, que está causando tanta angústia – não apenas entre os mais negativamente afetados por ela, mas também em setores da classe dominante que reconhecem cada vez mais que o “milagre” neoliberal provou ser como uma miragem.
Em muitos aspectos, isso estabeleceu o terreno para Trump. Sua vitória eleitoral (por mais pírrica que possa vir a ser) é um sinal de que um setor significativo da direita encontrou uma maneira de falar com segmentos descontentes da classe trabalhadora, lançando críticas ao neoliberalismo em termos racistas e misóginos – assegurando, ao mesmo tempo, que o capitalismo permanecesse inquestionável. Portanto, a oposição a essas tendências deve começar e terminar com uma rejeição firme e intransigente de qualquer programa, tendência ou iniciativa que, de qualquer maneira ou forma, faça parte ou corresponda – não importa quão indiretamente – a sentimentos racistas e/ou anti-imigrantes. Qualquer outra abordagem tornará mais difícil distinguir uma crítica genuína da desigualdade de classe, do livre comércio e da globalização das críticas reacionárias.
Por essa razão, manter a crítica do neoliberalismo como ponto crucial da oposição anticapitalista não faz mais sentido. Em vez disso, é necessário um ataque explícito ao núcleo interno do capitalismo – sua lógica de acumulação e alienação que está inextricavelmente ligada ao aumento do valor como um fim em si mesmo. E o racismo é parte integrante do impulso do capital em se auto-expandir.
O capitalismo surgiu primeiramente como um sistema mundial através do racismo antinegro gerado pelo comércio transatlântico de escravos, e desde então dependeu do racismo para garantir sua perpetração e reprodução12. Marx argumentou:
A escravidão é uma categoria econômica como qualquer outra (...) esclarecendo naturalmente que se trata apenas da escravidão direta, a dos negros no Suriname, no Brasil, nas regiões meridionais da América do Norte. A escravidão direta é o eixo da indústria burguesa, assim como as máquinas, o crédito, etc. Sem a escravidão, não teríamos o algodão; sem o algodão, não teríamos a indústria moderna. A escravidão deu valor às colônias, as colônias criaram o comércio universal, o comércio universal é a condição da grande indústria. Assim, a escravidão é uma categoria econômica da mais alta importância.13
Marx estava claramente ciente do papel peculiar desempenhado pela raça na escravidão americana – e não estava menos consciente do quão a escravidão baseada na raça era integrada às origens e ao desenvolvimento do capitalismo como um sistema mundial. Mas isso significa que o racismo integra a lógica do capital? O racismo pode ser um mero fator exógeno que é construído apenas em momentos específicos da história contingente do capitalismo? Certamente, é possível conceber a possibilidade de o capitalismo ter surgido e se desenvolvido como um sistema mundial sem a utilização da raça e do racismo. Mas o materialismo histórico não se preocupa com o que poderia ter ocorrido, mas com o que ocorreu e continua a ocorrer. Segundo Marx, sem a escravidão baseada na raça “não há indústria moderna”, “comércio mundial” – e nem capitalismo moderno. Portanto, a lógica do capital é, em muitos aspectos, inseparável de seu desenvolvimento histórico. Refiro-me não apenas aos fatores que levaram à formação do mercado mundial, mas ao papel da raça e do racismo em impedir a consciência de classe proletária, que funcionou como um componente essencial para permitir a atualização da acumulação de capital. Marx estava profundamente ciente disso, como pode ser visto em seus escritos sobre a Guerra Civil dos EUA e o impacto do preconceito anti-irlandês sobre o movimento dos trabalhadores ingleses14. Ele se deu ao trabalho de abordar essas questões no próprio O Capital, onde escreveu a famosa frase “O trabalho de pele branca não pode se emancipar onde o trabalho de pele negra é marcado a ferro”.15
O racismo não é e nunca foi uma característica epifenomênica do capitalismo. É integral ao seu próprio desenvolvimento. Portanto, já passou da hora de parar de nos apegar a noções como “não há questão racial fora da questão de classe”16 ou “a questão racial, embora importante, é secundária à classe”. Como o capitalismo foi moldado, desde o início, por fatores raciais, não é possível opor-se efetivamente a ele sem priorizar a luta contra o racismo. E por essa mesma razão, a situação atual também torna cada vez mais anacrônico sustentar formas de políticas de identidade que eliminem questões de classe e uma crítica do capital. O esforço para elevar a identidade étnica e a solidariedade às custas de um confronto direto com o capitalismo é inerentemente autodestrutivo, já que este último é responsável pela perpetração do racismo e pela marginalização dos povos de cor em primeiro lugar. Como a raça e o racismo ajudam a criar, reproduzir e reforçar uma série de hierarquias que são enraizadas na dominação de classe, as afirmações subjetivas de identidade que são divorciadas de um confronto direto ao capital inevitavelmente perderão sua potencialidade crítica e impacto ao longo do tempo.
A luta de classes e a luta antirracista têm um objetivo comum – pelo menos a partir de uma perspectiva fanoniana. É superar a alienação e a desumanização que definem a sociedade moderna, criando novas relações humanas – denominadas por Fanon de um "novo humanismo"17. Mas o caminho para esse objetivo nobre não é o de correr para o absoluto, como num tiro de pistola18. Isso só pode ser alcançado através da “seriedade, da dor, da paciência e do trabalho do negativo”19. Reconsiderar Fanon nesse nível pode nos trazer novos sentidos.
Fanon enfatiza repetidamente que o racismo antinegro não é natural, mas está enraizado nos imperativos econômicos do capitalismo – começando com o comércio transatlântico de escravos e estendendo-se ao neocolonialismo atual. Como ele escreve em Peles Negras, Máscaras Brancas, “Inicialmente, econômico. Em seguida, pela interiorização, ou melhor, pela epidermização dessa inferioridade”20. Ao mesmo tempo, sustentava que o racismo não pode ser combatido apenas em termos econômicos ou de classe, uma vez que maneiras racializadas de “ver” e de ser podem ganhar vida própria e impactar drasticamente a vida psíquica, interior, do indivíduo. Tanto o sujeito preto quanto o branco são impactados e moldados pela dominação de classe, mas a experimentam de maneiras radicalmente diferentes. Qualquer esforço para ignorar ou subestimar essas diferenças cruciais em prol de uma "unidade" fictícia que se abstrai delas está fadado ao fracasso quando se trata de uma parcela significativa dos despossuídos. Por esses motivos, Fanon insistiu que ambos os lados – o econômico e o cultural/psíquico – devem ser combatidos em conjunto. Como ele disse, “O negro deve travar a luta em dois níveis: embora historicamente esses níveis sejam mutuamente dependentes, qualquer liberação unilateral é falha, e o pior erro seria acreditar em sua dependência mútua automática ... É preciso encontrar uma resposta no plano objetivo e no nível subjetivo”21.
Para Fanon, o que torna o racismo especialmente mortal é que ele nega o reconhecimento da dignidade e da humanidade do sujeito colonizado. Como resultado, o último experimenta uma “zona do não-ser” – uma negação de sua própria humanidade. Ele chama isso de “uma região extraordinariamente estéril e árida, uma rampa essencialmente despojada, onde um autêntico ressurgimento pode acontecer.”22. É uma zona de depravação que torna implausível qualquer “ontologia da negritude”. O negro não é visto como humano precisamente por ser "visto" – não uma vez, mas repetidamente – como negro. A mente colonial não "vê" o que pensa que vê; fixa seu olhar não na pessoa real, mas em uma imagem reificada que a obscurece. Para o colonizador, o negro não é realmente nada. No entanto, essa zona do não-ser de forma alguma consegue apagar a humanidade dos oprimidos. A negação da subjetividade do sujeito nunca pode ser completamente consumada. Isso porque, como Fanon nunca deixa de nos lembrar, “o homem é um sim vibrando com as harmonias cósmicas”23.
Sobre esta questão, existem paralelos surpreendentes entre as obras de Fanon e de Marx – mesmo que raramente sejam reconhecidos. No primeiro ensaio em que proclamou o proletariado como a classe revolucionária, Marx a definiu como uma classe da sociedade civil que não é uma classe da sociedade civil24. O proletariado vive na sociedade civil, mas, diferentemente da burguesia, sua substancialidade não é confirmada nela. Como os trabalhadores são privados de qualquer conexão orgânica com os meios de produção, sendo reduzidos, em seu ser, a meros vendedores de força de trabalho, eles se vêem alienados da substância da sociedade civil. Isso ocorre porque o que importa para o capital não é a subjetividade dos trabalhadores vivos, mas sua capacidade de aumentar a riqueza em termos abstratos e monetários. Existe apenas um "fim autossuficiente" no capitalismo – e esse é o aumento do valor (abstrato) às custas do trabalhador. Na medida em que a subjetividade do trabalhador se torna completamente subsumida pelos ditames da produção de valor, o trabalhador habita uma zona de negatividade. Ele é desumanizado na medida em que a sua atividade “não é a sua autoatividade. Ela pertence a outro, é a perda de si mesmo”25. O auto-estranhamento é, portanto, integral a dominação do capital. Isso cria um inferno em vida, mas é também o que torna o proletariado potencialmente revolucionário, já que não tem nada a perder além de seus grilhões. Mas, o que têm a ganhar com isso? A resposta é o comunismo, definido por Marx como a “suprassunção (Aufhebung) positiva” do “estranhamento-de-si (Selbstentfremdung) humano (...) o retorno pleno, tornado consciente e interior a toda riqueza do desenvolvimento até aqui realizado, retorno do homem para si enquanto homem social, isto é, humano”. Como o capitalismo desumaniza o trabalhador, a alternativa ao capitalismo é nada menos que um novo humanismo: “Esse comunismo é, enquanto naturalismo consumado = humanismo, e enquanto humanismo consumado = naturalismo”26.
Isso está muito longe de qualquer humanismo abstrato e desprovido de classe, pois para Marx apenas o proletariado tem “a consistência, a penetração, a coragem e a intransigência” que fazem dele “o representante negativo da sociedade”. Só ele possui “aquela genialidade que anima a força material a tornar-se poder político, aquela audácia revolucionária que lança ao adversário a frase desafiadora: não sou nada e teria de ser tudo”27.
Mas como tudo poderia surgir do nada? Isso só é possível se não for o trabalho que toma a forma de uma mercadoria, mas, ao invés disso, a capacidade para o trabalho – a força de trabalho. Como Luca Basso coloca, “o capitalista compra algo que só existe como uma possibilidade, que é, no entanto, inseparável da personalidade viva do Arbeiter [trabalhador]”28. Se o trabalho fosse a mercadoria, a subjetividade do trabalhador seria completamente absorvida pela forma-valor e qualquer resistência interna a ela seria implausível. Toda a crítica de Marx à produção de valor – enraizada na contradição entre trabalho concreto e abstrato – procede do reconhecimento da tensão irredutível entre o sujeito e o esforço contínuo de subsumir sua subjetividade por formas abstratas de dominação. Aqui é onde o chamado “esotérico” e o “exotérico” convergem no trabalho de Marx.
Há mais do que um eco disso na afirmação de Fanon em Peles Negras, Máscaras Brancas, segundo a qual “a desalienação genuína só terá sido alcançada quando as coisas, em seu sentido mais materialista, tiverem retomado o seu lugar de direito”29. Mas Fanon também aponta para uma diferença fundamental entre opressão racial e de classe, na medida em que a primeira é mais profunda do que a luta de classes tradicional, uma vez que às pessoas de cor é negado mesmo um mínimo de reconhecimento quando as estruturas de dominação são sobredeterminadas por questões raciais.
As ideias de Fanon sobre esse assunto estão mais profundamente colocadas em sua discussão sobre a dialética do Senhor/Escravo de Hegel em Peles Negras, Máscaras Brancas. Hegel sustenta que o Senhor quer ser reconhecido pelo Escravo, pois sem esse reconhecimento ele é incapaz de obter um senso de autoconfiança e individualidade. Hegel reconhece, é claro, que o que o Senhor quer do Escravo, em primeiro lugar, é trabalho. No entanto, o Senhor ainda aspira a ser reconhecido por seus subordinados, pois ele, como todos os seres humanos, deseja obter um senso substantivo de si mesmo – e isso é algo que só pode ser proporcionado pelo olhar do outro. Então, o que acontece quando a dialética Senhor/ Escravo é estruturada em linhas raciais – algo que Hegel não considera? Fanon argumenta que a situação se altera radicalmente. O Senhor não está mais interessado em ser reconhecido pelo Escravo, assim como o Escravo não está mais interessado em reconhecê-lo. Isso ocorre porque quando o Senhor é branco, ele não vê o negro nem potencialmente como humano30. Como todos os senhores, ele quer trabalho de seu escravo; mas quando a raça entra em cena, é tudo o que ele quer – ele nega ao Escravo mesmo o grau mais básico de reconhecimento.
Na verdade, as coisas são muito mais claras quando a raça não informa a relação de classe. O capitalista "se preocupa" com o trabalhador apenas na medida em que ele fornece trabalho – e se o último puder ser alcançado sem ele, o capitalista terá prazer em demiti-lo e empregar uma máquina. No entanto, o capitalista sabe que um trabalhador, como qualquer ser humano, não pode trabalhar até o ponto de sua própria extinção – caso contrário, ele deixa de ser fonte de lucro. E por mais que o trabalhador deteste o capitalista, ele sabe que pode ficar sem emprego se o capitalista for incapaz de obter lucro. Os dois antagonistas reconhecem a existência um do outro, enquanto lutam um contra o outro. Mas quando as relações de classe são estruturadas através das linhas raciais, até o nível mais básico de reconhecimento é bloqueado, pois quando o outro é visto como negro, ele não é "visto".
Como a consciência do eu e a formação da identidade dependem do reconhecimento do outro, sua ausência produz uma crise existencial. No texto de Hegel, o Escravo obtém “uma consciência própria”31; mas quando o Escravo é negro, a falta de reconhecimento bloqueia a formação de uma autoconsciência independente. A luta de classes em geral não leva imediatamente à consciência do eu quando o Escravo é negro. Em vez disso, o Escravo aspira por "valores secretados pelos senhores"32. Negado o reconhecimento, mas ansiando pelo mesmo, o Escravo tenta imitar o branco. Ele tem um complexo de inferioridade. Mas seus esforços são inúteis, já que nenhum reconhecimento será dado enquanto a relação de classe estiver configurada ao longo de linhas raciais. Este é um verdadeiro inferno, pois sua própria consciência depende da vontade do Senhor. Atingimos um nível de reificação da consciência que surpreenderia até Lukács. Parece não haver saída se o Senhor dominar totalmente a própria mente dos oprimidos. Então, o que deve ser feito? O Escravo negro deve se afastar do Senhor e encarar a sua própria espécie. Ele utiliza os atributos socialmente construídos da raça para criar laços de solidariedade com outras pessoas como ele. Somente então o domínio do Senhor começa a ser seriamente desafiado. Por meio da solidariedade social nascida por se orgulhar dos próprios atributos que são denegridos pela sociedade existente, ele ganha “uma mente própria”.
No entanto, como Hegel observa na conclusão da dialética Senhor/Escravo, a autoconsciência independente do Escravo não supera a separação entre subjetivo e objetivo. A conquista da autoconfiança subjetiva leva a ver a enormidade de um mundo objetivo que ele ainda não domina. Hegel diz que, a menos que o sujeito confronte a objetividade e supere essa direção, “uma consciência própria” acaba por ser pouco mais que um punhado de esperteza33. O argumento de Fanon em Peles Negras, Máscaras Brancas segue uma trajetória semelhante. Fanon vê a Negritude – pelo menos inicialmente – como o caminho pelo qual o sujeito negro afirma orgulho em si mesmo como parte da recuperação de sua dignidade. No entanto, Fanon é cauteloso com os aspectos da negritude em Peles Negras, Máscaras Brancas, uma vez que este movimento tende a essencializar as características raciais forjadas pela dominação colonial. Isso é evidente na afirmação de Senghor de que “a emoção é negra como a razão é grega”34 – que, como Lewis Gordon demonstrou, é na verdade uma frase de Gobineau! 35A Negritude corre o risco de ficar tão apaixonada por sua consciência independente que se afasta de confrontar as realidades sociais do mundo objetivo. A formação da identidade é um momento vital da dialética que não pode ser subsumida ou ignorada, mas também traz consigo a possibilidade de se fixar em sua autoconfiança subjetiva.
A luta contra o racismo não é, mesmo assim, redutível à luta de classes; nem é um mero acessório ou aliada dela. A relação de classe é fundamentalmente reconfigurada, uma vez que se apresenta através da "máscara" da raça. Como qualquer bom hegeliano, Fanon aponta para o positivo no negativo dessa dupla alienação, na qual a opressão racial e de classe se sobrepõem. Lançados em uma "zona do não-ser", mas ainda mantendo o básico de sua humanidade, os colonizados são obrigados a perguntar o que significa ser humano no curso da luta. Certamente, eles o fazem se orgulhando dos atributos raciais criados por uma sociedade racista. Mas como é a sociedade, e não a natureza ou o "ser" que cria esses atributos, o sujeito pode rejeitá-los quando obtém o reconhecimento pelo qual está lutando. No entanto, este resultado não é de forma alguma predeterminado. Sempre existe o risco de o sujeito tratar atributos socialmente construídos como verdades ontológicas. A fixação é um risco sério. É fácil ficar preso no particular, mas não há caminho para o universal sem ele.
As nuances dessa posição são abordadas de maneira impressionante na crítica de Fanon à visão de Sartre sobre a Negritude. Embora Sartre tenha elogiado a Negritude em Orfeu Negro, ele se referia a ela como um "estágio fraco" da dialética que deve dar lugar à luta "concreta" e "universal " do proletariado. Fanon está extremamente consternado com a posição de Sartre, quando afirma: “A geração de jovens poetas negros acaba de receber um golpe imperdoável”36. Fanon rejeita a afirmação de que o orgulho racial é uma mera parada na estrada para enfrentar o problema “real” – a revolução proletária. Ele reconhecia Sartre por salientar “o lado negativo” da condição negra, “mas esquecendo que esta negatividade tira seu valor de uma absolutidade quase substancial”37. Como contra o esforço de Sartre de relativizar o momento da consciência negra, Fanon afirma, “este hegeliano-nato esqueceu de que a consciência tem necessidade de se perder na noite do absoluto”38. As reivindicações de libertação não podem encontrar sua voz se forem tratadas como arbitrárias; elas devem se apresentar em termos absolutos (“eu não sou nada e devo ser tudo!”). Mas como o sujeito negro habita uma "zona do não-ser", seu absoluto é imbuído de negatividade. Portanto, a consciência do eu neste contexto contém o potencial de ir além de si mesmo, em direção a uma emancipação humana universal.
A questão não é apenas que a negatividade é a fonte da qual o indivíduo é impelido para o positivo. É que, ao ser submetido à negação absoluta e à falta de reconhecimento, o indivíduo acha necessário recorrer ao reservatório substancial de significado oculto que possui como sujeito humano. “Aquilo que foi despedaçado é, pelas minhas mãos, lianas intuitivas, reconstruído, edificado”39.
O problema de Sartre não estava em ver a Negritude como um particular, mas em tentar superá-la muito rápido. No momento em que escreve Os Condenados da Terra, Fanon já passou por isso também. Mas ele não se lança como num tiro de pistola. Ele suporta o trabalho do negativo – insistindo nas maneiras específicas pelas quais o sujeito colonizado pode tornar sua subjetividade conhecida em um mundo que se tornou totalmente indiferente a ele. Fanon nunca tira os olhos da criação do positivo de fora do negativo, da positividade absoluta de fora da negação absoluta, de um novo humanismo a partir da desumanização total. Como observou Alice Cherki, ele era um humanista incurável40.
Dadas as revoluções abortadas e inacabadas de seu tempo e desde então, a insistência de Fanon em não ficar preso ao particular – ou seja, ao orgulho da raça e etnia (a marca da política de identidade) – nem o ignorar em nome de afirmar uma defesa abstrata e indiferente à raça (color-blinded) da "revolução proletária", assume novo significado. A concepção de Hubert Harrison (expressa na década de 1920) de que as lutas afro-americanas contra o racismo representam a “pedra de toque” da sociedade americana41 – mais tarde retomada na concepção marxista-humanista das massas negras como vanguarda das lutas pela liberdade nos EUA42, de Raya Dunayevskaya – reflete uma compreensão semelhante da relação de raça e classe com a que encontramos no esforço vitalício de Fanon para compreender sua interconexão dialética.
Em alguns aspectos, o debate entre Fanon e Sartre está se repetindo hoje, como visto na impaciência de alguns da esquerda que instam os ativistas antirracistas a “chegarem à questão real” – como se esse fosse o estado da economia. Isso não significa negar que a economia é de importância central. Mas também o é o impacto psíquico do racismo e da discriminação na vida particular de um indivíduo. É apenas abordando aqueles que lutam pela liberdade a partir do ponto de conexão que define sua experiência de vida como sujeitos potencialmente revolucionários que podemos resolver a difícil questão de como superar a matriz de contradições que definem o capitalismo moderno. Assim como não existe um caminho para o universal que fique preso no particular, não há como alcançar o universal passando por cima do particular.
A expressão mais completa dessas ideias é encontrada em Os Condenados da Terra, cujo foco é a verdadeira dialética da revolução – a luta pela cultura nacional e pela independência contra o colonialismo. Um de seus temas centrais é a “divisão maniqueísta” que define a experiência colonial. Tão grande é essa divisão entre colonizador e colonizado que Fanon fala deles como se fossem duas "espécies". Parece que a divisão racial é decisiva, substituindo o domínio de classe como fator decisivo. Para alguns comentadores, a discussão de Fanon da divisão maniqueísta indica que ele rejeitou ou suplantou a visão marxista da classe43. No entanto, a aparência é enganosa. Primeiro, Fanon não está endossando essa divisão; ele está descrevendo-a. Segundo, ele não apresenta essa divisão como estável ou impermeável. Ele mostra que conforme a luta revolucionária avança, a divisão começa a desmoronar. Ele escreve,
O povo compreende então que a independência nacional desvenda realidades múltiplas que algumas vezes são divergentes e antagônicas. A explicação, nesse preciso momento da luta, é decisiva porque faz o povo passar do nacionalismo global e indiferenciado a uma consciência social e econômica. O povo, que no princípio da luta adotar ao maniqueísmo primitivo do colono – os Brancos e os Negros, os Árabes e os Cristãos – percebe pelo caminho que há negros que são mais brancos do que os brancos (...) A espécie se fragmenta diante de seus olhos. (...) Os membros da massa colonialista revelam-se mais próximos, infinitamente mais próximos, da luta nacionalista que alguns filhos na nação. O nível racial e racista é ultrapassado nos dois sentidos44.
Vemos aqui como a luta pela libertação nacional une o povo e rompe as dicotomias raciais que definem o colonialismo, apontando assim o caminho para a morte do racismo e do racialismo como características socialmente definidoras.
Claramente, Fanon não deixa de lado as relações de classe em sua crítica ao colonialismo. James Yaki Sayles, um prisioneiro político nacionalista negro45 que passou 33 anos em uma prisão de segurança máxima e escreveu o que considero um dos estudos mais profundos sobre Os Condenados da Terra, coloca a questão da seguinte maneira: “A existência do pensamento maniqueísta não torna as relações econômicas secundárias às relações “raciais” – faz exatamente o que deveria fazer: mascara e mistifica as relações econômicas... mas não subestima sua primazia”46. Ele acrescenta: “Quando Fanon fala sobre as "espécies" se fragmentando diante de nossos olhos... ele está falando sobre a desintegração das próprias "raças" – as "raças" que foram construídas como parte da construção do capitalismo mundial, e que primeiro devem ser desconstruídas junto com a desconstrução do capitalismo”47.
Isso significa que Fanon adota a posição de Sartre em Orfeu Negro de que a classe tem uma importância principal e que a raça seria uma “categoria secundária” na época em que escreveu Os Condenados da Terra?48 Pode parecer ser esse o caso, uma vez que a identidade racial não é seu tema norteador ou central; é antes a luta pela libertação nacional e a necessidade de transcender seus limites. No entanto, é exatamente isso que mina qualquer afirmação de que ele tenha mudado a posição descrita em Peles Negras, Máscaras Brancas. Em Os Condenados da Terra, Fanon também conecta o racismo às relações de classe, apontando os fatores econômicos que impulsionam sua construção social. E nesse trabalho ele também coloca a desconstrução da raça como pré-condição essencial de um novo humanismo. Como ele colocou com tanta tristeza: “Por ser uma negação sistemática da outra pessoa, e uma determinação furiosa de negar à outra pessoa todos os atributos da humanidade, o colonialismo força o povo que domina a constantemente se fazer a pergunta: “Quem sou eu na realidade?”49
Em afirmação ainda mais importante, Fanon sustentou que enquanto a raça é um produto das relações de classe, que serve como sua máscara, ela não é um fator secundário. Enquanto a raça reflete formações de classe, o reflexo não é uma imagem de espelho unidirecional. O reflexo é absorvido na consciência e realiza uma espécie de duplicação, espelhando sua origem ao mesmo tempo que a remodela. As determinações da reflexão não são passivas, mas ativamente reconstrutivas. E como as determinações raciais geralmente não são superestruturais, mas integrais à lógica da acumulação de capital, os esforços das pessoas de cor para desafiá-las podem servir como catalisadores para direcionar e desafiar as relações de classe.
Enquanto a identidade racial é o foco principal em Peles Negras, Máscaras Brancas, a identidade nacional ocupa o centro do palco em Os Condenados da Terra. Mas a estrutura do argumento de Fanon permanece a mesma. Nos dois trabalhos, o caminho para o universal – um mundo de reconhecimentos mútuos – prossegue através das lutas particulares daqueles que lutam contra a discriminação racial, étnica ou nacional. Isso separa o novo humanismo de Fanon de um humanismo abstrato que ignora a experiência vivida dos sujeitos reais da revolta.
Para Fanon, esse humanismo só pode emergir se as revoluções coloniais transcenderem a fase burguesa do desenvolvimento. Ele escreve: “A questão teórica que vem sendo discutida há cinquenta anos, sempre que se trata da história dos países subdesenvolvidos – questão que se cifra em saber se a fase burguesa pode ou não pode ser omitida – há de ser resolvida no plano da ação revolucionária e não por meio de um raciocínio”50. Fanon está se referindo diretamente aos debates na Segunda Internacional antes da Primeira Guerra Mundial e os congressos da Terceira Internacional, no início dos anos 1920, sobre se as revoluções nas sociedades tecnologicamente subdesenvolvidas devem suportar as vicissitudes de um estágio prolongado do capitalismo. Com base em trabalhos marxistas anteriores51, ele rejeita enfaticamente a teoria da revolução em dois estágios, argumentando: “Nos países subdesenvolvidos a fase burguesa é impossível. Haverá certamente uma ditadura policial, uma casta de aproveitadores, mas a elaboração de uma sociedade burguesa revela-se fadada ao malogro”52. Essa defesa da revolução permanente foi uma posição muito radical. Não foi apresentada por nenhuma das tendências políticas que levaram às revoluções africanas, incluindo a da Argélia. Até Kwame Nkrumah e Sékou Touré se abstiveram de tais condenações tão robustas à burguesia nacional. Fanon, no entanto, insistia nesse ponto ao argumentar profeticamente que, se não "pulassem" a fase do nacionalismo burguês, as revoluções africanas se reverteriam ao conflito intra-estatal, ao tribalismo e ao fundamentalismo religioso.
Como, então, ele imaginou contornar o estágio capitalista? O ponto central disso era sua visão sobre o campesinato. Os camponeses tendem a ser negligenciados pela burguesia nacional, baseadas nas cidades. Eles constituem a maioria da população, superando em muito a classe trabalhadora e a pequena burguesia. Apesar de eles não estarem incluídos na agenda dos partidos nacionalistas, eles acabam por ser os mais revolucionários. Fanon insiste: “Mas é claro que, nos países coloniais, só o campesinato é revolucionário”53. Isso certamente é um exagero que não leva em conta o papel central do movimento trabalhista nigeriano na luta pela independência nacional, e muito menos a situação em países como a África do Sul (onde o movimento trabalhista se mostrou mais útil para forçar a eliminação do apartheid). Embora Fanon esteja aqui dando pinceladas muito amplas, sua visão do campesinato não deixa de ter mérito. Ele argumentou que uma vez que a maioria dos novos estados independentes da África não haviam sofrido industrialização em larga escala, a classe trabalhadora não podia se apresentar como uma força coesa e compacta. Ela não fora socializada pela concentração e centralização do capital. A classe trabalhadora é dispersa, dividida e relativamente fraca. O campesinato, por outro lado, é socializado e relativamente forte, precisamente porque foi em grande parte intocado pelo desenvolvimento capitalista. Suas tradições comunais e formações sociais permanecem intactas. Eles pensam e agem como um grupo coeso. Eles vivem a divisão maniqueísta que os separa do colonizador. Portanto, a mensagem da revolução "sempre encontra eco no seio das massas camponesas"54. Deste modo, é improvável que eles guardem suas armas e permitam que os burgueses os dominem.
Esta questão da revolução permanente também é o contexto para entender a visão de Fanon sobre a violência revolucionária. Ele não subscreveu (contra Arendt e outros) a nenhuma "metafísica da violência". Sua defesa da violência era historicamente específica. Ele argumentou que um povo armado não estaria apenas melhor equipado para remover os colonialistas; mais importante ainda, é necessário ajudar a empurrar a revolução para além dos limites estabelecidos pela burguesia nacional após a conquista da independência. Não é por acaso que uma das primeiras exigências dos líderes dos novos Estados independentes era que as massas entregassem as suas armas – cuja presença poderia impedir a sua adesão ao neocolonialismo. Contra um aparelho político e econômico centralizado, Fanon também enfatizou a necessidade dedescentralização, que poderia ter sucesso em influenciar diretamente as massas no sentido de fazer prevalecer os interesses da sociedade – incluindo os seus setores mais oprimidos, como o campesinato. Ele alertou contra a adoção do modelo de planos quinquenais do Estado e defendeu o apoio a cooperativas e outras iniciativas autônomas. Não menos importante, ele argumentou com firmeza contra um Estado de partido único, com o argumento de que: “O partido único é a forma moderna da ditadura burguesa sem máscara, sem dissimulação, sem escrúpulos, cínica”55. Ele concebia os partidos em termos de “um organismo através do qual as pessoas exercem sua autoridade e expressam sua vontade” e não como uma força hierárquica e estratificada que está acima delas. Mais importante, ele enfatizou o papel crítico da consciência e da educação revolucionária ao fornecer a condição mais indispensável da transformação socialista – superar a despersonalização do sujeito colonizado. Ele escreveu,
Com efeito, acredita-se frequentemente, com criminosa leviandade, que politizar as massas é pronunciar diante delas, de vez em quando, um grande discurso político (...) Ora, politizar, é abrir o espírito, é despertar o espírito, dar à luz o espírito. É, como disse Césaire, "inventar almas"56.
Desnecessário dizer que as restrições de Fanon não foram seguidas pelos líderes das lutas pela independência nacional, que encontraram um lugar confortável para si mesmos dentro da estrutura da fase burguesa de desenvolvimento – mesmo quando (de fato, especialmente quando!) eles batizaram seu governo como alguma forma de “socialismo”. Mas estavam presentes as condições materiais naquele momento que poderiam ter permitido às revoluções africanas contornar a fase burguesa? Não estou me referindo apenas a condições de atraso econômico ou subdesenvolvimento, pois essas não seriam barreiras decisivas se as nações recém-independentes estivessem em posição de receber ajuda e apoio dos trabalhadores do mundo tecnologicamente desenvolvido. Afinal, Marx sustentou no final de sua vida que a Rússia economicamente atrasada poderia contornar um estágio capitalista do desenvolvimento se uma revolução centrada no campesinato estivesse ligada às revoluções proletárias no Ocidente57. No entanto, no contexto das revoluções africanas dos anos 50 e 60, não se podia esperar tal ajuda – em grande parte porque forças como os partidos comunistas e socialistas da França apoiaram vergonhosamente a guerra do imperialismo francês contra a Revolução Argelina (algo que os principais intelectuais de esquerda dentro e fora do PC francês na época, como Althusser e Foucault, nunca conseguiram encontrar tempo para condenar).
Esse problema consumiu a atenção de Fanon nos últimos anos de sua vida e marca um dos aspectos mais controversos de seu legado. Em face do fracasso dos já estabelecidos partidos de esquerda franceses em apoiar a luta da Argélia pela independência (com a qual ele se identificou abertamente em 1955), ele emitiu uma série de duras críticas à classe trabalhadora por falhar em cumprir sua tarefa histórica. Ele escreve,
O entusiasmo generalizado e, às vezes, verdadeiramente sanguinário, que marcou a participação de trabalhadores e camponeses franceses na guerra contra o povo argelino abalou fundamentalmente o mito de uma oposição efetiva entre o povo e o governo (...) A guerra na Argélia está sendo travada conscientemente por todos os franceses e as poucas críticas expressas até o momento por alguns indivíduos mencionam apenas certos métodos que “estão precipitando a perda da Argélia”58.
Em um país colonial, dizia-se, existe uma comunidade de interesses entre o povo colonizado e a classe trabalhadora do país colonialista. A história das guerras de libertação travadas pelos povos colonizados é a história da não verificação desta tese59.
Essas declarações são frequentemente tomadas como prova de que Fanon descartou o potencial revolucionário da classe trabalhadora tout court. Porém, apenas um ano depois Fanon declarou em outro texto para o El Moudjahid que “o fortalecimento dialético que ocorre entre o movimento de libertação dos povos colonizados e a luta por emancipação das classes trabalhadoras exploradas dos países imperialistas é às vezes negligenciada e até esquecida”60. Estaria ele criticando a si mesmo? Fanon agora revisa consideravelmente sua posição anterior, ao falar da "relação interna (...) que une os povos oprimidos às massas exploradas dos países colonialistas"61. E como Os Condenados da Terra (escrito poucos anos depois) mostra claramente, ele não fechou a porta para a possibilidade de que a classe trabalhadora pudesse cumprir sua tarefa histórica, mesmo quando a criticava por ainda não ter feito isso:
Esse trabalho colossal, que consiste em reintroduzir o homem no mundo, o homem em sua totalidade, há de ser feito com o auxílio decisivo das massas europeias que – é necessário que elas o reconheçam – muitas vezes se congregam a respeito dos problemas coloniais nas posições de nossos senhores comuns. Para isso é imperioso, antes de mais nada, que as massas europeias resolvam despertar, sacudir o cérebro e cessar de tomar parte no jogo irresponsável da Bela Adormecida no bosque62.
Não obstante, a esperada ajuda dos trabalhadores do Ocidente industrialmente desenvolvido nunca chegou – apesar dos esforços heroicos de numerosos indivíduos na França e em outros lugares que se manifestaram a favor da independência das colônias africanas. Em lugar de qualquer apoio significativo do Ocidente desenvolvido industrialmente, como as Revoluções Africanas obteriam os recursos necessários para sustentar a independência genuína, e mais ainda, avançar na criação de uma sociedade socialista?
Fanon respondeu voltando suas energias para a África como um todo. Isso se reflete em sua decisão de se tornar um embaixador itinerante da FLN63 da Argélia, viajando para mais de uma dúzia de países e pressionando por uma “Legião Africana” para ajudar as lutas argelinas e revoluções em outras partes do continente. Isso também se reflete em seu esforço para criar uma "frente sul" da luta argelina, ao estabelecer uma rota para o transporte de armas e outros materiais de Gana, Guiné, Mali e Níger. Preocupado com a possibilidade de que os franceses pudessem estabelecer uma compromisso escuso com a FLN para mantê-la dentro de sua órbita neocolonial, Fanon estava tentando radicalizar as lutas argelinas e subsaarianas, consolidando relações mais estreitas entre estas.
Pode ser verdade, como Adam Shatz argumentou recentemente, que os esforços de Fanon foram bastante quixotescos, pois “o sul do Saara nunca havia sido uma importante zona de combate para a FLN, e havia pouca confiança entre os argelinos e as tribos do deserto”64. No entanto, isso não deve nos fazer perder a noção de seu esforço mais amplo para transmitir a militância da luta da Argélia “para os quatro cantos da África” como parte de rejeitar qualquer compromisso com o capitalismo. Como Fanon colocou, a tarefa é “virar o absurdo e o impossível do avesso e lançar um continente contra as últimas muralhas do poder colonial”65. Não se tratava de uma mera declaração retórica, pois ele passou os últimos anos de sua vida trabalhando incessantemente para coordenar a atividade entre os vários movimentos revolucionários da África. Ele declarou francamente: “Por quase três anos, tenho tentado trazer a ideia nebulosa da unidade africana para fora do pântano subjetivista da maioria de seus apoiadores. Unidade Africana é um princípio com base no qual se propõe alcançar os Estados Unidos da África sem passar pela fase chauvinista da classe média (...)”. Caso haja alguma dúvida sobre a fonte de sua adesão à revolução permanente, ele afirma na mesma página: “Precisamos voltar mais uma vez à fórmula marxista. As classes médias triunfantes são as mais impetuosas, as mais empreendedoras e as mais anexionistas do mundo”66.
Para Fanon “não é mais possível avançar por regiões ... [a África] deve avançar na totalidade”. A chave para isso, ele sustentava, era o Congo – já que "um Congo unificado que tinha como chefe um anticolonialista militante [Patrice Lumumba] constituía um perigo real para a África do Sul"67. Pois se a África do Sul, o país mais industrialmente desenvolvido na África, fosse trazido para a órbita da revolução, as condições materiais poderiam estar à mão para empurrar o continente como um todo além dos limites do desenvolvimento capitalista.
Apesar de seu compromisso verbal com o pan-africanismo, praticamente todos os líderes dos novos Estados independentes – incluindo os mais radicais entre eles – estavam mais interessados em obter aceitação e ajuda das principais potências mundiais do que em promover a unidade pan-africana. Em muitos aspectos, próximo de Nkrumah, Fanon ficou amargurado com o fracasso de Gana em fornecer ajuda material a Lumumba no Congo, e ele ficou cada vez mais amargurado com o fracasso da Legião Africana em decolar. Tornou-se claro que, para os novos líderes da África independente, o caminho a seguir era aliar-se a um ou outro pólo do capital global – o Ocidente imperialista ou o Leste "comunista". Fanon se opôs a essa abordagem.
De modo geral chegou-se a pensar que chegara para o mundo, e particularmente, para o Terceiro Mundo, a hora de escolher entre o sistema capitalista e o sistema socialista. Os países subdesenvolvidos (...) devem, agora, recusar instalar-se nessa competição. Não deve o Terceiro Mundo contentar-se com definir-se em relação aos valores que o antecederam. Ao contrário, devem os países subdesenvolvidos esforçar-se por dar à luz valores que lhes sejam próprios, métodos e um estilo que lhes sejam específicos. O problema concreto diante do qual nos achamos não é o da escolha custe o que custar entre o socialismo e o capitalismo, nos moldes em que foram definidos por homens de continentes e épocas diferentes.68
Claramente, Fanon não estava satisfeito com as sociedades "socialistas" existentes, “como foram definidas". Ele estava ciente de suas deficiências. Mas isso não significa que ele conduziu uma análise minuciosa delas ou reconheceu a sua base de classe e o seu caráter completamente opressivo. Isso é lamentável, uma vez que levou alguns seguidores de Fanon a mascarar seus crimes, o que apenas contribuiu para o descrédito geral da esquerda por apoiar regimes que eram tão exploradores de sua classe trabalhadora quanto os imperialistas. Não menos importante, a falta de uma crítica profunda das sociedades “de tipo soviético” no pensamento de Fanon frustrou parcialmente o seu esforço em conceber a transcendência da fase burguesa, tornando-o tanto abstrato quanto até quixotesco, uma vez que não foi deixado claro como sociedades tecnologicamente subdesenvolvidas poderiam pular a fase burguesa se não pudessem depender dos benefícios dos regimes supostamente "socialistas".
Fanon não pode ser responsabilizado por sua discussão bastante inconclusiva de como superar a fase burguesa de desenvolvimento em Os Condenados da Terra, já que ele estava apenas começando a explorar a questão da revolução permanente e faleceu apenas alguns dias após a publicação do livro. No entanto, nós que hoje enfrentamos a tarefa de desenvolver uma alternativa a todas as formas de capitalismo – seja o capitalismo de "livre mercado" do Ocidente ou suas variantes capitalistas de Estado – não temos essa desculpa. O trabalho de Fanon pode não fornecer a resposta para a pergunta, mas fornece recursos que (em conjunto com o trabalho de muitos outros) podem ajudar em nosso esforço de respondê-la.
As realidades de hoje são, naturalmente, muito diferentes do que aquelas que definiram a vida e os tempos de Fanon – em uma variedade de níveis. Mas elas também fornecem novas possibilidades para lidar com os problemas que ele estava enfrentando, especialmente no final de sua vida. Fanon saiu de cena declarando: “Deixemos essa Europa que não cessa de falar do homem enquanto o massacra por toda a parte onde o encontra, em todas as esquinas de suas próprias ruas, em todas as esquinas do mundo”69. Essas palavras dificilmente podem ser consideradas obsoletas, ainda mais se considerarmos a resposta das potências europeias a um afluxo de refugiados do Sul global que tentam entrar na Europa e que estão transformando o continente. Pode ser que a presença crescente do Sul global dentro do Norte global forneça uma base material para pensar em novos caminhos para a transcendência do neocolonialismo e da sociedade de classes, assim como o ressurgimento racista que tem acompanhado esse fenômeno traz uma nova urgência para elaborarmos novamente a relação dialética de raça, classe e gênero. O trabalho de Fanon permanecerá vivo enquanto esses problemas continuarem nos preocupando.
HUDIS, Peter. "Racism and the Logic of Capital: A Fanonian Reconsideration". In: Historical Materialism 26, 2: 199-220, doi: https://doi.org/10.1163/1569206X-00001645
Link para o original: https://brill.com/view/journals/hima/26/2/article-p199_9.xml