Traduções
A mulher do discurso jurídico**
The Woman of Legal Discourse
A mulher do discurso jurídico**
Revista Direito e Práxis, vol. 11, núm. 2, pp. 1418-1439, 2020
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Introdução1
A teoria feminista sociojurídica tem se desenvolvido de modo instigante e (felizmente) polêmico nos últimos vinte anos. É possível afirmar, com relativa segurança, que os progressos observados nessa área se equiparam aos desdobramentos do pensamento feminista em outros campos. Esse paralelo não deveria ser motivo de espanto; contudo, o direito suscita, para a teoria feminista, questões intelectuais e políticas bastante específicas, que não necessariamente são encontradas em outras áreas2. Esses problemas apresentam três ramificações e são surpreendentemente acumulativos, levando-se em consideração que se originam em vertentes distintas. A primeira delas, que pode ser chamada de vertente “da letra negra”3, ou do direito inquestionável, manifesta resistência à ideia de a análise teórica ser relevante para o direito fora dos limites dos cursos sobre a própria disciplina do direito. A segunda, por sua vez, exprime resistência à ideia de que uma teoria especificamente feminista é relevante ao direito, porque este já teria transcendido – ao menos na maioria dos países desenvolvidos – o “viés sexual”. Trata-se da vertente liberal. A terceira linha evidencia uma forma de resistência a toda e qualquer teoria, com base no argumento de que, como o direito é uma prática que produz consequências materiais para as mulheres, a resposta necessária teria de surgir no âmbito da prática em sentido contrário, e não da teoria. É uma vertente que demanda engajamento “de ação”, continuamente considerando inadequada a (mera?) prática teórica. Esse argumento é usado por determinadas correntes feministas que definem o ‘teorizar’ como algo masculino. Nesse sentido, as três vertentes mencionadas apresentam um grande obstáculo às defensoras da teoria feminista do direito, visto que elas se deparam (nós nos deparamos) com a frustração de serem (sermos) ignoradas ou vistas como ultrapassadas dentro do direito e pelo direito, além de, ao mesmo tempo, serem (sermos) compelidas a renunciar à teoria devido ao imperativo moral de agir de forma prática dentro do direito ou por meio dele.
A teoria feminista sociojurídica, porém, se depara com outra dificuldade. Apesar de sempre ter existido uma tensão acerca da tentativa de “usar” o direito para as “mulheres”, o desafio atual está no fato de essa tensão ter assumido uma nova cara. Ela se expressava tradicionalmente na asserção de que o direito, por ser um efeito epifenomênico do patriarcado, dificilmente poderia ser usado para desestruturar o próprio patriarcado. Por mais atraente e sucinto que esse posicionamento possa parecer, hoje reconhecemos que tal visão é, ao mesmo tempo, uma simplificação excessiva e uma receita para o desespero: teorizar que tudo é efeito de um patriarcado monolítico faz do feminismo, na melhor das hipóteses, pouco mais que uma falsa consciência e, na pior, um mecanismo de sustentação da própria estrutura patriarcal.
Nossas teorias sobre gênero e sobre direito avançaram, mas também houve outro desenvolvimento importante. Com a chegada das feministas ao direito, este passou a ser um lugar de luta e não apenas uma ferramenta de luta. Entretanto, o aumento no número de acadêmicas feministas no direito e de advogadas atuantes (ironicamente) levou a consequências, a meu ver, contraditórias. Aplaudo a primeira delas, que é certo refinamento das teorias do direito, em particular no tocante à lógica e aos métodos jurídicos. A segunda, talvez mais problemática, é o renovado vigor na tentativa de empregar o direito na causa das mulheres4. Minha preocupação a respeito desta última não é uma tentativa de ressuscitar o velho argumento que acabei de rejeitar acima, mas reflete meu receio de que essa estratégia, mesmo renovada, continue a alocar ao direito uma posição especial na resolução de problemas sociais. Essa tendência, provavelmente mais evidente na América do Norte5, é falha por não desafiar a visão inflada que o direito tem de si mesmo, empoderando-o ainda mais (SMART, 1989) e acentuando seu alcance imperialista6. O movimento de usar o direito a favor das “mulheres” também colide com o reconhecimento, recente e profundo na teoria feminista, proveniente de outras disciplinas, de que evocar uma categoria não problematizada de Mulher, presumidamente representativa de todas as mulheres, é, em si, uma estratégia excludente (cf. SPELMAN, 1988). Contudo, antecipo aqui meus argumentos e, por isso, gostaria de retornar ao estágio anterior no mapeamento da teoria feminista sociojurídica. Para tanto, concentro-me em dois pontos relacionados. O primeiro trata da questão de como o direito é gendrado7, e o segundo examina o próprio direito como uma estratégia que produz gênero.
1. Como o direito é gendrado
Podemos identificar três estágios no desenvolvimento da ideia de que o direito é gendrado. Fundamentalmente, são fases de reflexão na teoria feminista que forneceram um alicerce de entendimento e que foram ampla, mas não completamente superadas (cf. NAFFINE, 1990)8. O primeiro estágio é ilustrado pela frase “o direito é sexista”; o segundo, por “o direito é masculino”, e, finalmente, chegamos ao ponto em que podemos alegar que “o direito é gendrado”. É possível encontrar esses três níveis de argumentação empregados simultaneamente em alguns trabalhos feministas sobre o direito, mas é importante diferenciá-los para podermos identificar a promessa analítica presente em cada abordagem.
A) O direito é sexista
O ponto de partida da abordagem “o direito é sexista”9 foi o argumento de que, ao fazer uma diferenciação entre homens e mulheres, o direito ativamente colocou as mulheres em desvantagem por conceder-lhes menos recursos materiais (por exemplo, no casamento e no divórcio); julgá-las de acordo com padrões desiguais e inapropriados (por exemplo, como sexualmente promíscuas); negar-lhes oportunidades iguais (como ocorreu no que ficou conhecido como the persons cases (SACHS; WILSON, 1978)10; ou deixar de reconhecer os danos causados às mulheres porque esses mesmos danos beneficiavam os homens (como ocorre com as leis sobre prostituição e estupro, por exemplo). Esses foram (e ainda são) questionamentos importantes, mas o atributo “sexista” com certeza funcionou mais como uma estratégia de redefinição que como um modo de análise. Portanto, o uso do termo “sexista” foi uma maneira de desafiar a ordem normativa do direito e de reinterpretar as práticas mencionadas como indesejáveis e inaceitáveis.
O direito é inegavelmente sexista em um nível. Entretanto, reconhecer esse fato não fez com que se passasse a lidar, de verdade, com o problema posto pelo direito; eu diria, ainda, que se trata de um fator que acarreta uma representação um pouco equivocada desse problema. O argumento de que o direito é sexista sugere ser possível corrigir uma visão enviesada que se tem sobre determinado sujeito (a mulher) que, na realidade, se coloca perante o direito de forma tão competente e racional quanto um homem, mas é erroneamente considerado incompetente e irracional. Essa retificação indica que o direito sofre de um problema de percepção que pode ser corrigido para que todos os sujeitos jurídicos passem a ser tratados com igualdade. Não se trata, em absoluto, de uma argumentação simplista. É estruturada em níveis distintos de sofisticação, desde aqueles que sugerem que a adoção, no direito, de uma linguagem neutra de gênero nos livra do problema da diferenciação e, por conseguinte, da discriminação (ex. no inglês, o uso de spouse no lugar de wife; parent no lugar de mother)11, até aqueles que reconhecem a discriminação como parte de um sistema de relações de poder que deve ser problematizado antes que o sexismo possa ser “extirpado” do direito. Para o primeiro grupo, o sexismo é um problema de superfície com o qual se deve lidar por meio de programas de reeducação e políticas rigorosas que objetivem esconder qualquer sinal visível de diferença. Para o último grupo, o direito está integrado à política e à cultura, e o caminho que conduz a um tratamento mais justo para as mulheres se situa em mudanças que lhes permitirão ocupar diferentes posições na sociedade, de forma que a diferenciação se torne supérflua12.
O inconveniente dessas abordagens é que o significado de diferenciação tende a ser absorvido pelo de discriminação, e o fulcro dos argumentos reside na ideia de que as mulheres são tratadas mal dentro do direito por serem diferenciadas dos homens. Com frequência, isso significa afirmar que os homens são mantidos como o padrão com base no qual as mulheres devem ser julgadas13. Por mais cansativo e absurdo que possa parecer, esse raciocínio apenas nos leva a imaginar que a solução seja julgar as mulheres pelo padrão das mulheres. Talvez, entretanto, essa alternativa não resolva muita coisa se as mulheres que definirem um padrão dessa natureza forem, em sua totalidade, brancas e de classe média. Se assim for, resta-nos um sistema jurídico igualmente falho, em que o sexismo parecerá ter sido erradicado, mas outras formas de opressão permanecerão. Contudo, essa falácia da substituição não é o problema central de uma perspectiva que evoca o conceito de sexismo em vez do de gênero. O conceito de sexismo implica a possibilidade de anular a diferença sexual como se ela fosse apenas um epifenômeno e não estivesse enraizada na maneira pela qual negociamos a ordem social. Para falar de forma mais direta, a diferença sexual – vista como construída ou não (FUSS, 1989) – é parte de uma estrutura binária de linguagem e sentido. Se erradicar a discriminação depende de erradicar a diferenciação, é necessário pensar uma cultura sem gênero. Então, o que parece ser uma solução relativamente fácil, como a incorporação, no direito, de uma terminologia neutra no que se refere a gênero, mascara um problema muito mais profundo. Além disso, como muitas feministas já argumentaram, não é absoluta a ideia de que o resultado desejado do feminismo seja uma espécie de androgenia.
B) O direito é masculino
A noção de que “o direito é masculino” surge da observação empírica de que a maioria dos legisladores e advogados são, de fato, homens. Essa ideia vai além, entretanto, por força da percepção de que a masculinidade ou virilidade, uma vez enraizada em valores e práticas, não precisa estar completamente ancorada no referente biológico masculino, isso é, nos homens. MacKinnon (1987) demonstrou tal possibilidade de forma bem eloquente ao alegar que os ideais de objetividade e neutralidade, celebrados no direito, são, na verdade, valores masculinos que passaram a ser considerados universais. Assim, em comparação com a abordagem “o direito é sexista”, o raciocínio “o direito é masculino” sugere que, quando um homem e uma mulher se colocam perante a lei, não é que o direito deixe de aplicar critérios objetivos a um sujeito feminino: aplica critérios objetivos, mas estes são, contudo, masculinos. Ironicamente, insistir em igualdade, neutralidade e objetividade é, portanto, insistir no julgamento da mulher de acordo com os valores da masculinidade.
Como a abordagem “o direito é sexista”, também a perspectiva “o direito é masculino” abrange uma gama de posições mais ou menos sofisticadas, que vão desde o primeiro trabalho de Gilligan (1982), que parecia associar valores masculinos ao referente biológico e, em vista disso, se mostrou biologicamente reducionista14, até os trabalhos mais recentes (YOUNG, 1990; TRONTO, 1989;MOSSMAN, 1986) que detalham a exclusão de valores ligados a ‘se importar com algo’ em prol do ‘não se importar’ (isto é, imparcialidade) ou descrevem as regras e métodos utilizados para se chegar a uma decisão jurídica (ou seja, imparcial) com a exclusão sistemática de outras perspectivas.
No entanto, por mais relevantes que essas percepções sejam, elas perpetuam uma série de problemas específicos. Em primeiro lugar, é uma concepção que reproduz a ideia do direito como uma unidade em vez de questioná-lo e de lidar com suas contradições internas. Em segundo, e não o faz necessariamente de forma explícita, presume que qualquer sistema supostamente fundado em valores universais e em processos de tomadas de decisão imparciais (mas que agora se revelam como particulares e parciais) atende de maneira sistemática aos interesses dos homens enquanto categoria unitária15. Podemos ver, assim, que, apesar de existir nesses argumentos um grande esforço para se afastar do determinismo biológico, permanece uma presunção tácita de que os homens, enquanto referente biológico, são ou beneficiados ou de algum modo prestigiados na aplicação de valores e práticas que se pretendem universais embora(na realidade) reflitam uma posição ou visão de mundo parcial16. Contudo, sabemos que o direito não serve aos interesses dos homens enquanto categoria homogênea, assim como não serve aos interesses das mulheres enquanto categoria. Pode-se afirmar, é claro, que os trabalhos mencionados não estabelecem conexão entre os sistemas de valores masculinos e os interesses dos homens, e que estou levando os argumentos das autoras a extremos em que correm o risco de parecerem absurdos. Todavia, há um motivo para adotar essa postura, talvez injusta, e essa razão não repousa no simples desejo fútil de mostrar que nenhum argumento feminista transcende o reducionismo biológico.
Qualquer argumentação que comece por priorizar a divisão binária homem/mulher ou masculino/feminino cai na armadilha de desprezar outras formas de diferenciação, particularmente as diferenças existentes no interior desses opostos binários. Logo, o terceiro problema presente nesse tipo de abordagem é que divisões como classe, idade, raça ou religião tendem a se tornar meros elementos adicionais ou considerações a posteriori. A adição de “variáveis” com o aparente propósito de superar a crítica referente ao racismo e ao classismo feita contra a teoria feminista, na verdade, apenas agrava o problema ao torná-lo mais obscuro. Conforme Spelman (1988),
[...] de acordo com uma análise adicional sobre sexismo e racismo, todas as mulheres são oprimidas pelo primeiro; algumas o são também pelo segundo. Essa análise distorce as experiências de opressão das mulheres negras por não reconhecer diferenças importantes entre os contextos nos quais mulheres negras e mulheres brancas vivenciam o sexismo. Sugere, ainda, que a identidade racial de uma mulher pode ser “subtraída” de sua identidade resultante da combinação dos elementos sexual e racial: “Somos todas mulheres”. (1988, p. 125).
Em outras palavras, como Denise Riley afirmou de forma mais sucinta: “Abaixo das superfícies recém-pluralizadas, os antigos problemas ainda perduram” (1988, p. 99).
C) O direito é gendrado
A mudança entre entender o direito como ‘masculino’ e enxergá-lo como ‘gendrado’ é bastante sutil, e essa transição não implica uma rejeição completa de todos os arrazoados da primeira concepção. Ainda assim, embora a asserção de que ‘o direito é masculino’ tenha o efeito de impor uma espécie de conclusão à forma como pensamos o direito, a ideia de que ele é gendrado nos possibilita compreendê-lo em termos de processos que funcionam de maneiras diversas e nos quais não se parte do pressuposto irredutível de que tudo o que acontece no mundo jurídico está a serviço da exploração das mulheres e tem por objetivo beneficiar os homens. Portanto, podemos argumentar que “as mesmas práticas têm significados diferentes para homens e mulheres porque são lidas por meio de diferentes discursos” (HOLLWAY, 1984, p. 237). Não precisamos, então, considerar uma prática prejudicial às mulheres por ela ser aplicada diferentemente aos homens. Em vez disso, podemos avaliar práticas como, por exemplo, o encarceramento sem a obrigação de afirmar que o problema com as penitenciárias femininas decorre do fato de elas não serem como as dos homens. Além do mais, a ideia de que o ‘direito é gendrado’ não nos exige estabelecer uma categoria fixa ou um referente empírico de Homem e de Mulher. Abre-se espaço, desse modo, à noção mais fluida de uma posição de sujeito gendrado que não se fixa com base em nenhum determinante de sexo: nem biológico, nem psicológico, nem social17. Com isso, podemos voltar nossa atenção para as estratégias que tentam ‘fixar’ o gênero em rígidos sistemas de significados no lugar de adotarmos, nós mesmas, essas práticas.
Isso quer dizer que podemos passar a enxergar a maneira pela qual o direito insiste em uma versão específica de diferenciação por gênero sem a necessidade de propor nossa própria forma de diferenciação como ponto de partida ou como ponto final. Assim, evitamos tanto a armadilha de estabelecer uma Mulher pré-cultural para podermos medir as distorções patriarcais (ou seja, o ponto de partida) quanto uma Utopia em que se vislumbre a situação das mulheres quando o patriarcado for superado (o ponto final). Logo, é possível incorporar perspectivas como a de Allen (1987), quanto ao fato de o direito só conseguir ver e pensar um sujeito gendrado, sem invocarmos, nós mesmas, semelhante forma de diferenciação. Vale mostrar aqui o que Allen defende. Ela examina o uso do conceito de bom senso do ‘homem médio’ no direito penal, que sempre foi visto como um ‘teste objetivo’ para determinar a intenção do agente (mens rea). No entanto, a autora demonstra a completa impossibilidade de tal premissa:
O discurso jurídico, assim, incorpora uma divisão sexual não apenas quanto ao que o direito pode legitimamente ‘fazer’, em termos de certos dispositivos e procedimentos, mas também, e mais profundamente, quanto ao que se pode argumentar com razoabilidade. Todavia, subjacente a esse fator, podemos identificar um terceiro, e mais profundo, nível de divisão sexual no discurso jurídico – no nível do que o direito pode inteligivelmente pensar. O que se revela nesses argumentos é que, em última instância, o discurso jurídico simplesmente não consegue conceber um sujeito do qual o gênero não seja um atributo determinante: não consegue pensar tal sujeito. (ALLEN, 1987, p. 30).
Sob esse prisma, podemos desconstruir o direito gendrado em suas visões e práticas, mas também perceber como o direito opera enquanto tecnologia de gênero (DE LAURETIS, 1987)18, o que significa dizer que podemos começar a analisar o direito como um processo de produção de identidades de gêneros fixas e não como mera aplicação da lei a sujeitos previamente gendrados.
O novo entendimento segundo qual ‘o direito é gendrado’ e não sexista ou masculino leva a uma outra forma de questionamento. Em vez de ‘Como o direito pode transcender o gênero?’, a pergunta mais produtiva passa a ser ‘Como o gênero opera no direito e como o direito opera para produzir o gênero?’. O importante de perguntas dessa natureza é o abandono de qualquer intenção de neutralidade de gênero19. Além disso, o direito deixa de ser definido como o sistema que pode impor a neutralidade de gênero para ser redefinido como um dos sistemas (discursos) produtores não apenas de diferenças de gênero, mas também de formas bastante específicas de diferenças polarizadas. O direito é visto como um domínio que traz à existência tanto posições de sujeitos gendrados quanto subjetividades ou identidades com as quais o indivíduo é relacionado ou associado (o que talvez seja mais controverso). Portanto, é apropriado, neste estágio da argumentação, voltarmos para a noção de direito enquanto estratégia criadora de gênero, que deve ser considerada juntamente com a ideia de que o ‘direito é gendrado’.
2. O direito como estratégia criadora de gênero
Nesta seção, minhas considerações são feitas no sentido de desenvolver o argumento de que Mulher é uma posição de sujeito gendrado que o discurso jurídico traz à vida20. Tratase, por certo, de uma afirmação abrangente, a qual suscitará protestos de quem clama que mulheres sempre existiram; que elas não tinham de esperar que o direito lhes permitisse a entrada no Social; que o direito não é tão poderoso; que as mulheres são produto de processos naturais e biológicos, e assim por diante. Posso reconhecer a validade de alguns desses pontos, pois o direito por si só certamente não constitui o que é a Mulher. Todavia, talvez seja necessário considerar o que se entende por Mulher e por ‘estratégia criadora de gênero’ antes de examinar mais detalhadamente os papéis desempenhados pelo direito e pelo discurso jurídico.
A Mulher não é mais autoevidente (RILEY, 1988; HEKLAN, 1990; SPELMAN, 1988; BUTLER, 1990; FUSS, 1989)21. Tal afirmação é, por óbvio, uma afronta ao senso comum, que sabe muito bem o que são mulheres e que reage de forma veemente caso alguém tente diluir as fronteiras naturalmente dadas entre os dois sexos (também naturalmente dados). Antes, porém, devemos fazer a distinção entre Mulher e mulheres, diferenciação essa já conhecida pelas feministas, que, por séculos, têm afirmado que a ideia de Mulher (por vezes, o ideal de Mulher) está bem distante do que são as mulheres reais. Ademais, é característico do feminismo alegar ter um acesso a mulheres reais que seria negado aos que percebem o mundo por meio de visões patriarcais. Então, a diferença entre Mulher e mulheres não é nova, mas se tornou mais complexa. Começamos, por exemplo, a reconhecer que a Mulher não é simplesmente um ideal patriarcal, e que as mulheres evocadas pelo(s) feminismo(s) talvez sejam a Mulher do(s) discurso(s) feminista(s) ou a Mulher construída por esse(s) discurso(s), em vez de uma realidade não mediada, que simplesmente se manifesta. Em outras palavras, a reivindicação de uma realidade absoluta situada no corpo das mulheres, com base na qual os excessos do patriarcado podem ser medidos, tornou-se menos sustentável. O feminismo não ‘representa’ as mulheres. De fato, como argumentou Butler,
[...] há o problema político que o feminismo encontra na suposição de que o termo mulheres denote uma identidade comum. Ao invés de um significante estável a comandar o consentimento daquelas a quem pretende descrever e representar, mulheres – mesmo no plural – tornou-se um termo problemático, um ponto de contestação, uma causa de ansiedade. (BUTLER, 1990).22
Há quem afirme que essa forma de pensar destitui o feminismo de sua representatividade e, consequentemente, o ameaça enquanto movimento social e político. Entretanto, adotar essa postura seria presumir que tanto a inovação intelectual quanto o trabalho político devem se fundamentar em um objeto de conhecimento absoluto e não mediado. Essa exigência parece valer exclusivamente para quaisquer vertentes do feminismo pós-estruturalista, enquanto se permite que muitos outros feminismos sigam operando de acordo com uma lógica do “como se”23. De fato, já há muito tempo o feminismo problematiza o senso comum e seu complemento, o ‘real não mediado’, reconhecendo os elementos culturais e históricos do conhecimento, e rejeitando a existência de uma autoridade transcendental. Portanto, se aceitamos que a Mulher e as mulheres não são reduzíveis a categorias biológicas ou – no mínimo – que signos biológicos não são essências que originam uma categoria homogênea de mulheres, podemos passar a admitir que há estratégias pelas quais a Mulher e as mulheres são trazidas à existência. Tais estratégias (nas quais incluo tanto o direito quanto a disciplina24) variam de acordo com a história e a cultura, além de serem contraditórias e até ambivalentes. Também podem ser estratégias sem autores na medida em que não deveríamos supor que estratégia, no contexto aqui abordado, implica um plano arquitetado com antecedência por atores extraculturais (cartesianos).
Há, é claro, uma distinção a ser feita entre a produção discursiva de um tipo de Mulher e a construção discursiva de Mulher. Trago aqui esses dois significados, pois acredito que operam em simbiose. Em poucas palavras, a construção25 discursiva (jurídica) de um tipo de Mulher pode se referir à criminosa, à prostituta, à mãe não casada, à mãe infanticida, e assim por diante. A construção discursiva de Mulher, por sua vez, evoca a ideia de Mulher em oposição à de Homem. Esse movimento sempre destrói ou ignora as diferenças contidas em cada uma dessas categorias – Mulher e Homem – para dar peso a uma diferenciação supostamente anterior – aquela feita entre os sexos. Então, a diferenciação anterior age como um movimento fundacionista no qual outras diferenciações podem ser ancoradas. Assim, a criminosa é um tipo de mulher que pode distinguir-se de outras mulheres, mas, ao mesmo tempo, o que ela é está contido em uma categoria anterior de Mulher sempre já oposta a Homem. Dessa maneira, ela pode ser uma mulher desviante por conta da distância que a separa das outras mulheres, mas, simultaneamente, ela celebra a diferença natural entre Mulher e Homem. Apenas com base no entendimento desse movimento duplo, somos capazes de compreender o que, do contrário, poderíamos confundir com inconsistência ou generalização. Em vez de considerar que se trata de uma contradição que pode ser resolvida com um pouco de lógica, devemos reconhecer que o próprio alicerce do constructo discursivo da Mulher moderna está atolado nessa estratégia dupla.
Por conseguinte, a Mulher sempre foi ao mesmo tempo gentil e mortífera, ativa e agressiva, virtuosa e má, respeitável e abominável, e não ou virtuosa ou má26. A Mulher, portanto, representa tanto uma dualidade bem quanto um dos lados de uma distinção binária anterior. Sendo assim, no discurso jurídico, a prostituta é construída como a mulher ruim, mas ao mesmo tempo é o epítome de Mulher em oposição a Homem. Assim ocorre porque ela é o que qualquer mulher poderia ser e porque representa um desvio de conduta e uma licenciosidade decorrentes de sua forma corpórea (supostamente dada naturalmente), enquanto o homem permanece inócuo27.
Embora essas estratégias produtoras de gênero sejam muitas e variadas, conto, aqui, uma história bastante direta para chegar, sem mais delongas, ao tópico que desejo discutir, o direito. Já se afirmou que os fatos ocorridos no fim do século XVIII e no século XIX na Grã-Bretanha marcaram um momento importante na história do gênero. Testemunhou-se, nesse período, uma tal polarização dos gêneros que deixou a diferença cada vez mais fixa e rígida e, ao mesmo tempo, naturalizada (DAVIDOFF; HALL, 1987; JORDONOVA, 1989;LAQUEUR, 1990). Os discursos científicos foram cruciais para esse processo, pois conferiram novo vigor às religiões e às crenças filosóficas tradicionais sobre a inferioridade das mulheres. Estas foram cada vez mais estreitamente associadas a seus corpos, que se tornaram tanto sobredeterminantes quanto patológicos. É possível defender que os discursos da ciência, da medicina e, mais tarde, da psicanálise operaram para criar as diferenças de gênero que hoje assumimos como naturais. Ainda mais importante: tais discursos naturalizaram o ideal das diferenças naturais. Na mesma época, é claro, o feminismo construía uma outra Mulher, uma Mulher que não era semi-incapaz (classe média) nem sexualmente licenciosa e pervertida (classe trabalhadora). Porém, até mesmo esse discurso feminista fixava a diferença no campo do natural.
Para a minha análise do direito, o século XIX também é particularmente significativo. Esse período marca o ápice do processo da exclusão jurídica das mulheres da sociedade civil (com a negação, por exemplo, da personalidade jurídica da mulher casada), bem como o momento em que a lei escrita passa a definir com mais detalhes as incapacidades jurídicas da Mulher (em outras palavras, podemos sustentar que o gênero se tornou gradualmente mais rígido em termos de seus atributos e em termos de uma polarização cada vez maior). Em níveis mais básicos, verificamos que as leis do século XVIII e de períodos anteriores apresentavam termos muito vagos e eram por demais sucintas (pelo menos aos olhos do século XX). Entretanto, o século XIX sinaliza um momento no qual ocorre um maior refinamento e uma classificação pormenorizada das categorias relevantes e dos sujeitos jurídicos.
Poderíamos afirmar que o Direito do século XIX nos trouxe um conjunto de posições de sujeitos gendrados definidas com mais rigor. Notamos também como o direito e a disciplina ‘encorajaram’ as mulheres a assumir essas identidades e subjetividades. Essa ideia talvez seja mais bem compreendida com um exemplo, e agora gostaria de lançar mão da maternidade. Não o faço, contudo, relativamente à boa mãe, nem mesmo à mãe ‘boa o suficiente’ – o que me interessa aqui é a mãe ruim.
Um exemplo do direito como estratégia criadora de gênero: especificando a categoria da mãe ruim
Ainda que eu tenha apontado o século XIX como um momento particularmente significativo no processo de fixação de identidades gendradas, iniciarei minha história em uma época anterior para identificar de que modo o engajamento do direito e da disciplina, como duas formas distintas de regulação, assinala, nesse período, uma ruptura com períodos antecedentes.
Minha história começa no ano de 1623 na Inglaterra, quando uma nova lei entrou em vigor, estabelecendo um novo crime e um novo tipo de criminosa. A norma tornou ilícito penal o fato de uma mãe matar seu bebê bastardo, crime que passou a ser, então, punível com pena de morte. O problema foi que, com a nova lei, se assumia a culpa da mãe caso seu filho morresse, cabendo a ela a apresentação provas da sua inocência. A presunção de culpa era extremamente rara no direito inglês, e a mãe não casada passou a existir, assim, no âmbito jurídico como homicida presumida. Deve-se enfatizar que, naquela época, o Estado não regulava o casamento, tampouco insistia em um casamento formal; desse modo, o estado de casada, ou de não casada, era, em alguns sentidos, mais fluido, especialmente porque muitos casais não oficializavam sua união até que tivessem vários filhos.
Temos, aqui, a problematização de um tipo específico de maternidade. Sua regulação tomaria a forma mais tarde identificada por Foucault (1977) como o poder do soberano de infligir a morte. Essa mulher talvez seja uma das primeiras a ser tratada em um texto legal especificamente como Mulher28. Sua presença marca uma gama de associações que, embora implícitas, devem ser entendidas para que a legislação faça sentido. Além de não ser casada e, assim, não estar protegida, essa mãe também pertence a uma classe social específica (ou seja, é pobre) e se vê privada de condições materiais para criar seu filho. No entanto, ela seria executada caso tentasse escapar de sua situação de infortúnio – ainda que a criança morresse de causas naturais (ou em decorrência dos efeitos da miséria na gravidez e no parto).
Essa lei era tão draconiana que raramente era aplicada, pois os júris não costumavam condenar as acusadas. É possível, entretanto, mapear como a estratégia de infligir punição severa a algumas poucas se traduziu em modos de disciplina e vigilância empregados para muitas. As penas tornaram-se menos rigorosas, mas menos mulheres escapavam do alcance das formas revisadas de categorização jurídica.
Em 1753, a Lei do Casamento, elaborada por Lorde Hardwick, deu início ao processo de regulamentação do casamento de forma a extinguir estados indeterminados de semimatrimônio – as mulheres ou eram casadas ou eram solteiras. Em 1803, a severa Lei do Infanticídio de 1623 transformou-se na norma referente à ocultação de nascimento. A presunção de inocência foi restaurada, e a pena, bastante reduzida. Porém, o objetivo da lei era abranger um maior número de mulheres, porque não havia requisitos para definir homicídio. No mesmo ano, 1803, entrou em vigor a primeira lei penal sobre o aborto. A interrupção da gravidez em qualquer estágio foi criminalizada, e, embora a lei fizesse uma distinção quanto aos primeiros meses de gravidez, essa diferenciação foi posteriormente suprimida. O direito inglês nunca criminalizou a produção e a venda de informações sobre métodos contraceptivos (como ocorreu no direito canadense, por exemplo), mas a propagação de tais informações era efetivamente controlada por meio de ações penais de iniciativa privada contra calúnia ou difamação de natureza blasfema ou obscena. Em 1882, a idade de consentimento subiu para treze anos, e, em 1885, para dezesseis. O casamento não podia ser realizado antes dessas idades, o que expunha, ao escrutínio jurídico e filantrópico, as mulheres jovens que engravidavam e estavam impedidas de casar. Em 1913, a Lei sobre Deficiência Mental passou a facilitar o encarceramento de mães não casadas com base em estados de imbecilidade moral ou fragilidade mental.
Acredito não apenas que essas diferentes formas de direito construíram uma categoria de maternidade perigosa, mas também que a rede do direito se ampliou precisamente no momento em que esse mesmo direito dificultava cada vez mais para a mulher a prevenção da gravidez e do parto fora do casamento. O final do século XIX e o início do XX na Inglaterra coincidem, ainda, com o problema do excedente de mulheres, as quais não tinham a menor chance de se casar devido ou à exportação de homens para as colônias ou ao massacre da população masculina nas muitas guerras.
As penas (especialmente para o infanticídio) se tornaram menos rigorosas; um maior número de mulheres, porém, caía na teia da maternidade inescapável. Se recorressem ao uso de contraceptivos ou ao aborto, seriam condenadas como prostitutas ou (quase) homicidas; caso não tivessem sucesso, estariam sujeitas às então mais recentes formas de disciplina, que se apresentavam como filantropia e como normas/leis sobre saúde mental. Podemos ver, portanto, como a maternidade foi, com efeito, construída materialmente como uma consequência ‘natural’, logo, inevitável, do heterossexo. Meios de prevenir a gravidez foram negados às mulheres, e a inevitabilidade da ligação entre sexo e reprodução se estabeleceu mediante repressão severa daquelas que utilizavam meios tradicionais de romper esse vínculo. Observamos a expansão da maternidade compulsória no sentido de alcançar qualquer mulher heterossexualmente ativa. Não obstante, por maternidade compulsória, não me refiro simplesmente à imposição da gravidez e do parto, mas também à entrada no nexo de significados e comportamentos tidos como constituintes da maternidade adequada. Ademais, na virada do século XIX para o XX, testemunhamos o aumento da vigilância e da intervenção institucionalizada nas vidas das mulheres com o estabelecimento e a disseminação das visitas tanto de agentes de saúde quanto de assistentes sociais (DAVIN, 1978; DONZELOT, 1980).
A mãe não casada obviamente servia (e ainda serve) para reforçar nosso entendimento cultural do que significa a maternidade ‘adequada’. Nessa lógica, ela é um tipo de mulher, e não Mulher. Ao mesmo tempo, contudo, ela opera no discurso como Mulher por evocar o lugar adequado do Homem. Ela é o problema (supostamente) porque não tem um homem. Sendo assim, o Homem é a solução; ele significa a estabilidade, a legitimidade e o domínio, que, nela, não estão apenas ausentes, mas também invertidos. A mãe não casada, dessa forma, é também a Mulher quintessencial, porque representa todos os valores que invertem as características desejáveis do Homem.
Neste momento, pode parecer que minhas preocupações estão no campo do simbólico. Entretanto, meus interesses vão além disso, pois o meu objetivo ao mapear o desenvolvimento do sujeito jurídico ‘mãe não casada’ é lançar luz sobre o regime dominante de significado que sempre já trata essa mulher como problemática e desestabilizante. Assim como Foucault mostrou que categorias como criminoso ou homossexual não são entidades pré-existentes a serem investigadas e entendidas pela ciência, também podemos ver que a mãe não casada surge como consequência de estratégias e saberes específicos. Embora não seja uma categoria fixa ou imutável, ela entra em uma rede já estabelecida de significados que tornam a instabilidade e a periculosidade praticamente autoevidentes, transformando-as em noções de senso comum.
A relevância dessa questão para a situação contemporânea reside no fato de mais e mais mulheres poderem ser inseridas nessa categoria. A Lei de 1623, que mencionei no início desta seção, afetou relativamente poucas mulheres. Agora, contudo, a categoria abarca as mães que criam seus filhos sozinhas por nunca haverem casado ou por terem se divorciado (a viúva raras vezes é incluída nesse rol, porque se considera que ela mantém o pai simbólico vivo; assim, dificilmente é vista como uma mãe sozinha29). Nos últimos anos, passaram a integrar essa categoria a mãe “gestacional” (como a “barriga de aluguel”) e a mulher que busca tratamento para infertilidade. Gostaria, por isso, de encerrar minhas considerações com um exemplo contemporâneo. Em 1990, o Parlamento inglês aprovou a chamada Lei de Embriologia e Fertilização Humana (Human Fertilisation and Embryology Act). Em seu artigo 13(5), a norma traz o seguinte dispositivo, vertido aqui para o português:
Não será concedido tratamento à mulher a não ser que se tenha considerado o bem estar da criança que possa nascer como resultado desse tratamento (incluindo a necessidade de um pai)...30
Trata-se de legislação que também perpetua a ficção de que o marido de uma mulher é o pai de seus filhos, mesmo sem haver vínculo biológico entre eles (no caso de Inseminação Artificial por Doador, por exemplo). Cria, ainda, uma nova forma de filiação ilegítima ao insistir que o marido, mesmo sendo o pai biológico do bebê, não será o pai aos olhos do direito se o uso de seu esperma ou a implantação de seu embrião ocorrer após sua morte.
Tais medidas apenas fazem sentido se se presumir que a mãe sem marido é um perigo. Pode parecer que essas regras são muito diferentes daquelas aprovadas em 1623 ou no século XIX, mas elas se alicerçam em um entendimento da categoria Mulher do qual o direito é coautor. É essa Mulher do discurso jurídico que o feminismo deve continuar a desconstruir, sem criar, todavia, uma Mulher normativa que volte a impor uma homogeneidade que, com muita frequência, é moldada em nossa própria privilegiada semelhança branca.
Considerações finais
Por óbvio, é quase impossível concluir. De qualquer jeito, não quero impor um falso encerramento no momento em que estamos apenas começando a fazer perguntas cada vez mais desafiadoras. Do meu ponto de vista, os estudos feministas sociojurídicos se deparam com duas tarefas principais no início dos anos 1990. A primeira é enfrentar com coragem o fato de que o direito não é apenas o direito, quero dizer, não é somente um conjunto de mecanismos ou regras que podemos adaptar da forma que nos seja mais favorável. Embora já saibamos disso há muito tempo, não tenho certeza de que tenhamos utilizado esse conhecimento suficientemente bem. O desejo de ser político se confundiu com o desejo de ser prático, e então o direito continua a ocupar um espaço conceitual em nosso pensar que nos encoraja a compactuar com a judicialização do dia a dia. Devemos, portanto, permanecer críticas acerca dessa tendência sem abandonar o direito enquanto lugar de conflitos. A segunda tarefa é reconhecer o poder do direito como uma tecnologia de gênero, sem que sejamos silenciadas por tal entendimento. Assim, devemos compreender o poder do direito como sendo mais que a sanção negativa que oprime as mulheres. O direito é também fonte de identidade e diferença de gênero, mas não é monolítico nem unitário.
Além disso, há muito mais trabalho a ser feito no sentido de investigar como as mulheres têm resistido e negociado as construções de gênero, uma vez que não devemos cair em uma nova forma de determinismo segundo a qual o poder, por ser construtivo, cria mulheres em um formato predeterminado, calculado e impotente de mulher. Logo, proponho aqui que o direito continue a ser um alvo válido do escrutínio feminista teórico e político, mas também postulo a necessidade de repensarmos nosso entendimento acerca da relação entre ‘direito’ e ‘gênero’. Reconhecer que o direito é um problema mais complexo do que se pensou até o momento não precisa ser, entretanto, motivo de desespero, já que podemos observar claramente que os estudos e as pesquisas feministas demonstram muito mais tenacidade e perspicácia do que um dia se imaginou.
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Notas
SMART, Carol Christine. The Woman of Legal Discourse. In Social & Legal Studies, Vol. 1, 1992, p. 29 – 44. [Os direitos autorais foram adquiridos pelas tradutoras e concedidos para publicação na Revista Direito e Práxis]. A versão original deste artigo foi apresentada em 16 de maio de 1991, no formato de Palestra Inaugural, quando assumi (temporariamente) a Cátedra Belle van Zuylen, na Faculdade de Estudos Feministas na Universidade de Utrecht, Holanda. O estilo oral foi mantido.
O direito, entretanto, também é muito mais que a soma desses elementos. Ele também é o que as pessoas acreditam que ele é, uma vez que podem usá-lo para guiar suas ações. De fato, podemos até mesmo sugerir que o direito cria subjetividades, bem como posições de sujeito. Veja, por exemplo, o conceito de bastardo, que se tornou a categoria de ilegitimidade no século XX. Era uma mera categoria jurídica, mas se tornou um fator de classificação econômica e uma questão psicológica. Por meio dela, produzimos crianças desfavorecidas e adultos sem direito a herança.
Autor notes