Resumo: O estudo objetiva, em primeiro plano, apresentar o estado da arte das pesquisas que possuem como objeto a criminalidade e a criminalização das mulheres. Ao mapear os estudos criminológicos contemporâneos, busca, em segundo plano, delimitar os temas e os problemas de investigação das criminologias feministas e crítica para, posteriormente, identificar as zonas de convergência e de conflito. A hipótese central do artigo é a de que é possível identificar a permanência da criminologia positivista nas ciências criminais também nos estudos que envolvem crimes praticados por e/ou contra mulheres e que as criminologias feministas e a criminologia crítica, apesar de divergências (reais e/ou aparentes) nos campos epistemológico e político-criminal, apresentam uma identidade comum antipositivista que possibilita o redimensionamento das perguntas que entrelaçam as questões penal e criminal com as de gênero. O estudo se desenvolve a partir do levantamento das principais pesquisas sobre os temas e propõe uma reflexão teórica que procura identificar uma hipótese comum ou identidade compartilhada entre a teoria crítica (criminologia crítica) e o feminismo (criminologias feministas).
Palavras-chave: Criminologia FeministaCriminologia Feminista,Criminologia CríticaCriminologia Crítica,FeminismoFeminismo,Teoria CríticaTeoria Crítica,Violência de GêneroViolência de Gênero.
Abstract: The aim of this paper is to, first, discuss the state of the art of the literature on criminality and women’s criminalisation. In mapping contemporary criminological studies, it seeks, secondly, to delimit the themes and the topics of research of feminist criminology and critical criminology, in order to identify zones of convergence and conflict. The main hypothesis of the article is that it is possible to identify the constant use of positivist criminology in studies involving crimes committed by and / or against women, and that feminist criminology and critical criminology, despite differences (real and / or apparent) in the epistemological and political-criminal fields, present a common anti-positivist identity that allows the reshaping of questions that combine criminal and gender issues. The study conducts a review of the main literature on the topic, followed by a theoretical reflection that seeks to identify a common hypothesis or shared identity between critical theory (critical criminology) and feminism (feminist criminology).
Keywords: Feminist Criminology, Critical Criminology, Feminism, Critical Theory, Gender Violence.
Artigos
Criminologia Feminista com Criminologia Crítica: Perspectivas teóricas e teses convergentes
Feminist Criminology allied to Critical Criminology: theoretical perspectives and convergent theses
Recepção: 12 Novembro 2018
Aprovação: 10 Julho 2019
A tensão entre criminologia crítica e criminologia feminista, sobretudo nos planos epistemológico e político-criminal, é uma variável constante nos debates do campo há, no mínimo, três décadas. Embora muitas hipóteses tenham sido consolidadas, ainda existe um amplo espaço de problematização e, sobretudo, de aproximação entre ambas as perspectivas criminológicas.
Neste cenário, os objetivos centrais do trabalho são (primeiro) delimitar os objetos de investigação das criminologias feministas e da criminologia crítica; (segundo) mapear os estudos criminológicos contemporâneos de corte positivista que possuem como objeto a mulher autora e vítima de delitos; e (terceiro) identificar as zonas de convergência entre as tendências crítica e feminista na qualidade de modelos contrapostos ao positivismo criminológico. Como ponto de partida, optou-se por identificar a permanência da criminologia positivista nas ciências criminais, inclusive com uma importante projeção nos estudos que envolvem crimes praticados por e/ou contra mulheres. A demonstração do atual estado da arte das investigações de corte etiológico sobre temas que envolvem estas espécies de crimes possibilita, inclusive, verificar os níveis de aproximação da criminologia positivista com algumas perspectivas liberais do feminismo.
Fundamental referir que este ensaio é a primeira etapa de um projeto mais amplo que propõe discutir as convergências e as divergências entre feminismo e teoria crítica na criminologia. Neste momento, realizamos um esforço inicial para apresentar as pautas confluentes e harmônicas entre as criminologias feministas e crítica, notadamente no que diz respeito à dimensão negativa antipositivista. O estudo abre caminho para uma exploração seguinte, em fase de desenvolvimento, que ultrapassa os limites deste artigo, e que tem como objetivo: (primeiro) discutir os contrapontos nos planos epistemológico e político, inclusive político-criminal, apontando divergências reais e/ou aparentes; e (segundo) problematizar a necessidade de compatibilização ou de superação (dialética) dos modelos, notadamente em razão do respeito à identidade e à autonomia de cada perspectiva crítica. Alguns pontos de tensão entre as criminologias feministas e as criminologias (positivista e crítica) podem ser identificados no clássico debate proposto por Carol Smart (1990, pp. 71-84). Os problemas decorrentes desta tensão vem sendo aprofundados e sofisticados nas últimas décadas, tendo a criminologia feminista brasileira apresentado importantes conclusões ao apontar ser imprescindível que as criminologias estejam abertas e permitam ser atravessadas pelo feminismo, sobretudo nas suas dimensões interseccional e decolonial.1 O diálogo entre os feminismos e a crítica permite, igualmente, que sejam realizadas as sempre necessárias autocríticas, não apenas no que diz respeito à percepção do limites de cada modelo2, mas, sobretudo, as tendências colonizadoras. Neste sentido, fundamental ressaltar como a criminologia crítica, de base marxista, historicamente silenciou as questões de gênero e de raça.3
O presente estudo concentra-se, porém, em uma etapa anterior (e menos tensa) das relações entre as criminologias feministas e crítica ao identificar uma hipótese comum convergente: o antipositivismo. Assim, procuramos mapear a atualidade das pesquisas criminológicas de base positivista centradas nas pesquisas sobre mulheres vítimas e autoras de delito a partir de determinados tipos criminológicos (homem-abusador; mulher-delinquente; e mulher-vítima) para, posteriormente, indicar zonas de convergência que permitem redimensionar as perguntas que entrelaçam as questões penal e criminal com as de gênero.
A investigação se desenvolve a partir do levantamento das principais pesquisas sobre os temas, especialmente as pesquisas realizadas no Brasil, seguida de uma reflexão teórica que procura identificar uma hipótese comum ou uma identidade compartilhada entre a teoria feminista (criminologia feminista) e a teoria crítica (criminologia crítica).
2.1. O salto qualitativo proporcionado pela criminologia crítica foi o de elevar as pesquisas nas ciências criminais da perspectiva micro à perspectiva macrocriminológica. Significa dizer que a criminologia crítica ampliou o campo de visão da criminologia (e também o do direito penal dogmático) ao orientar sua análise às violências estruturais e institucionais e aos fatores de vulnerabilidade e de seletividade que operam nos processos de criminalização. Se a criminologia ortodoxa4 operou uma atomização do objeto criminológico aos conflitos interindividuais, procurando identificar nos atores diretamente envolvidos no delito os fatores explicativos da criminalidade (paradigma etiológico), a criminologia crítica redirecionou a lente com o objetivo de explorar os processos seletivos de criminalização e as violências produzidas pelas próprias agências responsáveis pelo controle penal.
No que diz respeito especificamente às mulheres envolvidas em situações de violência, na qualidade de autoras ou de vítimas de crimes, a criminologia ortodoxa não procedeu de forma distinta, pois o conhecimento produzido sempre restou limitado à interpretação dos conflitos como resultado de uma dinâmica estritamente individual e privada (microcriminológica). Assim, no marco do positivismo criminológico, as violências que envolvem as mulheres foram inseridas em um horizonte de investigação cuja base interpretativa era (e em grande medida continua sendo) causalista.
Neste cenário de ingerência científica delimitado pelo paradigma etiológico figuram, como objeto de investigação, alguns personagens que foram elevados a tipos criminológicos: (primeiro) o homem-abusador; (segundo) a mulher-delinquente; e (terceiro) a mulher-vítima.
2.2. Nas pesquisas ortodoxas sobre o homem delinquente, a classificação e a caracterização dos agressores que praticam violências contra as mulheres são realizadas basicamente a partir da espécie do delito cometido. As imagens do delinquente concentram-se fundamentalmente em três estereótipos criminais não excludentes: os criminosos sexuais (estupradores), os feminicidas e os agressores domésticos.
A elaboração de tipologias sobre delinquentes sexuais sempre foi uma das principais tarefas impostas pela criminologia etiológica. Não apenas pela associação tradicional da imagem do estuprador com um sujeito irracional e insano, mas pela própria representação social do estupro como um dos crimes mais graves e bárbaros que atingem as sociedades civilizadas.5 Não por outra razão, este tipo criminológico é central nas análises dos fatores psicológicos da conduta delitiva, notadamente no que tange à identificação e à classificação de transtornos de personalidade associados ao crime.6 Sobretudo nas investigações que aproximam criminologia ortodoxa e psicologia cognitivo-comportamental, ainda são muito frequentes trabalhos acadêmicos orientados à elaboração de perfis de estupradores, à identificação da disfunção psicológica que causa a violência sexual e, em consequência, à construção de instrumentos de avaliação e predição de crimes sexuais.7
Os estudos da criminologia positivista sobre as formas de violência contra as mulheres desdobraram uma série de pesquisas contemporâneas direcionada à categorização etiológica, como, p. ex., de identificação do perfil criminológico do feminicida8 e do agressor doméstico9, e, especialmente no campo da saúde, de mapeamento epidemiológico da violência doméstica.10
2.3. O campo de análise da criminalidade feminina se desenvolveu, originalmente, através da transferência e adaptação das categorias antropológicas, biométricas e psicológicas de classificação para a elaboração de um tipo criminológico da mulher-delinquente.
O trabalho que inaugura os estudos sobre a criminalidade feminina é o livro de Lombroso e Ferrero, “A Mulher Delinquente, a Prostituta e a Mulher Normal”, de 1893. Na obra, Lombroso e Ferrero delimitam as espécies de delitos praticados pelas mulheres (delitos de paixão, delitos sexuais, delitos da maternidade etc.) e apresentam as características patológicas e antropométricas e os aspectos biológicos e psicológicos da mulher-delinquente e da prostituta. Assim, criam uma taxionomia similar àquela que anteriormente definiu o homem criminoso: a criminosa-nata, ocasional ou passional; a prostituta-nata e ocasional; as loucas, epiléticas e histéricas (Lombroso, & Ferrero, 1903, pp. 181-187, pp. 261-324 e pp. 371-626).11 Chama a atenção na tipologia a inserção de uma categoria própria para as criminosas: as histéricas. Assim, a associação desta espécie de enfermidade mental ao sexo feminino irá, gradualmente, vincular às mulheres criminosas também o estigma de louca. Ademais, esta explicação fornecia uma resposta relativamente adequada à grande questão que moveu os estudos criminológicos em relação à delinquência feminina: “por que mulheres delinquem menos que homens?” E em que pese o pensamento criminológico sempre ter afirmado uma diferença quantitativa dos crimes praticados pelas mulheres em relação à criminalidade masculina, qualitativamente o efeito punitivo sempre foi substancialmente mais severo, visto o processo de psiquiatrização a que as mulheres historicamente foram (e são) submetidas no interior das agências de punitividade (Weigert, 2017a, pp. 105-140; Weigert, 2016, pp. 131-150). Assim, ao mesmo tempo em que são invisibilizadas no sistema penal em decorrência da baixa incidência de crimes, a resposta fornecida pelas ciências criminais (âmbito científico) e pelas agências do Estado Penal (esfera político-criminal) é amplificada, pois conjuga práticas punitivas e psiquiátricas a partir deste diagnóstico que combina doença mental/delito/gênero.
Para além destas perspectivas biopsicológicas que fundamentaram as análises mais tradicionais da criminologia, a partir da década de 60, com a identificação do aumento da criminalização de mulheres, algumas explicações derivadas do campo sociológico procuraram vincular o fenômeno ao ingresso da mulher na esfera pública. Mas apesar do influxo sociológico, estas análises restaram concentradas em questões causais que explicariam a diferença entre as tendências que impulsionariam homens e mulheres à prática delitiva (Ishiy, 2015, pp. 93-100).
2.4. Os estudos de Von Hentig, na década de 50, inauguram uma nova perspectiva na identificação do papel dos sujeitos do crime e, em consequência, alteram a imagem tradicional da vítima como um ator passivo do fenômeno delitivo. Von Hentig concentra suas investigações (primeiro) nas características que a vítima possui e que precipitam o seu próprio sofrimento e (segundo) no relacionamento que se estabelece entre a vítima e o agressor. O objetivo na exploração da dinâmica criminal era o de apresentar um modelo no qual a vítima fosse compreendida como peça fundamental na situação de violência em razão de consentir, cooperar, conspirar ou inclusive provocar o delito (Zedner, 2002, p. 420).
A classificação das vítimas em tipologias análogas àquelas que caracterizam os criminosos possibilitou reforçar a compreensão etiológica, desdobrando um modelo de vitimologia ortodoxa que reproduz os estereótipos do positivismo - “em 1950, estudos de Von Hentig e Mendelsohn desenvolveram toda uma teoria sobre a disciplina que denominaram vitimologia, destacando uma tipologia das vítimas como as categorias ‘vitimas natas’ e ‘vítimas produzidas pela sociedade’, ao mais puro estilo lombrosiano” (Anthony Gárcia, 1995, p. 448).12 O efeito imediato foi o de conduzir a pesquisa vitimológica “à conclusão de que estas [vítimas] são, de uma ou de outra maneira, culpadas pelo delito que foi cometido contra elas (...). Estes primeiros estudos, repito, marcadamente inspirados no positivismo, reforçaram e reviveram investigações sobre as causas biológicas, antropológicas e sociais que levam à determinação da vítima” (Anthony Gárcia, 1995, p. 448).
Em paralelo aos estudos de Von Hentig, coube ao vitimólogo Mendelsohn desenvolver critérios de quantificação e de qualificação da culpa da vítima segundo sua maior ou menor contribuição ao crime, a partir das categorias victim-precipitation e victim-pronesses. Conforme Zedner, a graduação proposta por Menselsohn, que variaria entre a vítima completamente inocente e a vítima culpada, resultou na elaboração de critérios de valoração “altamente moralistas” (Zedner, 2002, p. 420). E são exatamente estes padrões morais, elevados a categorias científicas, que acabaram produzindo dobras de vitimização, notadamente com a culpabilização da vítima pelo delito sofrido, não apenas nos discursos cotidianos (everyday criminology13), mas também nas práticas do sistema penal (atuação das agências policial e judicial).
Neste cenário no qual a vitimologia positivista se integra à criminologia ortodoxa, a mulher-vítima ocupará um dos lugares de destaque da investigação científica. Em decorrência da matriz etiológica, estas pesquisas irão reproduzir e reforçar um modelo científico no qual a constituição da personalidade e o comportamento feminino serão interpretados como fatores determinantes da origem e da permanência da violência.14
2.5. Note-se, portanto, que apesar de a criminologia crítica ter sido responsável pela superação da criminologia etiológica, a partir da desconstrução dos fundamentos e das justificativas apresentadas pelo positivismo, há uma evidente continuidade da tradição ortodoxa que invade os estudos contemporâneos relacionados com o envolvimento das mulheres nas dinâmicas delitivas. Em sentido similar, apesar de a criminologia feminista (radical) ter sido capaz de (primeiro) sofisticar as hipóteses críticas e (segundo) aprofundar os questionamentos macrocriminológicos e epistemológicos, ainda permanece consistente a tradição científica que procura reduzir estas formas de violência à interindividualidade.
Desde o nosso ponto de vista, esta tendência microcriminológica desenvolvida pela criminologia positivista pode ser reproduzida em distintos níveis por modelos criminológicos e dogmáticos de inspiração liberal. Neste sentido, mesmo perspectivas emancipatórias que dialogam com a criminologia crítica (p. ex., o garantismo penal) e a criminologia feminista (p. ex., feminismo liberal) podem acabar sendo reduzidas à problematização das dinâmicas interindividuais em detrimento das institucionais e estruturais.
O esforço teórico para mapear os distintos impactos do feminismo liberal e do feminismo radical na criminologia decorre exatamente deste problema e da hipótese central que inspira o estudo: a partir da convergência prático-teórica das tendências crítica e feminista, demonstrar como o feminismo criminológico sofistica e aprofunda a crítica ao positivismo inaugurada pela criminologia crítica.
3.1. Conforme exposto, a perspectiva microcriminológica desenvolvida desde o paradigma etiológico se caracterizou pela limitação dos conflitos a uma dimensão particular e pela ênfase na identificação de características individuais, sobretudo psicológicas, que constituiriam as identidades do criminoso e da vítima. Neste ponto, criminologia crítica e criminologia feminista convergem naquilo que poderia ser denominado como pauta negativa (Carvalho, 2014, pp. 286-292), ou seja, na desconstrução dos fundamentos do positivismo e na problematização das justificativas às políticas criminais de intervenção punitiva. As zonas de convergências entre crítica e feminismo criminológicos ocorrem, pois, em três dimensões: (primeira) na negação dos processos de essencialização dos sujeitos envolvidos nas condutas qualificadas como crime; (segunda) na contraposição aos procedimentos institucionais de atomização e de congelamento do conflito em uma esfera exclusivamente interindividual; e, em consequência, (terceira) na substituição da perspectiva microcriminológica (essencializada e atomizada) de criminalidade pela noção macrocriminológica (dinâmica e interativa) de criminalização.
O essencialismo, em seus aspectos cultural ou biológico15, se caracteriza pela produção e reprodução de estereótipos sobre pessoas ou grupos identitários. Os processos de essencialização são dinamizados pela pessoa ou pelos grupos rotulados (essencialização endógena) ou, de forma oposta, hipótese mais comum, são deflagrados nas interações socioculturais de rotulação das diversidades (essencialização exógena).
Conforme ensina Jock Young, os processos de essencialização servem frequentemente para garantir privilégios e justificar desigualdades, ou seja, “(...) nos permite manter e aceitar posições de superioridade e de inferioridade” (Young, 2002, p. 157). Exatamente pela sua dimensão totalizadora, os essencialismos biológicos e culturais fixam e naturalizam imagens ou status (representações sociais) e, em consequência, legitimam inúmeras formas de exclusão através de ações políticas, pois (primeiro) proporcionam segurança ontológica ao fornecer uma impressão de solidez à estrutura social; (segundo) isentam responsabilidades ao excluir das ações humanas a dimensão das escolhas (liberdade) - “assim, todo e qualquer comportamento desviante ou danoso pode ser dirimido pela molécula causadora do vício em vez de sê-lo pelo autor” (Young, 2002, p. 155); (terceiro) justificam ações políticas inaceitáveis ao fornecer uma retórica fundada na herança cultural ou na identidade biológica; (quarto) afirmam a superioridade ao legitimar diferenças entre indivíduos e grupos, sobretudo no que diz respeito às dimensões raciais, de gênero ou de classe; (quinto) garantem unidades de interesse ao padronizar determinados valores como universais - “a reivindicação de uma unidade essencial de interesse entre todas as mulheres, todos os negros, etc., permite que diferenças de status e privilégios no interior desses grupos sejam ignoradas - algumas vezes convenientemente” (Young, 2002, p. 155); e (sexto) permitem a autotutela individual ou de grupos ao projetar no outro a responsabilidade por problemas sistêmicos (Young, 2002, pp. 154-158).
Com a teoria do labeling approach - condição teórica necessária para o advento da criminologia crítica (Baratta, 1991, p. 53) -, é consolidada a perspectiva desconstrutora da essencialização do criminoso em sua representação mais evidente, qual seja, aquela produzida pela figura pictórica lombrosiana do “homem delinquente”. O rotulacionismo é o modelo que firma a crítica à essencialização porque importantes antecedentes teóricos já haviam apontado problemas epistemológicos e metodológicos na fundamentação do estudo do crime na ideia de criminalidade, ou seja, na compreensão do delito como um atributo natural ou uma qualidade inerente de determinadas pessoas. Freud, p. ex., na parte final do trabalho “Vários Tipos de Caráter Descobertos no Trabalho Analítico” (1916), no estudo intitulado “O Criminoso por Sentimento de Culpa”, embora ainda operando desde um modelo etiológico, nega a possibilidade de universalização de uma causa única que explicasse as distintas formas de agir delitivo16; Sutherland, no clássico “Criminalidade de Colarinho Branco” (1940), ao propor o modelo da associação diferencial como hipótese para compreensão da totalidade dos comportamentos delitivos, desvincula o crime das condições psicopáticas ou sociopáticas vinculadas à pobreza e situa a conduta criminal no campo da aprendizagem (Sutherland, 1940, pp. 11-12).17
Todavia, é com a obra “Punição e Estrutura Social” (1939), de Rusche e Kirchheimer - validada por Thorsten Sellin e Edwin Sutherland (Anitua, 2008, p. 607) e considerada o marco inaugural da criminologia crítica - que a perspectiva essencializadora nas ciências criminais passa a ser organicamente questionada. Primeiro, porque os processos de essencialização são problematizados desde um marco teórico e metodológico consistente e contraposto ao modelo positivista etiológico; segundo, porque o tema da essencialização é inserido como objeto no campo dos problemas propriamente criminológicos.
Segundo Rusche e Kirchheimer, as tradicionais teorias da pena consideraram “(...) a punição como algo eterno e imutável”, refutando “qualquer tipo de investigação histórica” (Rusche & Kirchheimer, 1999, pp. 16-17). Neste contexto, a partir de um modelo crítico de análise, seria fundamental abster-se de “escrever a história da ideia da punição”, enfrentando as questões relativas aos “métodos de sancionar” (Rusche & Kirchheimer, 1999, pp. 16-17), notadamente porque as teorias da pena seriam totalmente insuficientes para explicar o fenômeno na realidade. Assim, Rusche e Kirchheimer rompem com a concepção ilustrada de existência de um vínculo (nexo de causalidade necessário) entre o crime e a pena no qual a sanção seria a consequência natural do delito (modelo absoluto de retribuição) ou um instrumento eficaz para consecução de determinados fins (as funções declaradas presentes, sobretudo, na gramática dos modelos preventivos).18 A punição deveria, portanto, ser investigada como um fenômeno autônomo dos conceitos jurídicos de delito e de pena: “a punição precisa ser entendida como um fenômeno independente seja de sua concepção jurídica, seja de seus fins sociais” (Rusche & Kirchheimer, 1999, p. 18). Se a relação entre crime e pena é, desde a perspectiva crítica, artificial, pois existente apenas no plano do direito (normativo) - notadamente porque para Rushe e Kirchheimer a forma jurídica da pena é alterada segundo as leis do mercado -, inexistiria um critério universal que estabelecesse uma simetria entre o dano provocado pelo delito e a sanção atribuível ao violador da norma.
A demonstração da ausência de nexo de causalidade entre crime e pena, a partir da hipótese da historicidade da punição, desdobra-se, inevitavelmente, na afirmação da própria historicidade do delito, ou seja, se a pena não decorre naturalmente do crime, pois está condicionada pelas relações materiais, o crime não constitui um universal absoluto ou uma qualidade inata do sujeito. Neste sentido, seria possível concluir que as condições históricas não definem apenas as formas de punição, mas igualmente os seus pressupostos, quais sejam, as hipóteses de criminalização. Da pena compreendida como consequência natural do crime, os estudos críticos são direcionados ao fenômeno punição; da exploração criminológica das causas da criminalidade, a nova perspectiva problematiza os processos de criminalização.
Se a “punição como tal não existe; existem somente sistemas de punição concretos e práticas criminais específicas” (Rusche & Kirchheimer, 1999, p. 18), conforme sustentam corretamente Rusche e Kirchheimer, é possível afirmar que o crime como tal não existe; existem somente sistemas de criminalização concretos e práticas criminalizadoras específicas. No léxico da criminologia crítica, a lei penal cria o criminoso, o crime e a pena, e não o contrário. Inexistem atos ou sujeitos criminosos em si (crime natural) e a sanção não é uma consequência orgânica do delito (pena natural); existem, em realidade, processos de criminalização e formas concretas de punir. O efeito imediato da tese é o da desconstrução da base científica que sustenta e instrumentaliza a essencialização do crime, do criminoso e da pena criminal: a criminologia positivista.
Redefinidos os fundamentos e os pressupostos das categorias centrais de investigação (crime, criminoso e pena), as pesquisas em ciências criminais rompem com os limites da análise fragmentada nos envolvidos no conflito (microcriminologia) e amplia seu horizonte à exploração macrocriminológica. No ponto, é possível, a partir da análise geral de Anthony Giddens, estabelecer a diferença entre os estudos micro e macrossociológicos para compreender o salto qualitativo produzido pela crítica nas ciências criminais: “o estudo do comportamento quotidiano em situações de interacção directa é usualmente denominado microssociologia. A análise em microssociologia centra-se em indivíduos ou grupos pequenos. É diferente da macrossociologia que se debruça sobre sistemas sociais em grande escala, como o sistema político ou a ordem econômica” (Giddens, 2008, p. 83).
Em paralelo e para além do conflito interindividual (“lawbreaking”), ingressam como objetos de exploração criminológica os processos de criminalização (“lawmaking”) e as reações institucionais ao desvio punível (“reactions to crime”).19 Mais: como desdobramento da macroanálise, não apenas as violências institucionais - criminalização primária (lawmaking) e criminalização secundária (atuação seletiva e garantia de imunidades; violações da lei pelas agências do sistema punitivo; macrocriminalidade e crimes de Estado) -, mas as violências estruturais, notadamente a relação de dependência existente entre o sistema político-econômico e o sistema de controle social punitivo, são inseridas na lente criminológica.
3.2. Se a criminologia crítica desenvolveu parâmetros para problematizar a essencialização do autor da conduta desviante, as criminologias feministas, a partir deste acúmulo antipositivista, irão denunciar as teorias causais relativas à criminalidade feminina e à vitimização da mulher.
Neste aspecto, entendemos que a contribuição do feminismo radical é a que inegável e efetivamente permite avançar na crítica à essencialização dos autores, autoras e vítimas de crimes e, em consequência, consolidar uma visão macrossociológica que incorpora, em seu discurso criminológico, o reconhecimento dos mecanismos de inferiorização das mulheres nas sociedades modernas. Mecanismos deflagrados por processos marcados não apenas pelo viés político-econômico do capitalismo, mas, sobretudo, pelos âmbitos socioculturais do sexismo e do racismo. Assim, é adequada, para esta reflexão, a contraposição entre as duas distintas formas de expressão do feminismo: o feminismo liberal e o feminismo radical.
A principal característica do feminismo liberal é a sua dimensão marcadamente reformista, pois suas práticas e seus discursos procuram avançar no processo de emancipação das mulheres dentro dos limites da luta pela igualdade no interior das instituições dos Estados de Direito. Suas ações concentram-se, sobretudo, na dimensão institucional, a partir de políticas de alteração legislativas e, posteriormente, da busca pela sua efetividade. Em sentido distinto, o feminismo radical parte do pressuposto de que a subordinação das mulheres nas sociedades modernas decorreu da naturalização de estruturas sociais e de processos institucionais edificados na exclusão e na violência, não apenas pela diferença.20
Esta segunda onda do feminismo (feminismo radical), notadamente a partir de MacKinnon, aponta para o fato de que “(...) a discriminação contra as mulheres é baseada na dominação e não na distinção (diferença)” (Campos, 2017, p. 161). Exatamente por transferir o debate feminista da perspectiva liberal-individualista fundada na diferença para a dimensão da dominação ou do poder é que o feminismo radical fornece uma contribuição singular à criminologia crítica.
3.3. Desde o interior do campo das ciências criminais, nota-se a maior dificuldade do feminismo liberal em ultrapassar os limites da investigação microcriminológica. Apesar de crítico à tradição naturalista, que enfatiza a origem biológica da diferença entre homens e mulheres, e de inserir o problema da discriminação no âmbito das relações sociais e culturais, a perspectiva liberal carece do reconhecimento das dimensões institucional e estrutural da violência e, sobretudo, da exposição dos processos sociais da opressão contra a mulher.
Nas ciências criminais, a ênfase do debate no âmbito das diferenças produziu resultados positivos que impactam diretamente a vida das mulheres autoras e vítimas de delitos. Veja-se, a título de exemplificação, no plano das mulheres autoras de crime (criminalidade feminina), a importância de sublinhar o caráter eminentemente masculino das instituições prisionais21 e a necessidade de reforma e adaptação dos presídios femininos de maneira a garantir às mulheres não apenas os mesmos direitos que os homens (visita íntima, p. ex.), mas afirmar direitos que lhes são próprios, como o de gestação, permanência com os filhos após o parto e amamentação.22 Em um segundo plano, em relação às mulheres vítimas de violência, foram significativos, p. ex., os avanços a partir da criação de juizados específicos para o enfrentamento da violência praticada no âmbito doméstico com a Lei Maria da Pena23 e a proposição de novas formas de realização de depoimentos, com a preservação da imagem e da intimidade das mulheres, notadamente nos delitos sexuais praticados contra crianças, adolescentes e jovens (depoimento sem dano, p. ex.).24
Frise-se que estas questões, encaminhadas e projetadas desde uma perspectiva liberal-garantista de tutela dos direitos, não são laterais ou secundárias. Pelo contrário, refletem condições de possibilidade de melhorar a dignidade da mulher no sistema penal e devem ser respeitadas, assim como as demais pautas da primeira onda do movimento feminista (p. ex., direito ao voto, igualdade salarial, igualdade de participação, direitos sexuais e reprodutivos entre outros).
Mas apesar de serem pautas emancipadoras e fundamentais no processo histórico de conquista da igualdade das mulheres, não ultrapassam, sublinhe-se, a dimensão do reformismo e, no plano criminológico, podem se aproximar daquelas perspectivas ortodoxas inicialmente expostas que interpretam, desde a matriz positivista, temas e problemas das ciências criminais tradicionais a partir da especificidade de gênero (homem-abusador; mulher-delinquente; mulher-vítima).
O feminismo radical, ao centralizar a discussão na esfera da dominação patriarcal, coloca, em última instância, os problemas da violência contra a mulher na dimensão do exercício do poder e, em consequência, é o que mais se aproxima da criminologia crítica, estabelecendo um diálogo extremamente fértil e, na maioria das vezes, convergente. Embora existam diversas dimensões e perspectivas no interior do próprio feminismo radical (Campos, 2017, pp. 160-165; Giddens, 2008, pp. 116-120) - situação que permitiria, inclusive, falarmos em feminismos e feminismos criminológicos, no plural - é na análise específica da violência contra a mulher que é possível perceber a importância do foco na formação e na manutenção da cultura de dominação masculina, visto que “(...) a violência doméstica, a violação e o assédio sexual são parte de uma opressão sistemática das mulheres, e não casos isolados com as suas próprias causas psicológicas e criminosas”(Giddens, 2008, p. 117).
Assim, ao inserir a violência contra a mulher no âmbito da violência patriarcal, isto é, compreendendo a violência de gênero como uma expressão histórica e cultural do exercício de poder de domínio que os homens impuseram às mulheres para garantir privilégios nas dinâmicas sociais (posição política e econômica, social e familiar), o feminismo radical propõe uma análise macrocriminológica que aprofunda a crítica à essencialização.25 Se a atomização do conflito é uma das causas da essencialização dos desviantes, a criminologia crítica e o feminismo radical irão incorporar em suas gramáticas a dimensão do poder, enfatizando os efeitos provocados pelo capitalismo e pelo patriarcalismo na interpretação das múltiplas formas de violência. Compartilham, portanto, a mesma pauta negativa (desconstrutora) que projeta a pesquisa criminológica do estudo micro da criminalidade (identidades de criminoso e de vítima) à investigação macro dos processos de criminalização e de vitimização.
4.1. Conforme destacado, uma das principais questões que ocuparam e seguem ocupando a criminologia positivista no debate de gênero é a de estabelecer a diferença e mapear as causas que deflagram os comportamentos criminosos masculino e feminino.
Ao superarem as perspectivas essencialmente biológicas e psicológicas, algumas hipóteses sociológicas destacam avanços emancipatórios conquistados pelo movimento de mulheres, como o ingresso no mundo do trabalho, como causa propulsora para o aumento da criminalidade feminina. Segundo Adler, a revolução social dos anos sessenta havia de certa forma masculinizado o comportamento feminino e virilizado a conduta social e delitiva da mulher, circunstâncias que forneciam uma nova explicação causal à criminalidade feminina (Abreu, s/d, p. 55). A nova mulher - autônoma, agressiva e ambiciosa - era aquela que com a chegada da emancipação havia ingressado no mercado de trabalho e estava participando cada vez mais ativamente no mundo político e social. Assim, estaria mais propensa e exposta aos fatores criminógenos, tornando-a vulnerável inclusive à prática de crimes mais graves. Todavia, as premissas teóricas propostas por Adler não foram comprovadas empiricamente e a “nova mulher criminal” restou apenas como mais um dos mitos construídos pelo positivismo criminológico (Abreu, s/d, p. 55/6).
Para além desta imagem ilustrativa que demonstra a capacidade de renovação das perspectivas essencializadoras, importa destacar como estes modelos teóricos são inspirados ou dialogam com a tese liberal da diferença (causal) entre o comportamento do homem e o da mulher delinquentes. Procuram, pois, identificar, em bases etiológicas próprias, as condutas masculina e feminina, vinculando-as a determinados fatores ou tendências delitivas. Ofuscam, na análise do problema, conforme denunciado pelo feminismo radical, as dimensões estrutural e institucional das violências, especialmente os vínculos existentes entre os atos praticados pelas mulheres e os processos de criminalização decorrentes do modelo patriarcal.
4.2. Neste contexto, assumindo a perspectiva rotulacionista como condição necessária para o desenvolvimento das criminologias crítica e feministas, seria possível redimensionar as perguntas que entrelaçam as questões penal e criminal com as de gênero, a partir das imagens consolidadas pela criminologia ortodoxa no senso comum e teórico da criminologia (homem-abusador; mulher-delinquente; e mulher-vítima). Se as pesquisas etiológicas estão concentradas fundamentalmente nas questões (primeira) por que as mulheres praticam menos crimes que os homens?; (segunda) por que certas mulheres praticam crimes?; e (terceiro) por que certas mulheres possuem maior tendência à vitimização que outras?; as criminologias feministas, a partir do acúmulo crítico macrocriminológico, apontariam outras indagações possíveis, como: (primeiro) por que certas condutas femininas são criminalizadas? (p. ex., infanticídio, aborto e prostituição26); (segundo) por que determinadas mulheres são mais vulneráveis (seletividade) à criminalização? (p. ex., mulheres negras, pobres e faveladas27); (terceiro) por que determinadas mulheres são mais vulneráveis à vitimização? (p. ex., idem, mulheres negras, pobres e faveladas28); (quarto) por que determinadas causas de justificação são aplicadas aos homens e não se adaptam às circunstâncias vivenciadas pelas mulheres? (p. ex., legítima defesa no uxoricídio29); (quinto) por que a conduta da mulher-vítima de violência é, em várias situações, valorada negativamente conduzindo inclusive à exclusão da ilicitude do fato (p. ex., legítima defesa da honra30) ou a reduzir a reprovabilidade do ato delituoso (p. ex., crimes de estupro31); (sexto) por que as penas aplicadas às mulheres, em situações semelhantes aos crimes praticados por homens, tendem a ser mais altas? (p. ex., casos de tráfico de entorpecentes32); (sétimo) por que determinados direitos são assegurados aos homens e negados às mulheres presas? (p. ex., visita íntima33).
Transpor a fixação criminológica na etiologia e, em decorrência, na essencialização, a partir das lentes feminista radical e crítica, permite analisar com a devida profundidade as circunstâncias que aumentam a vulnerabilidade da mulher à criminalização, sobretudo à criminalização secundária, e à vitimização.
Neste aspecto, p. ex., a categoria analítica feminista dupla desviância permite compreender como a mulher que comete delitos tem maior visibilidade na dinâmica das agências punitivas, situação que favorece o seu ingresso no sistema penal e, posteriormente, produz uma penalização superior àquela aplicada aos homens em situações idênticas. As maiores vulnerabilidades à criminalização e à reprovabilidade da conduta, segundo as perspectivas criminológicas feministas, decorrem do fato de que as mulheres, ao cometerem crimes, violarem duas ordens normativas: a lei penal e o papel de gênero. Nas lições de Larrauri, “a mulher pode receber um tratamento mais benéfico quando o delito ou a sua situação pessoal responde às expectativas de comportamento feminino. No entanto, receberá um tratamento mais severo quando o delito não seja especificamente feminino ou quando a autora não se adeque à imagem de mulher convencional (casada, mãe, dependente economicamente, respeitável...)” (Larrauri, 1992, p. 299).34 É como se para as mulheres nunca tivesse havido secularização e toda a vez que infringem a lei penal estão, em verdade, cometendo atos imorais. Quem realmente tem a capacidade de delinquir são os homens, pois “as mulheres mais que delinquentes são consideradas pervertidas ou pecadoras” (Juliano, 2008, pp. 217-230).
5.1. É possível perceber, portanto, na linha do que foi evidenciado por Adorno, Benjamim e Horkheimer, que o positivismo não se limita exclusivamente a um discurso de legitimação científica do modelo econômico capitalista.35 A epistemologia positivista cumpre funções não apenas de justificação da dominação de classe, mas, igualmente, de dominação de gênero e de raça. Assim, a matriz positivista é tão servil ao capitalismo (exploração de classe) quanto ao patriarcalismo (dominação da mulher) e ao racismo (anulação do negro). A propósito, nas fundações da teoria crítica com Benjamin, Fromm e Marcuse - hipóteses que serão posteriormente ressignificadas a partir do alinhamento da crítica econômica com a de gênero e à racial, notadamente com Ângela Davis36 -, o patriarcalismo foi denunciado como um dos fundamentos da estrutura autoritária da sociedade burguesa: “(...) mas o que interessa a Benjamin é utilizar essa leitura de Bachofen para criticar, com Fromm, a autoridade patriarcal (patricêntrica), fundamento da estrutura autoritária do conjunto da sociedade” (Löwy, 2013, p. 16).37
Não parece incorreto afirmar, portanto, que a hipótese comum ou a identidade entre a teoria crítica (criminologia crítica) e o feminismo (criminologias feministas) se estabelece na edificação e no compartilhamento de uma perspectiva teórica e metodológica eminentemente antipositivista. Estão inseridas, portanto, neste campo de denúncia dos esforços prático-teóricos de justificação do injustificável, da legitimação do ilegitimável promovida pelo positivismo, que se materializa na exploração de classe, na dominação da mulher e na anulação do negro.
Se usarmos como exemplo uma das mais caras noções à criminologia etiológica, veremos de que maneira as criminologias crítica e feminista ressignificam a imagem do homem delinquente. Se a criminologia crítica desestabiliza a representação do criminoso como um ser bárbaro, ontologicamente mau; a criminologia feminista dará um passo adiante e afirmará, sobretudo nos delitos sexuais que carregam o rótulo de um dos crimes mais bárbaros, que o delinquente se encontra no ambiente social mais seguro: o espaço privado do lar. A criminologia feminista demonstrará como a maioria dos crimes sexuais acontece dentro de casa e que o agressor é conhecido da vítima, normalmente seu companheiro ou seu pai. A criminologia feminista desmistifica a ideia de que a violação sexual acontece longe de todos, em lugares ermos, impulsionada por uma libido incontrolável que se manifesta em um ser rude e perverso. Ao contrário, o estupro normalmente acontece no quarto ao lado, como manifestação material da opressão de gênero, como forma de marcar o poder de domínio do homem sobre a mulher.
A sintonia entre as criminologias feministas e a criminologia crítica parece estar sedimentada, portanto, nesta conjunção de esforços, neste entrelaçamento de argumentos teóricos e práticas políticas antipositivistas. Se a teoria positivista se reinventa em permanências, pulverizando-se contemporaneamente em pesquisas que refundam sua lógica perversa, os esforços críticos devem ser redobrados e convergentes. Embora a relação entre a criminologia crítica e as criminologias feministas seja, em muitos aspectos, extremamente tensa, notadamente nos planos epistemológico e político-criminal (tema que será o objeto da sequência deste estudo), a perspectiva contra-ortodoxa é um mínimo denominador comum que permite importantes alinhamentos e trocas muito férteis na desconstrução desta racionalidade (positivista) que se traduz na legitimação das violências de classe, de gênero e de raça.
Neste sentido, lembra Timm de Souza que esta racionalidade justificacionista adocica a violência a partir de uma seiva argumentativa ardilosa que “seduz pela aparente razoabilidade e equilíbrio de seus sábios enunciados - e essa é sua primeira e maior habilidade, a da hipocrisia - em um mundo no qual a própria idéia de razoabilidade e equilíbrio é indecente” (Souza, 2015, p. 353).