Resumo: Este artigo pretende relacionar metodologicamente a abordagem de Walter Benjamin sobre as cidades com sua teoria como um todo, bem como às possíveis implicações para investigações presentes do espaço urbano no capitalismo. Se nos estudos de Benjamin a cidade era o tangível das mudanças modernas capitalistas, no século XXI ela revela memórias de lutas do século XX e o aprofundamento da dinâmica da geração de lucro sob o neoliberalismo. Na introdução, a problemática é apresentada. A primeira parte do estudo reúne as categorias trabalhadas pelo filósofo nos textos sobre as cidades, como rastros, vestígios e memórias, que têm o potencial de evidenciar narrativas insurgentes. Qual é a metodologia de Benjamin para tratar o urbano? Esta é a pergunta fundamental. A segunda parte articula as conceituações com aspectos da obra benjaminiana que são comumente analisados em apartado ao seu trabalho sobre Paris, por exemplo - sua teoria do progresso, sua teoria do conhecimento. A terceira parte apresenta possibilidades de experimentação da metodologia benjaminiana na análise do capitalismo na periferia do século XXI, especialmente no Rio de Janeiro. Nas considerações finais, a obra do autor é avaliada em relação à sua pertinência para os estudos de crítica ao capitalismo atual.
Palavras-chave: CidadeCidade,Walter BenjaminWalter Benjamin,Crítica ao capitalismoCrítica ao capitalismo.
Abstract : This paper intends to methodologically relate Walter Benjamin's approach to cities with his theory as a whole, as well as the possible implications for present investigations of urban space in capitalism. If in Benjamin's studies the city was the tangible of modern capitalist changes, in the 21st century it reveals memories of struggles of the 20th century and the deepening of the dynamics of profit generation under neoliberalism. In the introduction, the problem that text adresses is presented. The first part of the study brings together the categories worked by the philosopher in texts about cities, such as traces, traces and memories, which have the potential to reveal insurgent narratives. What is Benjamin's methodology for treating the urban? This is the fundamental question. The second part articulates conceptualizations with aspects of Benjamin's work that are commonly analyzed in a section on his work on Paris, for example - his theory of progress, his theory of knowledge. The third part presents possibilities for the application of the Benjaminian methodology in the analysis of capitalism in the periphery of the 21st century, especially in Rio de Janeiro. In the final considerations, the author's work is evaluated in relation to its relevance for studies of criticism of current capitalism.
Keywords: City, Walter Benjamin, Capitalism critics.
Dossiê
A cidade através do olhar metodológico de Benjamin
The city through Benjamin's methodological look
Recepção: 19 Junho 2020
Aprovação: 21 Julho 2020
Para Walter Benjamin, as cidades constituíam temática privilegiada para a análise materialista da história. Nas cidades, o tempo da modernidade se instaura, acelera as vidas, desumaniza. Isto não quer dizer que a cidade é um cenário para Benjamin. A vida na ocupação capitalista do urbano é também a própria cidade. Os escritos do autor alemão sobre a cidade de Paris tornaram-se exemplo para análises que seguem a abordagem benjaminiana.
Baudelaire foi o poeta que conduziu Benjamin em versos cujo “aspecto decisivo (...) é o substrato social, moderno, do ‘idílio fúnebre’ da cidade”. (BENJAMIN, 2009, p.47). É assim que Benjamin adentra nas entranhas de Paris, embora o visitante destaque que no poeta francês não há descrição da cidade (BENJAMIN,2011c, p. 167). Baudelaire foi o guia que conduziu Benjamin também através de temporalidades não vividas e, portanto, por problemas histórico-políticos que não foram testemunhados corporalmente por sua vivência. A temática da vida urbana os une e Benjamin extrai nomes1 e conceitos dos textos baudelairianos (flâneur, satanismo, jogo, memória, tempo, progresso, mulheres2) para se encontrar com o francês no momento e no espaço em que “A aparência se precipitava sobre as mercadorias” (BENJAMIN, 2011c, p.160).
A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica; as teses Sobre o conceito de história e os trabalhos sobre Baudelaire (no Brasil os textos estão reunidos nos livros Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo e Baudelaire e a modernidade) são apontados por Rolf Tiedemann na Introdução à edição alemã das Passagens como trabalhos que “testam” e explicam a metodologia da obra que ocupou o alemão por mais de uma década antes de sua morte. Inacabadas, as Passagens pretendiam demonstrar uma maneira de, a um só tempo, reunir a reflexão sobre o materialismo histórico em um texto com plena visibilidade (TIEDEMANN, 2009, p. 14-15)3. É certo que ali está um esboço - em sentido benjaminiano de técnica historiográfica- “um hipertexto com milhares de fragmentos” (BOLLE, 2009a, p.219) e não uma obra com título e ponto final.
As Passagens constituem o material fundamental deste artigo (especialmente as partes N, O e P), mas mesmo que ele se convertesse em uma análise pura da obra, não poderia deixar de recorrer ao pensamento de Benjamin como um todo, a fim de evitar desrespeito e má interpretação do próprio autor. Assim, os textos já citados e outros autores que trabalham a teoria benjaminiana vão aparecer para interpelar o urbano sob a metodologia materialista histórica.
Willi Bolle é o responsável pela organização da tradução brasileira das Passagens. No posfácio foi reconhecido o potencial do trabalho de Benjamin para os estudos das megacidades latino-americanas (BOLLE, 2009b, p. 1141-1165). Poucos anos depois, Bolle analisa a capital paraense, Belém, com a metodologia usada por Benjamin para ler Paris nas Passagens. 4 O texto de Willi Bolle Paris na Amazônia: um estudo de Belém pelo prisma das Passagens traz a seguinte sistemática: identificação da estrutura de análise da cidade de Paris por Benjamin, destacando as respectivas categorias; proposição da plausibilidade da utilização da metodologia em função de circunstâncias histórico-políticas; apontamento dos equivalentes conceituais na cidade de Belém; análise de Belém propriamente dita (BOLLE, 2012. p 291-319). Este trabalho seguirá caminhos divergentes, mas sem prescindir das identificações propostas por Bolle, que têm o potencial de evidenciar aquilo que ganhou destaque em Benjamin e que, portanto, não pode ser negligenciado.
Não só nos trabalhos que envolvem Paris aparecem conceitos relevantes para o estudo do espaço do capitalismo por excelência. O estado de exceção benjaminiano é categoria fundamental para pensar a segurança pública das cidades e avaliar o estado da arte do Estado democrático de direito no mundo. Sobre a crítica do poder como violência é outro texto seminal que, embora não diretamente destinado à compreensão da evolução do conceito de cidade para o autor, torna-se fundamental para entender a relação entre poder, violência e estado dentro do capitalismo. Assim, a consulta ao texto se torna inevitável para entender a dinâmica do desenvolvimento capitalista dentro e fora das cidades.
Comparativamente, no Brasil há menos estudos sobre a cidade capitalista na perspectiva de Benjamin do que estudos que o evocam para tratar de literatura, análise de obras de arte, filosofia e a relação entre história e memória. O pequeno número de análises orientadas pela metodologia benjaminiana sobre a cidade, porém, parece estar em desacordo com o espaço reservado ao tema pelo próprio em suas reflexões. É certo que os assuntos não estão apartados no pensamento de Benjamin, como já exposto, e também que o autor dedicou esforço intelectual ao tema que só foi interrompido pela própria morte.
A análise da interseção direito e cidade a partir de Walter Benjamin permite construir estratégias amparadas na memória, no conhecimento de si e do outro, em alternativa ao modelo liberal de direito à cidade concebido pelo positivismo. O direito, como ordenamento jurídico, reifica as condições de exploração do espaço. O sujeito de direito não é concreto e exclui, em sua concepção e no mundo, extensas coletividades de sujeitos históricos, que são conhecidos na cidade por rastros, vestígios e memórias.
O estudo da metodologia benjaminiana da análise do urbano orienta a necessária crítica do direito positivo ao desnudar as relações sociais sobre as quais são forjadas as cidades modernas. A estruturação do direito como narrativa resultante de disputas de memória é identificação antecedente ao ato de nomeação dos invisíveis, dos não contemplados pelas garantias formais. A abordagem benjaminiana das cidades permite reabilitar seus deserdados, conhecê-los e perceber a profundidade e as limitações do alcance do controle da vida pelo direito.
A pergunta preliminar ao delineamento de hipóteses sobre o método de Benjamin para o estudo da cidade moderna é se há um método em Benjamin. A resposta não é uníssona entre os comentadores, especialmente porque não se trata de um sociólogo ou antropólogo de formação. Então a pergunta principal retorna, adornada de outros conceitos: ainda que Benjamin não tenha sido um metodólogo, seus escritos trazem rastros ou lampejos para a análise da cidade moderna? Antônio Carlos Gaeta vai aos principais benjaminianos no Brasil para elucidar a questão:
Para autores como Joël Lefebvre (1994), as análises de Benjamin apresentam graves distorções e não podem servir de caminho. Já Willie Bolle (2000) identifica particularidades significativas em suas análises. Sérgio Rouanet, Olgária Matos, Jeanne Marie Gagnebin e outros, tendem a afirmar um método. Segundo Sérgio Paulo Rouanet (1984), Walter Benjamin trabalha com uma clara preocupação metodológica desde os primeiros escritos, em especial A Origem do Drama Barroco Alemão. As considerações epistemológicas e metodológicas benjaminianas, presentes na introdução epistemológica daquele trabalho, estariam além da preocupação exclusiva com o drama barroco. Seriam apontamentos sobre teoria do conhecimento e que se prolongariam por todos os escritos benjaminianos. (GAETA, 2005, p.2)
A conclusão acertada de Gaeta, em concordância com Sergio Paulo Rouanet, é a de que existe um método em Benjamin, exposto enigmaticamente em considerações ao longo de sua obra. Embora não haja um capítulo único sobre a temática, um dos textos que traz de modo mais estruturado a preocupação de Benjamin com o método é o seu último escrito: as teses Sobre o Conceito de História. Além da discussão epistemológica, há ali o enfrentamento da barbárie e da cultura como “unidade contraditória” (LÖWY, 2005, p.75) por meio da articulação entre a metodologia materialista histórica e o messianismo. Especificamente a tese XVII5 é aquela em que aparece a estruturação da metodologia benjaminiana para a análise das cidades. Segundo Löwy, ali está exposto o método utilizado por Benjamin na análise de Baudelaire:
Trata-se de descobrir em As flores do mal uma mônada, um conjunto cristalizado de tensões que contêm uma totalidade histórica. Nesses escritos, desarraigados do curso homogêneo da história, encontra-se conservada e reunida toda a obra do poeta, nesta, o século XIX francês, e, nesse último, "todo o curso da história". A obra "maldita" de Baudelaire guarda o tempo como uma semente preciosa (LÖWY, 2005, p.132-133).
Não à toa Benjamin dá o nome de Paris, a capital do século XIX ao texto de apresentação de estrutura e conteúdo do trabalho das Passagens6. Jeanne-Marie Gagnebin destaca igualmente os imbricamentos de tempo, arte e história (na/com a imagem) como elemento central da perspectiva benjaminiana, que tem na cidade moderna a chave da mudança temporal e social capitalista. Em suas considerações, que remetem a Simmel, a tese XVII aparece com o exemplo prático da (des)articulação da arte e da aura.
[O]desenvolvimento da grande cidade moderna acarretou mudanças essenciais para o sentido da visão, especificamente no que diz respeito a essa comunhão e comunidade de olhares recíprocos. Em primeiro lugar, a vista é submetida a um excesso de estímulos em detrimento dos outros sentidos, que não conseguem mais acompanhar e explicitar o que foi visto; ela se torna um olhar sempre à espreita. Em segundo lugar, o olhar recíproco e confiante, base da atitude contemplativa, é ameaçado de extinção, justamente por esse excesso de visão. A famosa desauratização da arte contemporânea, na hipótese de Walter Benjamin, remete a essa transformação de um olhar recíproco numa visão simultaneamente saturada e sempre ameaçada, sempre à espreita. A “aura” significaria, pois, não só a auréola do poeta, agora caída no chão, como no conhecido poema em prosa de Baudelaire (“Per-te d’auréole”), mas também a expectativa de um horizonte transcendente no qual meu olhar e o do outro possam encontrar-se e se juntar na pequena eternidade da comunicação feliz, da comunhão feliz, da comunidade feliz. A arte aurática era caracterizada por um modo de aparição do objeto, mesmo próximo, no qual este se mostrava como imagem aurática, isto é, como uma imagem emoldurada ou aureolada pela presença do longínquo, geralmente por outras imagens que remetiam ao infinito ou ao sagrado (2007, p. 65-66).
A experiência da humanidade com o tempo, como mostra Gagnebin, pode ser traumática. O tempo cronológico, em sua sequência produtiva acelerada, quebra comunhões. Benjamin, ao escrever as Passagens, fazia o exercício de pensar a partir da interconexão da concretude dos materiais e acontecimentos específicos com as percepções oníricas7. As passagens, que são tanto rua como casa, e as prostitutas, que são tanto vendedoras como mercadoria, são imagens dialéticas, oníricas, dadas pela mercadoria como fetiche. (BENJAMIN, 2009, p. 48). O surrealismo inspira o empreendimento teórico-filosófico de Benjamin, que só se perfaz com o despertar do sonho. A partir de uma singularidade, o autor busca o fio que enreda as relações sociais do sistema capitalista, modo esse que tece e é tecido no urbano. O fragmento é parte do todo, o concreto é também imaginado e sentido pessoalmente, de forma compartilhável pela humanidade. (TIEDEMANN, 2009, p.18).
Um dos pontos mais inovadores da proposição benjaminiana é, portanto, o encontro entre o universal e o particular, ideias e fenômenos, o todo e o fragmento. Os ensaios se apresentam como inquietação frente ao impulso moderno de ordenar o mundo e a angústia do rompimento da experiência.
A questão dos extremos não se reduz, na perspectiva benjaminiana, ao dilema da verdade, filosófico. Compreende igualmente o dilema da individualidade frente à constituição de uma sociedade de massa, que também é um tema sociológico. Os extremos contemplariam ainda o dilema do fragmento urbano diante da grande cidade e dos projetos autoritários avassaladores de reforma urbana, como o de Haussmann. Assim, suas preocupações desdobram-se em camadas: o particular, a individualidade, os fragmentos urbanos. (GAETA, 2005, p. 2-3)
O urbano é laboratório da prática capitalista. Ali está materializada a angústia que é viver em meio ao abismo da desigualdade concomitante à liberdade. Quando o campo jurídico opera no modo de produção capitalista sua função é a de manter as desigualdades materiais, guardando aparência de equiparação na coesão da sociabilidade. Assim, ao mesmo tempo que o capitalismo se diferencia de outros modos de produção por ter a liberdade individual do trabalhador em sua base e a igualdade como premissa de suas trocas, a forma de estruturação da produção nega a realização desses princípios (GONÇALVES, 2017, p.1047-1048).
Benjamin critica esse funcionamento, dedicando um ensaio a pensar exclusivamente o direito: Sobre a crítica do poder como violência8. No texto há diálogo com Sorel (a escrita se dá em momento em que esteve em contato próximo com o anarquismo) e uma crítica ao cenário político de Weimar na virada da década de 1910 para a de 1920. A contribuição para a teoria do direito é radical: o positivismo e o jusnaturalismo, com suas relações de meios e fins, não servem a propósitos de emancipação. E o próprio direito, posto e conservado em violência, deverá ser abolido (BENJAMIN, 2019, p.82)9. Embora esta não seja a interpretação dominante sobre o ensaio nos comentaristas, é a que mais se encaixa no mosaico benjaminiano. Se o direito é poder/ força/violência na história da humanidade, sobretudo na modernidade, e sua narrativa dominante se sobrepõe aos testemunhos vencidos (portados por corpos, por vidas) e esquecidos, ele em si não tem lugar no encontro de todos os sujeitos (BENJAMIN, 2019).
Ao avaliar a análise que Benjamin faz do uso do direito na contrarrevolução alemã, Rafael Vieira aponta que
A crítica de Benjamin ao direito e à violência necessária para a reprodução das relações então existentes, é uma crítica do esmagamento do proletariado insurgente por meio dos mecanismos regulares de direito e dos mecanismos de exceção, utilizados para fazer valer o próprio direito (VIEIRA, 2016, p.59-60).
Não se poderia chamar de direito, portanto, a linguagem que, realizando-se como meio, prescinda da violência e respeite e reabilite vivos e mortos. Para chegar na ruptura, igualmente a leitura do texto mostra que a violência está presente em Benjamin. A greve geral não se faz sem reação à violência injusta. O mandamento “não matarás”, como pontua Butler (2020, p. 1907), é levado a sério por Benjamin, mas ele deve ser entendido, na verdade, para além da morte física, que se liga à mera vida.
Nos ensaios e fragmentos benjaminianos sobre Paris, a violência é o motor da regulação e da transformação da vida. Benjamin localiza os processos de acumulação capitalista na reforma urbana, realizada com violência expropriadora. A violência é em si um princípio oculto do ordenamento jurídico (VIEIRA, 2016, p.73), que, em vigência, tem a pretensão de controlar o tempo da narrativa nos momentos de reforma.
A expropriação como expansão violenta do interesse do capital no espaço mostra que a reforma urbana, a exemplo da que se realizou no Rio de Janeiro no século XXI, é farsa decorrente de tragédia já anunciada, construída em procedimentos inseridos nos marcos da legalidade. A superação do capitalismo, que se sustenta em premissas de produção da vida com precarização para a maioria, demanda também a superação do próprio direito, forma histórica que viabiliza a injustiça. (AZEVEDO, 2019, p.161).
Para a análise das cidades de Benjamin algumas categorias são fundamentais, como o flâneur (figura explorada na terceira parte deste texto), os panoramas e os interieurs. Esses conceitos testemunham, permitem ver ou tentam esconder a relação entre direito e violência/poder/força no fazer da cidade (em reforma ou não). O interieur aparece para Benjamin na dualidade que se cria com a transformação das relações sociais e do tempo na modernidade:
O intérieur não apenas é o universo, mas também o invólucro do homem privado. Habitar significa deixar rastros. No intérieur esses rastros são acentuados. Inventam-se caixas e estojos em profusão, nos quais se imprimem os rastros dos objetos de uso mais cotidiano. (BENJAMIN, 2009, p.46).
A conexão entre o interior, o ambiente privado, a subjetividade de um habitante da cidade e os rastros (e o desejo moderno de apagar rastros) é questão recorrente no pensamento benjaminiano. Benjamin mostra que há certa busca de segurança para exercer a liberdade de ser nos interiores. A investida metodológica de esmiuçamento de Benjamin o leva a escrever sobre mofo, máscaras e xales (como, por exemplo, no arquivo temático O das Passagens e nos textos sobre Baudelaire e a modernidade). Os encontros e saídas são parte dos caminhos e ferramentas que Benjamin utiliza em sua leitura do urbano, e constituem sua metodologia interessada em escovar a contrapelo a história, suas relações das partes com o todo, destacadamente passando pela cidade.
Já os panoramas, para Benjamin, podem ser definidos como elementos que
anunciam uma revolução nas relações da arte com a técnica, são ao mesmo tempo expressão de um novo sentimento de vida. O habitante da cidade, cuja superioridade política em relação ao morador do campo se manifesta inúmeras vezes no decorrer do século, tenta inserir o campo na cidade. Nos panoramas, a cidade amplia-se, transformando-se em paisagem, como ela o fará mais tarde e de maneira mais sutil para o flâneur. (BENJAMIN, 2009, p.42)
Os panoramas da Paris do século XIX reúnem imagens pintadas com emprego de técnicas de iluminação que dão ao observador diante deles a impressão de totalidade de uma cena. Há ilusão para o observador-expectador de que o tempo passa. É a modernidade se fazendo espetáculo (mais à frente o cinema desempenha tarefa semelhante) para seus construtores. O fragmento diante do todo, fora do tempo que passa é a tradução possível para o que é o observador diante da cena. Os panoramas são fantasmagorias10 [Q 1, 1] (BENJAMIN, 2009, p.569).
O expropriado da Reforma, a prostituta e outros oprimidos são achados fora dos panoramas (mesmo que tivessem neles alguma representação), em seus rastros pela cidade que habitaram. Se a violência ergue monumentos em narrativas para esconder corpos, Benjamin propõe uma metodologia de escavar a superfície e encontrar os vestígios, as memórias de quem construiu o espaço para conhecer seu funcionamento.
As Passagens consistem numa análise distinta daquela que Benjamin empreendeu sobre outras cidades, como Moscou, que estudou a partir da sua própria vivência. Para Marcio Sellingmann-Silva, nos diários sobre Moscou Benjamin apresenta cidade a partir da descrição de seus passeios e “também em digressões, típicas da literatura de viagem, nas quais Benjamin exerce o papel de um antropólogo urbano e descritor de paisagens.” (2009, p.173)
Nos fragmentos que compõem “Infância em Berlim por volta de 1900”, Benjamin destaca na cidade elementos que também destaca em Paris, mas com intenção e motivação distintas. Os panoramas, as ruas e as mulheres são presenças na sua experiência, e é a reflexão sobre a própria vida que move a escrita. Ao contrário de Paris, em que diversos trechos denotam que a cidade se converte em sentimento para Baudelaire e para o próprio Benjamin ao desejarem tocar a modernidade.
Na descrição da exposição de produtos no mercado da praça Magdeburgo, Benjamin pergunta: “Não era o deus do mercado quem propriamente lançava naqueles regaços as mercadorias: bagas, crustáceos, cogumelos, pilhas de peixes e de couves?” (2011b, p.84-85). Dois fragmentos depois Benjamin descreve sua coleção de postais, revelando que à sua memória se fixou mais profundamente a assinatura de sua professora do que algumas das imagens (IDEM, p.86). E depois ao tratar do endereço da casa de sua avó paterna: “Nenhuma campainha soava mais amiga” (IDEM, p.89). Cores, saraus, jogos: tudo ali é sobre Benjamin, mesmo que a burguesia apareça aqui e acolá (inclusive dentro da própria vivência), é sua vida o foco e não a cidade.
O engajamento metodológico diferenciado de Benjamin ao tratar de Paris, em relação a Moscou e Berlin não deve, contudo, levar ao esquecimento dos textos sobre as últimas. A memória e a experiência que dão o tom dos ensaios são efetivamente os conceitos centrais da teoria do conhecimento anti-progressista de Benjamin.
Classificar Benjamin como um autor não progressista não é fazer dele um defensor de retorno a formatações sociais anteriores, mas sim compreendê-lo como crítico do “progresso como norma histórica” (VIEIRA, 2016, p.46). A estratégia do filósofo é não deixar esquecer, o que comumente acontece através da normalização da barbárie pela sua normatização. O célebre trecho “O conceito de progresso deve ser fundado na ideia de catástrofe. Que ‘as coisas continuem assim’ - eis a catástrofe.” [N 9a, 1] (BENJAMIN, 2009, p.515) dá exata dimensão da sobriedade benjaminiana ao lidar com o tema: não é porque até mesmo as instituições de organização da classe trabalhadora defendem a teoria do progresso que ela deva ser encampada. Aliás, justamente por isso devem ser denunciadas as instituições: a emancipação não virá pelo decurso evolutivo do tempo. O decurso do tempo cronológico não é evolutivo, é catastrófico11.
As mudanças no traçado urbano afetam não só o espaço, mas as vidas que nele habitam.
A reforma atingiu a experiência dos oprimidos buscando varrê-la da memória da cidade à medida que descaracterizava os habitantes entre si. Se a catástrofe constitui a história e gera trauma, se torna urgente interpretar o rastro, que embora negado, existe, e é a medida de não apagar a própria violência, de pensar no tempo da narrativa das vítimas (GINZBURG, 2012, p.115). (AZEVEDO, 2019, p.116)
Pensar as cidades e sua história, então, é investigar rememorações, escavar em ruínas o passado que não passou no presente, encontrar ausências presentes e presenças ausentes. O princípio ativo da metodologia benjaminiana é a memória dos vencidos, que não se tornou história oficial e, portanto, está de lado quando se defendem supostos avanços do progresso. Para entender a reforma urbana, nesse sentido, é preciso conhecer a história de povos escravizados, de grupos removidos, de sujeitos não ouvidos. A memória “deve assumir um sentido de teoria do conhecimento” (AZEVEDO, 2019, p. 125) no esforço de honrar os que tombaram calados, de juntar todas as partes para que nada falte. Juntar cada fragmento para que a imagem se forme. Juntar cada oprimido, para que a história se faça, urgentemente, para interromper o fluxo da barbárie.
Na seção N das Passagens, que aborda “teoria do conhecimento, teoria do progresso”, Benjamin destaca o ato de arrancar como um pressuposto metodológico do materialismo histórico (principalmente nas notas [N 10, 3], [N 10a, 1]). O continuum precisa ser interrompido para que se conheça um objeto como parte e para que se conheça a totalidade da história.
As reformas urbanas são momentos concentradores da história, como descreve a tese XVII, justamente porque nelas se chocam as versões opostas de oprimidos e opressores, vencidos e vencedores. A reforma de Haussmann foi realizada com Paris sob exceção, tal qual a reforma Pereira Passos, realizada anos depois no Rio de Janeiro e que inspirou a reconfiguração urbana da cidade levada a cabo por Eduardo Paes no início do século XXI. Os traços que atravessam a cidade são calculados:
As instituições do poder laico e espiritual da burguesia deveriam encontrar sua apoteose no enquadramento das avenidas12; antes de sua conclusão, estas eram recobertas por lonas e descerradas qual monumentos. - A eficiência de Haussmann insere-se no imperialismo napoleônico. Este favorece o capital financeiro. Paris vive o auge da especulação. A atividade especulativa nas bolsas supera as formas do jogo de azar herdadas da sociedade feudal. Às fantasmagorias do espaço, às quais se rende o flâneur, correspondem as fantasmagorias do tempo, às quais se entrega o jogador. O jogo transforma o tempo em narcótico(...). As expropriações feitas por Haussmann fazem surgir uma especulação fraudulenta. (BENJAMIN, 2009, p. 49)
O monumento (avenida ou não) que surge da violência da retirada de quem antes estava ali mostra que a burguesia intenciona controlar o traçado da cidade para controlar a ação política dos oprimidos: “A verdadeira finalidade dos trabalhos de Haussmann era proteger a cidade contra a guerra civil. Queria tornar impossível para sempre a construção de barricadas em Paris.” (BENJAMIN, 2009, p. 50) O sentido da reforma, portanto, é o de controlar o tempo, passando por cima das barricadas e proibindo-as no espaço. É interromper a narrativa dissidente. A reforma é a afirmação violenta de uma linearidade, pois encobre memória, história. As marcas de ocorridos, de um passado que já estava ali onde ela se afirma apesar das vidas, precisam vir à tona, demonstrando que não houve consenso no processo de produção de progresso como barbárie. “O rastro, assim, se torna ameaçador e contra-hegemônico porque se opõe à vontade reformadora” (AZEVEDO, 2019, p. 128).
Grandes eventos podem ser tratados em paralelo com o que não deixam de ser, grandes exposições universais13. As exposições, para Benjamin, “são lugares de peregrinação ao fetiche mercadoria”. O trecho aparece nos exposés (BENJAMIN, 2009, p 43), mas também em anotações de suas Passagens, demonstrando que configura uma ideia importante para a argumentação metodológica do autor, pois
as exposições universais idealizam o valor de troca das mercadorias. Criam um quadro no qual o seu valor de uso passa para o segundo plano. Inauguram uma fantasmagoria a que o homem se entrega para divertir-se. A indústria de entretenimento facilita isso elevando-o ao nível da mercadoria. Ele se abandona às suas manipulações ao desfrutar a sua própria alienação e a dos outros (BENJAMIN, 2009, p.44).
A narrativa moderna da cidade que encarna o progresso inebria a experiência. Nos momentos de reforma, detonados em função de grandes eventos, como aconteceu com o Rio de Janeiro no século XXI (às vésperas de se tornar sede da Copa do Mundo de futebol de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016), é possível ver a coincidência de versões de sujeitos e grupos que compõem os vencedores no processo de expropriação de terras para disponibilização à expansão da produção de valor: a imprensa (burguesa) e o estado (burguês) insistem no enredo de evolução, embelezamento, higiene. A depender do momento histórico, o conceito de desenvolvimento condensa todas essas noções (AZEVEDO, 2019).
Concomitantemente à construção de uma cidade como vitrine para o mundo, a vida das maiorias passa por um processo de precarização e se torna morte- sem casa, sem trabalho, sem comida suficiente. O que é erguido pelas obras de remodelação do espaço urbano (monumento) destrói interações no mundo. O trator, que prepara o terreno para as obras do progresso, simplesmente desfaz lugares de memória. E esse ato se constitui em desrespeito às singularidades e coletividades que já estavam ali antes, produzindo história. O estranhamento dos habitantes com a cidade acontece, assim, através da percepção do caráter desumano de seus processos de formação e reforma.
O Museu do Amanhã é uma imagem ilustrativa, pois em si sintetiza a crítica benjaminiana - foi construído, no bojo da reforma urbana carioca do século XXI, sobre lugar de memória da escravidão. O novo museu não fala de ontem, não pensa no país racista que tem maioria negra hoje. O museu mira no que virá, a despeito do que foi. Ele contrasta com o IPN- Instituto Pretos Novos, que fica a 1500 metros, na mesma região do Valongo, que recebeu milhares de seres humanos negros escravizados, constituindo-se no “maior entreposto de escravos da América Latina” no século XIX14 (PEREIRA,2013, p.219). Nesse período, após a atracação dos navios tumbeiros, os negros e negras eram negociados, iam para o lazareto caso chegassem doentes, ou tinham seus corpos amontoados, caso já estivessem mortos, no chamado “cemitério dos pretos novos”. A essa história o Museu do Amanhã não se dedica. É preciso escavá-lo para revelar toda a memória que repousa abaixo da sua ode ao futuro.
A memória, pois, é o que permite a construção da narrativa da denúncia, da oposição, ela é usada como combustível para o fazer prático-político da história, pois “A memória faz do elo entre passado e presente uma reconfiguração da experiência atual.” (VIEIRA, 2016, p. 193). A resistência é a possibilidade política de abrir no tempo a fresta por onde poderia passar o Messias (aquele que, ao poder vir, já não seria necessário), momento da comunicação total entre os eventos15 e sujeitos da história.
As memórias circulantes enunciam suas experiências em apertadas sínteses e constroem a narrativa dos oprimidos, perpetuando história, por exemplo, em palavras de ordem que se repetem em eventos de resistência para combater Slogans reformadores que retornam. Assim como o prefeito da cidade do Rio de Janeiro durante a reforma urbana do século XXI recorreu às mesmas frases e conceitos do prefeito da reforma urbana de cem anos antes, as maneiras de reagir, as falas dos oprimidos que se negam a aceitar o desaparecimento de suas experiências também se repetiram. Isto porque “há reminiscências fossilizadas na consciência política popular, uma herança histórica (...)” (AZEVEDO, 2019, p. 143), que não passa, que não passou.
A história das reformas urbanas aparece, portanto, nas imagens que saltam, fora de sequência cronológica, mas que guardam relações de continuidade: os habitantes das cidades - escravizados, ex-escravos ou livres, ex-moradores das variadas formas precárias de estar perto do trabalho- tecem suas experiências com memórias, não necessariamente vividas em suas próprias vidas. Os monumentos do progresso já nascem ultrapassados e não são, portanto, unanimidades, nem mesmo em sua inauguração:
O pensamento dialético é o órgão do despertar histórico. Cada época sonha não apenas a próxima, mas ao sonhar, esforça-se em despertar. Traz em si mesma seu próprio fim e o desenvolve - como Hegel já o reconheceu- com astúcia. Com o abalo da economia de mercado, começamos a reconhecer os monumentos da burguesia como ruínas antes mesmo de seu desmoronamento. (BENJAMIN, 2009, p.51) 16
O tema do despertar é recorrente no pensamento de Benjamin, justamente porque a ação política é fundamental para alterar a aparência de linearidade da barbárie. Ante progressos reformadores, a narrativa da memória se impõe por justiça urgente.
As cidades são encontros de tempos - aura, memória, testemunhos e progresso: tudo nelas se encontra e as constrói. As sobreposições e justaposições fazem das cidades as maiores obras do capitalismo. Elas testemunham a construção da narrativa dos vencedores, mas encobrem rastros, em corredores de tubulações e memórias subterrâneas que podem (e devem) se romper na realização da história.
O flâneur é uma categoria central da percepção benjaminiana sobre as cidades, constituindo-se em eixo de análise de Teoria da História para entendê-las, e está presente no modelo de cidade em miniatura utilizada por Baudelaire (BOLLE, 2011, p. 292). Willi Bolle realizou o experimento de fazer uma análise benjaminiana de cidades brasileiras a partir da histoire croisée. O seu primeiro passo foi identificar as tipologias que seriam utilizadas. Neste texto, a identificação também se faz necessária. Quem seria o guia pelas ruas do Rio? Em se tratando da transição do século XIX para o século XX, Lima Barreto é uma alternativa (AZEVEDO, 2012) (SCHEFFEL, 2013) (SCHWARCZ, 2017)17. Já para falar da virada do século XX para o século XXI, um nome possível seria o de Chico Buarque (IGNACIO, 2012) (REBELO, 2006) (RODRIGUES, 2013). As reformas urbanas ocorridas nos diferentes momentos históricos são ambas referenciadas naquela empreendida por Haussmann em Paris, bem como se seguem revoltas importantes para a compreensão do processo de forma ampla. Assim, a verificação do método de Benjamin seria possível histórica e filosoficamente, guardados os cuidados necessários para os quais alerta Bolle18, inclusive com atenção aos escritos de Koselleck para evitar anacronismos.
Benjamin, em suas próprias análises observou também a importância de referenciar autores que conduziram o passeio urbano e de suas influências. Na reforma urbana carioca ocorrida na virada do século XIX para o século XX elementos e personagens como a Revolta da Vacina, Lima Barreto, Olavo Bilac e Pereira Passos são fundamentais para a construção da narrativa vencedora do modo de viver burguês na cidade mulher, moderna e maravilhosa, bem como da narrativa dos vencidos. A relação da reforma como realização de obras e eventos de exposições na/da cidade deve também ser observada.
No século XXI, foco da presente abordagem, Eduardo Paes e as reconfigurações urbanas que comandou em razão dos megaeventos Copa do Mundo FIFA de 2014 e Jogos Olímpicos de 2016 (ambos sediados na cidade), bem como os protestos realizados a partir de junho de 2013 na cidade são elementos centrais. Embora as canções de Chico Buarque19 não se dediquem a analisar especificamente os eventos, seria possível flanar por cinco décadas de alteração das percepções sobre o traçado urbano na experiência de quem vê e vive o Rio20, observando acontecimentos no tempo de acordo com a data de cada composição para ver o que traduz ruptura e o que traduz continuidade na experiência de estar na cidade. Sob influência de Noel Rosa, Ismael Silva e parceiros como Vinicius de Moraes, Tom Jobim, João Gilberto e Edu Lobo, o autor revela sujeitos poéticos que choram, brincam, seduzem e são seduzidos pelas esquinas cariocas.
Vitrines e galerias, paisagens que são vistas do trem, moradias, comidas, política, danças, temperaturas, crime, costumes: a produção musical de Chico Buarque (não serão aqui analisadas as obras literárias, apenas canções, algumas das quais presentes em sua obra teatral) conta histórias ouvidas e sufocadas no ritmo do desenvolvimento do modo de produção capitalista. “Vai Passar”, “Carioca”, “As Vitrines”, “Gente Humilde”, “Subúrbio”, “Pivete”, “O Meu Guri”, “Acorda Amor”, “Pelas Tabelas” e “Estação Derradeira” são exemplos de letras que passeiam e descortinam a vida no Rio de Janeiro notas afora. Há mesmo um álbum inteiro, Carioca, que o artista dedica à cidade21.
O que do conceito de flâneur permanece na obra de Chico Buarque, contudo? Do século XIX para o século XXI, teria o conceito sofrido alteração de sentido? Para Ilma Rebello, na obra de Chico há um flâneur pós-moderno, que seria descendente do flâneur oitocentista:
Transitando pela cidade, que já não mais lhes oferece identidade, os personagens de Chico se asfixiam em meio ao labirinto citadino. O flâneur “pós-moderno” abandona o estado contemplativo, o puro ócio e sustenta a sua deambulação, vagando em meio às crises identitárias (REBELO, 2006, p. 13).
Em contrário, a modernidade persiste nos dias atuais: atualizada, reposicionada, ressignificada diante do modelo de regulação neoliberal, mas eivada de relações sociais capitalistas, tal qual o século XIX. O flâneur benjaminiano fornecia imagens e relatos para a formulação de uma filosofia da história materialista partindo de uma metrópole. Embora Benjamin trate da dinâmica colonial em sua obra de forma crítica e com objetivo de empoderamento, a colonização é também naturalizada em alguns trechos de seus fragmentos. É necessário complementar sua metodologia, pois, com relatos elaborados a partir da experiência do colonizado após a colonização (BOLLE, 2009, p.233-240).
A figura do flâneur certamente terá sofrido modificações em sua forma de ser achada no mundo. Para entender esses limites e possibilidades de uso, contudo, Paris precisa ser retomada e analisada em comparação. Segundo Benjamin, o flâneur foi um tipo criado em Paris, “a terra prometida do flâneur”. Para Benjamin, é na
Paisagem - é nisto que a cidade de fato se transforma para o flâneur. Ou mais precisamente: para ele, a cidade cinde-se em seus pólos dialéticos. Abre-se para ele como paisagem e fecha-se em torno dele como um quarto (M1, 4) (BENJAMIN, 2009, p. 462).
Benjamin diferencia o flâneur do transeunte. Ao contrário de cidades como Londres, ele vê condições para o florescimento do flâneur numa Paris que ainda oferece refúgios, como as galerias, e espaço livre de modo que o flâneur não perca a sua privacidade. Aqui está uma das dificuldades de pensar o espaço saturado do Rio pós-colonização com tal categoria. Benjamin evoca o passeio de tartarugas nas galerias e adverte que esta deveria ter sido a velocidade média adotada pelo progresso22 (BENJAMIN, 2011c, p. 51). Contudo, no Rio do século XXI, a velocidade do progresso é como a do automóvel, para além das avenidas há também vielas, nas quais passa o blindado “caveirão”. Para as tartarugas só há lugar fora daquilo que se toma propriamente por urbano. A vigilância não é apenas de pessoas a pessoas, mas também mediada por equipamentos como câmeras fixas e drones, de forma que ela tende a ser total. Não pode no Rio prosperar a descrição de que na rua um flâneur sente-se em casa tão bem “quanto um burguês entre suas quatro paredes23” (BENJAMIN, 2011c, p. 35). Felizmente essa citação não dá conta da figura ambivalente e complexa do flâneur em Benjamin, pois
O flâneur é um abandonado na multidão. Com isso, partilha a situação da mercadoria. Não está consciente dessa situação particular, mas nem por isso ela age menos sobre ele. Penetra-o como um narcótico que o indeniza por muitas humilhações. A ebriedade a que se entrega o flâneur é a da mercadoria em torno da qual brame a corrente dos fregueses (BENJAMIN, 2011c, p.51- 52).
A relação do flâneur com a multidão, assim como a do burguês com os interieurs, se dá na busca de segurança, mas revela abandono. Na cidade como espaço de produção de lucro, o observador é também observado. No transporte, na rua, na vida, no protesto: o flâneur quer se esquivar da vigilância, conservar sua humanidade, desviar das regras a que está involuntariamente submetido. Em Benjamin é fundamental entender como as relações sociais capitalistas capturam - não de forma completa porque há resistência- a produção da vida nas cidades, reconhecer que a mercadoria fetichiza, inebria, observar o processo de desumanização que se dá na conversão da própria vida humana em exemplo seu - como força de trabalho (BENJAMIN, 2011c, p. 52-54).
E se o flâneur é aquele que em sua ociosidade se opõe à divisão do trabalho [M 5, 8] (2009, p.471), o malandro como o “barão da ralé” ou o cantor de “Mambembe” ou o vagabundo de “Desaforos” são personagens que encontram aí sua explicação mais adequada. Nas letras de Chico, o malandro pode ser a figura que, em certa medida, alguns oprimidos incorporam para realizar o equilíbrio impossível da reprodução da vida dentro do capitalismo com o prazer:
Entre deusas e bofetões
Entre dados e coronéis
Entre parangolés e patrões
O malandro anda assim de viés
Fonte: (BUARQUE, 1985).
Ao buscar o desvio em meio à pressão do sistema para que assuma tarefas específicas, como o trabalhador exemplar de “Pedro Pedreiro”, o malandro também desequilibra em sua corda bamba e, ao se reconfigurar com a passagem do tempo, busca nunca se dar mal.
Mas o malandro para valer
- não espalha
Aposentou a navalha,
tem mulher e filho e tralha e tal.
Dizem as más línguas que ele até trabalha,
Mora lá longe e chacoalha
no trem da Central
Fonte: (BUARQUE, 1978).
A concretude do flâneur carioca, contudo, é melhor explorada se o flâneur for interpretado de modo amplo como observador e testemunha da cidade, para além do paralelo único com o malandro. Assim, a abordagem pode se valer de um acervo mais numeroso e variado de relatos da cidade, desenhando fissuras, esmagamentos e urgências. Em sua abordagem, Bolle destaca que “o flâneur, bem entendido, não é um alter ego de Benjamin, mas uma figura de sondagem do espaço urbano” (2012, p. 295).
Por flâneur como observador entende-se aquele para quem a rua é moradia (BENJAMIN, 2011c, p.35), observador como aquele que se torna detetive (BENJAMIN, 2011c, p.38), observador que segue pistas que levam ao crime (AZEVEDO, 2019, p.155). O flâneur como observador da vida na cidade se torna, de modo inevitável, testemunha. Ele participa do processo de fetichização e presencia apagamento de vestígios, vê a formação do rastro e seu relato é uma importante fonte para a história, da qual, portanto, também é parte24.
A realidade pós século XIX apresenta às pessoas uma cidade aberta e fechada. Porém, o estranhamento e a desumanização encontram curvas distintas na Paris do século XIX e no Rio de Janeiro do século XXI, nas quais o não pertencimento é um dado comum. Chico traz em suas canções exemplos do desconforto do oprimido com o seu lugar. As praias da Zona Sul carioca, nesse sentido, não estão abertas. E o que se fecha como quarto em torno da narrativa dissidente nem sempre são paredes de cimento, especialmente na miséria [M 5, 1] (BENJAMIN, 2009, p. 470-471). Willi Bolle alerta para a necessidade de observar que a desumanização que se realiza fora dos espaços centrais do capitalismo é mais intensa e profunda (2009, p.236). Na letra dAs caravanas (2017), Chico Buarque descreve um dia de sol e quem dele pode desfrutar na praia:
É um dia de real grandeza, tudo azul
Um mar turquesa à la Istambul enchendo os olhos
Um sol de torrar os miolos
Quando pinta em Copacabana
A caravana do Arará, do Caxangá, da Chatuba
A caravana do Irajá, o comboio da Penha
Não há barreira que retenha esses estranhos
Suburbanos tipo muçulmanos do Jacarezinho
(...)
Com negros torsos nus deixam em polvorosa
A gente ordeira e virtuosa que apela
Pra polícia despachar de volta
O populacho pra favela
Ou pra Benguela, ou pra Guiné.
(...)
Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria
Filha do medo, a raiva é mãe da covardia
Ou doido sou eu que escuto vozes
Não há gente tão insana
Nem caravana do Arará
Não há, não há
O estranhamento e o conflito de classe evidenciado na letra (escrita após a reforma urbana do século XXI) e na prática carioca pode ajudar a compreender a persistência de problemas tão modernos na cidade. Segundo Sandra Rodrigues, desde 1970 Chico Buarque recorre a sujeitos poéticos que funcionam como o flâneur com frequência (2013, p.20). Assim que Chico é poeta e não flâneur, mas usa essa figura nas suas letras. E as possibilidades histórico-conceituais para fazê-lo estão abertas, como visto.
Na música “Carioca” (1999), que Chico escreveu antes do processo de Reforma urbana mais recente e apresentou em show em meio à sua realização, música, comida, economia, futebol, fé e a gente, tudo se mistura, turva e adorna a descrição da “cidade maravilhosa”. Na canção, o sujeito desliza pela cidade e pela música observando o outro (RODRIGUES, 2013, p. 74). A figura da cidade mulher persiste.
O flâneur que cata a poesia entornada no chão (BUARQUE, 1993) é, para Benjamin,
(...) um homem espoliado de sua experiência - um homem moderno. Apenas recusa o entorpecente com que os jogadores procuram embotar o consciente, que os tornou vulneráveis à marcha do ponteiro dos segundos (BENJAMIN, 2011c, p.130).
Na discografia de Chico, um homem moderno que recusa e aceita entorpecentes da arte e da vida no tempo acelerado, não se fala somente da cidade que aparentemente deu certo, da cidade que figura nas letras da bossa nova. O artista mudou de 1966 a 2020. O álbum de 2011, “Chico”, apresenta essas transformações nas letras das canções que mostram um homem que sente a cidade diferente, que troca nomes, amores e percebe-se avarento com o tempo, à medida que os segundos se esvaem.
E a cidade também. A cidade, cada vez mais, não é só a parte que se projeta com a imagem de maravilhosa. A cidade é o resultado da escravidão, da desigualdade de gênero, da luta de classes dentro do capitalismo. A cidade afinal é constituída também de morro, de favela e é vivida em plena exclusão, onde o conceito de estado de exceção toma vida para denunciar o genocídio engendrado pelo aprimoramento da técnica, pelo avanço do progresso-catástrofe moderno. Essa imagem, em paralelo com a história em miniatura, pode ser captada no trecho dAs Caravanas analisado acima.
Se pode haver um flâneur em termos benjaminianos no Rio de Janeiro contemporâneo, ele pode ser encontrado nas canções de Chico Buarque - em malandros, traídos, suburbanos, favelados, sambistas, apaixonados, sedutores, mães de assassinados pelo Estado25, oprimidos, observadores, testemunhas de forma ampla. Chico encontrou seus olhares de estranhamento, de excitação, de pertencimento à cidade “que abusa de ser tão maravilhosa”. Assim como Benjamin, que não olhou Paris somente pela reforma, mas pelas barricadas, folhetins, galerias e procurou todo o século, achando ali toda a Modernidade, Chico vê por variados ângulos as mesmas construções modernas cariocas. Embora não dedique suas letras a pensar especificamente o processo de reforma, deixa entrever a cidade e os oprimidos da cidade, em meio a sua realização.
O relato da expropriação de direitos, da moradia, o testemunho da violência explícita são componentes determinantes para a análise materialista histórica da transformação do Rio de Janeiro se Walter Benjamin é o suporte teórico-metodológico da investigação. As canções de Chico Buarque ecoam relatos de um flâneur observador que é atravessado pela paisagem inebriante, sufocado pelo tempo que escorre entre os dedos, pela liberdade que não há.
Benjamin é identificado como um autor da melancolia. Na desesperança dos vencidos seus escritos contribuem na realização de diagnósticos. Uma parte fundamental da obra de Benjamin, por outro lado, é justamente a possibilidade da abertura do tempo, do encontro e da realização da história na ação política de ruptura, revolucionária. Seus escritos se perpetuam em outros textos no esforço de levar adiante a valorização da memória e da lembrança como fundamentos de uma teoria da justiça do agora (MATE, 2008).
O legado de Benjamin se constitui em alerta sobre as vidas que não importam no enredo de fazer a história pelo acúmulo de progresso, cujo efeito colateral tolerado pela modernidade é o acúmulo de corpos. No fazer histórico, um corpo não pode jamais ser considerado só um corpo. Se “cada um está possuído por seu afeto” (BENJAMIN, 2011c, p.49), o corpo é o canal do afeto e da agência, da subjetividade histórica, ele porta memórias individuais e coletivas. Mesmo morto, um corpo é presença e comunica. Mesmo vivo, um corpo porta ausência. Não seria condizente, nesse sentido, dizer que Benjamin pretende dar voz a quem não tem. A construção teórica de seus escritos é em sentido muito diferente: é preciso que se reconheçam, que se ouçam as vozes da narrativa, existente, mas encoberta, dos vencidos. Reconhecer que os oprimidos precisam de uma voz é não ver neles o poder que têm. É não enxergar as histórias de seus corpos, de suas vidas.
Há, portanto, uma metodologia em Benjamin que pode ser mobilizada para analisar as cidades no capitalismo neoliberal e ela começa pela memória e pela crítica ao progresso. O Rio de Janeiro pode ser observado através das leituras de um flâneur atualizado, de um desajeitado com a modernidade qualquer a quem não falte empatia, como se apresentam personagens em algumas canções de Chico Buarque.
Ao trazer a urgência da justiça que move a teoria de Benjamin para analisar a cidade com os versos de Chico, em que pode haver um “tempo que refaz o que desfez” (BUARQUE, 1987), os escafandristas, como trabalhadores da memória, precisam procurar fragmentos e vestígios da cidade submersa agora. E para além de amores devem achar as injustiças da barbárie para que seja possível frear a catástrofe institucionalizada.