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O Haiti como Memória Subterrânea da Revolução e do Constitucionalismo Modernos
Haiti as an Underground Memory of Modern Revolution and Constitutionalism
O Haiti como Memória Subterrânea da Revolução e do Constitucionalismo Modernos
Revista Direito e Práxis, vol. 14, núm. 1, pp. 165-192, 2023
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Recepção: 12 Dezembro 2020
Aprovação: 26 Junho 2021
Resumo: O texto discute o Haiti como memória subterrânea da revolução e do constitucionalismo moderno, isto, é, uma experiência histórica que agrega camadas de sentido ao período revolucionário dos oitocentos e aporta ferramentas interpretativas para compreender os efeitos da modernidade e do constitucionalismo em contextos geopolítico periféricos. A hipótese é que a manutenção da Revolução e do constitucionalismo haitianos na clandestinidade relegam à insignificância as experiências da escravidão, do colonialismo e do racismo.
Palavras-chave: Constitucionalismo moderno, constituição do Haiti, memória Subterrânea, história do constitucionalismo, teoria crítica.
Abstract: The text discusses the Constitution of Haiti as an underground memory of modern constitutionalism, that is, a historical experience that adds layers of meaning to the revolutionary period of the eight hundred and provides interpretive tools to understand the effects of modernity and constitutionalism in peripheral geopolitical contexts. The hypothesis is that by keeping the Haitian Revolution and constitutionalism in the underground one relegates the experiences of slavery, colonialism and racism to insignificance.
Palavras-chave: Modern constitutionalism, haiti Constitution, memory, history, critical theory.
O longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais.1
1. Considerações Iniciais
As narrativas sobre o constitucionalismo moderno utilizam como parâmetro e modelo as experiências das Revoluções Burguesas estadunidense e francesa. Temas como a teoria do poder constituinte e a história constitucional apresentam essas experiências históricas como precursoras do constitucionalismo. De início é importante deixar evidente que não se está aqui a negar a importância destes eventos. Contudo, a pergunta que permanece é: existiram experiências alternativas a essas consideradas modelo? Em caso afirmativo, teriam essas experiências alternativas aos modelos de constitucionalismo exposto os impasses e tensões inerentes à experiência histórica, permitindo nossa releitura, e o questionamento de sua pretensão prescritiva? Existem narrativas silenciadas por essas experiências? E quais os efeitos do silenciamento de outras experiências para qualquer projeto constitucional que se pretenda democrático?
Ensaiar algumas possíveis respostas a esses questionamentos é importante, pois visa romper com um certo modo linear de entender a história do direito, que toma a "realidade" constitucional como algo dado, como uma receita que pode ser prescrita para qualquer mal, o que contribuiu para a ignorância sobre como a modernidade toca de modos diferentes as pessoas e os territórios, de acordo com sua posição geopolítica. Assim também, essa forma linear de fazer a história escamoteia as violências e os conflitos de poder. Ao prescrever-se como uma "receita", as hierarquias sociais já existentes reconstroem-se e aprofundam-se estruturalmente, e encontram nas narrativas da história do direito uma legitimação ideológica para a separação entre "primeiro" e "terceiro" mundos, "norte" e "sul", "ocidente" e "oriente", "supremacia civilizatória branca" e "inferioridade cultural não branca", "masculino" e "feminino", para mencionar alguns.
A introdução de outras experiências de constitucionalismo realizadas fora do eixo norte-ocidental-branco-masculino-cristão permite revisitar o ideário do constitucionalismo, que nasceu com pretensão de limitar o poder estatal, por meio de um conjunto de direitos derivados da interpretação dos ideais de liberdade e igualdade, que levantam uma pretensão de universalidade. E desse modo, ao questionar as memórias construídas sob os pilares do limite do poder estatal e dos direitos, que sustentam a narrativa oficial, podemos aceder aos silêncios impostos por esses processos, às tradições relegadas, e buscar as razões para tais ocultamentos.
Nesse sentido, delineamos a tese, ainda em desenvolvimento, de que a Revolução Haitiana e o constitucionalismo que deriva dela podem ser compreendidos como memórias subterrâneas2 da revolução e do constitucionalismo, uma das experiências históricas que agregam camadas de sentido ao período revolucionário dos oitocentos e aportam ferramentas interpretativas para compreender os efeitos da modernidade e do constitucionalismo em contextos geopolítico periféricos. Para isso, o texto está dividido em duas partes: na primeira, buscamos contextualizar como as memórias coletivas são construídas, valendo-nos de parte da obra do historiador e sociólogo Michael Pollak, que ressalta o papel dos excluídos nesse processo e como estes olhares outros, ao se opor à memória oficial, contribuem para compreender a memória como disputa.
Na segunda parte, expomos algumas narrativas que ajudaram a consolidar a memória oficial do constitucionalismo e formas como a Revolução Haitiana tensionou seus principais pressupostos, na medida em que esta pode ser vista como representativa da luta do povo negro pelo reconhecimento de sua humanidade, num contexto histórico fortemente marcado pela escravidão negra. Assim, a vigência da escravidão e seus desdobramentos contrastam fortemente com a ideia de universalidade que embasa o constitucionalismo liberal em sua gênese, a partir da qual se reivindica a abolição da escravidão e se reitera a máxima rousseauniana, presente nas conhecidas linhas que abrem o livro O Contrato Social, "todos os homens nascem livres, mas por toda parte encontram-se a ferros".
Por fim, nosso texto apresenta as razões pelas quais consideramos que qualquer projeto constitucional que se pretenda democrático, não o é se ignora as disputas do povo negro, aqui representadas pela Revolução e pelo constitucionalismo haitianos, os relegando à clandestinidade das memórias sociais. Os persistentes silêncios sobre as tradições subterrâneas de luta, nada mais fazem do que reiterar as violências estruturais que conformam o constitucionalismo moderno e fracassam em mostrar que este é conformado pela disputa da memória, muito mais do que por sua duração ou estabilidade. Percorrer o caminho da disputa e da resistência "acentua o caráter destruidor, uniformizador e opressor da memória coletiva"3, a partir da qual seja possível reivindicar, no presente, um espaço para a mudança política e para uma revisão crítica, inclusive autocrítica, do passado, para que se possa projetar o futuro de modo a desestruturar ditas violências.
2. A Memória Coletiva Como Fator Constitutivo de Identidades
A construção de uma memória social, sem dúvida, tem importante papel na constituição da identidade dos indivíduos e dos grupos. Isso porque, segundo Michael Pollak a memória coletiva é composta de “[...] tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes”4. Dessa forma, na perspectiva do autor, a memória coletiva tem a função de manter certa coesão interna, bem como estabelecer limites que criam espaços de pertencimento.
Entretanto, ainda que se fale em memória coletiva, é necessário lembrar que esta se constitui dentro de sociedades plurais, diversas e que comportam inúmeras fronteiras e espaços de auto-identificação. Desse modo, ainda que à primeira vista essa concepção possa passar a ideia de unicidade, se ela é constitutiva de identidades, esta memória em seu interior se encontra em constante disputa por inúmeras narrativas.
Se assim o é, a prática e a constituição de identidades se fazem sempre em uma relação de alteridade. Isso porque a construção da identidade consiste num fenômeno que se realiza por meio da aceitabilidade, da admissibilidade e da credibilidade negociadas de forma direta com os outros. Por essa razão, se memória e identidades são negociadas, não há que atribuí-las como essência de grupos ou pessoas5. É nessa lógica, das disputas das memórias e, consequentemente, das constituições de identidades, que se encontram as reais batalhas pela memória6.
Um exemplo que pode ser trazido para ilustrar essas disputas, e que de certa forma se liga ao tema deste trabalho, diz respeito ao que as ciências sociais brasileiras convencionaram chamar de tese da democracia racial, que encontraria seu lastro na forma como a obra Casa Grande & Senzala, de 1933, por Gilberto Freyre, teria introduzido o debate sobre hibridização e mestiçagem cultural7. As teses desenvolvidas nessa obra referencial de um dos autores alcunhado de intérprete do Brasil tem grande influência no contexto em que o tema da formação da identidade nacional torna-se uma questão central, não apenas no campo acadêmico, como no campo político, cultural, artístico e social. Nesse debate é preciso considerar em especial a narrativa de que a miscigenação poderia ser entendida como fruto da união "amigável" entre as raças, o que se tornaria o critério da identidade nacional.
Ainda que esta, ao tempo, pretendia-se como história oficial que uniria os brasileiros a partir de uma característica comum, percebe-se que tal narrativa leva outras para o subterrâneo. São outras memórias que, por não serem interessantes para a identidade nacional, foram relegadas ao subsolo da clandestinidade histórica. E é para explicar essa disputa pelas memórias, que Pollak apresenta os conceitos de memória (história) oficial / dominante, aquela contada para refletir a imagem da identidade pretendida, e o de memórias (histórias) subterrâneas / clandestinas, aquelas que são ocultadas, silenciadas, indizíveis por não atenderem às pretensas expectativas de identidade oficial8. Desse modo, memórias oficiais e subterrâneas disputam espaço como narrativas de compreensão da sociedade.
Considerando que a memória possui a função de manter a coesão interna e de defender seus limites, a partir de características comuns atribuídas ao grupo, é possível afirmar que, tanto as identidades construídas, quanto as fronteiras traçadas, partem de pontos comuns que formam uma espécie de quadro de referências, do qual Pollak se vale para apresentar o conceito de memórias enquadradas9. Este é de fundamental importância para distinguir a memória oficial das memórias subterrâneas / clandestinas.
O trabalho de enquadrar a memória é construído com base nos elementos fornecidos pela história. Para que a memória tenha durabilidade e consistência, há que se interpretar constantemente o passado em função dos questionamentos do presente e o do futuro. Essa atividade possui limites para sua construção. Isso implica dizer que a memória não pode ser construída de forma arbitrária, razão pela qual este trabalho deve atender certas exigências de justificação. Além desta, para que esta memória tenha credibilidade, ela dependerá da coerência de discursos sucessivos10.
O enquadramento da memória é desenvolvido por diversos atores, que se orientam com base em distintas fontes: de ordem sensorial, filmes, pesquisa oral, discursos organizados, entre outros. Além disso, esses profissionais do enquadramento da memória podem se orientar por bases materiais tais como: museus, bibliotecas, teatros, esculturas, estátuas e prédios os quais imprimem em suas estruturas a grafia da memória pretendida. Ao nos depararmos com esses atores de uma época longínqua, mas presentes em nosso cotidiano, percebemos que, aos poucos, eles são integrados ao pano de fundo cultural da humanidade.
Verifica-se que o trabalho especializado de enquadramento de uma memória coletiva é um fator importante para a constituição da identidade de determinado grupo social, assim como para a perenidade deste. É importante ressaltar que, mesmo que as memórias destes grupos e instituições não sempre tenham amparo fático, ainda assim elas podem sobreviver, mesmo diante de seus respectivos desaparecimentos. Neste caso, sua existência será alimentada pelas referências culturais, literárias ou religiosas, assumindo assim a forma de um mito11. Dessa forma, o passado distante pode se tornar uma promessa de futuro e, em determinados momentos, desafios lançados à ordem estabelecida.
Vale frisar que essa perenidade mencionada, seja institucional, seja de grupos sociais, não é assegurada em sua integralidade. Não levar a sério as exigências de justificação e a coerência sucessivas de discursos é abrir espaço para injustiças e violências. Neste caso, a relação de alteridade, a negociação com outro sobre a aceitação da identidade, são substituídas, e se tornam imposições violentas. Em outros termos, abrem-se fissuras que demonstram a inconsistência do discurso oficial. Isso acaba por confrontar as condições de possibilidade e duração dessa memória; por meio dessas fissuras as memórias subterrâneas emergem para questionar a fragilidade da memória oficial12.
Voltando ao exemplo da democracia racial, essa narrativa dominante esconde o fato de que a miscigenação, mesmo relida por Freyre contra as teorias racialistas e eugenistas de sua época, não desmontou a narrativa de inferioridade aceita por políticos, pensadores e acadêmicos13. Ao contrário, ela reforçou essa narrativa de inferioridade ao esconder e ignorar as vivências cotidianas e os modos de hierarquização e de organização social marcados pela raça, enquanto marcador social. A suposta democracia racial esconde a todo momento que por trás da suposta convivência "amistosa" entre pessoas brancas e negras, existe uma longa história de estupros contra mulheres negras, agressões físicas e psicológicas, extrema pobreza, exclusão social e política, e todos os tipos de violências decorrente dos efeitos da modernidade/colonialidade14.
Esta narrativa da memória coletiva oficial sufoca o tempo todo as narrativas e memórias coletivas vivenciadas pelas pessoas negras e suas fissuras se tornam evidentes justamente quando a suposta coerência sucessiva discursiva da democracia racial é confrontada com o cotidiano ao qual as pessoas negras estão submetidas, cotidiano esse carente de qualquer possibilidade de justificação racional. Então no plano ideal, a tese da democracia racial pretende fornecer uma explicação das condições raciais no Brasil, mas no plano fático, a precariedade, a pobreza e o aviltamento cotidiano dos direitos, além do racismo explícito e velado, fazem parte das vivências cotidianas das pessoas negras no Brasil, o que contraria de maneira contra-fática a força explicativa daquela "tese".
Uma vez que essas memórias subterrâneas conseguem adentrar o espaço público, outras demandas e reivindicações começam a disputar espaço junto à memória oficial, exigindo mudanças políticas e sociais, e autocrítica do passado. Além do mais, mesmo que estejam relegadas ao espaço do não escutado, do não dito, ao espaço do silenciamento, essas memórias clandestinas permanecem vivas. Isso porque elas são transmitidas cuidadosamente nas redes de familiares, de amizades e de meios informais, esperando a hora para que possam expor as fraturas, até então ocultadas, da organizada memória oficial15.
É justamente sobre essa tensão entre memória oficial / dominante e memórias clandestinas / subterrâneas que este trabalho lança algumas reflexões iniciais. Buscamos expor determinadas inconsistências narrativas que o constitucionalismo moderno esconde desde seus primórdios. E para expor essas fraturas, o trabalho adota como critério interpretativo a Revolução Haitiana e sua força na formação das imagens e das referências na construção da memória coletiva subterrânea no país, capaz de forjar outras narrativas mais condizentes com as condições factuais das pessoas negras.
3. A Revolução Haitiana e o Tensionamento da Memória Dominante do Constitucionalismo Moderno
Talvez a memória oficial mais marcante sobre modernidade16 seja a narrativa construída pelo Iluminismo17 no intuito de universalizar, entre outros, o que seria o Homem e o Direito. Ocorre que essa pretensa universalidade estava limitada geograficamente e direcionada a um grupo específico de pessoas; restrita ao homem branco, europeu, cristão, proprietário, que a partir de então serviria como parâmetro de humanidade. Essa nova medida impôs um novo arranjo geográfico mundial, no qual a Europa se tornou o centro e as demais localidades, a periferia do mundo. A partir desse processo, não seria mais possível falar em histórias plurais da humanidade, mas sim numa História Mundial da Humanidade18, ocultando narrativas diversas que coexistiam em relação a esta nova narrativa19.
Este rearranjo permitiu, ainda, por meio de uma relação hierárquica, a categorização humana em raças, cujo grau mais elevado seria o ser europeu, branco. Todas essas transformações culminaram no processo de produção, de ocultamento e de violências que denominamos colonialismo20. Esse foi o instrumento político e econômico que possibilitou a manutenção e a estabilidade desta narrativa como oficial, e que, longe de acabar com o fim temporal da existência de colônias, persistiu na forma de colonialidade21. No colonialismo, segundo Trouillot22, a prática da escravidão impôs às pessoas negras o grau de maior inferioridade na humanidade, impedindo que os valores iluministas fossem a elas estendidos, e mais, colocando-as no limiar da própria humanidade, de modo a fazer oscilar a narrativa entre serem coisa ou pessoa. Essa prática, ao mesmo tempo em que naturaliza a condição desses indivíduos a locais de subalternidade, os classificava como objeto incapazes de oferecer resistência, de apresentar projetos políticos, enfim, incapazes de produzir sua própria história23.
O imaginário que acompanha tal narrativa é o de que pessoas negras eram obedientes, não pensavam por si mesmas, o que justificaria a situação de escravizadas que lhes era imposta, sem qualquer reação. Trouillot descreve o conteúdo de uma carta do século XVIII em que um colono da ilha de São Domingos havia enviado para sua esposa na metrópole francesa. Para tranquilizá-la afirmava que a liberdade para os negros era como uma quimera24:
Nossos negros não se movem, nem sequer pensam nisso. São muito tranquilos e obedientes. É impossível que se rebelem. (...) Não temos nada que temer dos negros: são tranquilos e obedientes (...) Os negros são muito obedientes e sempre serão. Dormimos com as portas e janelas bem abertas. A liberdade para os negros é uma quimera.25
O trabalho de enquadramento nesse período se valeu tanto das categorias filosóficas e religiosas, quanto jurídicas, como mecanismos de justificação. Por isso uma de suas roupagens, a do constitucionalismo, teve um papel central nessa construção. O Iluminismo, enquanto movimento filosófico, e as experiências históricas das Revoluções Burguesas dos Estados Unidos (1776) e Francesa (1789) assentaram as bases para o constitucionalismo que nascia, sobretudo porque colocavam o homem como centro de todas as finalidades, orientado pelos princípios de igualdade, liberdade e fraternidade26.
Entretanto, esses princípios transformados em normas constitucionais com pretensão de universalidade27 esbarravam em contradições. Se igualdade, liberdade e fraternidade eram para todo ser humano, por que não valiam para os povos originários e para os negros sequestrados e forçados a vir para a América? Se na França existia a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, por que para suas colônias existia a escravidão? Assim também os pais fundadores dos Estados Unidos da América de um lado defendiam a igualdade e a liberdade, se insurgindo, inclusive, contra a “potencial situação de escravo” que a Coroa Inglesa pretendia impor-lhes. Não hesitavam em usar a escravidão como metáfora para se referir à situação das colônias em relação à metrópole. De outro lado, esses mesmos paladinos da liberdade e da independência em relação à Inglaterra, eram e continuaram a ser depois de sua emancipação metropolitana, proprietários de escravos. Essas são algumas incoerências discursivas sucessivas que fazem a justificação da memória oficial pretendida pelo constitucionalismo moderno expor algumas de suas fragilidades originárias.
Como dito acima, o fato de determinadas memórias serem relegadas à situação de clandestinidade, de modo a se manterem subterrâneas, não significa que elas deixaram de existir. Por isso é necessário falar da Revolução Haitiana como contraponto à narrativa tida como oficial. Falar em revolução engendrada por negros era algo que não passava pelo imaginário de nenhum colono, visto que o processo de enquadramento de memória acaba criando idealizações na vida cotidiana que são reiteradas pela narrativa oficial construída. O retorno à memória da Revolução Haitiana, que aqui queremos destacar, ganha um especial sentido de contra-narrativa por ser um fato simultâneo às experiências das revoluções francesa e estadunidense que servem à memória oficial como modelos de constitucionalismo.
A Revolução Haitiana, tomada como experiência histórica, mas também, como imaginário e possibilidade de construção de uma contra-narrativa anticolonial, representa essa memória subterrânea, porque apresenta novos fatos e novas leituras para os fatos históricos, que deixam evidentes as contradições da memória oficial sustentada pelo Iluminismo. E é por isso que a Revolução Haitiana, já em sua época, se torna controversa. Já que reconhecer qualquer tipo de resistência por parte dos escravizados e das pessoas negras era sinal de reconhecimento da sua humanidade, o que contradiz o senso comum de que o negro teria como essência a satisfação de servir. Mais uma vez a memória oficial mostrava sua fragilidade e contradição, pois quem serve por prazer e não mostra qualquer resistência, não precisaria estar submetido a medidas, algumas legalizadas, outras frontalmente ilegais e violentas28. Se a narrativa repetida pelos colonos de que casos de resistência à escravidão eram pontuais, não generalizáveis, e que não guardavam relação com decisões políticas e formas de organização social e econômica, por que era necessário um Code Noir29?
Admitir que havia resistência generalizada era assumir que o sistema não funcionava em sua perfeição, como se queria acreditar, o que colocaria em xeque as certezas ontológicas e políticas do Iluminismo. Dessa maneira, a existência da Revolução e do constitucionalismo haitianos tiveram o condão de enfrentar as bases conceituais nas quais a modernidade se construiu: raça, colonialismo e escravidão.
É importante ressaltar que ao apresentar a Revolução Haitiana como um contraponto, uma contra-narrativa à pretensão de universalidade humanista do iluminismo, não se está aqui negando os ganhos que esta tradição trouxe para a busca da emancipação humana. Por outro lado, isso não quer dizer que essa mesma tradição não apresentava contradições entre seus ideais e suas práticas. Falar em processos revolucionários é assumir acertos e contradições, de modo que se as Revoluções Burguesas têm importância na construção do constitucionalismo moderno, não se pode negar que a Revolução Haitiana também a tem. Sobretudo, porque se as bases desse constitucionalismo se assentam sobre a igualdade e a liberdade, São Domingos/Haiti ampliou o alcance desses valores para aquelas pessoas que, naquele momento histórico, foram excluídas, de forma violenta, dos mesmos: negros em diáspora e povos originários do continente americano30.
É importante ressalta, também, que levando em conta as complexidades que envolvem momentos revolucionários, a Revolução Haitiana não escapa desta afirmação. Ainda que seja um evento histórico que tenha sido influenciado pela Revolução Francesa, não se pode negar que esta também foi influenciada pela Revolução Haitiana, principalmente no período que se encontrava sob o comando de Toussaint L’Ouverture. Ao mesmo tempo, é um erro dizer que a Revolução Haitiana é caudatária da Revolução Francesa, pois há peculiaridades contextuais que possibilitaram a insurgência, a revolta dos revolucionários haitianos que, em outros momentos, se encontravam sob o julgo violento da escravidão31.
Os acontecimentos revolucionários ocorridos nos dois lados do Atlântico podem ser lidos como inter-relacionados e simultâneos. Por exemplo, os momentos constituintes da França revolucionária sofreram ingerências das manifestações que aconteciam em São Domingos/Haiti, tanto é que os mulatos32 da Ilha reivindicavam direitos políticos e representatividade junto à Assembleia Francesa, ao mesmo tempo em que pretendiam manter a escravidão negra33. O desdobramento dessa reivindicação, quando da Promulgação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, foi a exclusão dos mulatos, que acabaram não contemplados por ela. Esse resultado foi influenciado, tanto pela Burguesia Marítima, que lucrava com o tráfico de escravizados, quanto pelos brancos proprietários da colônia, os quais defendiam o argumento de que conceder direitos aos mulatos naquele momento era abolir a escravidão em outro momento próximo. Em função disso, a Assembleia Constituinte francesa negou, mais uma vez, a humanidade a eles. Esse acontecimento, por sua vez, vai influenciar um dos momentos da Revolução de São Domingos/Haiti, sobretudo após a morte de Ogé, um mulato importante nessa disputa34.
Outro exemplo da influência dos acontecimentos de São Domingos sobre a Revolução Francesa, no período de maior participação das massas nesse processo político, de março de 1793 a junho de 1794, foi o decreto de abolição da escravidão nas colônias francesas.35 Susan Buck-Morss argumenta que toda a Europa tinha conhecimento de todos os passos que aconteciam em São Domingos/Haiti, pois era a colônia mais rentável do sistema mundo naquele período. População em geral, intelectuais, e até mesmo conhecidos pensadores iluministas sabiam da importância da Ilha para a economia capitalista naquele período36.
Como visto, as Revoluções acontecidas em ambos os lados do Atlântico consistem em processos complexos, inter-relacionados, de fluxos e refluxos, mas peculiares e autônomos. Apesar desta constatação, na narrativa e nas memórias oficiais sobre as revoluções e o constitucionalismo, a Revolução Haitiana ganha, ainda hoje, um papel tangencial, figurativo e quase clandestino, mesmo que tenha compreendido e aplicado os ideais do Iluminismo de forma mais ampla. Trouillot37 chama atenção para um ponto, no mínimo curioso: de a Revolução Haitiana ter entrado para a história sendo impensável, ao mesmo tempo que acontecia. Ou seja, houve e há um trabalho de enquadramento de memória que relegou a Revolução e o constitucionalismo haitianos às páginas subterrâneas destes dois paradigmas. E é precisamente nesse sentido que falamos neste artigo da clandestinidade das memórias oficiais sobre esses processos, configurando assim uma memória subterrânea.
Partindo desta narrativa tida como dominante, que retira das pessoas escravizadas a sua agência, objetificando-as e tornando-as apolíticas, é possível explicar em quais sentidos o negro insurrecto passa a ser um problema para os ideais revolucionários brancos e burgueses. O sistema escravista era embasado na presunção de normalidade do sistema de dominação. O negro insurrecto era tido como não adaptado, ou um adolescente rebelde. Mas esse tipo de crença passa a ser insuficiente para justificar o sistema, deixa, inclusive, de convencer os próprios colonos de sua plausibilidade. Como diz Trouillot: “[...] Se cada uma das explicações fosse verdadeira, a soma de todas elas não esclareceu as causas e os efeitos da repetição de tais casos”38.
O paradoxo desse processo é que ao faltarem referências conceituais para descrever a Revolução Haitiana, ela passa a ser compreendida como impensável, um evento impossível de acontecer, um não evento. Tanto é que, quando na França recebeu a notícia da Revolução na ilha, muitos preferiram acreditar que se tratava de informações falsas. E mesmo depois de confirmada, os franceses a descreviam como um erro de cálculo dos proprietários de terras39.
Sob esta perspectiva, se a Revolução dos Estados Unidos demonstrou ser possível acabar com a dominação colonial dentro do Novo Mundo e a Revolução Francesa destruiu as estruturas feudais do Velho Mundo, por sua vez, a Revolução Haitiana confrontou o colonialismo abolindo a escravidão40. No que diz respeito ao constitucionalismo, se Estados Unidos e França inauguram um modelo jurídico-político pautado na pretensão de universalidade dos direitos, a partir dos princípios de igualdade e de liberdade, foi o constitucionalismo haitiano que os realizou de forma mais abrangente, por meio da abolição da escravidão e a busca por igualdade racial41.
4. Constitucionalismo Subterrâneo e a Exposição das Fraturas do Constitucionalismo Pretensamente Universal
Nesta última parte daremos destaque à peculiaridade presente no constitucionalismo haitiano, sendo, talvez, o ponto mais importante no conjunto de suas constituições42, e sua pedra fundante, a abolição da escravidão e a busca por igualdade racial. A primeira Constituição do Haiti depois da Revolução, a de 1801, estabelecia no “Artigo 3. Não pode haver escravos neste território, a servidão é aqui abolida para sempre. Todos os homens que aqui nascem, vivem e morrem livres e franceses”43
No contexto desta Constituição é possível ver na parte final do citado Artigo 3o. que não há ainda uma menção ou reivindicação explícita de autonomia em relação à França. A afirmação é pela nacionalidade francesa e, portanto, pela aplicação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão em solo haitiano. E é precisamente nesse contexto que a afirmação pelo fim da escravidão ganha a força de uma contra-narrativa que expressa as fraturas da reivindicação de liberdade e igualdade sem abolição.
No preâmbulo da Constituição Haitiana de 1805, conhecida como Constituição Dessalines, encontramos novamente a afirmação da liberdade como sinônimo do fim da escravidão e uma alusão à narrativa da inferioridade com base na metáfora da maioridade/menoridade44:
[...] na presença do Ser Supremo, perante quem toda a humanidade é igual, e que espalhou tantas espécies de criaturas na superfície da terra, com o propósito de manifestar a sua glória e o seu poder pela diversidade das suas obras, na presença de toda a natureza por quem fomos tão injustamente e por tanto tempo considerados como crianças rejeitadas. (grifo nosso)45
Esta reafirmação abolicionista confronta o Haiti às pretensões imperialistas, tendo em vista que o colonialismo tinha como sustentáculo econômico e social o sistema escravagista46. E esta ainda ganha uma nova dimensão quando alinha o fim da escravidão com a luta contra a discriminação racial, interligando o componente racial e o colonial. Essa questão fica em evidência no texto da citada Constituição Dessalines, que determina que entre os filhos de uma mesma família não haveria distinção de cor, tendo em vista que a partir daquele momento todos os haitianos seriam reconhecidos pela forma genérica de negros. Nos termos da própria Constituição, no Art.14, “Qualquer significado de cor entre os filhos de uma única e mesma família, cujo chefe de estado é o pai, deve necessariamente cessar; os haitianos agora serão conhecidos apenas sob o nome genérico de negros.”47
Não temos nesse momento histórico a categoria de raça, criada a partir do debate da biologia, e que só irá surgir no final do século XIX e início do século XX. O ser haitiano expressava, neste contexto, antes de tudo, uma vontade política. Dizer que todos os haitianos seriam considerados negros afrontava diretamente a lógica colonial, pois aquele que era inferior, subalterno, se torna o paradigma da universalidade.
Entretanto, tal denominação pode levar ao questionamento de se não seria uma contradição com a pretensa vontade de erradicar a discriminação racial. E sobre essa indagação é necessário esclarecer dois pontos. O primeiro é que quando da promulgação desta Constituição, não havia o reconhecimento internacional da independência do Haiti. A França, mesmo tendo perdido a guerra, não acreditava na independência do país. As relações entre Haiti e França permaneciam dúbias, e existia o medo de que os antigos colonos, com apoio da França, voltassem para reivindicar suas antigas propriedades. A denominação dos haitianos como negros, aliado à proibição dos brancos adquirirem propriedade no país, era medida para tentar evitar esse indesejado retorno48.
O segundo ponto é que havia um temor por parte das metrópoles de que a Revolução do Haiti servisse como exemplo e se expandisse pelo resto da região. De fato, a simples divulgação de que ela tinha ocorrido provocou insurreições no continente. Entretanto, como o Haiti necessitava de reconhecimento diplomático por parte das potências imperiais, ele se viu pressionado a não “exportar a Revolução” para os demais países da região. Para sair desta armadilha colonial, a afirmação de que todos os haitianos são negros se apresentava como uma saída. Dessa forma, o país criava uma forma de adquirir cidadania para além dos tradicionais critérios sanguíneo e territorial. Ela "tranquilizava" as potências imperiais, ao mesmo tempo que abria a possibilidade para se inverter esta construção linguístico-constitucional, de modo que todo o seu potencial anti-discriminatório ficava ainda mais evidenciado. Se fosse possível dizer, ao inverter a frase, que todos os negros são haitianos, o Haiti se tornaria assim uma possibilidade para pessoas que havia fugido da escravidão ou que se encontrasse em situação de opressão encontrarem um lugar de reconhecimento de sua cidadania.49.
Nesse sentido, não apenas a Revolução Haitiana, como o constitucionalismo haitiano, emergem como eventos históricos sem precedentes, capazes de impactar de forma direta o sistema colonial-capitalista da modernidade. Ao colocar desde o seu início a abolição da escravidão como elemento fundacional do Estado, este não evento questionava diretamente a pretensão de universalidade do constitucionalismo moderno, que toma como base os processos estadunidense e francês, contemporâneos ao constitucionalismo haitiano, e escancara o caráter restritivo da cidadania que estes pretendiam. Em termos atuais, o Haiti torna mais evidente, mesmo nos parâmetros de época, a lógica modernidade/colonialidade e as íntimas relações entre colonialismo, escravidão e raça, sem precisarmos lançar mão de quaisquer anacronismos.
A autolibertação do escravizado causou fissuras no modo de organização social vigente, motivo pelo qual, impôs a reconstituição dos modelos gerais de existência da região e de sua gramática, permitindo novas leituras e apropriações dos conceitos de cidadania, liberdade, igualdade e democracia50. Assim, a Revolução e o constitucionalismo haitianos representavam, por um lado, para os escravizados, um horizonte possível, mas, por outro, para a elite local e para as antigas metrópoles, seriam interpretados a partir da ideia do medo, sobretudo o medo de sua propagação pelas Américas51.
E os impactos e a ressonância da Revolução Haitiana no Brasil são ilustrativos disso. Conforme demonstra Marcos Vinicius Lustosa Queiroz em trabalho seminal, o medo do Haiti esteve presente na gênese do constitucionalismo brasileiro, perpassou os debates da Constituinte de 1823, na outorga da Constituição de 1824, e nas diversas insurreições, sobretudo as da Regência52. O autor ainda explica como o medo conduziu a política de segurança pública e tem um papel central na definição da cidadania, de modo a restringir o acesso às pessoas negras, manter os privilégios atrelados ao exercício da propriedade privada, e manter o sistema escravocrata e a supremacia branca. Estabelece-se, portanto, igualdade e liberdade vigiadas e marcadas racialmente53. Nas palavras do próprio autor, “o medo do haitianismo na formação do Brasil enquanto Estado interfere diretamente no surgimento do constitucionalismo brasileiro, negando a cidadania e suas consequências às pessoas negras de origem africana que aqui se encontravam”.54
Mesmo diante desta barreira, ainda que relegada à clandestinidade das disputas sociais por sua emancipação cidadã que já aconteciam no Brasil, a onda negra55, aliada ao evento da Revolução Haitiana continuava a se propagar ao longo do tempo reivindicando sua humanidade56. Em função desta disputa, o medo da possibilidade de iguais direitos para as pessoas escravizadas continuava a orientar a cidadania restrita. Tanto é assim que, mesmo aproximadamente trinta anos após outorga da Constituição de 1824, ainda se temia a haitianização do Brasil57.
Nesse último caso uma das construções narrativas mais eficientes utilizadas para combater os efeitos da Revolução Haitiana foi proposta pelo Abade De Pradt, qual seja: maldizer e não dizer. Em síntese, De Pradt propunha silenciar e ocultar a Revolução e, ao mesmo tempo, execrar e rejeitar a repetição dos “horrores” de São Domingos. Essa foi a narrativa, segundo Morel, que mais vingou no Brasil oitocentista, pois ela permitia manter a ordem escravocrata nas mãos de seus beneficiários, sem ruptura e, sobretudo, retirando o protagonismo dos escravos na autolibertação58. Indiretamente, outra narrativa eficiente é a da abolição lenta, gradual e segura, que era defendida tomando como parâmetro de "mau exemplo" a Revolução Haitiana59.
Essas linhas traçadas até aqui levam a intuir que o marcador racial, como fruto do colonialismo e de sua persistente colonialidade nas esferas do poder, do saber e do ser, parece ter sido uma constante que irradiava seus efeitos sob o pretexto de mudança, de progresso da modernidade ao preço de manter os mesmo privilégios oriundos da silenciosa e violenta segregação. Ou seja, um trabalho de enquadramento de memória para ocultar as lutas, disputas e reivindicações pela cidadania das pessoas negras. O constitucionalismo moderno tem entre seus principais pilares a igualdade e a liberdade, mas também é constituído por tensões. E desconsiderar essas disputas históricas e sociais engendradas pelas pessoas negras, aqui representadas na memória da Revolução e do constitucionalismo haitianos, é uma escolha, um processo de enquadramento de memória, que as lançam à clandestinidade.
5. Considerações Finais
Como visto, a memória é um fator importante para a constituição de identidades, sejam elas individuais ou coletivas. É por meio dela que se estabelece a coesão interna de seus membros, bem como espaços de pertencimento e fronteira. Mas é preciso considerar que a memória e as identidades são construídas em sociedades plurais, sendo assim, disputadas a todo momento. Por isso, falar em memória e identidade no constitucionalismo é associá-la ao processo de alteridade, pois elas somente se constituem em relação ao outro e de forma negociada. Ocorre que há memórias que fazem parte da narrativa oficial, aquela que deve ser contada, e outras que são relegadas à clandestinidade histórica. Para que a história oficial seja perene ela deve contar com uma justificação e discursos sucessivos que sustentem de forma coerente sua existência, caso isso não aconteça ela se tornará uma imposição violenta.
Dessa forma, podemos perceber que a narrativa oficial da modernidade para se justificar, primeiramente, impôs, às narrativas que não fossem europeias, a condição de subterrâneas. Para tanto, relegou povos originários e negros à condição dúbia entre sub-humanos e coisas, de qualquer modo, incapazes de oferecer resistência, de ter autonomia e de produzir história. Na verdade, essa foi a justificativa de ocultamento, em que ao determinar o que era ser humano, não o fez a partir de qualquer tipo de relação negociada, como quis fazer parecer a narrativa da democracia racial, por exemplo. Ao contrário, ela se torna tão somente uma imposição violenta.
Além das justificativas filosóficas e religiosas, a construção dessa memória oficial da modernidade contou com o auxílio do direito, e isso fica evidenciado no constitucionalismo. A leitura dominante em torno do sentido deste, ao escamotear suas contradições, relegou à clandestinidade a Revolução Haitiana, e o constitucionalismo haitiano, sobretudo, quando os transformá-los em não eventos, contando a história de que qualquer resistência engendrada por negros seria impensável. É nesse sentido que entendemos e sustentamos ao longo deste artigo que a Revolução e o constitucionalismo haitianos são, ainda hoje, memórias subterrâneas do constitucionalismo. Talvez seja caro demais assumir o grande erro de uma universalidade subjetiva, que parte da própria província, e se projeta de forma impositiva para todos. Essas memórias subterrâneas atacam a pedra angular de todo o sistema econômico e social que sustenta a tradição do constitucionalismo liberal, a saber, a escravidão, e a correlata discriminação racial.
Essa narrativa das memórias subterrâneas coloca em xeque a constituição da memória oficial, em uma região onde o grande contingente populacional é constituído por povos originários e pessoas negras escravizadas. Essa fratura, se exposta, tem o potencial de fazer ruir todo o sistema império-colonial. É por isso, inclusive, que, no Brasil, seus efeitos foram silenciados ora pelo mal dizer e não dizer, ora pelas persistências da colonialidade, como, por exemplo, por meio da ideia de democracia racial, que se desenvolve a partir da defesa da mestiçagem como elemento da identidade nacional, na mesma época em que a Constituição de 1934 consolida no "Art. 138 - Incumbe à União, aos Estados e aos Municípios, nos termos das leis respectivas: (...) b. estimular a educação eugênica."60.
Ainda hoje encontramos na narrativa constitucional tentativas de minimizar os efeitos e o significado do Haiti, ora com argumentos como o de que negros também escravizavam, que muitos escravos eram melhor alimentados que os ingleses, ou, ainda, que a Revolução Haitiana foi eivada de grande violência. Isso quando ela não é simplesmente apagada dos livros e dos debates. E a esse respeito, Trouillot adverte que “O efeito conjunto desses dois tipos de fórmulas é um silêncio estrondoso: tudo que não foi suprimido nas generalidades se perde na irrelevância cumulativa de muitos detalhes.”61
A manutenção da Revolução e do constitucionalismo haitianos na clandestinidade acaba relegando à insignificância três vicissitudes dos processos revolucionários e constitucionais modernos - a escravidão, o colonialismo e o racismo. Estes correm em paralelo e simultaneamente às pretensões de liberdade e da igualdade. O ocultamento dessas tensões e contradições impede a releitura crítica do passado, e seu significado para o presente. Ignorar este não evento é insistir e não aceitar que a constituição não se resume a texto, e que é preciso visibilizar as lutas e disputas pelos sentidos da constituição.
Aliás, é importante dizer que tratar a Revolução Haitiana como um não evento somente faz sentido para uma narrativa oficial que sempre teve dificuldade de lidar com a diferença. Essa dificuldade é sintetizada no modo de organização do colonialismo e, posteriormente, da colonialidade. O adjetivo não evento atribuído à Revolução Haitiana decorre justamente da necessidade impositiva de categorizar o outro subalternizado como não um agente produtor de história, objeto incapaz de produzir ações políticas estratégicas e estruturadas. Para quem foi submetido ao julgo da violência escravista moderna a insurgência, a revolta, e a Revolução sempre foram um horizonte e um evento possível. Por fim, Trouillot nos lembra que: “Quanto menos importante parecer o colonialismo, o racismo, na história do mundo, menos importância também terá a Revolução Haitiana.”62
A luta das pessoas negras por emancipação, representada aqui neste trabalho por um fragmento dessa história, na Revolução e no constitucionalismo haitianos, importa na medida em que nos ajuda a entender a parcialidade da narrativa oficial que se apresenta supostamente universal, mas que revela tratar-se de uma disputa de narrativas que questiona o primado da universalidade de direitos para todas as pessoas, que ignora aquelas excluídas desses processos. Do ponto de vista fático, o Haiti existiu e questionou a bases dos paradigmas revolucionários e constitucionais dos Estados Unidos e França. E mais, o que fazem as narrativas oficiais sobre a revolução e o constitucionalismo é torná-lo de menor relevância, uma nota de rodapé, e por isso falamos aqui em memória subterrânea. Como Michel Pollak, chama a atenção, dizer que algo é clandestino ou subterrâneo na construção de memória, não é dizer que ele deixou de existir, mas que há uma correlação de forças que impede que ele ganhe visibilidade. Neste artigo buscamos refletir sobre esses pontos de tensionamento que a Revolução do Haiti levantou, tornando os ideais de liberdade e igualdade que caracterizam o constitucionalismo moderno discutíveis a partir desses tensionamentos, na esteia de C.L.R James, Susan Buck-Morss e Laurent Dubois.
Nos perguntamos sobretudo o por quê a Revolução e o constitucionalismo do Haiti estarem fora dos manuais de direito ou das aulas que caracterizam o constitucionalismo moderno, por exemplo. Por que ao falarmos de liberdade e igualdade, deixamos de explicitar as tensões que permeiam os primórdios do constitucionalismo, e mantemos a Revolução e o constitucionalismo Haitianos subterrâneos?
Podemos entender assim que qualquer projeto constitucional que se pretenda democrático, mas que lança estas tensões para a clandestinidade e para as memórias subterrâneas, excluindo-as das memórias mundial e nacional, está fadado a reproduzir e dar manutenção ao que sempre foi destinado para as reivindicações das pessoas negras: o silêncio. E isso, em um país como o Brasil, marcado desde seu nascimento com a pecha da escravidão, do colonialismo e do racismo não é esquecimento; é uma escolha.
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