Resumo: Os desastres de Mariana e de Brumadinho representam dois dos maiores acidentes laborais da história brasileira. Somados, resultaram na morte de quase trezentos trabalhadores das mineradoras Samarco e VALE, na maioria, terceirizados. . Eles se inserem em uma lógica de superexploração do trabalho, ínsita à relação de subserviência dos países latino-americanos aos países centrais. Empregando o método dialético, o presente artigo se valeu da análise bibliográfica e documental como técnicas de pesquisa.
Palavras-chave: Teoria Marxista da Dependência, Extrativismo, Saúde e segurança no ambiente de trabalho.
Abstract: The Mariana and Brumadinho disasters represent two of the biggest occupational accidents in Brazilian history. Together, they resulted in the death of nearly three hundred workers at the Samarco and VALE mining companies, majorly, outsourced. . They are part of a logic of overexploitation of work, inherent to the relationship of subservience of Latin American countries to central countries. Using the dialectical method, this article used bibliographic and documental analysis as research techniques.
Keywords: Marxist Dependency Theory, Extractivism, Health and safety in the workplace.
Artigos
Superexploração, acidentalidade e terceirização nos desastres da mineração
Over exploitation accidentality and outsourcing in mining disasters
Recepção: 17 Fevereiro 2021
Aprovação: 07 Novembro 2021
Quanto mais cobiçado pelo mercado mundial,
maior é a desgraça que um produto
traz consigo ao povo latino-americano
que, com seu sacrifício, o cria.
A pobreza não está escrita nos astros;
o subdesenvolvimento não é fruto
de um obscuro desígnio de Deus
Trechos de As Veias Abertas da América Latina,
Fonte: de Eduardo Galeano1
É atribuída ao filósofo grego Aristóteles a célebre frase “A arte imita a vida”. Trata-se de expressão tão habitualmente utilizada que, por muitas vezes, esquecemos o poder desse pequeno conjunto de palavras para descrever as incontáveis semelhanças entre o imaginado e o vivido. E por mais que essa aproximação entre a arte e a realidade aparente, em uma primeira vista, estar distante do nosso objeto de estudo, um olhar mais atento sobre essas relações pode nos ajudar a elaborar importantes reflexões sobre os desastres empresariais ocorridos em Mariana e Brumadinho2.
Entre setembro de 2018 e abril de 2019, a cidade de Mariana foi utilizada como palco de uma novela transmitida em âmbito nacional. Sob o sugestivo nome de Espelho da Vida, o enredo acompanhava as desventuras de Cris Valencia, personagem que, após descobrir a existência de um portal para vidas passadas, passara a viver entre o presente e o passado. É verdade que esta vivência entre dois tempos era bastante problemática (sendo que em uma das passagens da trama a personagem principal chegou a ficar presa no passado), mas a partir dessa alegoria o que se quer é apontar para um cenário muito mais tormentoso que o vivido pelos mocinhos e bandidos da TV. Trata-se da realidade de uma “mineração sem peias”3, vivenciada na pele pelas populações de Mariana e Brumadinho, nos últimos oito anos, mas cujas raízes remontam a um passado secular. Como no poema “A parada do velho novo”, de Brecht4, em que o velho, sem conseguir esconder as marcas da idade, tentava ludibriar os passantes travestindo-se de novo, a indústria da mineração e seus nefastos efeitos tentam se valer da mesma jogada. Intentam vender as centenas de mortes e a dizimação da natureza ocorridas em Mariana e Brumadinho como algo recente, fruto de uma externalidade, e esquecem, propositadamente, de todo um passado de exploração5. Mas é nesses tempos de ressaca, em que os celebrados êxitos da indústria do minério para a redistribuição econômica/melhoria social desmancham no ar, que a história ganha força para ser desvelada6. Assim é que, ao longo deste artigo, pretende-se demonstrar que o “modus operandi” de espoliação e saque é, na realidade, ínsito à relação de subserviência dos países latino-americanos aos países capitalistas centrais. Atuando desde os tempos do "descobrimento" até os dias de hoje como fornecedora de matérias-primas, serve a América Latina apenas para cumprir os desígnios dos países centrais, em sua sanha pela acumulação de capital. E dentro desse esquema, como forma de compensar a exportação dos lucros para as "metrópoles", a superexploração do trabalho, instrumentalizada pela terceirização e materializada em acidentalidade e morte, se torna um importante mecanismo de extração de mais-valia pelas classes burguesas periféricas. É o desvelar deste histórico de violências passadas e presentes e da sua influência na ocorrência dos desastres empresariais estudados a nossa preocupação principal neste momento.
Feitas estas considerações, o presente artigo terá como objeto investigar, à luz da teoria da dependência e do materialismo histórico, os desastres ocorridos em Mariana e Brumadinho e, especialmente, as consequências destes para seus trabalhadores e para a natureza. A título de problema investigativo, o que se pretende é tentar responder à seguinte indagação: as centenas de mortes e a dizimação da natureza ocorridas em Mariana e Brumadinho seriam fruto de uma mera externalidade, como apontam as empresas mineradoras, ou seriam o resultado de uma lógica exploratória de caráter estrutural? A hipótese levantada é que toda essa devastação, presente nos dois desastres, teria causa estrutural, relacionada à subserviência dos países latino-americanos aos países capitalistas centrais e baseada em instrumentos como a superexploração. Empregando o método dialético, o presente artigo se valerá da análise bibliográfica e documental como técnicas de pesquisa.
Pensando nos contornos da realidade brasileira e dos muitos brasis que nela convivem, é certo dizer que poucos intelectuais conseguiram alcançar a profundidade das análises elaboradas pelo historiador Caio Prado Júnior. Embora os seus principais trabalhos se situem entre as décadas de 1940 e 1960, a capacidade de Prado Júnior investigar os problemas sociais até as entranhas torna a sua obra não apenas atual, mas imprescindível para entender a contemporaneidade. Tome-se como exemplo a visão de Prado Júnior da história. Servindo-se das premissas do materialismo histórico marxista, Prado Júnior entendia a história não apenas como memória, mas como algo vivo, corrente7. Sobre o passado colonial, afirmava o autor que ele8 “aí ainda está, e bem saliente; em parte modificado, é certo, mas presente em traços que não se deixam iludir”9. E jogando luz às resistentes marcas da colonização, Prado Júnior explica que a “presença de uma realidade já muito antiga que até nos admira de aí achar”10 se dá quanto a “caracteres fundamentais da nossa estrutura econômica e social”11:
No terreno econômico, por exemplo, pode-se dizer que o trabalho livre não se organizou ainda inteiramente em todo o país conservando traços bastante vivos do regime escravista que o precedeu. O mesmo poderíamos dizer do caráter fundamental da nossa economia, isto é, da produção extensiva para mercados do exterior, e da correlata falta de um largo mercado interno solidamente alicerçado e organizado. Donde a subordinação da economia brasileira a outras estranhas a ela; subordinação aliás que se verifica também em outros setores.12
Especificamente no que se refere à indústria mineradora no Brasil, os traços coloniais saltam aos olhos. A partir de uma contínua relação de subordinação, se assiste à exportação dos lucros (exorbitantes) e empregos gerados pela atividade extrativista para os países do capitalismo central. É sobre isso que se tratará nos tópicos seguintes.
Em “O Sentido da Colonização”, capítulo do livro “Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia”, Prado Júnior busca desnaturalizar o processo de “descobrimento” da América portuguesa. Realizando uma análise sistemática e crítica deste período ele aponta que seria errôneo entender a colonização da América portuguesa como “um fato isolado, a aventura sem precedente e sem seguimento de uma determinada nação empreendedora; ou mesmo uma ordem de acontecimentos paralela a outras semelhantes, mas independente dela13”. Esse evento se enquadra em um contexto histórico específico fruto de “uma verdadeira revolução na arte de navegar e nos meios de transporte por mar14”. Foi pelo desenvolvimento das novas técnicas marítimas (e avantajados por suas localizações geográficas) que países como Portugal e Espanha ganharam força para superar a concorrência dos territórios centrais do Continente e desenvolver a expansão ultramarina15. Mas ainda mais importante que entender a “descoberta” do Brasil como um fato sistêmico, integrante de uma conjuntura histórica específica, é perceber que a força motriz desses “descobrimentos” era o interesse comercial europeu. Como revela Prado Júnior, é pela falta de interesse comercial que nas décadas iniciais da epopeia colonizadora nenhum dos europeus apresentou interesse em povoar o território americano. Afinal de contas “é o comércio que os interessa, e daí o relativo desprezo por este território primitivo e vazio que é a América; e inversamente, o prestígio do Oriente, onde não faltava objeto para atividades mercantis”16. E mesmo quando o povoamento passou a ser considerado importante, essa importância se deu com o intuito exclusivo de “criar um povoamento capaz de abastecer e manter as feitorias que se fundassem e organizar a produção dos gêneros que interessassem a seu comércio.”17 Essa lógica de povoar a América para impulsionar o comércio metropolitano apenas iria ser excepcionada, em alguma medida, pela ocorrência de situações peculiares. Em parte, em virtude das lutas político-religiosas que inundaram a Inglaterra daquele período e que empurraram para as zonas temperadas americanas populações que buscavam “procurar ali abrigo e paz para as suas convicções”18. E de modo adicional, motivada pelo massivo deslocamento para este mesmo território da população inglesa expulsa “dos campos, que de cultivados se transformam em pastagens para carneiros cuja lã iria abastecer a nascente indústria têxtil” 19. Embasada por razões religiosas ou socioeconômicas, o que irá resultar dessa nova leva migratória será uma colonização com objetivos diversos das outras formas então praticadas, marcada pela busca de melhores oportunidades de vida e não somente pelo fomento à existência de outros povos.20
De modo contrário, e especialmente no caso brasileiro, a identidade subserviente é uma marca profunda da colonização tropical. Em se tratando do extrativismo mineral em Minas Gerais, durante o chamado “ciclo do ouro”, é sabido que as riquezas extraídas do solo mineiro jamais fincaram pé na colônia, sendo todas exportadas para Portugal. Esse sistema era inclusive oficializado pela monarquia portuguesa que “estabelecia que o direito de propriedade do subsolo deveria pertencer ao Rei, de forma que toda atividade minerária tinha como único objetivo satisfazer a cobiça da metrópole portuguesa”.21 Mas o que assusta é que, assim como pontuava Prado Júnior, este errático cenário colonial, em que a riqueza escoava pelos porões dos navios, ainda se mostra vivo no cotidiano das cidades mineiras. Como mostra Onofre Alves Batista Júnior, o disparate entre a lucratividade indecente e o parco retorno social da atividade mineradora salta aos olhos. A título exemplificativo:
(...) apenas uma das empresas de mineração brasileira obteve, em 2011, uma receita bruta da ordem de 60,4 bilhões de dólares (mais de 100 bilhões de reais), havendo recolhido, no total, aos cofres públicos, cerca de 1,4 bilhões de dólares. (...) Não é de se espantar assim, que essa mesma mineradora tenha obtido um lucro gigantesco de 22,9 bilhões de dólares (37,9% da receita bruta).22
Esse retorno social diminuto também se revela pela baixa capacidade do setor extrativista mineral em gerar empregos e renda em terras mineiras. Prejudicado pelo uso intensivo de bens de capital, o “boom” da mineração na primeira década dos anos 2000 não converteu em uma elevação significativa dos empregos na mineração. Entre os anos de 2000 e 2010, a participação do setor extrativo mineral no número total de empregos, que já era baixa, teve um crescimento ínfimo, passando de 0,98% para 1,08%23. Além disso, o fato de o minério extraído ser exportado em sua forma bruta resulta na “exportação de empregos e oportunidades em potencial para outros países”24. Segundo cálculos estimativos do extinto Ministério do Trabalho e Emprego, em 2008, no Estado de Minas Gerais, as exportações de minério de ferro bruto equivaleram a 680.000 empregos exportados e as exportações de alumínio bruto equivaleram a 64.000 empregos exportados25. Mas todo esse cenário, em que “As mineradoras obtêm lucros (coloniais) estratosféricos e fáceis, pagando muito pouco para o povo brasileiro”26, se torna ainda mais gravoso diante de um outro fator: o aumento exponencial da participação do capital estrangeiro (e da remessa de lucros para o exterior) pela indústria da mineração27.
Revendo a formação da VALE, empresa responsável pelo ocorrido em Brumadinho e corresponsável por Mariana28, pode-se observar que em seus primórdios a mineradora representava o oposto a essa onda de estrangeirização. Criada com o nome de Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), o seu surgimento se inseriu em um contexto de nacionalização das minas de ferro, então pertencentes a empresas estrangeiras:
O governo de Getúlio Vargas (1930 a 1945), aproveitou a aliança com os EUA e a Inglaterra, na segunda Guerra Mundial, para a criação da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em 1941. Para viabilizar a produção nacional de bens minerais para a CSN, o governo nacionalizou a mina de ferro Casa de Pedra, que pertencia à mineradora alemã A.Thun, em Congonhas, Minas Gerais e ainda, mobilizou investimentos para o aproveitamento de depósitos de manganês, dolomito, cromo e carvão mineral. Da mesma forma, foi fundada a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), em 1942, para assumir as minas de ferro pertencentes à mineradora inglesa Itabira Iron Ore Co., já na perspectiva de produção para exportação de minério de ferro. A CVRD tornou-se a principal empresa brasileira de pesquisa, exploração e lavra de ferro e outros bens minerais como manganês, bauxita, ouro, fosfato, potássio e caulim.29
Porém, principalmente após a privatização da empresa em 1997, durante o governo Fernando Henrique Cardoso30, o que se observa é uma drástica alteração dessa realidade. Em reportagem feita em 2017, o então gerente-executivo de Relações com Investidores, André Figueiredo, afirmava que a VALE detinha, à época, “265 mil acionistas e quase 2 bilhões de ações PNs no mundo todo”31. Isso revela que a preocupação (ainda que mínima) com os interesses nacionais, se esvaiu, sendo agora a sua função primordial alimentar os impulsos por lucratividade dos acionistas espalhados pelo globo32. Mas é preciso investigar ainda mais a fundo como esse processo de exteriorização da indústria extrativista se relaciona com as precárias condições de trabalho e as mortes de trabalhadores em massa ocorridas em Mariana e Brumadinho, ponto central da próxima parte de nosso trabalho.
Como explicado no tópico anterior, as teses elaboradas em Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia foram cruciais para desvelar um insidioso processo que atinge grande parte dos países latino-americanos: uma economia baseada no extrativismo dos recursos naturais e que se volta, quase que exclusivamente, ao suprimento dos interesses do mercado exterior. É isso o que se via ao longo do período colonial e é isso que ainda se observa na atuação de empresas mineradoras como a VALE e a Samarco. No entanto, é preciso reconhecer que, até por não ser este o foco de Prado Júnior, não há no texto um tratamento mais detido das questões relacionadas ao trabalho (e à sua exploração) na América Latina. Uma abordagem mais específica das relações trabalhistas na região e de sua relação com a subserviência aos países do capitalismo central pode ser encontrada na Teoria Marxista da Dependência (TMD)33 e, mais precisamente, nos estudos de Ruy Mauro Marini. As histórias dos principais intelectuais relacionados à TMD, que, além de Marini, inclui nomes como os de Vânia Bambirra, Theotônio dos Santos e André Gunder Frank, se entrecruzam, e, em ordem a entender melhor a teoria, é preciso trazer um pouco desse passado à tona. Falando do período que passou junto ao Centro de Estudos socioeconômicos (Ceso) da Faculdade de Economia, da Universidade do Chile, e sobre como a junção destes vários pensadores em um mesmo contexto influenciou o seu próprio desenvolvimento intelectual34, descreve Marini que:
O Ceso foi, em seu momento, um dos principais centro intelectuais da América Latina. A maioria da intelectualidade latino-americana, europeia e estadunidense, principalmente de esquerda, passou por ali, dele participando mediante palestras, conferências, mesas-redondas e seminários. Contudo, o segredo da intensa vida intelectual que o caracterizou e que se constituiu na fonte real do seu prestígio foi a permanente prática interna de diálogo e discussão, institucionalizada nos seminários de área - as áreas temáticas eram as células da instituição - e no seminário geral e continuada nas relações pessoais, que tinham por base o companheirismo e o respeito mútuo. O momento político que vivia o país, que tornara Santiago centro mundial de atenção e de romaria de intelectuais e políticos, fez o resto, além de incentivar o desenvolvimento de outros órgãos acadêmicos, como o Centro de Estudos da Realidade Nacional (Ceren), da Universidade Católica.35
E seria justamente a partir da realização de um seminário de área no Ceso, intitulado “Teoria marxista e realidade latino-americana”, que as formulações de Marini sobre a dependência e a superexploração do trabalho na América Latina começariam a ganhar corpo. Sobre o momento inaugural dessas pesquisas, com a leitura de O Capital, retrata Marini que “Não se tratava de uma simples leitura do livro, mas - para o que aproveitava a experiência feita no México - de tomá-lo como fio condutor para a discussão sobre o modo de aplicar suas categorias, princípios e leis à compreensão da América Latina”36. Essas observações dispostas acima, sobre a necessidade de uma leitura marxista da realidade latino-americana, mas que, sobretudo, seja feita por uma aplicação não mecânica destes conceitos, darão o tom da TMD de Marini37. Já no início da sua principal obra, o texto Dialética da dependência, de 1973, o autor coloca que na análise conjuntural da América Latina os pensadores marxistas geralmente recaem em dois tipos de erro: “a substituição do fato concreto pelo conceito abstrato, ou a adulteração do conceito em nome de uma realidade rebelde para aceitá-lo em sua formulação pura”38. Quanto ao primeiro caso, o autor defende que “o resultado tem sido os estudos marxistas chamado de ortodoxos, nos quais a dinâmica dos processos estudados se volta para uma formalização que é incapaz de reconstruí-la no âmbito da exposição”39. Isso ocasionaria a surgência de “descrições empíricas que correm paralelamente ao discurso teórico, sem fundir-se com ele”40. Sobre a segunda situação, coloca ele que “frente à dificuldade de adequar a uma realidade categorias que não foram desenhadas especificamente para ela, os estudiosos de formação marxista recorrem simultaneamente a outros enfoques metodológicos e teóricos”41. Em todo o caso, o que se vê em ambas as situações é que, diante do modo de produção capitalista em seu viés tradicional, a economia da América Latina “apresenta peculiaridades, que às vezes se apresentam como insuficiências e outras - nem sempre distinguíveis facilmente das primeiras -, como deformações. Não é acidental portanto a recorrência nos estudos sobre a América Latina a noção de “pré-capitalismo”.42 Se observarmos com atenção, veremos, inclusive, que autores importantes da teoria marxista, e que foram pioneiros na tentativa de estudar a realidade latino-americana de forma relacionada ao sistema capitalista global, utilizam o termo “pré-capitalismo”. É o que ocorre com Rosa Luxemburgo, no clássico “A acumulação do capital”. Quando discorre sobre o processo de acumulação existente nas metrópoles e sua estreita relação com a exploração colonial, representada pelos esquemas de extração/saque de matérias-primas, afirma Luxemburgo que “só em países pré-capitalistas, porém, que vivem sob condições primitivas, pode-se desenvolver, sobre as forças produtivas materiais e humanas, o poder necessário para realizar aqueles milagres”.43 Porém, no caso específico de Luxemburgo, é preciso relativizar o uso do mencionado termo. É verdade que a descrição dos latinos como povos “que vivem sob condições primitivas” é problemática e baseada em uma visão européia, do início do séc. XX ainda pouco nítida sobre a realidade de fato da parte sul do continente americano. Mas é preciso destacar que os estudos de Luxemburgo foram pioneiros em lançar luz às raízes coloniais do sistema capitalista44 e dar relevância a outras formas de civilização, como a dos povos originários45. A questão pontuada por Marini vai muito além do uso (ou não) do termo pré-capitalista, se relacionando a um aporte global do sistema capitalista que incorpore a América Latina, no qual, certamente, a obra de Rosa Luxemburgo se inclui:
O que deveria ser dito é que, ainda quando se trate realmente de um desenvolvimento insuficiente das relações capitalistas, essa noção se refere a aspectos de uma realidade que, por sua estrutura global e seu funcionamento, não poderá se desenvolver jamais da mesma forma como se desenvolvem as economias capitalistas chamadas de avançadas. É por isso que, mais do que um pré-capitalismo, o que se tem é um capitalismo sui generis, que só adquire sentido se o contemplamos na perspectiva do sistema em seu conjunto, tanto em nível nacional, quanto, e principalmente, em nível internacional. 46
É também quanto a este ponto que se pode dizer que as análises de Marini e de Prado Júnior sobre os povos latino-americanos confluem. Há nesses autores um esforço comum em enxergar que o desenvolvimento das grandes potências do capitalismo global não se deu de forma aleatória. Ele foi baseado na exploração dos povos do sul e tem se mantido assim. Mas daí em diante as obras desses autores seguem por caminhos diferentes. Enquanto Prado Júnior se preocupa em demonstrar que a subordinação é filha legítima do processo de colonização da América Latina (e do Brasil)47, o foco de Marini será diverso. A centralidade de seu texto está na análise do processo de “criação da grande indústria moderna”48 e em como, em sua opinião, a dependência propriamente dita nasce a partir daí, surtindo impactos específicos sobre a classe trabalhadora latino-americana (e suas relações de trabalho).
É importante esclarecer que, em sua análise, Marini não nega que o processo colonizatório da América Latina tenha influenciado a formação/manutenção do sistema capitalista global. Nesse ponto, aduz que a América Latina do período colonial “desempenha um papel relevante na formação da economia capitalista mundial (principalmente com sua produção de metais preciosos nos séculos 16 e 17, mas sobretudo no 18, graças à coincidência entre o descobrimento de ouro brasileiro e o auge manufatureiro inglês)”.49 Mas ainda que não releve o impacto das violências coloniais, o autor deixa claro que, em sua opinião, os marcos da dependência são outros. Ele afirmará que, historicamente, tem mais centralidade para este processo acontecimentos como a revolução industrial inglesa que:
(...) corresponde na América Latina à independência política que, conquistada nas primeiras décadas do século 19, fará surgir, com base na estrutura demográfica e administrativa construída durante a Colônia, um conjunto de países que passam a girar em torno da Inglaterra. Os fluxos de mercadorias e, posteriormente, de capitais têm nesta seu ponto de entroncamento: ignorando uns aos outros, os novos países se articularão diretamente com a metrópole inglesa e, em função dos requerimentos desta, começarão a produzir e a exportar bens primários, em troca de manufaturas de consumo e - quando a exportação supera as importações - de dívidas.50(grifos nossos)
É pela investigação desses processos de trocas (envolvendo produtos distintos, como manufaturas e matérias-primas) que Marini começará a vislumbrar as razões motivadoras da dependência e da superexploração do trabalho no Sul.
De início, deve-se ressaltar que os países da região latino-americana foram fundamentais para fornecer aos países industriais alimentos e matérias-primas “exigidos pelo crescimento da classe operária, em particular, e da população urbana, que ali se dava”51, aumentando a capacidade produtiva e a mais-valia relativa:
O efeito dessa oferta (ampliado pela depressão de preços dos produtos primários no mercado mundial, tema a que voltaremos adiante) será o de reduzir o valor real da força de trabalho nos países industriais, permitindo assim que o incremento da produtividade se traduza ali em taxas de mais-valia cada vez mais elevadas. Em outros termos, mediante a incorporação ao mercado mundial de bens-salário, a América Latina desempenha um papel significativo no aumento da mais-valia relativa nos países industriais.52
Ocorre que o fato de os países latinos terem voltado sua economia para a produção de alimentos e matérias-primas tem se mostrado extremamente desvantajoso. A verdade é que se “teoricamente, o intercâmbio de mercadorias expressa a troca de equivalentes, cujo valor se determina pela quantidade de trabalho socialmente necessário que as mercadorias incorporam”53, na realidade “observam-se diferentes mecanismos que permitem realizar transferências de valor, passando por cima das leis da troca, e que se expressam na forma como se fixam os preços de mercado e os preços de produção das mercadorias”.54 Assim é que, no caso de “transações entre nações que trocam distintas classes de mercadorias, como manufaturas e matérias-primas”55:
(...) o mero fato de que umas produzam bens que as outras não produzem, ou não o fazem com a mesma facilidade, permite que as primeiras iludam a lei do valor, isto é, vendam seus produtos a preços superiores a seu valor, configurando assim uma troca desigual. Isso implica que as nações desfavorecidas devem ceder gratuitamente parte do valor que produzem, e que essa cessão ou transferência seja acentuada em favor daquele país que lhes venda mercadorias a um preço de produção mais baixo, em virtude de sua maior produtividade.56(grifos nossos)
E é diante dessa troca desigual, ocasionadora de uma verdadeira “depreciação dos bens primários”57, que se chega ao seguinte questionamento: se esse sistema de trocas se mostra tão desvantajoso para os países latinos, por que ele se mantém? Haveria alguma forma de neutralizar esse descompasso na transferência de valor? A resposta para esse problema (e que serve como justificativa para a continuidade desse sistema) se dá pela aplicação do que Marini chama de “mecanismo de compensação”. Esse mecanismo de compensação atua como um “recurso ao incremento de valor trocado, por parte da nação desfavorecida: sem impedir a transferência operada pelos mecanismos já descritos, isso permite neutralizá-la total ou parcialmente mediante o aumento do valor realizado”58. Mas é pela forma escolhida para aumentar esse valor trocado que, de fato, pode-se explicar o porquê (e às custas de quem) se dá a continuidade desse sistema de exploração. Para compensar a cessão gratuita de parte do valor que produz, o capitalista da nação desfavorecida “deve necessariamente lançar mão de uma maior exploração da força de trabalho, seja através do aumento de sua intensidade, seja mediante a prolongação da jornada de trabalho, seja finalmente combinando os dois procedimentos”.59 A realidade nua e crua é que o prejuízo das nações desfavorecidas é cobrado dos seus trabalhadores60. São eles que pagam, por meio do seu desgaste extremo (e não raro com a própria vida, como demonstram os desastres ocorridos em Mariana e Brumadinho), a conta da integração de suas nações ao sistema capitalista mundial. É nesse sentido que é possível afirmar sem qualquer receio que “o efeito da troca desigual é - à medida que coloca obstáculos a sua plena satisfação - o de exacerbar esse afã por lucro e aguçar, portanto, os métodos de extração de trabalho excedente”.61 E tratando do setor extrativista minerário, essa realidade de superexploração do labor humano ganha contornos ainda mais nítidos.62
Como anteriormente disposto, a superexploração do trabalho é utilizada como forma de compensar a mais-valia perdida pelos capitalistas de economias dependentes na transação com as economias dominantes. E na mineração, até por ser esta uma atividade voltada, majoritariamente, para a exportação, esse mecanismo compensatório é praticado com habitualidade e por diversas maneiras como “baixos salários, jornada de trabalho intensiva e prolongada, condição de desemprego conforme os ciclos produtivos, terceirização, flexibilização das legislações, baixa remuneração e enquanto fundamento da condição de dependência em que o país insere-se”.63 Tendo em vista essas (e outras) inúmeras formas possíveis de superexplorar é que Bertollo defende a não redução da superexploração laboral “à uma interpretação que considera apenas condições extremas/agudas de prolongamento e de rebaixamento salarial, embora estes sejam também mecanismos possíveis e utilizados para que a superexploração aconteça”.64 Ajudam a ter ideia da heterogeneidade da superexploração praticada na mineração as investigações efetuadas in loco, como as realizadas por Melek, Gonçalves, Areosa e Soares, com trabalhadores de uma mina da região sul do país65. Segundo os pesquisadores, o estudo de caso revelou que doenças como distúrbios cardiovasculares (com a elevação da pressão arterial, edema e alterações eletrocardiográficas) e distúrbios pulmonares (com dificuldade respiratória ao realizar esforços ou durante o sono, tosse seca ou produtiva e sensação de sufocamento) tem estreita relação com o exercício da atividade mineradora66. Outra ocorrência habitualmente relacionada à mineração são os problemas lombares, resultantes do carregamento de peso em excesso. Na região de Mariana-MG, por exemplo, foi constatado pela juíza Graça Maria Borges de Freitas, titular da Vara de trabalho local, que “tem se repetido os casos em que trabalhadores jovens são vítimas de problemas na coluna, antes dos 30 ou 40 anos e sem que se manifeste outro fator externo suficiente para excluir o nexo de causalidade em relação ao trabalho realizado”67.
Sobre os acidentes laborais da mineração e sua imensa capacidade de matar, os números dão a noção do tamanho da tragédia. Segundo Mário Parreiras de Faria, auditor-fiscal do trabalho atuante nos casos de Mariana e Brumadinho “na mineração, a taxa de mortalidade é maior do que em qualquer outro setor no Brasil e quatro vezes maior que a média: são 27 mortes a cada grupo de 100 mil empregados diretos. Na média, são seis mortes por 100 mil. A mineração mata muito mais”.68 E como se não bastasse, ao alto poder mortífero dos acidentes laborais da mineração é adicionado outro fator, não menos aterrador: a frequência assustadoramente habitual desses acidentes. Márcio Zonta, um dos coordenadores do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), utiliza dados da Fundação Jorge Duprat e Figueiredo (FUNDACENTRO) para afirmar que entre os anos de 2000 a 2010: “o Índice Médio de Acidente Geral no Brasil foi 8,66%. Já o indicador médio de acidente da mineração, em Minas Gerais, por exemplo, foi 21,99%, quase três vezes maior que a média nacional”69. Esse conjunto formado por superexploração e acidentalidade ganharia capítulos ainda mais sangrentos a partir dos casos de Mariana e Brumadinho.
Além de desastres empresariais com impactos evidentes sobre a fauna e a flora dos Rios Doce e Paraopeba e a todos que deles dependiam para sobreviver, os eventos ocorridos em Mariana e Brumadinho são também acidentes laborais. Afinal de contas, trata-se de eventos que resultaram em mortes de indivíduos durante o exercício do trabalho a empresas da indústria extrativa mineral70. Somente em Mariana, o rompimento da barragem de Fundão, da Samarco, ocasionou a morte de 14 trabalhadores71. Já no caso de Brumadinho, o número de trabalhadores mortos pelo rompimento da Barragem I, da mina do Córrego do Feijão, da VALE, beira o absurdo. Conforme as informações dispostas por Milanez:
O rompimento da Barragem I é considerado o maior acidente de trabalho da história do Brasil, vitimando mais de uma centena de trabalhadores diretos da Vale (F. Souza e Fellet, 2019). Nos primeiros meses após o desastre, não foi possível quantificar os trabalhadores terceirizados, uma vez que as listas disponibilizadas pela empresa não os diferenciavam dos moradores das comunidades (Dolce, 2019). O Sindicato dos Trabalhadores da Indústria da Construção Pesada (Sitcop-MG) estimava 160 trabalhadores terceirizados entre os mortos e desaparecidos (Pizarro, Ariadne, e Lagôa, 2019). Como forma de comparação, o desastre representou 17% do total de fatalidades de trabalho de todo o ano de 2017 (Domingues, Magalhães, Cardoso, Simonato, e Nahas, 2019) 72.
E de antemão um componente desses eventos salta aos olhos: o amplo número de terceirizados entre os trabalhadores fatalmente vitimados. Somente em Mariana, dos 14 trabalhadores mortos nada menos que 13 eram terceirizados73. Em Brumadinho, como acima disposto, a quantidade de terceirizados vitimados foi ainda maior. O que se verá adiante é que a habitualidade da terceirização na atividade minerária (não raras vezes combinada com acidentes e mortes) não é mera coincidência. Trata-se de prática que, sob as vestes da especialização dos serviços, é utilizada com o intuito exclusivo de superexplorar trabalhadores, reduzindo a perda de mais-valia pelas mineradoras brasileiras diante de intempéries econômicas e de uma divisão internacional do trabalho desequilibrada desde a raiz.74
O uso da terceirização como forma de superexplorar ganha cor quando se tem notícia da sua centralidade para a produção de mais-valor na mineração. Zonta, embasado por dados da Frente Sindical Mineral, afirma que “o setor emprega 3 milhões de pessoas, dos quais 1,5 milhão são terceirizados e apenas 500 mil tem carteira assinada”75. Particularmente no caso da VALE, “a terceirização na empresa abrange boa parte das relações de trabalho e é central para a ampliação da criação de valor. Em 2015, do total de 166,3 mil trabalhadores, 92,2 mil eram terceirizados, ou 55,4% do total”.76 E essa prática nefasta adquire tonalidade mais intensa pelo desvelamento das violências correntemente praticadas pela VALE contra terceirizados, como as ocorridas em 2015 na Mina do Pico, em Itabirito, Minas Gerais (na mesma região de Mariana). Segundo reportagem de Ana Aranha, para a Repórter Brasil77, à época, a VALE (operadora da Mina) foi autuada pela Superintendência Regional do Trabalho e Emprego em Minas Gerais (SRTE/MG) pela prática de terceirização ilícita e por ter mantido os terceirizados em condições degradantes. A corriqueira prática de jornadas extenuantes, capazes de exaurir a força humana e colocar em risco a saúde, segurança e vida78, foi descoberta depois que os auditores fiscais do trabalho auferiram 2.777 turnos que excediam os limites permitidos. Em uma das situações apuradas verificou-se que um motorista terceirizado dirigiu por 23 horas com apenas um intervalo de 40 minutos e outro trabalhou do dia 14 de dezembro a 11 de janeiro sem nenhum dia livre - nem mesmo o Natal ou o primeiro de janeiro79. Sublinhem-se ainda as lastimáveis condições de saúde e higiene no local. Devido ao estado de calamidade do banheiro da Mina, os motoristas terceirizados restavam obrigados a fazer suas necessidades na estrada e não podiam tomar banho ou trocar de roupa ao fim do expediente, voltando para casa com roupa e pele sujas80.
Sobre as relações entre terceirização (superexploratória) e a acidentalidade na mineração, é importante dizer que fatos anteriores aos desencadeados em Mariana e Brumadinho já davam indícios do estreitamento desses laços. Mário Parreiras de Faria descreve que “em 2001, na mina São Rio Verde, em Itabirito, morreram cinco trabalhadores, todos terceirizados: dois foram encontrados boiando, um nunca foi achado, os outros dois foram achados depois”81. No rompimento da barragem da mineradora Herculano, na mesma Itabirito, em 2014, também há relatos sobre mortes de terceirizados82. Mas foi o evento ocorrido em Mariana e, sobretudo, as constatações extraídas a partir deste que ajudaram a esclarecer melhor este enlace83. Uma análise dos documentos produzidos pelos órgãos investigatórios, com destaque para o relatório de análise de acidente produzido pela SRTE/MG, traz indícios importantes para desnudar o liame entre terceirização e acidentalidade na mineração, a começar pelo seguinte fato: a ausência ou falha do treinamento em segurança dos trabalhadores terceirizados. Sobre as listas de presença de treinamento apresentadas pela Samarco aos investigadores, o relatório da SRTE/MG afirma de forma contundente que “os empregados das empresas terceirizadas não foram submetidos em sua totalidade a treinamento de segurança”.84 A título exemplificativo, de acordo com a lista apresentada pela Samarco à SRTE/MG, dos 70 empregados da empresa JM Reflorestamento e Serviços Ltda. que trabalharam na obra de alteamento da barragem 59 não foram submetidos a qualquer tipo de treinamento.85 E mesmo nos casos de empresas que efetuaram algum treinamento de seus trabalhadores, resta estampada a insuficiência deste. No caso da empresa VIX Logística S/A, por exemplo, a ressalva é que, apesar de ter havido treinamento, este “foi ministrado em 1 (uma) hora pelo SESMT da própria empresa sobre plano de emergência”.86 É importante evidenciar que os problemas relativos à falta de segurança de terceirizados eram provocados não apenas pelas empresas locadoras de mão de obra, mas pela postura da mineradora Samarco. Apesar de atuar como empregadora de fato, valendo-se dos terceirizados para a prática de atividades centrais para a extração de minério87, a empresa se mostrava extremamente displicente quanto à falta de segurança desses trabalhadores. Aproveitava-se da força de trabalho além do humanamente possível e relegava a terceiros a responsabilidade com a sua segurança. E como se não bastasse o descaso com a falta de segurança, a Samarco ainda tentou “invisibilizar” esses trabalhadores e suas precárias condições de trabalho. Como mostra o trecho do relatório da SRTE/MG, entre os acidentados/desaparecidos “havia empregados das seguintes empresas: Manserv Montagem e Manutenção S/A, Geocontrole BR Sondagens SA e Produquímíca Indústria e Comércio SA. Porém, não consta, na relação apresentada pela Samarco, nenhum empregado destas empresas”.88 Conjugado ao laudo anteriormente citado, uma forma de visibilizar a existência e a falta de segurança dos terceirizados se dá pelos relatos dos próprios trabalhadores e de seus familiares. De acordo com a esposa de Sileno Narkievicius de Lima, motorista da Integral Engenharia, terceirizada da Samarco, uma semana antes de morrer ele comentou: “Lá em Fundão está muito perigoso. Se acontecer alguma coisa comigo, você corre atrás dos seus direitos”89. Ainda, segundo a esposa de Sileno: “No começo, ele estava muito feliz. Mas, depois de um mês, ele começou a comentar que era muito perigoso. A mãe dele falava para ele largar e procurar outra coisa, mas ele dizia que não podia porque era o nosso provedor”.90 Sobre o treinamento em segurança falho, Alexsandro da Silva, um terceirizado que sobrevivera ao desastre, foi enfático ao afirmar que:
(...) recebera um “treinamento teórico” sobre normas de segurança. “Não teve nada prático, uma simulação. A segurança era tanta que não ia arrebentar...” Depois do desastre, de acordo com o motorista, os trabalhadores passaram a receber aulas práticas, há sirenes em vários pontos da barragem, rotas de fuga, pontos de encontro definidos. “Hoje tem tanta coisa. Se tivesse antes, talvez não tivessem morrido todos os que morreram. Isso é uma coisa que não pode ser esquecida”91.
Outra prática identificada em Mariana/MG que pode ter influenciado na falta de segurança dos trabalhadores se refere à não vinculação dos terceirizados aos sindicatos verdadeiramente capazes de lhes representar. Como mostra Milanez, trata-se de forma de enfraquecer a classe trabalhadora ostensivamente praticada pela VALE (coproprietária da Samarco) ao redor do mundo, principalmente quando a empresa falha em “cooptar as direções sindicais, como aconteceu no Canadá, no United Steel Workers (USW)”.92 Aqui a prática da terceirização intende modificar o enquadramento sindical dos trabalhadores, tornando-os vinculados a sindicatos menores, com menor força para se impor frente às violações à saúde/vida perpetradas pelas grandes mineradoras. Valem-se as mineradoras de um entendimento jurisprudencial problemático, que define o enquadramento sindical dos trabalhadores de acordo com a atividade preponderante da empresa93. Nesse sentido, empregados terceirizados de uma empresa especializada em logística, como a Vix (terceirizada da Samarco), não auferem os mesmos direitos dos empregados diretamente contratados pela mineradora. Eles são submetidos aos acordos coletivos firmados pelo Sindicato dos trabalhadores do ramo rodoviário, prejudicando em muito a necessidade de sua proteção em um ambiente laboral extremamente arriscado, como o da mineração94. Mas é preciso atentar que a superexploração do trabalho na mineração (e nos casos de Mariana e Brumadinho), apesar de certamente a incluir, transcende o uso da terceirização.
Os autos de infração anexos ao laudo da SRTE/MG sobre o rompimento da barragem Fundão mencionam a prática de outras infrações trabalhistas como trabalho em feriados, sem permissão ou justificativa; prorrogação de jornada, sem fundamento legal; não concessão de repouso semanal remunerado; não concessão de intervalo intrajornada; e admissão de empregado sem o devido registro.95 E além de todas a superexploração cometida individualmente contra cada um dos trabalhadores, o documento da SRTE/MG sobre Mariana expõe a ocorrência de inúmeras falhas relacionadas ao sistema operacional de segurança da barragem. A conclusão, após mais de cinco meses de investigação, foi que o desastre de Mariana fora provocado por decisões técnico-organizacionais tomadas ao longo da história do sistema96.
Casos como os ocorridos em Mariana e Brumadinho são desastres multifacetados e um adequado entendimento das suas totalidades exige que sejam destrinchados até a base. Assim, o que se pretendeu evidenciar aqui é que, ao contrário do disposto pelas empresas Samarco e VALE, a escancarada soma de destruição e morte não foi uma externalidade. Ela se insere dentro de uma lógica secular de superexploração dos trabalhadores periféricos da mineração que, utilizando de institutos como a terceirização, se escamoteia sob “novas” roupagens. Mas desvelar esse processo exploratório não significa concluir que ele esteja posto. Em nosso modo de ver, a identificação das raízes dessa série de violências terá um papel essencialmente prospectivo, servindo não só para se enxergar melhor o passado, mas, sobretudo, para reorganizar as resistências futuras. Só assim se pode pensar em uma mineração, e um próprio Direito do Trabalho, que não se pautem pelo lucro a todo custo, mas por formas não destrutivas de desenvolvimento socioambiental.