Resumo: Investigamos uma importante referência de Giorgio Agamben, a qual até o momento teve pouco peso nas interpretações que a literatura secundária tem feito a respeito de seu pensamento político-jurídico. Argumentamos que apesar de praticamente nunca se referir a ela explicitamente, os escritos de Simone Weil são uma companhia constante de Agamben. Nos interessamos particularmente pelo ensaio de Weil A pessoa e o sagrado, sobre o qual Agamben se debruçou já em sua tese de láurea em direito.
Palavras-chave: Pessoa, Sagrado, Direito.
Abstract: We investigate an important reference of Giorgio Agamben, which up to now has had little weight in the interpretations that the secondary literature has made regarding his political-legal thinking. We argue that although he hardly ever refers to her explicitly, Simone Weil's writings are a constant companion of Agamben. We are particularly interested in Weil’s essay The Person and the Sacred, which Agamben has already dealt with in his laurea dissertation in law.
Keywords: Person, Sacred, Law.
Artigos
Giorgio Agamben e Simone Weil, críticos da tradição jurídica romana
Giorgio Agamben and Simone Weil, critics of the roman legal tradition
Recepção: 26 Junho 2021
Aprovação: 25 Fevereiro 2022
Apesar da noção de pessoa não gozar de um estatuto de termo técnico nos trabalhos de Giorgio Agamben, é pela lógica e pela história do conceito que podemos encontrar sua pertinência para pensar sua obra. Algo diverso acontece em Roberto Esposito, que trata da noção de pessoa e de impessoal explicitamente, sobretudo em Terza persona. Politica della vita e filosofia dell'impersonale, de 20072. Em As pessoas e as coisas, Esposito dá início à sua reflexão crítica sobre a tradição de que somos herdeiros, colocando em evidência um princípio fundacional da nossa tradição: “Se há um postulado”, diz ele, “que parece organizar a experiência humana desde seus primórdios, é o da divisão entre pessoas e coisas. Nenhum outro princípio possui uma raiz tão profunda na nossa percepção, e também na nossa consciência moral, quanto o da convicção de que não somos coisas - já que as coisas são o contrário das pessoas” (ESPOSITO, 2016, p. 2). O interesse pela obra de Esposito é aqui estratégico, pois sua reflexão sobre a noção de pessoa se nutre dos escritos de Simone Weil, de Marcel Mauss e de Yan Thomas, que são referências compartilhadas com Agamben. No caso deste, a reflexão sobre a pessoa toma outros contornos; apesar disso, a partir deste conceito podemos compreender alguns traços da investigação da técnica jurídica em suas investigações políticas, jurídicas e teológicas. Pois, como nos lembra o próprio Mauss, cujo trabalho sobre a noção de pessoa Agamben em mais de uma oportunidade se refere como exemplar: “a ‘pessoa’ é mais do que um elemento de organização, mais do que um nome ou o direito a um personagem e uma máscara ritual, ela é um fato fundamental do direito” (MAUSS, 2003, p. 385): um verdadeiro, para dizer com John Locke, forensic term3.
Podemos, de saída, encontrar um motivo biográfico para um estudo sobre esse conceito na economia do pensamento agambeniano. É bem conhecido o fato de que Agamben dedicara sua tese de láurea em filosofia do direito ao pensamento de Simone Weil.4 Uma das marcas mais significativas que a crítica de Weil aportou ao pensamento jurídico moderno diz respeito precisamente à noção de pessoa. Mas há também um segundo motivo, um verdadeiro motivo, que aqui nos interessa especulativamente: toda a reflexão agambeniana sobre a vida nua ganha inteligibilidade à luz do problema que a noção de pessoa traz junto com a tradição jurídica latina; o conceito de vida nua constitui, por assim dizer, o paradigma de todo esse léxico jurídico-cristão que cada vez mais invade o terreno da moral, impedindo que uma reflexão efetivamente ética tenha lugar. Nossa hipótese, portanto, é que a noção de vida nua possa ser pensada não apenas a partir da noção de bloβ Leben do ensaio de 1921 de Walter Benjamin, mas também a partir da noção de pessoa, ou melhor, a partir daquilo que resta após a operação de isolamento que esse dispositivo realiza.5 Assim como a vida nua é aquela vida de cuja forma fora separada, a pessoa corresponde no ordenamento jurídico àquele elemento que um indivíduo deve conter para que seja reconhecido como membro de uma determinada sociedade - que ao longo do tempo, no interior da tradição jurídica, passa de uma noção de sui iuris6 àquela de sujeito de direito -, sendo que esse elemento corresponde, desde a origem, àquilo que é separado e sobreposto ao indivíduo concreto (homo). Essa ideia é bem descrita pelo historiador do direito romano, Yan Thomas, nos seguintes termos: “o direito opera uma verdadeira dissociação dos sujeitos e dos corpos para compor pessoas (THOMAS, 1998, p. 99).
Se em Agamben é o dispositivo da exceção que isola no vivente homem o sentido jurídico da vida, produzindo por meio dessa violência originária a vida nua, em Esposito a pessoa aparece como mais que um mero conceito: trata-se de um verdadeiro dispositivo performativo que age em nossa cultura desde longa data e cuja potência específica opera um efeito análogo àquele descrito pela exceção, exposto por Esposito em termos de separação, seleção e exclusão (ESPOSITO, 2017, p. 206). Se Agamben, no início de O poder soberano e a vida nua, destaca a fundação da pólis como exclusão (mesmo que inclusiva) da zoé (que se torna vida nua) em favor da bíos, em Esposito a “pessoa é o termo técnico que separa a capacidade jurídica da naturalidade do ser humano e que assim distingue cada homem do seu próprio modo de ser - é a não coincidência, ou mesmo a divergência, no homem, do ser em respeito ao seu modo de ser” (ESPOSITO, 2017, p. 207). O corolário dessa leitura também deve ficar evidente: a vida nua corresponde àquilo que foi separado de sua forma qualificada, a qual corresponde, por sua vez, à noção de pessoa, isto é, à parte que formalmente se conferiria proteção. Na economia dos escritos de Agamben, os conceitos antíteses dessa estrutura que cinde o homem e a vida são o impessoal, mas também as noções de ser-qualquer, de uso de si e de forma-de-vida. Além disso, essa investigação também nos aponta para a importância da noção de sagrado em Agamben numa fase formativa, ainda desprovido do refinamento que esse conceito ganhará ao longo de Homo sacer. Tudo isso nos permite perceber que a crítica à vida nua enquanto o fundamento do poder soberano aparece como uma crítica à técnica de isolamento, que ninguém menos que os jurisconsultos latinos elaboraram com tanta maestria.
Como já anunciamos, um nome nesse cenário crítico-genealógico é imprescindível. Trata-se de Simone Weil. A respeito da conexão de sua leitura de Weil e de suas investigações arqueológicas posteriores, Agamben nos relata em Autoritratto nello studio:
Em todo caso, fiquei então particularmente impressionado com a crítica da noção de pessoa e de direito desenvolvida em La personne et le sacré. Foi a partir desta crítica que li o ensaio de Mauss sobre a noção de persona e ficou claro para mim o nexo que conjuga intimamente a pessoa jurídica e a máscara teatral e posteriormente a teologia do indivíduo moderno. Talvez a crítica do direito, que nunca mais abandonei a partir do primeiro volume de Homo sacer, tenha nesse ensaio de Weil sua primeira raiz (AGAMBEN, 2017a, p. 51).7
Percebemos, assim, que a superação do vocabulário jurídico-teológico da pessoa se impõe como tarefa preliminar para se pensar um novo direito, um direito ético, um direito, quem sabe, não-jurídico, extra-jurídico. Auschwitz, como se sabe, é pensado por Agamben como o acontecimento-limite dessa experiência ocidental de um logos jurídico que separa as coisas de sua forma, adquirindo poder sobre elas, seja pela expropriação do homem daquele atributo que lhe torna humano, seja pela imputação8, que corresponde à capacidade do direito de atribuir responsabilidade a um indivíduo por suas ações (reflexão que ganha espaço em Karman).9 E se Auschwitz é o acontecimento-limite dessa experiência, a experiência última na qual culmina a lógica da separação da linguagem jurídica, então a reflexão sobre ela pode ser compreendida como uma tentativa de pensar a partir disso um novo começo, uma nova terra ethica, que se erige a partir da imanência da vida e que se projeta para além das instituições teológico-jurídicas: “que se possa perder dignidade e decência para além de qualquer imaginação, que exista vida na degradação mais extrema, esse deve ser o ponto de partida de uma ética pós-Auschwitz” (AGAMBEN, 2008, p. 76). Essa reflexão também não deixa de ecoar aquelas de Arendt, para quem “o que há de assustador no surgimento do totalitarismo não é o fato de ser algo novo, mas o fato de ter trazido à luz a ruína de nossas categorias de pensamento e de nossos critérios de julgamento” (ARENDT, 2008, p. 341). Assim, onde há este direito, não há a nossa ética. É tendo em vista esse horizonte que Agamben lança como tarefa a realização dessa “nova ciência”.
Em seu último ano de vida, em 1943, em Londres, Simone Weil escreveu o ensaio A pessoa e o sagrado, publicado, no entanto, apenas em 1950, na revista La Table ronde, sob o título La personnalité humaine, le juste et l’injuste. Somente em 1957 o escrito será republicado com o título La personne et le sacré e integrará a antologia de textos conhecidos como Écrits de Londres. O objetivo do ensaio é bastante claro desde suas primeiras linhas. Trata-se de problematizar o vocabulário personalista consagrado pela tradição da Revolução Francesa, notadamente na Declaração dos direitos do homem e do cidadão.10 De modo semelhante ao que fará Arendt, posteriormente, no bastante comentado capítulo de Origens do totalitarismo, denominado O declínio do Estado-nação e o fim dos direitos do homem,11 Weil recupera uma clássica crítica marxista à concepção burguesa de direito, o qual implicaria uma cisão entre duas realidades distintas: o homem e o cidadão. Para ela, a distinção entre o homem e sua pessoa (cidadão, nacional) nunca foi inofensiva. Encontramos aí um princípio metodológico importante seu: “lá onde há um grave erro de vocabulário”, afirma Weil, “é difícil que não haja também um grave erro de pensamento” (WEIL, 2017, p. 26). Weil nos indica por meio de um exemplo de que modo essa confusão linguística pode ter consequências absurdas: “se a pessoa humana fosse nele [no homem] o que há de sagrado para mim, eu poderia facilmente lhe arrancar os olhos. Uma vez cego, ele será uma pessoa humana tanto quanto o era antes. Eu não teria de forma alguma tocado na pessoa humana dele. Eu teria apenas destruído os seus olhos” (WEIL, 2017, p. 26)12. Essa ambiguidade e separação aparece de modo bastante semelhante em Esposito, quando ele diz que “pessoa não apenas não coincide com homo (...) como se define na diferença em relação a ele” (ESPOSITO, 2017, p.207). Agamben, finalmente, também é adepto dessa crítica, e ele a nos esclarece justamente conectando-a à noção de vida nua: “À cisão marxiana entre o homem e o cidadão sucede, assim, aquela entre a vida nua, portadora última e opaca da soberania, e as múltiplas modalidades abstratamente codificadas em pessoas jurídico-sociais (o eleitor, o trabalhador dependente, o jornalista, o estudante, o soronopositivo, o travesti, a estrela pornô, o idoso, o progenitor, a mulher) que repousam todas nela” (AGAMBEN, 2015b, p. 16).13
Essa insuficiência interna constitutiva do direito, baseada na distinção entre o l’homme tout entier e la personne, ou então entre a vida nua e a pessoa (a forma de vida qualificada), consiste, para Weil, num importante obstáculo a uma concepção de justiça que em sua obra se define como proveniente “do fundo do coração humano”, e que diz respeito à espera (attente)14 de que lhe façam o bem, e não o mal. O sagrado, para Weil, consiste precisamente nessa espera que lhe façam o bem, o que equivale a dizer que o bem é a única fonte do sagrado (WEIL, 2017, p. 28). Esse não é, evidentemente, o conceito de sagrado de Agamben. Assim como para Weil, de fato, a vida subjacente à sua forma jurídica (a pessoa, o cidadão) é para Agamben a vida sagrada; porém, aqui, Agamben recupera a noção de sacer do direito romano, de modo que “quando seus direitos não são mais direitos do cidadão, então o homem é realmente sagrado, no sentido que esse termo tem no direito romano arcaico: votado à morte” (AGAMBEN, 2015b, p. 30).
Segundo Weil, a noção de justiça é marcada por uma ambiguidade e a noção de direito cristalizada no Ocidente em 1789 na Declaração dos direitos do homem e do cidadão remete a uma justiça que opera no nível da reivindicação, a qual, por sua vez, seria proveniente de uma parte superficial da alma humana. Contra a superficialidade (contra a banalidade, diria Arendt), Weil aposta na profundidade. O sentido realmente relevante de justiça para Weil é aquele proveniente da parte profunda do coração humano, que não reivindica, mas espera que lhe façam o bem.15 A justiça que reivindica aparece concretizada na noção de direito de que dispomos, que seria, para a filósofa, inapta a ouvir os gritos silenciosos no coração daqueles desprovidos de voz. O grito da reivindicação emudece o grito silencioso daqueles que não estão em condições de se pronunciar. E é justamente daí que surge a parte positiva do pensamento de Weil: diante das insuficiências do direito, da democracia e da noção de pessoa de ouvir a todos, a tarefa política consistiria na invenção de novas instituições capazes de concretizar, de forma plena, o arranjo das liberdades públicas, da educação pública e da expressão pública de opiniões; instituições voltadas ao “espírito de atenção e de amor” (WEIL. 2017, p. 54): “é preciso enfim um sistema de instituições capaz de conduzir às funções de comando os homens capazes e desejosos de ouvir e compreender” o “grito fraco e titubeante” (WEIL, 2017, p. 32).16 Ser capaz de distinguir entre um grito silencioso em meio ao barulho generalizado consiste num predicado imprescindível ao regime político a ser inventado; é preciso então pensar uma política cujo critério fundamental não passe pela conquista e conservação do poder (uma espécie de violência mítica no léxico benjaminiano), ou mesmo pela mera distribuição de poder entre partidos; é também necessário que esse critério da proteção não seja a pessoa17: de acordo com a filósofa, o doloroso grito que manifesta o mal não é proveniente do que entendemos por pessoal. Pelo contrário, segundo o paradigma do grito de Cristo na cruz (“Pourquoi me fait-on du mal?”), o grito que importa é o do protesto impessoal (protestation impersonnelle). Recusando a pessoa e esse direito que interpreta a justiça de um ponto de vista pessoal, a resistência política que surge daí é da ordem da sublevação do homem inteiro (soulèvement de l’homme entier), e não aquele da reivindicação18 (Cf. RICCIARDI, 2009, p. 84).
Podemos organizar essas ideias de Weil a partir de uma oposição de registros. De um lado, encontramos o direito que arrasta consigo uma noção de pessoa; de outro, uma noção de justiça que transborda as pretensões burguesas do direito19, preocupado com as coisas pessoais: “se o direito pertence à pessoa, a justiça é situada na ordem do impessoal” (WEIL, 2017, p. 211). Está aí uma das chaves de leitura que, em Esposito, operacionaliza as passagens do próprio ao impróprio, do imunitário ao comunitário20. Apesar dessa implacável crítica, Esposito argumenta que em Weil, não se trata de destruir a noção de pessoa, mas de pensar uma articulação jurídica da justiça que parta do impessoal para que se desative ou se obstaculize a operação intencionada pelo dispositivo da pessoa que sempre cinde o homem (ou a vida) em dois. No horizonte do direito romano, “quem domina não são as pessoas, mas as coisas, cuja posse confere personalidade” (ESPOSITO, 2016, p. 59). De acordo com ele, “toda atribuição de personalidade contém sempre, implicitamente, um exercício de reificação em face do estrato biológico impessoal do qual se afasta. Somente se existirem seres humanos assimiláveis à coisa, será necessário conotar outros como pessoas” (2017, p. 209). Com efeito, para Esposito:
O dispositivo da pessoa, em suma, é aquele que a um só tempo sobrepõe e justapõe homens-humanos e homens-animais. Ou, também, que distingue uma parte do homem verdadeiramente humana de uma outra de caráter bestial e escrava da primeira. Mas separando a vida de si mesma, o dispositivo da pessoa é também o instrumento conceitual pelo qual é possível destinar uma porção à morte (ESPOSITO, 2017, p. 209).
Em suma, para Weil, Agamben e Esposito, pessoa consiste num conceito que carrega consigo a potência de um efetivo dispositivo excludente que se estende e atravessa toda a jurisprudência romana, de seu período arcaico ao medieval, e que permanece até nossos dias como termo técnico fundamental. Vemos, assim, que o paradigma imunitário de Esposito se projeta para muito além de suas formulações modernas, em torno das noções de soberania e de propriedade. Segundo ele, já em Roma o paradigma da imunidade é formulado tendo em vista um reconhecimento e uma distribuição de privilégios e direitos entre classes e cidades, notadamente no quesito fiscal (ESPOSITO, 2013, p. 298).
Podemos enxergar já aqui, na lida com a filosofia política e jurídica de Weil, alguns aspectos que permanecerão nos textos de Agamben por todo o seu trajeto posterior, a despeito das muitas reavaliações a que estará sujeito. Até o momento, os intérpretes de Agamben têm considerado, em sua maioria quase exclusiva, a investigação do dogma da sacralidade da vida unicamente como um desenvolvimento do ensaio benjaminiano sobre a violência (Gewalt), notadamente dos excertos finais onde o filósofo berlinense nos anuncia como um convite: “valeria a pena rastrear a origem do dogma da sacralidade da vida” (BENJAMIN, 2011, p. 154). É verdade que todo o projeto Homo sacer pode ser lido como aprofundamento desse tipo de problema-convite anunciado por Benjamin; mas também é verdade que a arqueologia da política agambeniana ganha ainda mais força e inteligibilidade quando restituída a essa problemática inicial envolvendo a noção de pessoa. Certamente esse convite de Benjamin serviu como um propulsor das investigações sobre a ideia de sagrado, sobretudo a partir de um ponto de vista filológico-filosófico da noção de sacer; todavia, ignorar esse ponto de emergência da questão do sagrado na trajetória intelectual de Agamben, inicialmente conectado à noção de pessoa e de impessoal em Weil, nos faz perder de vista todo esse panorama de fundo de onde se erige a crítica de Agamben às formas modernas e burguesas do direito. Esquecer esse ponto de surgimento implica uma decisão em se deixar oculto o gesto agambeniano de mudar sua estratégia, traduzindo a questão do ponto de vista da pessoa para o ponto de vista da vida. Este deslocamento, por sua vez, é nevrálgico para entendermos os detalhes que afastam pensadores que comungam de fontes e temas comuns, como Agamben e Esposito. Se em Esposito a questão do impessoal permanece como linha de fuga, em Agamben, no limite, a ideia de pessoa cede lugar à questão da vida, e em vez de uma saída pela ideia de impessoal, mais relevante é para ele a tarefa de um pensamento sobre uma virtude (areté) da vida em todos os seus aspectos (AGAMBEN, 2017C, p. 40) - lembremos que em suas investigações sobre Aristóteles, Agamben aponta para o isolamento da vida nutritiva como a exclusão primeira sobre a qual se funda a relação do vivente homem com o logos.21 O pensamento da vida - não de uma vida num sentido vitalista, mas no sentido de existência, de ausência de mistério metafísico, como forma-de-vida22 - surge em Agamben como uma resposta a esse direito que conta com uma trajetória e que assume os contornos consagrados na modernidade pelas declarações de direitos.23
A relação entre a política romana e a política nazista também integra as reflexões de Weil e certamente é decisiva, mesmo que jamais citada por Agamben, para a escrita de O que resta de Auschwitz. Nesse sentido, basta pensarmos nos dois papéis mais paradigmáticos nas obras de Agamben: o homo sacer e o Muselmann. No caso de Weil, no entanto, há muito mais do que uma analogia entre Roma e a Alemanha de Hitler: há uma verdadeira sobreposição anacrônica que revela uma repetição obsessiva da história humana e seu compromisso com a Força (ESPOSITO, 2013, p. 314).24 Não passam despercebidos também alguns elementos que parecem naturalmente se comunicar com a perspectiva da ética do testemunho, que Agamben desenvolverá em O que resta de Auschwitz. O grito silencioso, o grito daquele que não pode comunicar que lhe fazem o mal, o grito daquele que foi desprovido de suas faculdades comunicativas - o verdadeiro testemunho, diria Agamben - é aquele que é impossível de ser enunciado e de ser ouvido; ao menos no registro jurídico das categorias do nosso direito, do direito que pensa a partir do respeito devido à pessoa, em contraste com a antiguidade que “pensa muito claramente e evita conceitos confusos” (WEIL, 2017, p. 40). Nesse sentido, a exigência (um termo tão caro a Agamben) da ética de Weil para com o direito burguês só é radical aos ouvidos daqueles cuja fala goza, de antemão, das condições de ser ouvida, de uma audibilidade; para ela, a verdadeira política consiste na tarefa de rearticulação entre duas condições essenciais à justiça; uma articulação, portanto, entre o “poder dizer” e o “poder formular” (WEIL, 2017, p. 57). A noção de direito hegemônica, à qual Weil atribui o registro da reivindicação, aquela que podemos associar ao registro dos direitos subjetivos, se caracteriza por uma desarticulação entre o “poder dizer” e o “poder formular”; ela pressupõe uma laceração no centro da própria noção de reivindicação com a qual opera. Weil nos revela assim o segredo do direito burguês, que só funciona por meio do ocultamento dessa desarticulação essencial à sua eficácia. Aliás, se essa distinção integra as engrenagens desse direito, é bem possível que a ineficácia do direito em assegurar direitos integre, desde a origem, seus porões mais recônditos. Mais do que apenas carregar esse defeito de fábrica, Weil o denuncia como cooperando com essa clivagem entre aquilo que pode ser reivindicado e aquilo que efetivamente será ouvido e juridicamente remediado. A reivindicação funciona, assim, como um dispositivo que expõe sua própria privação, sua própria ineficiência. Esse raciocínio ressoa nos textos de Agamben de forma bastante aguda na crítica aos teóricos da comunicação: “Auschwitz é a refutação radical de todo princípio de comunicação obrigatória” (AGAMBEN, 2008, p. 39).25 Na contramão dessa ética possível pelas categorias latinas, Weil formula uma ética e uma política da atenção e da escuta.
Excetuando-se a inteligência, a única faculdade humana verdadeiramente interessada na liberdade de expressão pública é essa parte do coração que grita contra o mal. Mas como ela não sabe se exprimir, a liberdade é irrelevante para ela. Primeiro, é preciso que a educação pública seja tal que ela forneça o máximo possível meios de expressão. Em seguida, é preciso de um regime para a expressão pública das opiniões, que seja definido menos pela liberdade que por uma atmosfera de silêncio e de atenção onde o grito fraco e titubeante possa se fazer escutar. Enfim, é preciso um sistema de instituições que tragam pessoas capazes e desejosas de escutar e compreender o máximo possível (WEIL, 2017, p. 32)
É assim que a reflexão de Weil denuncia o direito burguês, que opera segundo a noção de pessoa como um direito que se efetiva segundo a noção de privilégio social: aqueles que não reconhecem essas marcas do direito talvez só não tenham as categorias de análise adequadas; muitos desses, no entanto, sentem seu funcionamento nas experiências cotidianas. A perspectiva aberta da sacralidade do impessoal de Weil, aproximável à ideia de uma “virtude da vida em geral” presente em Agamben, serve como resposta ao direito entendido como reivindicação, que é personalista e, portanto, marcado de privilégio.26 Solicitar o respeito ao caráter sagrado dos seres humanos deve ser dirigido àqueles que “penetraram no domínio do impessoal e encontraram uma responsabilidade para com todos os seres humanos. Aquela de proteger neles não a pessoa, mas tudo o que a pessoa recobre de frágeis possibilidades de passagem ao impessoal” (WEIL, 2017, p. 41). Poderíamos dizer, com termos mais adequados à ordem do discurso crítico contemporâneo, que no centro do pensamento político de Weil há uma espécie de política performativa do impessoal, que se insurge pela instauração de instituições que promovam a rearticulação das condições de falar e das condições de formular; ou seja, que promovam as condições para o testemunho, que serve de critério à sua predicação como justas. Resgatando a ideia de uma negação autonegadora que Agamben nos prenuncia já em Sobre os limites da violência como condição a uma verdadeira atitude revolucionária, em Weil é exatamente isso que está em questão: a vocação revolucionária é contida apenas pelo sujeito político que antes de reivindicar direitos e prerrogativas age de modo autosupressivo, abrindo mão de qualquer indício de identidade social substancial e pessoal. Uma verdadeira revolução, para acontecer, precisar provir do impessoal; apenas ele é dotado de vocação revolucionária. Weil aproxima-se, nesse sentido, do que em O peso e a graça aparece como experiência da gratidão pura, que consiste em “pensar que me tratam bem não por piedade, ou por simpatia, ou por capricho, por favor ou privilégio, nem tampouco por um efeito natural do temperamento, mas por desejo de fazer aquilo que a justiça exige” (WEIL, 2020a, p. 101).
O dispositivo da pessoa é certamente um ponto nodal da reflexão sobre a técnica jurídica. Ao atentarmos para o seu funcionamento, compreendemos melhor justamente essa operação de separação e exclusão de que os dispositivos são capazes; separação essa que, à luz das reflexões agambenianas sobre o dispositivo, percebemos ser apenas uma justaposição ou hierarquização, sem que as partes separadas deixem de se relacionar. Na leitura crítica de Weil e de Agamben, esse é o legado do direito de que dispomos; a herança dos romanos. Nesse sentido, tanto Weil quanto Esposito se juntam à argumentação de Agamben. No caso de Weil, ela é taxativa:
Louvar a Roma Antiga de nos ter legado a noção de direito é singularmente escandaloso. Pois se se deseja examinar nela o que era esta noção em seu berço, a fim de discernir a espécie, vê-se que a propriedade foi definida pelo direito de usar e de abusar. E, na verdade, a maioria dessas coisas que todo proprietário tinha o direito de usar e abusar eram seres humanos (WEIL, 2017, p. 51).27
Esposito é quem melhor delineia os termos segundo os quais as operações jurídicas romanas atuavam e ainda atuam em nossa técnica jurídica. Personalização e despersonalização descrevem, segundo Esposito, os movimentos inversamente proporcionais que coordenam o dispositivo à base da divisão dos homens entre aqueles que detém a identidade pessoal e aqueles, muito mais numerosos, que dela são privados. A pessoa enquanto um dispositivo diz respeito a esse procedimento, sempre interior ao ius, sempre como um efeito direto, e não apenas colateral, da pressuposição dessa zona de indistinção que o direito pressupõe e que ordena os indivíduos numa gradação que vai do sui iuris ao servus, ou ainda, do cidadão romano ao homo sacer ou ao servus poena (ESPOSITO, 2019b, p. 120). Aliás, mais interessante de fato do que a multiplicidade das tipologias previstas pelo maquinário jurídico romano entre pessoas, não pessoas e semi-pessoas é a elaboração das situações intermediárias, as quais sempre permitem oscilações de um estado ao outro (ESPOSITO, 2017, p. 207). Com efeito, em Roma, ninguém, mesmo nascido livre, goza em definitivo do estatuto de pessoa e consequentemente das proteções que lhe são inerentes. As reflexões de Agamben sobre o homo sacer, mas também aquelas sobre o muçulmano em Auschwitz se tornam muito mais inteligíveis à luz dessa problemática de fundo. Se, porém, Agamben desvia da noção de pessoa rumo àquela de vida (traço análogo a Deleuze e Foucault),28 também o funcionamento do maquinário jurídico surgirá com outros nomes. O impessoal, em Agamben, implica assim uma reformulação da noção de vida. Além disso, se Esposito pensa o impessoal a partir da noção de terceira pessoa, Agamben o faz a partir da despersonalização do conceito de uso. De modo análogo, em Agamben o mecanismo oscilador entre personalização e despersonalização cede espaço ao da subjetivação e dessubjetivação.
Apesar de todo esse desvio do léxico da pessoa pretendido por Agamben, há, em Nudez, um ensaio no qual ele explora suas questões nesse registro. Em Identidade sem pessoa, Agamben define a noção de pessoa da seguinte forma:
Persona significa originalmente “máscara” e é através da máscara que o indivíduo adquire um papel e uma identidade pessoal. Assim, em Roma, cada indivíduo era identificado por um nome que manifestava o seu pertencimento a uma gens, a uma estirpe, mas esta era, por sua vez, definida pela máscara de cera do antepassado que toda família patrícia custodiava no átrio de sua casa. Daí fazer da persona a “personalidade” que define o lugar do indivíduo nos dramas e nos ritos da vida social, o passo é breve e persona acabou por significar a capacidade jurídica e a dignidade política do homem livre. Quanto ao escravo, como não tinha nem antepassados, nem máscara, nem nome, não podia ter nem mesmo uma “persona”, uma capacidade jurídica (servus non habet personam) (AGAMBEN, 2015c, p. 77-78).
Agamben argumenta que a noção de pessoa está atrelada ao registro do reconhecimento. Reverberam, também aqui, os ecos da crítica de Weil, que em A pessoa e o sagrado não fala em reconhecimento, mas em reivindicação. Apesar disso, em seu último livro, O enraizamento, percebemos a conexão entre as noções de reconhecimento e de reivindicação. A insuficiência e ineficácia da reivindicação de um direito e de seu reconhecimento se deve ao fato de que “a realização efetiva de um direito provém não daquele que o possui, mas dos outros homens que se reconhecem obrigados a alguma coisa para com ele” (WEIL, 2001, p. 7). Propomos, então, que a crítica ao direito de reivindicação do texto de Weil apareça, em Agamben, associado ao direito de reconhecimento em A pessoa e o sagrado. Para a filósofa e o filósofo, a crítica endereçada ao âmago da nossa tradição jurídica consiste no pressuposto de que para reivindicarmos direitos precisamos ser reconhecidos como pessoas. Reivindicação em Weil e reconhecimento em Agamben aparecem como mecanismos por meio dos quais o homem se constitui como pessoa. De modo análogo, também encontramos aqui aquilo que Weil apontara como a essência desse direito. Para Weil, esse direito diz respeito às coisas pessoais que se conectam a uma questão de prestígio e privilégio social (WEIL, 2017, p. 55). Agamben reinterpreta e redireciona essa mesma crítica ao direito de reivindicação em Weil às políticas do reconhecimento, cuja lógica consistiria, segundo ele, na centralidade da identidade pessoal: “os outros seres humanos são importantes e necessários, antes de tudo, porque podem reconhecer-me. Também o poder, a glória, as riquezas, a que os ‘outros’ parecem ser muito sensíveis, têm sentido, em última análise, só em vista desse reconhecimento da identidade pessoal” (AGAMBEN, 2015c, p. 78). Vemos, assim, o direito, a política e as instituições do reconhecimento funcionarem no nível da identidade pessoal, onde os predicados e as propriedades singularizam seus respectivos portadores. Perde-se, então, de vista o compromisso ético com a verdade e a beleza do impessoal e do anonimato que estavam presentes em Weil como fontes da política comprometida com a justiça.
Neste mesmo ensaio, contudo, Agamben avança no que só podemos compreender como um diagnóstico de um futuro ainda mais nefasto do que esse, amparado na identidade pessoal. Se todo o longo, duradouro e minucioso edifício ético construído com base na noção de pessoa foi incapaz de inviabilizar as atrocidades do século XX (afinal de contas, bastou a desnacionalização dos judeus para que eles emergissem como vidas nuas tout court), algo talvez ainda pior se anuncia na ética da identidade sem pessoa que passamos a construir com base em critérios biológicos. Identidade sem pessoa não deve ser entendida como identidade impessoal, o que seria, aliás, um oximoro. Por “identidade sem pessoa” Agamben entende a transformação pela qual a noção de identidade tem passado desde pelo menos a segunda metade do século XIX. É por volta desses anos que Agamben localiza o surgimento de um novo critério para o reconhecimento, cujo paradigma deixa de ser o da figura do cidadão e passa a ser o do criminoso reincidente. A identidade “não é mais, agora, algo que diz respeito essencialmente ao reconhecimento e ao prestígio social da pessoa, mas responde à necessidade de assegurar outro tipo de reconhecimento, o do criminoso reincidente por parte do agente policial” (AGAMBEN, 2015c, p. 80). A obsessão na identificação do delinquente reincidente passa a ser uma questão de alicerce ao funcionamento do sistema judicial. É por isso que o léxico das sociedades de controle entra em voga, bem como a dialética entre emergência e legitimação, anunciada na tese VIII de Walter Benjamin sobre a filosofia da história, que prenuncia a regra da suposta excepcionalidade do presente. Trata-se, sempre em caráter de urgência, de se ter segurança e certeza na identificação do criminoso. Vemos surgir o portrait parlé, os métodos antropotécnico-fotográficos, as impressões digitais. Rapidamente essas técnicas de identificação se expandem à identificação dos nativos das colônias, às prostitutas e às populações marginalizadas e desviantes. Esse mecanismo de expansão, aliado à substituição da “pessoa-máscara” para a “pessoa-dados biológicos”, ocupa o centro das reflexões biopolíticas de Agamben. De forma inaudita em nossa história, a persona social, com a qual alguma relação ética podia ainda existir, foi substituída pelos incomunicáveis dados biológicos. Assim, “o homem retirou a máscara sobre a qual se fundou por séculos a sua reconhecibilidade, para entregar a sua identidade a algo que lhe pertence de modo íntimo e exclusivo, mas com que ele não pode de maneira alguma identificar-se” (AGAMBEN, 2015c, p. 82). Essa técnica, para Agamben, é metonímica e expansiva; sem resistência, logo ela corresponderá ao critério de identificação de todos os homens.29
Encontramos em seu célebre artigo de 2004, intitulado Não à tatuagem biopolítica, uma argumentação muito próxima a essa: “não se trata”, afirma Agamben”, “apenas de uma reação epidérmica diante de um procedimento que há muito tempo vem sendo imposto a criminosos e acusados políticos”; para ele, “o que está em jogo aqui não é nada menos que a nova relação biopolítica supostamente ‘normal’ entre os cidadãos e o Estado”, que não se manifesta mais pela participação ativa na vida pública, mas se conecta àquilo que os indivíduos possuem de mais privado e incomunicável. Assim, se de um lado temos os dispositivos midiáticos, que controlam o que há de comunicável no espaço público, de outro temos os dispositivos tecnológicos, que inscrevem a vida nua no corpo biológico dos indivíduos:
Entre esses dois extremos de uma palavra sem corpo e um corpo sem palavra, o espaço daquilo que antes chamávamos de política se torna cada vez mais reduzido, mais exíguo. Assim, ao aplicar aos cidadãos - ou, melhor dizendo, ao ser humano como tal - as técnicas e os dispositivos que inventaram para as classes perigosas, os Estados, que deveriam constituir o espaço da vida política, fizeram dela o suspeito por excelência, a tal ponto que é a própria humanidade que se tornou a classe perigosa (AGAMBEN, 2004).
O que importa para Agamben é ressaltar os riscos que essa concepção de identidade implica. Uma identidade biológica corresponde ao maior perigo para o qual o pensamento agambeniano pretende nos alertar; ela captura, de um só golpe, duas das experiências mais fundamentais do ocidente: de um lado, a experiência da política, do homem como zoon politikon, de Atenas; de outro, a experiência do extermínio, do Muselmann, de Auschwitz. Nesse cenário, cidadão e criminoso perdem sua marca distintiva. Todos são criminosos em potencial, identificáveis pelo que Agamben batizou de tatuagem biopolítica, numa alusão à sequência numérica que era tatuada nos detidos nos campos nazistas. Vemos, desse modo, uma passagem do dispositivo da pessoa ao dispositivo da identificação biométrica; uma sofisticação ímpar dos mecanismos de segurança, que têm sua eficiência garantida de forma incontestável em razão de seu caráter (ou total desnudamento) biológico, e, portanto, intrínseco ao ser do indivíduo. Com isso surge a urgência de um novo pensamento ético que dê conta de responder a esse novo paradigma. Pois se antes se tinha a pessoa como a portadora da culpa, agora a noção de culpa poderá ter como portador um dado biológico; se antes o pensamento ético e jurídico contava com a pessoa para mobilizar o aparato governamental, agora é a própria biologia que ocupará esse lugar legítimo de incitação do maquinário estatal. Cada vez mais, a vida nua e o biológico passam a ser uma só e mesma coisa; cada vez mais essas dimensões, cujos domínios temos dificuldades em delimitar na economia do pensamento de Agamben, o domínio da zoé e da vida nua, passam a coincidir sem jamais se confundir:
É contra uma tal cisão que a nova identidade sem pessoa faz valer a ilusão não de uma unidade, mas de uma multiplicação infinita de máscaras. No ponto em que fixa o indivíduo a uma identidade puramente biológica e social, promete-lhe deixar assumir na internet todas as máscaras e todas as segundas e terceiras vidas possíveis, nenhuma das quais poderá jamais lhe pertencer particularmente (AGAMBEN, 2015c, p. 85).
Ainda em O que resta de Auschwitz encontramos uma argumentação muito próxima ao tema da pessoa, porém a respeito da noção de dignitas. Assim como a noção de pessoa, o termo dignidade compactua dessa mesma lógica abstrata e de sobreposição funcional, característica do maquinário teológico-político que herdamos do pensamento jurídico romano e canônico.30 Não nos surpreende, portanto, que também a dignidade tenha uma origem jurídica com raízes no direito público. “Dignitas”, nos relata Agamben, ”indica a classe e a autoridade que competem aos cargos públicos e, por extensão, aos próprios cargos” (AGAMBEN, 2008, p. 73). Yan Thomas também recupera esse sentido: “a dignidade é uma categoria jurídica bastante antiga, ligada precisamente à indisponibilidade de certas instituições político-administrativas” (THOMAS, 1998, p. 86). Conforme nos relata Agamben, apesar de sua presença já manifesta nos duplos funerais dos imperadores romanos, uma “verdadeira teoria da dignidade” teria surgido apenas nas mãos dos juristas e canonistas medievais, o que conduziria à sobrevida desse instituto nos funerais dos reis da França. Retomando um debate já presente em O poder soberano e a vida nua a respeito da estratégia ficcional colocada em prática pelo pensamento jurídico, tudo se passa como se a dignidade se emancipasse de seu portador e se convertesse “em pessoa fictícia, uma espécie de corpo místico que se põe junto do corpo real do magistrado ou imperador, da mesma forma como em Cristo a pessoa divina duplica seu corpo humano” (AGAMBEN, 2008, p. 73). Assim, “da mesma forma que o direito havia emancipado a condição da persona ficta em relação ao seu portador, também a moral - por um processo especular inverso - separa o comportamento de cada indivíduo da posse de um cargo” (AGAMBEN, 2008, p. 74). Vemos, então, que o dispositivo da dignidade é análogo ao da pessoa; não se protege o ser humano, mas a dignidade que um ser humano possa ou não ter.
A contradição nesse sentido fica clara: por que precisamos declarar um indivíduo como digno para que ele possa ser protegido? Não há no enunciado mesmo, de saída, uma presunção de que há outros indivíduos indignos? Logo, com base na existência de indivíduos dignos e indivíduos, mesmo que abstratamente, por uma fraqueza da linguagem, indignos, não se instauraria entre essas duas tipologias possíveis um espectro nefasto, onde imperaria a arbitrariedade soberana?31 Pois esse parece ser justamente o caso. De modo análogo ao emprego da noção de pessoa, o que caracteriza a dignidade é o seu ser separado e, ao mesmo tempo, íntimo de seu portador corpóreo. Com o passar do tempo, a dignidade passa a integrar os tratados de moral e a reproduzir fidedignamente esse modelo teológico-político dual, que separa e sobrepõe, exclui e articula corpo e alma, corpo e pessoa, vivente e dignidade.
As consequências desse raciocínio ecoam as duras críticas de Weil ao direito voltado à proteção da pessoa. Tudo se passa como se a admissão de um critério normativo, isolado e sobreposto ao sujeito corpóreo criasse as condições propícias para o cometimento de atrocidades como Auschwitz (o que jamais foi pensado por ela tendo em vista seu falecimento em 1943). De modo categórico, Agamben arremata: “também os nazistas recorreram, com referência à condição jurídica dos judeus depois das leis marciais, a um termo que implica a dignidade: entwürdigen. O judeu é o homem que foi privado de qualquer Würde, de qualquer dignidade: apenas homem - e precisamente por isso, não-homem” (AGAMBEN, 2008, p. 75). O muçulmano é, assim, aquele sobre quem, mesmo entre os sobreviventes, se hesita dizer que detém a mera dignidade de ser vivo. Assim, Auschwitz marca mais do que o fim das pretensões éticas amparadas na comunicação; também marca o fim do pensamento ético amparado na ideia de adequação à norma como fundamento, o fim da ideia de pessoa e até mesmo da ideia de dignidade. O sentimento que guia a nova ética não pode ser, então, aquele do respeito à lei, ou ao do pertencimento a uma única e mesma espécie humana. Entramos aqui num registro fortemente antikantiano e antihabermasiano, portanto. O sentimento, para Agamben, em consonância implícita com Weil, deve ser o do amor, que é absolutamente imanente à vida nua, ao grito silencioso.
Agamben inicia sua exposição em A comunidade que vem com uma reflexão sobre o quodlibet, que logo se torna a “singularidade qualquer” ou a “singularidade qual-se-queira”. O outro nome para essa singularidade da qual Agamben fala é “amável”. Percebemos, desse modo, a mesma lógica que a presente nos escritos de Weil: o amor não se dirige jamais a uma propriedade ou qualidade do amado, e tampouco é capaz de amar genericamente. O amor deseja (libet) o ser tal qual ele é, em sua singularidade, num gesto que prescinde de uma consideração dos atributos do amado, mas que também não é indiferente a eles. Assim, podemos pensar que uma das imagens mais eloquentes que Agamben usa para traduzir a noção de impessoal de Weil é a do ser qualquer. Ao pensarem o ser qualquer e o impessoal, Agamben e Weil propõem uma reelaboração da ideia de pertencimento. A singularidade do qualquer e do impessoal destrói o pertencer amparado em propriedades; ela é irredutível ao pertencimento dado de antemão. O pertencer pertinente ao amável consiste em sua exposição enquanto tal; ele é a inteligibilidade mesma que emerge da singularidade na ausência de um elemento que o habilite ao reconhecimento como pertencente. É nele, nesse impessoal traduzido na ideia de singularidade qualquer, que podemos encontrar, quando pensamos a partir de uma perspectiva sociopolítica, o potencial anárquico de subversão do poder estatal (RICCIARDI, 2009, p. 84).
A analogia entre dignitas e persona, bem como a ressonância com o texto de Weil, ganha força quando Agamben passa a descrever a incompatibilidade entre o amor e a dignidade. “Sempre se soube”, ele escreve, “que há lugares e circunstâncias onde a dignidade é inoportuna. Um destes lugares é o amor. O enamorado pode ser tudo menos digno, assim como é impossível fazer amor mantendo a dignidade” (AGAMBEN, 2008, p. 75). Ao opor dignidade e amor, Agamben está realizando um movimento análogo ao de Weil, colocando, de um lado, dignidade e direito, e de outro, amor e justiça; de um lado a técnica jurídica, de outro, como veremos, o uso.
Numa passagem do ensaio de 1943, em que Weil tece suas considerações a respeito de Antígona, o que está em jogo é criticar a confusão entre a lei não escrita de Antígona com o que chamamos de direito ou lei natural. Desatar essa “singular confusão” entre direito e lei não escrita é imprescindível para Weil e corresponde a uma importante distinção para com o direito dos romanos. A lei que Antígona diz seguir, afirma Weil, não é um direito, mas é a mesma lei que conduzira Cristo à cruz (WEIL, 2017, p. 53). A lei visada por Antígona, segundo Weil, prescreve uma única coisa, que é o excesso de amor, imprescritível pelo direito (WEIL, 2017, p. 53). Agamben segue essa mesma intuição, mesmo sem citar Weil. Já trabalhando com uma noção de direito que opera estabelecendo uma relação com algo que é separado do vivente (a vida nua como a vida separada de sua forma), Agamben opõe ao registro da dignidade, onde impera o direito, o registro do amor, onde impera a justiça amparada por uma ideia de lei que não pressupõe a operação de isolamento no vivente32. Essa experiência do amor, segundo Dickinson, “que deve ser igualmente destacada, encontra-se em contraste radical com a ‘lei natural’ que, frequentemente e, mitologicamente, governa a humanidade através da ficção da soberania, a qual continua a dominar as narrativas essencialistas da natureza humana, enquanto verdadeiramente está desprovida de qualquer substância, seja ela qual for” (2020, p. 192-193; Cf. DICKINSON, 2020, p. 328). Essa distinção fica bastante clara no seguinte excerto:
Há bons motivos para tal impossibilidade de conciliar amor e dignidade. Tanto no caso da dignitas jurídica quanto no de sua transposição moral, a dignidade é, a rigor, algo autônomo em relação à existência do seu portador, um modelo interior ou uma imagem externa a que ele se deve adequar e que deve ser conservada a qualquer preço. Contudo, nas situações extremas - e também o amor é, ao seu modo, uma situação extrema -, não é possível manter nem sequer uma distância mínima ente a pessoa real e o seu modelo, entre vida e norma. E isso não se deve ao fato de que a vida ou a norma, o interno ou o externo prevaleçam, dependendo das circunstâncias, mas porque os mesmos se confundem em qualquer ponto, não deixando de modo algum espaço para um compromisso digno. (Paulo sabe-o perfeitamente quando, na Epístola aos Romanos, define o amor como o fim e cumprimento da Lei) (AGAMBEN, 2008, p. 75).
Em Uso dos corpos, Agamben, novamente sem articular com a noção de amor de Weil, recorre a Dante para dizer algo que é perfeitamente compatível com a crítica à noção de pessoa como aquilo que é separado do homem concreto e que serve de fundamento ao direito: segundo Agamben, Dante, em O convívio, aproxima o amor ao uso. É por meio dessa referência que podemos dizer que se há, em Agamben, um pensamento sobre o amor, ele certamente encontrará suas formulações mais acabadas nas páginas em que o filósofo se esforça em descrever esse tipo de relação primeira, por excelência intransitiva, que faz do sujeito corpóreo e do uso de seu corpo o ponto de partida da reflexão ético-política. Tudo se passa, então, como se pudéssemos pensar o amor, em Agamben, como esse modo intransitivo de ser-no-mundo-com-os-outros, que antes de reivindicar o seu lugar próprio, contempla o que há em comum com os outros, deixando-se afetar por esse compartilhamento. Sem o corpo, isto é, ignorando-se o que a tradição tem compreendido como o substrato da pessoa, esta sim portadora de direitos, jamais se compreenderia o significado da afeição constitutiva do uso do corpo. Nesse sentido, Agamben escreve que “o amor é, nesse caso, de algum modo, a afeição que se recebe do uso (que é sempre também uso de si) e continua sendo, de algum modo, indiscernível frente a ele” (AGAMBEN, 2017c, p. 49).
Ao descrever o amor enquanto afeição, também não podemos deixar de entrever, desde já, os contornos spinozistas dos quais o conceito de uso em Agamben gozará. “Em uma ontologia modal”, ele escreve em Uso dos corpos, “o ser usa a si, ou seja, constitui, exprime e ama a si mesmo na afecção que recebe de suas próprias modificações” (AGAMBEN, 2017c, p. 191. Grifo nosso). Por meio dessa analogia que integra o amor à esfera semântica do uso, Agamben também integra o amor à esfera das relações de causa imanente, o que por sua vez o compele a um desvio do jargão jurídico-metafísico da causa em geral.33 Assim, “a relação de causa imanente implica que o elemento ativo não cause o segundo, mas, antes, nele, se ‘expresse’” (AGAMBEN, 2017c, p. 191. Grifos no original). A noção de causa imanente, que abole as distinções entre sujeito e objeto, ativo e passivo, e que em última instância se opõe à concepção tradicional de causa, não deixa de exprimir essa dimensão impessoal, a qual é defendida com unhas e dentes por Weil como a fonte da justiça.
A forma-de-vida, definida pela experiência da inseparabilidade e da coesão das vidas e suas formas, também aparece como contra conceito à lógica do “direito romano-burguês”. Enquanto a soberania estatal pressupõe e opera cisões entre as vidas e suas formas, produzindo, dessa forma, vidas nuas, a forma-de-vida surge como potência antagonista a esse mecanismo lacerador. A forma-de-vida, enquanto norte da política que vem, consiste numa política que não se realiza no nível das puras formas jurídicas da pessoa e dos direitos; ela acessa, de modo irremediável, “a materialidade dos processos corpóreos e dos modos de vida habituais”, de modo a não a abandonar “a vida nua ao ‘homem’ e ao ‘cidadão’, que vestem provisoriamente e a representam com seus ‘direitos’” (AGAMBEN, 2015b, p. 21).
Há muitos aspectos da obra de Giorgio Agamben que permanecem intocados por sua recepção crítica. Ao longo do presente texto procuramos apontar para apenas um deles, a saber, o da recepção e interpretação que o filósofo italiano faz da obra de Simone Weil, e em particular da noção de pessoa. Nossa abordagem nos permitiu, ao mesmo tempo, ampliar e especializar a crítica que Agamben endereça ao pensamento jurídico-teológico da tradição ocidental, notadamente em seu viés latino. Muito já se comentou a respeito da recepção agambeniana da noção de nómos via Carl Schmitt e Walter Benjamin. Todavia, salvo raras exceções - salvo engano nenhuma delas no Brasil - mensurou a importância do pensamento de Weil para a desconstrução do legado romanístico do direito, cujas categorias, como aqui pretendemos exemplificar pela noção de pessoa, permanece atuante como um insuficientemente pensado por nós, teóricos do direito e da política, comprometidos com uma ética de caráter radicalmente democrático. Concomitantemente, nossa investigação nos permitiu trazer à presença a obra de uma autora fundamental ao pensamento crítico contemporâneo, cujos escritos restam ainda por ser explorados a fundo pelos filósofos do direito no Brasil. Por fim, nesse intuito de ampliação e especialização do debate da obra de Agamben no que concerne o léxico da nossa tradição, o resgate da obra de Weil e a centralidade da noção de pessoa no âmbito do direito nos permitiu avaliar pontos de contato e de distanciamento entre as obras de Agamben e de Roberto Esposito.