Resumo: O presente trabalho almeja, em uma leitura de Pachukanis, ressaltar a vinculação feita pelo autor entre forma jurídica e forma valor, para, daí, extrair posteriormente a possibilidade fazer uma analogia entre as formas aparentes do valor (valor de troca) e as formas aparentes do direito (momento judicial e momento legislativo), a partir de uma leitura de trechos encontrados na obra Teoria Geral do Direito e Marxismo. Como resultado, torna-se possível colocar em xeque percepções que reduzem a interpretação de Pachukanis a um economicismo de cariz circulacionista, uma vez que valor e direito são vistos como formas centrais à reprodução da sociabilidade capitalista em sua totalidade.
Palavras-chave: Evgeny Bronislavovitch Pachukanis, Direito e marxismo, Forma Jurídica, Crítica do Direito.
Abstract: This paper aims to read Pashukanis’ work while emphasizing the connections between law-form and value-form. After that, we seek to understand the apparent forms of value (specially the exchange value) in an analogous position with the apparent forms of law (namely, the jurisprudential and the legislative moments). In order to do that, we approach the book General Theory of Law and Marxism as our main source. As a result, it is possible to challenge the interpretations that understand Pashukanis in a purely economical and exchange-centered way, since law and value are both central forms in order to reproduce the capitalist social order in its totality.
Keywords: Evgeny Bronislavovich Pashukanis, Law and Marxism, Law-form, Critical Law Theory.
Artigos
Mercadoria e sujeito, valor e direito: esboços para uma leitura de Pachukanis
Commodity and subject, value and law: remarks to read Pashukanis
Recepção: 22 Junho 2021
Aprovação: 25 Fevereiro 2022
O presente trabalho pretende esboçar elementos introdutórios para compreender o projeto de investigação assumido por Evgeny Pachukanis em sua obra Teoria Geral do Direito e Marxismo (TGDM) desde uma leitura que realce a atualidade de sua empreitada, bem como os possíveis diálogos com as vertentes críticas e criativas do marxismo. Portanto, trata-se prioritariamente de um esforço de revisão bibliográfica voltado a ler com atenção a obra principal desse autor. Para tanto, iremos nos utilizar de várias edições da TGDM, com foco especial em duas edições brasileiras (a da Editora Acadêmica, de 1988, e a da Editora Boitempo, de 2017) e na versão original russa como contraponto capaz de discernir os desencontros entre a velha e a nova edição.
No decorrer de nossa pesquisa, partimos de uma impressão que depois foi acentuada e referendada pelos elementos gerais encontrados na obra. Trata-se da percepção de que a interpretação da teoria pachukaniana hegemônica nos países anglo-saxões (a assim chamada commodity exchange theory, ou меновая теория права [menovaya teoriya prava], em sua versão russa) foi incapaz de identificar a centralidade da mútua imbricação entre a forma jurídica e a forma-valor no desenrolar do argumento do marxista soviético, o que, por sua vez, acaba por reduzir a contribuição aqui comentada a um espantalho facilmente rotulável de circulacionista, quando, em verdade, Pachukanis está a esboçar uma crítica do direito nos moldes da crítica da economia política e, para tanto, realiza um desenvolvimento categorial muito mais complexo e sofisticado do que o retratado por vários de seus intérpretes. Ou seja, a própria ênfase na mercadoria enquanto unidade atomizada de reprodução da acumulação capitalista não basta para descrever o movimento do fenômeno jurídico, uma vez que na própria exposição de Marx essa dimensão assume um papel de categoria que desvela outras categorias e permite, enfim, pensar o valor e expôr o movimento de acumulação do capital como um valor que se autovaloriza e que, nesse processo, subsume todas as relações sociais a seu alcance.
Assim, a exposição de nosso estudo seguirá estes momentos: 1) uma aproximação inicial da vida e obra de Pachukanis, com ênfase especial no legado do projeto de investigação deixado por ele e a sua recepção nos círculos de pesquisa em torno do Direito e marxismo no Brasil, o que nos propiciará a constatação de que a TGDM é apenas um esforço inicial que indica uma empreitada crítica aberta e inegostada cuja continuação depende de esforços dos investigadores e investigadoras contemporâneos; 2) uma introdução à discussão sobre como Pachukanis assimilou o método da crítica da economia política, tornando-o um método para elaborar criativamente uma crítica ao direito que parte dos conceitos jurídicos fundamentais para, enfim, desvendar a particularidade histórica e política do direito como forma social generalizada; 3) a dedução de que a aplicação do método acima referido culmina em uma aproximação entre a forma-jurídica e a forma-valor como formas fundamentais da sociabilidade capitalista cuja imbricação enraíza-se profundamente tanto na produção e circulação dos bens materiais e objetos quanto na subjetividade das pessoas que trocam mercadorias; e 4) dessa semelhança de operação e funcionamento entre as formas direito e valor, deduz-se também que o direito, tal como o valor, também possui suas formas de expressão como momentos imediatos que permitem ver uma manifestação mais palpável da forma jurídica, a qual, no entanto, é insuficiente para explicar a essência do modo de constituição do direito. Desse modo, culmina-se em um quadro que permite vislumbrar a relevância da obra pachukaniana -- a qual é irredutível a adjetivações como as de reducionista, economicista ou mesmo circulacionista --, bem como uma infinidade de horizontes de pesquisa em aberto, dispostas a contribuir para imaginar teoricamente como se aplica a crítica à forma jurídica para as relações de nosso tempo.
Em 1924, no primeiro Estado socialista cuja revolução conseguiu consolidar-se, um jovem jurista - formado na Alemanha, em decorrência de um exílio iniciado em 1910, quando completava dois anos de sua participação no Partido Operário Social-Democrata Russo -, nascido de uma família lituana, publicava um trabalho direcionado para seu próprio esclarecimento, um esboço que, em sua primeira edição, trazia o modesto subtítulo de tentativa de crítica dos conceitos jurídicos fundamentais. Daí emergiu um dos mais rigorosos e instigantes trabalhos feitos para a sistematização da crítica marxista ao direito: a obra Teoria geral do direito e marxismo, de Evgeny Bronislavovitch Pachukanis. Com sua publicação, ainda na faixa dos trinta anos, Pachukanis, um bolchevique tardio - só ingressou oficialmente nas fileiras do Partido Bolchevique em 1918, tendo anteriormente indícios de ligação com os mencheviques -, teve uma meteórica ascensão entre os pesquisadores jurídicos do Estado soviético, tornando-se, por exemplo, em 1925, coeditor do principal periódico de ciência do direito da época (Revolyutsiya Prava [Революция Права]) e, além disso, teve sua obra continuamente republicada, tornando-se manual dos cursos jurídicos da época1.
Entre os motivos de tal positiva recepção, podemos destacar a atenta aplicação do método e do pensamento de Marx feita por Pachukanis ao estudo do direito. Para além de ruminações e malabarismos teóricos sobre um prefácio de seis páginas escrito em 1859, o teórico soviético soube abordar o pensamento de Marx a partir de uma meticulosa leitura de sua obra magna, O Capital. Como bem expressa Márcio Bilharinho Naves (1996, p. 2):
A teoria geral do direito e o marxismo teve o efeito de uma pequena revolução teórica na jurisprudência. Pachukanis, rigorosamente, retorna a Marx, isto é, não apenas às referências ao direito encontradas em O Capital - e não seria exagero dizer que ele é o primeiro que verdadeiramente as lê -, mas, principalmente, ele retorna à inspiração original de Marx ao recuperar o método marxiano.
Além disso, argumenta Michael Head (2008, p. 157, tradução nossa), as conclusões de seu trabalho, ao vincularem a subsistência do direito burguês, ao lado das relações de troca e de equivalência - fortalecidas por causa da Nova Política Econômica - e acentuarem uma lenta transição ao desaparecimento do Estado, fizeram com que Pachukanis cumprisse “uma essencial função ao desenvolver uma sofisticada doutrina jurídica marxista que poderia facilitar, ou ao menos não desafiar, as mudanças de rumo no ambiente político e jurídico”, propugnadas pela fração liderada por Stalin no comando do Partido Bolchevique.
Todavia, a partir principalmente da década de trinta, Pachukanis passará a adaptar sua doutrina ao discurso oficial de Estado da União Soviética, mas não de forma linear e imediata, o que indica, em alguma medida, sua resistência ao discurso que lhe foi imposto (NAVES, 1996, p. 9-10). Paradoxalmente, em 1936, Pachukanis “passa a aceitar plenamente a existência de um direito socialista, além de adotar uma concepção normativa do direito” (NAVES, 1996, p. 161-162), mas sua defesa da legalidade socialista (legalidade, aliás, que, segundo as teorias liberais, garantiria a defesa das liberdades individuais e a restrição da barbárie) não impediu que, um ano depois, ele se tornasse, para a oficialidade, “um ‘parasita contrarrevolucionário trotskista-bukharinista’ e ‘agente fascista’ (Vyshinsky)” (HEAD, 2008, p. 153, tradução nossa). Preso em 20 de janeiro de 1937, Pachukanis foi condenado e fuzilado em 4 de setembro de 1937, acusado de “participação em organização terrorista contrarrevolucionária”2 (MEMORIAL, s.d., tradução nossa).
Malgrado as virulentas críticas destinadas ao seu trabalho e a sua posterior “reabilitação” (que, na prática, significou mais um período de contínuo esquecimento) na era Kruschev, a teoria de Pachukanis não deixou de atrair a atenção dos mais variados setores da crítica jurídica no mundo e, há cem anos da publicação de sua obra principal, seus escritos ainda não foram esgotados pelas contínuas discussões.
Particularmente, cabe destacar a relevância que a obra do jurista soviético tem obtido em recentes campos de pesquisa, sejam eles nacionais ou internacionais. Focaremos, no entanto, a sua recepção no Brasil, marcada pela influência teórica e editorial de um agrupamento localizado no estado de São Paulo que, por certo tempo, aglutinou-se diante da denominação de marxismo jurídico3 e, resgatando o legado pachukaniano, pôde complexificar a discussão sobre o direito no campo das assim denominadas teorias críticas do direito4, de modo a visualizar os limites estruturais que estão agregados à forma jurídica e distanciar-se da visão instrumental-normativa do direito que antes era inquestionada5 (PAZELLO, 2021a).
Entre as produções ligadas a esse circuito de investigações, destaca-se o pioneirismo de Márcio Bilharinho Naves com a publicação de sua tese de doutorado, Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis (NAVES, 2000), defendida em 1996, por um lado, e o epicentro de divulgação e capilarização da obra pachukaniana por meio da atuação de Alysson Mascaro e sua proximidade com a editora Boitempo, cristalizada na obra Estado e forma política (2015), recebida positivamente por diversos campos de estudo marxistas.
Essas influências abriram espaço para uma série de novos trabalhos acerca de Direito e Marxismo que, trazendo sempre Pachukanis como importante interlocutor, não pode ser esgotada nas presentes linhas introdutórias6. Portanto, limitamo-nos a dar pistas de espaços para começar a compilar e investigar esse o impacto desse regressar pachukaniano, como em dossiês de pesquisas coletivas7, publicações editoriais assumidas por grandes editoras de difusão do pensamento marxista no Brasil (como a Boitempo Editorial8, o selo Outras Expressões9, a editora Sundermann10 e a editora Lutas Anticapital11) e surgimento de demais organizações preocupadas com esse debate e suas implicações para direcionar uma atuação político-intelectual mais ampla no cenário de crítica ao direito a partir da interlocução com os movimentos políticos populares, como o Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais12.
Além disso, as influências do jurista soviético conseguiram atingir um campo mais vasto de áreas do conhecimento não limitadas ao direito, como as pesquisas sobre educação (CATINI, 2013) e saúde pública (MENDES; CARNUT, 2020), para citar apenas alguns exemplos nos quais impera a lógica da luta por direitos. Ademais, a recepção desse projeto de leitura do direito não é mera reprodução passiva, mas uma apreensão ativa, a qual implica o diálogo com temas que complexificam a concretude do direito contemporâneo brasileiro (aqui, podemos indicar as pesquisas que pensam o direito de acordo com os outros ciclos de acumulação do capital, seja a partir dos outros volumes d’O Capital marxiano, seja a partir das dimensões da dependência dos países periféricos, da acumulação por espoliação ou da assim chamada acumulação primitiva13) e com autores de dentro e fora marxismo ainda distantes da tradição soviética mais ortodoxa, como Pierre Bourdieu (CASTRO, 2020), Gyorgy Lukács (SOARES; SILVA, 2020 e SARTORI, 2016) e E. P. Thompson (SILVA, 2021), sem mencionar os já hegemônicos diálogos realizados entre Pachukanis e a tradição althusseriana (NAVES, 2000), ou a reivindicada familiaridade da problemática da forma compartilhada entre Pachukanis e as denominadas Novas Leituras de Marx14, cuja expressão no campo da discussão sobre a política descamba nos Debates sobre a Derivação do Estado (CALDAS, 2015) e que também é bastante próxima da conhecida Nova Crítica do Valor (NASCIMENTO, 2015). Em suma, A Teoria Geral do Direito e o Marxismo não se trata de um manual enciclopédico que deve ser aderido cegamente, mas sim de um esforço seminal, uma empreitada crítica aberta e inesgotada que deve ser recepcionada criativamente pelas pesquisadoras e pesquisadores que se aproximam do fenômeno jurídico. Nesse sentido, a presente exposição pretende inserir-se dentro dessa tessitura porosa e incompleta do projeto fragmentariamente vislumbrado pelo marxista soviético.
Reconhecida a relevância e a capacidade instigadora da obra de Pachukanis, o presente trabalho tem, justamente, o escopo de apresentar uma interpretação da Teoria Geral do Direito e Marxismo mediante três temas que serão discutidas nas seguintes seções: 1) a apreensão feita por Pachukanis do método de Marx e sua aplicação na teoria geral do direito; 2) uma proposta de focar a aproximação que Pachukanis faz da forma jurídica com a forma valor, em detrimento do que, na teoria anglo-saxã15, ficou conhecido como “teoria jurídica da troca de mercadorias [commodity-exchange theory of law]”; e 3) como decorrência do segundo ponto, apresentar que há, em Pachukanis, a consideração da existência de formas de expressão (ou aparentes) da forma jurídica, como as leis e as decisões judiciais, que assumem, em relação à forma essencial do direito, o papel análogo do valor de troca em relação ao valor.
Os últimos dois pontos, conjugados, hão de nos ajudar a rebater dois tipos de críticas comumente dirigidas a Pachukanis: a de que sua teoria não pode se aplicar para os ramos do direito que não estão imediatamente ligados à circulação de mercadorias e a de que sua obra não dá nenhum caminho ao estudo das normas jurídicas.
Como já se asseverou, uma das principais distinções da teoria do direito elaborada por Pachukanis consiste em sua precisa e sofisticada apreensão do método utilizado por Marx em sua crítica da economia política. Não pretendemos abordar todas as possíveis imbricações entre o método de Pachukanis e o de Marx16: iremos nos contentar em apresentar dois pontos breves - o escopo de pesquisa do jurista soviético, em contraposição ao que ele mesmo conceituou como definições “escolásticas” do direito e o início metodológico de sua exposição investigativa, partindo da categoria sujeito de direito.
Sobre os objetivos de Pachukanis com sua empreitada teórica, é recorrente, nos textos, citarem-se a forma como o autor, em seu prefácio, reconhece como correta a acepção de Pyotr Ivanovitch Stutchka, segundo a qual Pachukanis empreende uma aproximação da forma direito e da forma mercadoria (PACHUKANIS, 1988, p. 8). Todavia, quiçá mais profícua seja uma aproximação a partir da negatividade das já aludidas definições escolásticas do direito, discutidas na introdução da Teoria Geral do Direito e Marxismo.
Para o autor aqui analisado, o conceito de direito "não pode ser exaustivamente compreendido por uma definição que segue as regras da lógica escolástica per genus et differentia specifica", cujo
principal defeito [...] está em sua incapacidade de abarcar o conceito de direito em seu movimento real, revelando todas as inter-relações e ligações internas. Em vez de colocar o conceito de direito em sua forma mais acabada e precisa e, daí, mostrar a importância desse conceito para determinada época histórica, nos apresenta de modo puramente verbal um lugar-comum sobre a “regulamentação autoritária externa”, que, todavia, serve bem para qualquer época e estágio do desenvolvimento da sociedade humana. Uma analogia perfeita disso em economia política é representada pelas tentativas de dar uma definição ao conceito de economia que abarcasse todas as épocas históricas. Se a teoria da economia consistisse toda ela em tais generalizações escolásticas improdutivas, dificilmente ela mereceria ser chamada de ciência (PACHUKANIS, 2017a e PACHUKANIS, 1988, p. 22-23).
Destarte, seu modelo teórico refuta qualquer possibilidade de construir o direito a partir de definições a-históricas, que podem ser distribuídas para todos os momentos da humanidade: os conceitos jurídicos fundamentais nascem dentro de um rol de relações sociais específicas e, só aí, passam por seu completo florescimento. Por isso, sua aproximação ao direito tem data histórica: quando os conceitos jurídicos já estão plenamente desenvolvidos17.
Assim, conecta-se o desenvolvimento desses conceitos fundamentais com o desenvolvimento histórico da sociedade burguesa18 (quando essas definições assumem o maior grau de independência e completude19). Não se tenta, em vão, considera-los elementos eternos e força-los dentro dos esquemas das sociedades do passado. Da mesma forma como Marx desmascara os autores que tentavam transformar os conceitos da economia política em fatos perenes20, Pachukanis busca discernir o verdadeiro caráter do jurídico, enquanto uma relação social historicamente situada. Sua indagação principal talvez seja esta: “seria possível entender o direito como uma relação social naquele mesmo sentido que Marx usou ao chamar o capital de relação social?” (PACHUKANIS, 2017a)21. Portanto, em seu esboço, Pachukanis não tem nenhuma pretensão em definir o direito em um par de parágrafos - como o fez, efetivamente, Stutchka22, o que, inclusive, fez com que o autor de Teoria geral do direito e marxismo o repreendesse23 -, mas de situar historicamente o desenvolvimento dos conceitos fundamentais do direito24 em uma série de relações que, enfim, recebem, de forma mais desenvolvida e pura, a forma jurídica. Para tanto, seguirá fielmente o excurso feito por Marx na análise da economia política.
Por isso, adota o “princípio metodológico fundamental que Marx desenvolve na sua Introdução à crítica da economia política, que se exprime em dois ‘movimentos’: aquele que vai do abstrato ao concreto, e aquele que vai do simples ao complexo” (NAVES, 1996, p. 31). Ou, se quisermos adaptar tais considerações ao vocabulário que pretendemos empregar, conjuga-se o movimento, horizontal, de passagem do abstrato ao concreto e o, vertical, de passagem da aparência à essência25. Em decorrência disso, Pachukanis (1988, p. 35), em suas considerações metodológicas, afirma que se deve “começar pela análise da forma jurídica em seu aspecto mais abstrato e puro e passar, depois, pelo caminho de uma gradual complexidade até a concretização histórica [ao historicamente concreto - к исторически конкретному]”. Assim, seu itinerário propriamente dito de análise da forma jurídica começa dentro de um momento histórico específico (quando o direito chega em seu apogeu e há o desenvolvimento de “um sistema de conceitos gerais”) e com o uso dos conceitos mais simples e abstratos do jurídico, para sua posterior complexificação e ligação com a concretude total (PACHUKANIS, 2017a, e PACHUKANIS, 1988, p. 35-36).
Consequentemente, parece-nos que, depois de sua introdução e suas considerações metodológicas (capítulo I), Pachukanis só começa, em sentido estrito, sua proposta a partir do capítulo IV (Mercadoria e Sujeito), quando, terminadas as críticas às escolas psicologistas (Direito e Ideologia, capítulo II) e normativistas (Relação e norma, capítulo III), enfim apresenta o ponto de partida de sua investigação: o sujeito de direito26. É aqui que ele empreenderá a apreensão concreta da forma jurídica e tentará demonstrar a já mencionada relação indissolúvel entre direito e sociedade burguesa. Na próxima seção, pretendemos nos aproximar desse processo e argumentar que, desse capítulo, sai uma proposta instigante de relacionamento entre a forma jurídica e a forma valor.
Repetindo o que já se afirmou anteriormente, o sujeito de direito é o ponto de partida do excurso teórico pachukaniano por ser a categoria jurídica mais simples, cujo desenvolvimento permite descobrir a totalidade da forma jurídica, em toda a sua riqueza de significações. Seu papel na crítica ao direito é análogo ao da mercadoria na crítica da economia política.
Para apresentar o elemento do sujeito, Pachukanis faz direta referência ao seu principal inspirador intelectual: “para Marx [a] análise da forma do sujeito tem origem imediata na análise da forma mercadoria” (PACHUKANIS, 1988, p. 70). Ao leitor já situado na discussão da crítica jurídica pachukaniana é evidente que tal consideração deriva da interpretação do tratamento dado por Marx ao sujeito no capítulo II d’O Capital27. Em poucas palavras, a relação de troca precisa que, primeiro, os produtos do trabalho se transformem em mercadorias e, também, que as pessoas se transmutem em sujeitos de direito, cuja vontade livre, enfim, permite o intercâmbio dessas mercadorias.
Aqui, temos o encontro dessa relação mercantil com a relação jurídica mediante o instrumento do contrato: “Na realidade e historicamente, ao contrário, o conceito do ato jurídico tem sua origem no contrato”: “é para o ato de troca que convergem os momentos essenciais tanto da economia política como do direito” (PACHUKANIS, 1988, p. 78-79). Ou seja, a fundamentalidade do jurídico para o modo de produção capitalista pode resumir-se às seguintes palavras: “a mediação jurídica insere-se nas relações sociais, portanto, como um fator fundamental do circuito de trocas, pois o valor de troca somente se realiza mediante um ato de vontade do proprietários/donos de mercadorias” (SOARES, 2009, p. 64-65). Análogas, então, também são as relações de troca e as relações jurídicas: “A relação jurídica entre os sujeitos é apenas outro lado das relações entre os produtos do trabalho tornados mercadoria.”28 (PACHUKANIS, 2017a e PACHUKANIS, 1980b, p. 78).
Logo, a existência de tais elementos permite a profusão e a generalização dessas relações de troca e das relações jurídicas. E, cabe constatar, sem esse processo de generalização das trocas e da transformação de quase todo produto humano em mercadoria, não seria possível discernir a existência mesma da forma valor (haveria, aí, apenas um surgimento aleatório de um valor de troca, mas seria impossível discernir a existência da forma valor enquanto magnitude). Rigorosamente falando, não há nem mesmo uma produção de mercadorias, em seu sentido estrito29. Só quando as trocas deixam de ser acidentais é que a forma valor é captável pela racionalidade humana. A mesma consideração pode ser feita no que concerne ao direito: Pachukanis chega a considerar o litígio e o tribunal como primeiros espaços em que aparece a forma jurídica30. Mas, se “o direito, historicamente, começou com o litígio”, é só mais tarde que ele “abarcou as relações puramente econômicas e [ou] factuais preexistentes [предшествующие чисто экономические или фактические отношения]”, isto é, só depois a forma sujeito de direito generaliza-se e as relações econômicas passam a se pautar na existência de sujeitos iguais que trocam equivalências (PACHUKANIS, 2017a e PACHUKANIS, 1988, p. 54). Tal como a profusão de relações mercantis permite discernir o valor como categoria geral, a profusão do estatuto de sujeito de direito e das relações jurídicas permite o discernimento da forma jurídica como categoria geral31.
Assim, é possível concluir a conexão fundamental feita por Pachukanis que almejamos aqui enfatizar: a relação entre valor e direito. Em uma frase que consideramos seminal, afirma-se: “Ao mesmo tempo que o produto do trabalho adquire a propriedade de mercadoria e torna-se portador de valor, o ser humano adquire a propriedade de sujeito jurídico e torna-se portador de direito”32 (PACHUKANIS, 1980b, p. 106, tradução nossa). Aqui, é sintomático que Pachukanis apresente um processo de abstração concomitante e que repete duas duplas de sentenças idênticas, trocando apenas as palavras “produto do trabalho”, “mercadoria” e “valor” por, respectivamente, “ser humano”, “sujeito jurídico” e “direito”. Destarte, Pachukanis discerne “duas formas fundamentais”, forma jurídica e forma valor, que “estão, ao mesmo tempo, intimamente ligadas e condicionam-se mutuamente” (PACHUKANIS, 2017a e PACHUKANIS, 1988, p. 71-72). Sem entrar em detalhes acerca dos outros excertos em que Pachukanis relaciona essas duas formas33 oriundas da profusão da circulação de mercadorias34, pode-se dizer que o direito aparece como uma expectativa de equivalência que tem o sujeito ao firmar relações jurídicas.
Assim, com o decorrer do desenvolvimento das trocas de mercadorias e também das relações jurídicas que lhe são inerentes, tem-se a profusão dessas relações jurídicas para âmbitos além da imediata troca de produtos35 e, em especial, transforma-se a força de trabalho humana em mais uma mercadoria no grande círculo de valorização do valor: nessa esteira, “toda uma série de outras relações sociais assume/se reveste de/toma [принимает] a forma jurídica” (PACHUKANIS, 1980b, p. 55-56, tradução nossa). Consequentemente, as relações jurídicas podem ser conceituadas como relações entre sujeitos de direito, abstratos, que trocam equivalências entre si, dentro de um contexto histórico de subsunção real do trabalho ao capital3637 (NAVES, 2014, p. 87).
Situada em uma realidade em que os trabalhadores são expropriados de seus meios de produção e, com a introdução da maquinaria, incapazes sequer de compreender o processo produtivo em sua totalidade, essa aplicação de trocas e relações equivalentes significa, na prática, a construção de circunstâncias perfeitas para a exploração do trabalho e a edificação da exploração capitalista, cuja especificidade é apresentar-se como resultado de acordos “livres”. Nas palavras do próprio Karl Marx: “Por mais que o modo de apropriação capitalista pareça ofender as leis originais da produção de mercadorias [como a troca simples de equivalentes], ele não se origina de maneira alguma da violação mas, ao contrário, da aplicação dessas leis” (MARX, 1996, p. 217-218, grifos nossos).
Destarte, a centralidade que algumas teorias de interpretação da obra pachukaniana (em especial as que adotam a nomenclatura da Commodity Exchange Theory of Law38 [Teoria Jurídica da Troca de Mercadorias]) dão à troca de mercadorias, por muitas vezes, leva ao esquecimento do papel central da forma valor no discurso de Pachukanis. Assim, torna-se mais plausível considerar o jurista soviético um teórico circulacionista, que se descuida de pensar as relações de produção. Todavia, a ênfase na analogia com o valor, como forma que, em sua ânsia de autovalorizar-se enquanto devora mais-valor, molda todas as relações econômicas capitalistas - inclusive as produtivas -, não nos permite aterrissar em tais conclusões.
Cumpre indicar, a título de contextualização, que a obra de Pachukanis destaca-se também por seu pioneirismo nessa ênfase da forma-valor como uma pedra de toque para decifrar a crítica à economia política. Em raciocínio coincidente com o de Isaak Il’ytch Rubin, pode-se dizer que Pachukanis estabeleceu as bases de uma nova forma de ler o marxismo, distante tanto do marxismo-leninismo tradicional ou o marxismo da segunda internacional, de um lado, ou da tradição do marxismo ocidental, por outro. Aqui, o projeto de investigação dos dois conjuga justamente o significado heurístico de expôr a peculiaridade das formas sociais descritas por Marx n’O Capital e, em especial, dinamitar o procedimento naturalizador da forma-valor empregado pelos economistas clássicos. Dessa constatação fundamental é possível, então, discernir a artificialidade e historicidade que repousa em torno de noções como “dinheiro”, “trabalho abstrato”, “forma jurídica” e “forma política”. Logo, suas teses estão longe de ser circulacionistas ou de pretenderem reduzir a realidade à esfera da circulação; buscam, em verdade, expôr o caráter fetichista, absurdo e mistificador das relações de produção capitalistas, bem como a possibilidade de as colocar em questão, de, portanto, imaginar novas formas de gestão da vida social para além da tudo-englobadora forma do valor39. Posteriormente, esses esforços serão continuados, intensificados e ramificados por intelectuais associados a discussões como as sobre a Nova Leitura de Marx (ELBE, 2013), o Debate sobre a Derivação do Estado (CALDAS, 2015) e a Nova Crítica do Valor (NASCIMENTO, 2015).
Regressando ao sentido mais geral do argumento apresentado por Pachukanis, indica-se que é dessa maneira de ler criticamente a forma-valor que podemos tirar a essência da forma jurídica: ela, tal como a forma valor, cria uma série de equivalências para propiciar a troca equivalente de mercadorias e a realização de acordos que também representam essa mesma equivalência. Contudo, pretendemos levar essa analogia além: acreditamos ser possível discernir, em Pachukanis, um tratamento, mesmo que breve, da aparência da forma jurídica, suas formas de expressão, que, na nossa já recorrente analogia com o valor, correspondem ao valor de troca. Pretendemos desenvolver essa temática na próxima seção.
Antes de abordar a questão sugerida, cabe ressaltar que a presente indicação não é completamente inovadora: já foi abordada em outros trabalhos (PAZELLO, 2014a, p. 172 e PAZELLO, 2014b), os quais detêm todo o mérito de percepção dessa empreitada teórica, a qual traz a qualidade de, ao mesmo tempo, manter a crítica à forma jurídica (com um horizonte demarcadamente antijurídico, que expressa o necessário definhamento dessa forma) e possibilitar uma incursão da teoria pachukaniana para caminhos inovadores da análise das formas aparentes, como as leis e as decisões judiciais, indo além do constante repisar das mesmas considerações sobre a forma jurídica em sua forma essencial, em geral intangível para a maior parte da população.
Nosso caminho seguirá o seguinte traçado: primeiro, serão apresentados trechos nos quais Pachukanis ao menos deixa em aberta a nossa proposta aqui colocada e, imediatamente depois de sua citação, serão extraídas as impressões que se podem tirar de cada trecho.
Já no prefácio de sua terceira edição da Teoria geral do direito e marxismo, Pachukanis afirmou, para mostrar os efeitos materiais e extraideológicos do jurídico:
Desse modo, se a análise da forma-mercadoria revela o sentido histórico concreto da categoria do sujeito e expõe as bases abstratas do esquema da ideologia jurídica [expõe a base dos esquemas abstratos da ideologia jurídica - обнажает основу абстрактных схем юридической идеологии], então o processo histórico de desenvolvimento da economia mercantil-monetária e mercantil-capitalista acompanha a realização desses esquemas na forma [в виде] da superestrutura jurídica concreta. Na medida em que as relações entre as pessoas se constroem como relação de sujeitos, temos todas as condições para o desenvolvimento da superestrutura jurídica com suas leis formais, seus tribunais, seus processos, seus advogados, e assim por diante (PACHUKANIS, 2017a e PACHUKANIS, 1988, p. 10).
Daqui, podemos depreender, desde o início, a importante relação que traça Pachukanis entre a forma jurídica e suas manifestações, expressões, concretas no mundo exterior e, no caso, os três elementos coincidem com o que Pazello (2014b) chama de formas aparentes do direito: a lei formal (para além de suas manifestações claramente voltadas à coerção política) e o judiciário (ou momento judicial). Se o direito, em sua forma essencial, tal como o valor, “não é imediatamente observável na realidade” (CARCANHOLO, 2011, p. 42), pode-se procurar, nela, espaços que são, em geral, representações concretas dessa forma abstrata, tal como, no âmbito econômico, “a propriedade valor da mercadoria não aparece (não se expressa) por si, não aparece como tal propriedade, mas sim por meio de sua manifestação: o valor de troca” (CARCANHOLO, 2011, p. 35).
Pachukanis, em seu prefácio, vai além: chega a apresentar o tribunal e o processo judicial como os momentos que representam a realização (e, aqui, pode-se dizer que tal termo assume especialmente o significado de “materialização”40) da forma jurídica na vida concreta:
Eu não apenas indiquei que a gênese da forma jurídica deve procurar-se nas relações de troca, mas também destaquei aquele momento que, na minha opinião, apresenta-se como a mais completa realização da forma jurídica, em particular: o tribunal e o processo judicial (PACHUKANIS, 1980b, p. 39, tradução nossa).
Outros indícios são deixados na introdução à sua obra. Ao comentar sobre a distinção entre norma e faculdade jurídica (direito objetivo e subjetivo), diz: "Entretanto, essa dupla natureza do direito, essa decomposição em norma e faculdade jurídica, tem um significado não menos importante que, por exemplo, a decomposição da mercadoria em valor de troca [valor - стоимость] e valor de uso" (PACHUKANIS, 2017a, [PACHUKANIS, 1980b, p. 50, tradução nossa]). Sobre esse trecho, são interessantes as seguintes observações: em primeiro lugar, o trecho em colchetes representa a nossa reprodução do texto original, nele, como se pode perceber, a contradição apresentada por Pachukanis não é entre valor de troca e valor de uso (como apresentam ambas as traduções brasileiras consultadas41), mas sim valor e valor de uso42. Trata-se da verdadeira oposição discernível na mercadoria segundo a teoria de Marx43. O que indica, além da correta leitura que realizou Pachukanis, a possibilidade dele destacar a diferença existente entre valor e valor de troca, conceituando este como forma aparente, de expressão, daquele. Em segundo lugar, cumpre constatar que não se pretende dizer que a norma cumpra a função de valor e o direito subjetivo a de valor de uso, mas, na verdade, que o direito só se desenvolve completamente quando suas categorias fundamentais são elaboradas e, então, torna-se evidentemente distinguível a fronteira entre direito objetivo e subjetivo44, tal como é característica fundamental da mercadoria desenvolvida desdobrar-se em valor e valor de uso.
Ainda na introdução, Pachukanis, enquanto está a argumentar sobre a importância do jurídico na troca de mercadorias, alude que este elemento não é percebido porque:
nesse caso, quando a relação econômica se realiza no mesmo momento que a jurídica, para o participante dessa relação, que é atual, na esmagadora maioria das vezes, isso se dá justamente pelo aspecto econômico; o jurídico nesse momento permanece em segundo plano [на заднем плане - no plano de trás, ao fundo] e aparece [выступает наружу - aparece para fora, exteriormente] com todas as suas definições [со всей своей определенностью - com toda a sua determinabilidade] apenas em casos especiais, excepcionais (processos, litígios jurídicos). Por outro lado, o detentor do “momento jurídico” no estágio de sua atividade em geral é membro de uma casta especial (juristas, juízes) (PACHUKANIS, 2017a, PACHUKANIS, 1988, p. 25, [PACHUKANIS, 1980b, p. 52]).
Daqui, pode-se constatar, novamente, a possível abertura deixada por Pachukanis do momento judicial como um espaço de expressão da forma jurídica: esta só se revela claramente e exteriormente aos olhos da população no momento do litígio e do processo judicial. Mais uma vez nos parece que, em Pachukanis, não foram deixados de lado indícios de prováveis veículos de expressão da forma jurídica na realidade.
Como último trecho da introdução, citamos a primeira abordagem que faz Pachukanis acerca do direito público e as suas dificuldades de enquadramento dentro do quadro conceitual clássico do direito:
Por ora contentar-nos-emos em notar que a forma do valor se torna universal do ponto de vista de uma economia mercantil desenvolvida e que ela reveste ainda, a par das formas primárias, diversas formas de expressão derivadas e artificiais [и принимает, наряду с первичными, ряд производных и мнимых выражений - e reveste/assume, em paralelo com as {formas} primárias, uma série de expressões derivadas e ilusórias45]: surgindo, por exemplo, também sob o aspecto do preço de objetos que não são produtos do trabalho (terra), ou que não têm absolutamente nada a ver com o processo de produção (por exemplo, segredos militares comprados por um espião). Contudo, isso não impede o fato de o valor, como categoria econômica, ser concebido apenas sob o ponto de vista do dispêndio de trabalho socialmente necessário à fabricação de um dado produto. De igual modo, o universalismo da forma jurídica não deve impedir-nos de investigar as relações que constituem o seu fundamento real. Esperamos poder demonstrar mais adiante que estes fundamentos não são essas relações que se denominam relações de direito público (PACHUKANIS, 1988, p. 26, [PACHUKANIS, 1980b, p. 52]).
Aqui, Pachukanis destaca as expressões artificiais do valor, que são, justamente, aqueles preços (valores de troca) de objetos que não são produtos do trabalho. Para o jurista soviético, é possível discernir, no próprio direito, essas expressões da forma jurídica que saem da regra geral, mas que, nem por isso, deixam de romper a validade da teoria em sentido genérico, da mesma forma que, podemos acrescentar, as variações no preço não expressam necessariamente a mudança da essência do valor, mas podem ser apenas manifestação da contradição entre essência e aparência46.
Passando ao capítulo Relação e norma, nosso autor faz outras considerações que reforçam a nossa impressão aqui esboçada, ao abordar os raciocínios que fazem os positivistas acerca da precedência da norma jurídica à relação:
Contudo, teoricamente, essa convicção de que o sujeito e a relação jurídica não existem fora da norma objetiva é tão errônea quanto a convicção de que o valor não existe e não é determinado a não ser pela oferta e pela procura, uma vez que, empiricamente, se manifesta apenas na flutuação de preço (PACHUKANIS, 2017a, PACHUKANIS, 1988, p. 51).
Ora, aqui, fica evidente a consideração “de que o sujeito e a relação jurídica estão para a norma assim como o valor está para a oferta e a procura”, o que indica “uma formulação de analogias que parte dos critérios de essência (relação jurídica e valor) e aparência (norma jurídica e lei da oferta e da procura)” (PAZELLO, 2014b, p. 138). Além disso, mais uma vez se dá a entender que a forma essencial do direito não se manifesta empiricamente por si mesma, mas sim através de suas instituições, normas, decisões, etc. Repete-se, também, a mesma consideração sobre a possibilidade do preço não seguir necessariamente os pressupostos do valor e, novamente, diz-se que tal acontecimento não invalida a sua reflexão: o preço, definido pela lei da oferta e da procura, é apenas um veículo de manifestação empírica do valor e, portanto, considerá-lo como o único elemento capaz de proferir uma teoria da riqueza na sociedade capitalista é considerar o valor enquanto mera “aparência sem substância” (MARX, 1996a, p. 206).
Por fim - mas sem ter esgotado todas as possíveis referências -, podemos citar o exemplo da forma como Pachukanis aborda o direito penal em seu capítulo sobre as reparações diante do cenário de violações do direito. Para ele, apenas são jurídicas, “juridizadas”47, as relações sociais aqui representadas quando estas são regidas pelo princípio da equivalência. Portanto, diz nitidamente que “o processo penal, como forma jurídica, é indissociável da figura da vítima, que exige ‘reparação’ e, consequentemente, é indissociável da forma mais geral do contrato”. Sem essa forma do contrato, “você privará o processo penal de toda a sua 'alma jurídica'”. É esse momento de equivalência que constitui o momento caracterizador da especificidade do jurídico (PACHUKANIS, 2017a, PACHUKANIS, 1988, p. 127). Consequentemente, as relações que não são equivalentes (como não o são, por exemplo, as fundadas na coerção para a supremacia da classe dominante), representam-se como fecundadas pela forma política:
Quanto mais aguda e tensa for essa luta [de classes], mais difícil se tornará exercer o domínio de classe na forma do direito. Nesse caso, o lugar do tribunal “imparcial” com suas garantias é ocupado pela organização da violência de classe direta, a qual em suas ações se orienta apenas por considerações de conveniência política (PACHUKANIS, 2017a, PACHUKANIS, 1988, p. 126).
Daqui, tiramos a conclusão de que nem todas as relações construídas em âmbitos que, a princípio, são espaços de expressão do direito revestem-se da forma jurídica, tal como não se deve esperar que a expressão monetária do valor (o preço) seja sempre um fiel espelho da forma valor e da equivalência que lhe é inerente. Por outro lado, as formas de expressão são inconcebíveis sem a existência da forma social generalizada a ela correspondente e, por isso, não podem nunca se afastar completamente do âmago constitutivo das relações repetidas incessantemente na sociedade mercantil: as relações de equivalência decorrentes da troca de mercadorias.
Com o presente trabalho, cremos ter apresentado, ao menos, uma possibilidade de interpretação e desenvolvimento da crítica pachukaniana ao direito, considerando que há, em seu texto, pistas para abordar as normas e as decisões judiciais como formas aparentes do direito, que expressam a relação de sujeitos equivalentes que trocam mercadorias - sua essência.
Além de, com isso, permitir-se uma contribuição (incompleta, é certo) para a discussão teórica acerca da realização de um escrutínio pachukaniano das leis e do momento judicial, temos, também, a possibilidade de questionar e pôr em cheque duas invectivas feitas à teoria de Pachukanis.
A primeira é a de que a teoria do soviético não seria aplicável para os ramos do direito afastados do direito privado48. Conforme já apresentamos, acreditamos que, em Pachukanis, há o reconhecimento de que o processo de juridização da realidade expande-se para todos os âmbitos da vida social e, inclusive, espreita-se para áreas como, por exemplo, o direito público, quando se ressaltar a importância do formalismo, da segurança jurídica e da equivalência, aspectos ligados essencialmente à forma jurídica.
Ou seja, a dominação de classe (expressa na existência do Estado) tenta revestir-se de direito, reproduzir suas garantias de troca de equivalências e igualdade entre as partes, mas, no final, temos construções jurídicas que soam contraditórias e artificiais, sem o mesmo nível de coerência interna que podemos encontrar no âmbito do direito privado. Destarte, nem sempre as questões de direito público tratam de indivíduos que trocam mercadorias, mas seus procedimentos são “juridizados”: cada ato judicial, cada intervenção estatal tentam revestir-se de forma jurídica quando almejam efetivar princípios fundamentais à troca de equivalências, como o da segurança jurídica e o da liberdade da vontade. Contudo, não se deve olvidar da artificialidade dessa construção, uma vez que é muito mais importante, na análise do Estado, constatar sua “força extra-judicial, extra-jurídica e extra-legal”, “que se orienta para a defesa da dominação de classe por todos os meios estranhos a qualquer forma jurídica” (PACHUKANIS, 2009, p. 148).
A segunda é a de que “a norma, como momento ativo do fenômeno jurídico, como reconhecimento da relação social, não aparece nessa construção do jurídico” (CORREAS, 1983, p. 20, tradução nossa). Na verdade, acreditamos que, em Pachukanis, a norma jurídica ocupa o seu verdadeiro lugar: é um espaço de manifestação do direito que, ocasionalmente, pode expressar tanto a forma jurídica, quanto deformações de coerção política associadas a uma correlação de forças específica. Destarte, é possível, com base em Pachukanis, estudar as normas jurídicas e, nelas, identificar quando estas expressam a equivalência (que, a longo prazo, sempre significará a derrota e exploração das classes trabalhadoras, mas, a curto prazo, pode servir de frágil proteção aos desmandos das classes possuidoras49) e quando expressam o interesse político de alguma classe (que pode ser por parte da burguesia, para conter a organização do proletariado ou aumentar o ritmo da exploração, ou pelo próprio proletariado, que subverte o formalismo jurídico com a dinâmica da ação política da classe oprimida). Aqui, o jurídico destaca-se mais como um proceder específico que busca subsumir e absorver a complexa dinâmica das relações sociais, como uma forma que conduz, direciona e conforma a atividade humana e sua subjetividade para que ela se adeque às fórmulas clássicas da troca de mercadorias, da equivalência, da segurança jurídica, entre outras.
Enfim, nossas considerações finais, enquanto meros esboços, não pretendem fazer nada além de suscitar o debate acerca do entendimento das normas e das decisões judiciais dentro do esquema teórico elaborado por Pachukanis em sua Teoria geral do direito e marxismo. Em nossa tentativa, aproximamos a forma jurídica à forma valor para, a partir daí, poder fortalecer a hipótese de inserir tanto a norma formal quanto a decisão judicial no conceito de formas aparentes do direito e que, portanto, podem, por vezes, não tomar (ou assumir, aceitar, revestirem-se de) a forma jurídica, quando fecundados por influências externas, como a luta de classes aberta.
Assim, é discernível um possível uso desses institutos na luta da classe trabalhadora, desde que não se esqueça de que tais momentos são, por excelência, espaços de expressão da forma jurídica e, consequentemente, não podem, por si mesmos, levar-nos para além da dominação do capital sobre o trabalho e do ciclo de valorização irrestrita sobre a natureza. O único espaço que pode nos garantir essa ultrapassagem do modo de produção capitalista é a auto-organização do proletariado e de todos os setores oprimidos, completamente libertada das amarras da racionalidade jurídica. Mas, para chegar a este último estágio, a classe trabalhadora terá que saber como lidar com essas pequenas expressões imediatas da forma jurídica que assolam sua luta cotidiana.
O que almejamos, justamente, foi fazer um primeiro esboço abertamente pachukaniano de como realizar essa aproximação entre a forma jurídica, em sua essencialidade burguesa, e os seus espaços de expressão e exteriorização, circunstancialmente mais manipuláveis, porque, como diria um poeta na cidade e no tempo, “a palavra só fala quando emocionada/ pela visão/ sintética, ligadora/ de fatos aparentemente sem importância/ ao fato grande/ do rosto universal dos homens se inventando” (FÉLIX, 1966, p. 46). Nessa esteira, é tarefa dos continuadores e continuadoras da empreitada crítica esboçada por Marx e Pachukanis a de conseguir manejar as categorias trabalhadas de modo a compreender a realidade em suas expressões e manifestações concretas, que sempre exigem um rearranjo teórico e epistemológico correspondente.