Resumo: Este artigo tem como objetivo discutir o papel do direito antidiscriminatório no setor privado, em particular no mercado financeiro. Para isso, usamos o caso da B3 (Bolsa de Valores brasileira) e sua proposta de regulação “Pratique ou Explique” para cumprimento de padrões ESG. O artigo é dividido em duas partes, que se baseiam nas possibilidades da estratégia de estudo de caso. Primeiramente, elaboramos hipóteses sobre a regulamentação do direito antidiscriminatório, a partir de uma análise da política proposta pela B3 e seus riscos. Em seguida, testamos a hipótese de que a “governança da diversidade” é característica do momento do neoliberalismo, resgatando, nesta parte, aspectos da teoria crítica do direito. Ao final, o texto é uma tentativa emergente de trazer o direito antidiscriminatório ao centro do debate dos estudos do direito privado, enfatizando como a governança da diversidade se coloca em um pêndulo entre democracia e avanços autoritários do neoliberalismo.
Palavras-chave: Direito Antidiscriminatório, governança da diversidade, Neoliberalismo, Constitucionalismo democrático.
Abstract: This article aims to discuss the role of anti-discrimination law in the private sector, particularly in the financial market. For this, we use the case of B3 (Brazil's Stock Exchange Market) and its proposal for a “Practice or Explain” regulation for compliance with ESG standards. The article is divided into two parts, which are based on the possibilities of the case study strategy. In this sense, we first elaborate hypotheses about the regulation of anti-discrimination law based on an analysis of the policy proposed by B3 and its risks. In the second moment, we tested the hypothesis that the “governance of diversity” is characteristic of the neoliberalism moment, using, in this part, aspects of the critical theory of law. In the end, the text is an emerging attempt to bring anti-discrimination law to the center of the debate in private law studies, emphasizing how the governance of diversity is placed on a pendulum between democracy and the authoritarian advances of neoliberalism.
Keywords: Anti-Discrimination Law, diversity governance, Neoliberalism, democratic constitutionalism.
Dossiê
Capitalismo Antidiscriminatório? Bolsa de Valores e Governança de Diversidade
Anti-Discriminatory Capitalism? Stock Market and the Governance of Diversity
Recepção: 07 Agosto 2023
Aprovação: 08 Agosto 2023
Foi na véspera do Dia da Consciência Negra, em novembro de 2020, que João Alberto Silveira Freitas, homem negro de 40 anos, foi espancado até a morte por seguranças na rede de supermercados Carrefour em uma unidade em Porto Alegre.1 A repercussão foi imediata e colocou no centro do debate o papel de empresas privadas na perpetuação da violência letal perpetuada por agentes de segurança, inclusive privada, contra pessoas negras (DURÄO e PAES, 2021). Logo após o caso, "as ações do Grupo caíram 5,3% na sessão da B3 [bolsa de valores brasileira], no pior desempenho entre os papéis que compõem o Ibovespa, uma perda de valor de mercado de R$2,16 bilhões. Na França, sede do grupo Carrefour, os papéis da companhia acumulavam queda de 6,97% (...)." (FORBES, 2020)2
Sem qualquer intenção de precificar um episódio brutal de racismo (em parte porque estas perdas podem já ter sido recuperadas pela empresa desde então), fato é que estas cifras traduzem, em números, a relação entre atos discriminatórios e agentes de mercado. Enquanto no Brasil, João Alberto Silveira Freitas despertou uma série de reações tanto na imprensa, quanto entre movimentos negros, nos EUA, o caso George Floyd3 - assassinado em Minneapolis poucos meses antes no dia 25 de maio de 2020 supostamente após usar uma nota falsa em uma loja - vem alertando sobre precarização financeira de pessoas negras no chamado capitalismo racial.4 Estes dois casos se conectam porque colocam em questão qual o dever, inclusive legal, do setor privado em geral e do setor financeiro em particular em combater o racismo. Se ainda que para o setor privado o avanço em políticas antidiscriminatórias possa apresentar um risco5, inclusive legal, nos dois países (BRUMMER; JR, 2002), tais casos se desembocaram numa série de discussões sobre como empresas podem adotar políticas que minimizem os riscos das práticas racistas que permeiam suas estruturas. Seja na perpetuação da violência, seja na alocação desigual de oportunidades, recursos e valia no mercado de trabalho, as instituições privadas também fazem parte do corpo estrutural do racismo.
Neste artigo, por direito antidiscriminatório, entende-se neste artigo aquilo que é sintetizado por Adilson Moreira em seu “Tratado de Direito Antidiscriminatório”, é o campo que tem como objetivo de operacionalizar um sistema protetivo através da regulamentação de normas destinada à grupos vulneráveis, portanto, no direito antidiscriminatório “(...) estamos diante de normas jurídicas que pretendem proteger indivíduos pertencentes a certos segmentos sociais que enfrentam uma história social de discriminação (...)” (MOREIRA, 2020, pps. 40-41). Do ponto de vista de antidiscriminação, racismo estrutural e empresas levantam questões essenciais, entre elas em que medida regras antidiscriminatórias vinculam juridicamente atores privados; se o conceito de efeito horizontal em direitos humanos (sobre atores privados) dá conta do papel cada vez mais ativo das empresas no dia a dia de grupos historicamente discriminados; qual o papel específico de atores de investimento na proteção a violações discriminatórias cometidas por terceiros; em que medida conceitos como discriminação direta e indireta dão conta da complexidade do mundo contemporâneo onde empresas possuem uma grande margem de impacto em direitos, entre outros.
Como um pilar do estágio atual do capitalismo, o setor financeiro merece atenção. No Brasil, setores de investimento passaram a refletir como criar parâmetros de investimento que sejam responsáveis e sensíveis ao tema da diversidade. No ano de 2014, por exemplo, o Banco Central do Brasil instituiu uma política de responsabilidade socioambiental (PRSA) visando estabelecer diretrizes ao setor privado para a implementação de PRSA (BCB, 2014). Desde então as políticas de ASG no país tem um espaço e direcionamento muito claro, agregar interesses dos acionistas e investidores das empresas com a sociedade civil (MOTA FILHO, 2021).
Visando, assim, acompanhar a agenda da boa governança, nos termos das responsabilidades sociais, se valendo das discussões ASG e experiências internacionais, a bolsa de valores brasileira, B3, no ano de 2022 resolve iniciar a implementação de uma política de diversidade para todas aquelas empresas com capital aberto na bolsa. Antes dessa iniciativa, no ano de 2005, a B3 lança o Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE) para acompanhar as demandas de desenvolvimento sustentável e entrar no trajeto da responsabilidade empresarial. O lançamento do ISE, de acordo com a B3 (2022, p. 13), teve como intuito a ideia de que “a sustentabilidade pode criar vantagem competitiva para as empresas e valor para seus acionistas, enquanto promove um mercado saudável e perene”. Esse índice é coletado a partir de um questionário respondido pelas próprias empresas sobre suas ações baseadas em ASG. Para divulgação dos dados há uma plataforma6 onde estão contidos informações sobre o desempenho de cada empresa listada, índices como: uma linha do tempo de 10 anos, “Mundo ISE”, que representa ludicamente um planeta sustentável, “Novo Mercado, IGC e IGCT”, onde o IGC é o Índice de Ações com Governança Corporativa Diferenciada, e IGCT o Índice de Governança Corporativa Trade (IGCT), que demonstra práticas diferenciadas de ESG das empresas e por fim “Mercado de Carbono e ICO2”, visando a fiscalização da redução de emissão de carbono ou compensação de emissões de carbono que não podem reduzidas (B3, 2022). Doutro lado, mapeando brevemente a atividade estatal, há que se ressaltar a resolução 807 da CVM8, de março de 2022, que estabelece a necessidade de informações de diversidade em formulários de referências das companhias e o Plano Bienal de Supervisão Baseada em Risco 2023-20249, também da CVM, que traz como uma das novidades a supervisão temática, dentre elas a de ESG. O que podemos concluir, é que essa atividade realizada pela bolsa de valores brasileira, nada mais é que uma continuidade do processo iniciado no fim da década de 90 de aproximação do capital privado com ações e políticas públicas. Assim, desloca pautas sensíveis que deveriam ser debatidas na esfera pública e política para um setor com interesses específicos aliados por métricas financeiras. É, então, após 2020 que temos um “boom” na criação de parâmetros de investimento ESG (parâmetros ambientais, sociais e de governança) com o foco em políticas antirracistas.
Rememorando a história, o tema de ESG não é tão novo assim, nas primeiras décadas do século XXI, as discussões sobre investimento responsável deram uma guinada com o estabelecimento dos Princípios para Investimento Responsável (PRI). No ano de 2005, o então secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Kofi Annan, convidou um grupo de investidores influentes da época, apoiados por especialistas na área de investimentos, sociedade civil e organizações intergovernamentais, para pensar em princípios para atingir um nível global de investimento sustentável. Foram pensados 6 princípios10 em que a base são as políticas de ASG (Ambiental, Social e Governança Corporativa), seguindo uma agenda ligada ao desenvolvimento sustentável.
A adoção de medidas ASG, segundo Mota Filho (2021), se relaciona largamente com uma percepção dos impactos negativos de ter o lucro como único objetivo, tanto para investidores e clientes, quanto para populações locais e o meio ambiente. Dessa forma, a agenda de desenvolvimento sustentável e as medidas que contemplam ASG, adotam uma visão cada vez mais crítica ao capitalismo contemporâneo, principalmente a externalidades negativas, estas que a ASG procura mitigar (MOTA FILHO, 2021). Este artigo busca aprofundar as análises sobre as relações entre a agenda antidiscriminatória, capitalismo e setor privado e, para tanto, recapitula o conceito de “governança da diversidade” a partir do exemplo dos parâmetros de investimento ASG, especificamente usando como estudo de caso a política para regulamentação de tais parâmetros proposta pela Bolsa de Valores brasileira (a chamada B3), em 2022.
Portanto, o artigo contribui para o debate apresentando pontos de atenção com vistas a contribuir para uma crítica sobre as propostas de políticas ASG, diversidade e inclusão, principalmente a proposta da B3. Partindo da metodologia empírica do estudo do direito, a partir da estratégia de estudo de caso (MACHADO, 2017, pp. 357 - 386), o argumento desenvolvido neste artigo é de que a proposta de B3 é um exemplo de gestão de diversidade esvaziada de sentido antidiscriminatório. Nessa linha, o presente artigo possui a seguinte estrutura: na Parte 1, este artigo apresenta o caso das bolsas de valores e diversidade, inclusive a bolsa brasileira (B3); na Parte 2, o artigo avança na mobilização dos conceitos de diversidade, governança corporativa e direito antidiscriminatório, a partir da proposta da B3, com a finalidade de se perguntar qual o papel do direito antidiscriminatório no combate a desigualdades no setor privado e seus limites intrínsecos. O artigo se encerra com uma conclusão apontando os aspectos relevantes para o direito antidiscriminatório.
Direito Antidiscriminatório no Brasil tem dedicado cada vez mais espaço para refletir sobre governança corporativa (MOREIRA, 2020). Na literatura, "governança" (LOBE, 2004, p. 364) é entendida como um conjunto de regras, práticas e valores influenciados por normas privadas e públicas, sendo portanto um meio termo entre regulação estatal e não regulação, entre poder estatal impositivo e regras de mercado. Este artigo contribui para este debate ao localizar a governança de diversidade da Bolsa de Valores brasileira não como um meio termo entre regulação e desregulação, mas como um exemplo ambíguo onde há, de um lado, a ausência de aplicação do direito antidiscriminatório ao setor privado e, de outro, uma tentativa tímida e muito aquém de ser chamada de governança.
No panorama legal, hoje no Brasil todas as instituições financeiras precisam estabelecer uma política de responsabilidade socioambiental (PRSA). A partir da resolução de nº 4.327, de 25 de abril de 2014, do Banco Central do Brasil (BCB, 2014), foram traçadas diretrizes para a implementação da PRSA nas instituições financeiras do país. De modo geral, essas diretrizes orientam as empresas a se atentarem para a realidade socioambiental que está inserida e para os impactos que suas atividades podem gerar neste contexto, para que, a partir disso, possam ser implementadas políticas adequadas para cada instituição e contexto específico. Nesse sentido, algumas medidas vêm sendo tomadas por instituições financeiras, empresas e indústrias no Brasil, em vistas de se adequar às questões ASG.
Entre essas medidas está a mais recente proposição da bolsa de valores brasileira B3, para fomentar inclusão e diversidades nas empresas que possuem capital aberto na bolsa. Desta forma, visando alinhar-se às movimentações nacionais e internacionais quanto à regulação relacionada a temas Ambientais, Sociais e de Governança Corporativa (“ASG”), a bolsa de valores brasileira B3 propôs, em agosto de 2022, o documento Anexo ao Regulamento para Listagem de Emissores e Admissão à Negociação de Valores Mobiliários (“Regulamento de Emissores” e “Anexo”)11 com critérios de diversidade e inclusão (DI), focada principalmente na inclusão de raça e gênero.
Diante disso, pretendemos analisar a política regulatória da B3 partindo do estudo de caso como uma “estratégia metodológica de construção de um objeto empírico muito bem definido e específico, potencialmente revelador de aspectos e características de uma problemática que não seriam facilmente acessados por intermédio de outras estratégias” (MACHADO, 2017, p. 361). Nossa ideia, portanto, é a partir da análise do caso da B3 demonstrar e revelar aspectos sobre o direito antidiscriminatório no Brasil e, também, localizar tal objeto na crítica do direito, analisando conceitos e chaves teóricas que se desdobram do objeto empírico. Assim, a escolha pela estratégia de caso como método empírico de investigação não pretende trazer uma análise que esgote as críticas às categorias teóricas que desapontam do estudo. O estudo faz parte do percurso do “caso à pesquisa”.12 Nesse sentido, a pesquisa disposta neste texto foi construída após um contato já com o caso. Para este texto a partir do caso, extraímos elementos para uma elaboração conceitual sobre o tema da regulamentação da diversidade corporativa no Brasil. Com isso, elaboramos hipóteses como se regulamentar a governança da diversidade em estados democráticos, baseando-se do direito antidiscriminatório e, testamos, a partir do caso, a hipótese de que o neoliberalismo é o momento da produção em que mais se desenvolve a “governança da diversidade”
Acompanhando as práticas internacionais corporativas que pretendem-se adequar aos anseios da sociedade civil acerca da promoção da diversidade, a bolsa do Brasil, B3, lança, em 2022 uma nova política de ASG, como parte da Audiência Pública nº 01/2022-DIE, Anexo ASG ao Regulamento para Listagem de Emissores e Admissão à Negociação de Valores Mobiliários, sobre diversidade e inclusão (DI). As políticas de ASG são políticas que dissertam sobre temas ambientais, sociais e governamentais, a diversidade se correlaciona com um tema tendo uma dimensão de justiça social13, garantidor de Direitos Humanos, mais do que um aspecto só social, só ambiental ou só de governança, a diversidade se coloca como um conceito integralizador e indispensável para a promoção de um desenvolvimento econômico justo14, devendo ser uma meta a ser cumprida numa leitura de uma governança global em prol de um desenvolvimento sustentável.
A figura a seguir resume a proposta da B3:
Conforme descrito na figura acima, no Brasil, a B3, para aplicação de critérios ASG, propõe quatro medidas, são elas: (1) eleição de membro titular de conselho de administração ou diretoria estatutária que seja, pelo menos, 1 mulher e 1 membro de comunidade sub representada16; (2) critérios de diversidade de gênero, orientação sexual, cor ou raça, pessoa com deficiência (PCD) e faixa etária na indicação de membros do conselho administrativo e da diretoria estatutária; (3) e (4) necessidade de “estabelecer, na política ou prática de remuneração, indicadores de desempenho ligados a temas ou metas ASG” e medidas mínimas para cumprimento das companhias em seus documentos sobre ASG.
Examinando as medidas de ASG propostas pela B3, aqui, para elaborarmos hipóteses como regulamentar a diversidade em estados democráticos, notamos os próprios riscos referentes ao alcance da (auto)governança da diversidade por atores privados. Esses riscos, no entanto, se diferem dos levantados pela escola de Friedman17 em que a responsabilidade social é lida como um risco à atividade empresarial, mas demonstram como materialmente se colocam às políticas de diversidade. Em primeiro lugar, há um risco referente à inclusão simbólica. Pela leitura das medidas, a categoria da inclusão não se realiza em nenhuma instância material, e se coloca como “simbólica”, ou seja, estimula uma prática de fazer concessões menores aos grupos sub representados sem alterar a estrutura do negócio e fomentando marketing social para atrair investidores e adequarem abstratamente a uma concepção imprecisa de “boa governança”.
Em segundo lugar, as medidas propostas pela B3 podem recair na falta de consideração de múltiplas discriminações (por mais de um marcador de diferença). Especificamente, ao permitir que sejam cumuladas duas características de diversidade em uma só pessoa (Medida 1) e não basear em critérios de proporcionalidade nas metas de composição de conselhos (Medida 2), a B3 age em perspectiva não de gerar um impacto efetivo na promoção da diversidade, mas em maquiar possíveis riscos de não promovê-la ao baixar a régua da diversidade que se espera no âmbito da liderança de empresas brasileiras. Em terceiro lugar, afinal, ao estabelecer medidas generalistas (Medidas 3 e 4) atreladas ao modelo “Pratique ou Explique”, a B3 caminha para critérios vagos, pelos quais não seria possível mensurar quais adequações ou adaptações seriam feitas e necessárias às companhias na governança da diversidade, bastando explicar desigualdades presentes sem grande custo, reputacional ou outro, para as empresas. No item a seguir, analisaremos o modelo "pratique ou explique" em outras bolsas que não a B3.
Pautada no modelo “pratique ou explique”, ou seja caso não cumpra a demanda deve-se haver uma explicação formal para tal, a proposta da B3 se inspira em exemplo de 6 (seis) bolsas de valores, são elas: Financial Conduct Authority (“FCA”), Nasdaq Stock Market (“Nasdaq”), Australian Securities Exchange (“ASX”), Hong Kong Exchanges and Clearing Market (“HKEx”); Tokyo Stock Exchange, Inc. (“TSE”); e Singapore Exchange (“SGX”). Nesse sentido, o próprio modelo “pratique ou explique” surge como alternativa por se perceber que de 6 (seis), 4 (quatro) iniciativas internacionais o escolhem. O “pratique e explique”, também, entra como alternativa por ser um modelo estimulador e não sancionador. Abaixo detalhamos as especificidades do modelo "pratique ou explique" em bolsas de valores estrangeiras. Todas informações sobre a bolsa de valores se encontram disponíveis online e foram utilizadas expressamente como base para a proposta da B3.18
Voltando à análise de risco das políticas de (auto)governança do setor privado e na elaboração de hipóteses sobre a regulamentação da diversidade em estados democráticos, há diversas ressalvas quanto ao modelo "Pratique ou Explique". A primeira delas é a qualificação e o detalhamento do “Explique” dentro da política “Pratique ou Explique”. As bolsas de valores apresentadas acima não detalham a condição de "explique". Para dar sentido concreto a este termo, as companhias poderiam, a título exemplificativo, se comprometer a responder às solicitações sobre dados e informações de diversidade; incluir na justificativa o que fez, tem feito e o que fará para atingir metas concretas; elaborar um plano de ação sobre diversidade;19 cooperar com o aperfeiçoamento constante da proposta garantindo retornos periódicos e cooperando na elaboração de relatórios de dados, entre outras medidas regulatórias que transcendam apenas "Explique". A segunda ressalva, tem a ver com a eficácia de tais programas, a política do “Pratique ou Explique” tem um valor normativo limitado, sendo este compromisso com a diversidade bem aquém à capacidade corporativa. A partir disso, retomando ao desenho de pesquisa “do caso à Pesquisa”, avançamos no estudo do caso, agora, para refletirmos hipóteses sobre a governança da diversidade neste contexto produtivo do neoliberalismo em que estamos inseridos.
Qual o sentido de gestão de diversidade20 implícito ao modelo "pratique ou explique"? Os riscos de se promover inclusão essencialmente simbólica por meio do modelo adotado pela B3 são próprios e previsíveis da natureza das normas autorregulatórias atreladas à concepção do Estado gestor, uma vez que o controle e a segurança de processos participativos na formulação, as disputas se tornam abstraídas pelo caráter conciliatório. Por conta disso, a generalização e abstração abrem espaços para reprodução das relações de dominância. Diferentemente, postular por um “direito antidiscriminatório” implica postular pelo enfrentamento das contradições que possibilitam a desigualdade, e não pela conciliação simbólica da inclusão.
Argumentamos que a proposta da B3 evidencia, enquanto estudo de caso, três riscos essenciais de se diluir a cogência do direito antidiscriminatório em políticas privatizadas como é o acesso a lide: a) o risco de equalizar direito antidiscriminatório com diversidade simbólica; b) o risco de equalizar autorregulação via governança corporativa com cumprimento de regras antidiscriminatórias; 3) risco de equalizar incorporação de linguagem internacional e padronizada a atender demandas locais históricas. Na seção abaixo, iremos tratar de cada um destes riscos.
O conceito de diversidade, em especial relacionado ao enfrentamento da sub-representação de grupos, é um termo historicamente atrelado a uma visão de mundo onde empresas ocupam posição de formuladores e aplicadores das regras que lhes dizem respeito. Alves e Galeão-Silva diferenciam entre gestão de diversidade - procedimentos internos que sob justificativa de vantagem competitiva de se promover diversidade - e ação afirmativa - pressões externas por políticas de inclusão. Num mundo onde empresas fiquem designadas para gerir diversidade, sub-representação se torna uma meta tecnocrática das empresas, e antidiscriminação passa a se resumir a itens na lista de representatividade como a da bolsa de valores brasileira (B3), deslocando "a questão de um conflito político, incontrolável, para uma variável interna, funcional e controlável" (ALVES, GALEÃO-SILVA, 2004, p.27).
A internacionalização do capital, fortemente marcada pela capacidade da concorrência e pela necessidade de ampliação da financeirização, faz com que a política seja realizada em uma rede de negociação, tão heterogênea quanto complexa, de diferentes interesses e sujeitos de direito. A partir da retórica neoliberal de ineficiência burocrática do Estado atrelada à uma financeirização ainda mais intensa da vida social e a crescente gestão de diversidade, a categoria da cidadania é ampliada, agora contamos com conceitos como cidadania corporativa21. Empresas se tornam, portanto, cidadãos no sentido de "agentes de integração social na medida em que criam programas para eliminar práticas discriminatórias ou que tem efeitos discriminatórios" (MOREIRA, A. 2020, p. 766) Essa contradição da integração social neoliberal, faz com que haja, de um lado, pela desigualdade de acesso aos recursos sociais, os “subcidadãos”, e, por outro, a elevação da empresa a uma noção de “cidadania corporativa”. Isso é reproduzido e ampliado pela necessidade constante de uma “despolitização” do Estado e logo, uma transferência da “gestão da vida”, também, para o mercado. Essencialmente, assim, (...) “sob o regime neoliberal o crescimento econômico representa o empobrecimento para grande maioria da população (...)” (HIRSCH, 2010, p. 265), o que contribui para uma fragmentação social e individualização junto à privatização e mobilização pela competição, alimentando um discurso de legitimação política que constrói ameaças permanentes à democracia, trazendo mais flexibilidade ao conceito.
A regulação da B3 é um exemplo de cidadania corporativa onde a bolsa de valores age como Estado gestor; formula e aplica suas próprias regras de diversidade. Como estas propostas, tantas outras podem ser levantadas no que se refere ao fomento da diversidade a partir da autorregulação das companhias, o mais relevante de se destacar é que a regulamentação deve vir no sentido de garantir políticas participativas e transparentes evitando uma aparelhagem da democracia. Isso porque, o sistema do neoliberalismo constitucional apoia-se em tendências de privatização da política e internacionalização dos Estados em que a tomada de decisões se abre para um sistema de negociação estatal-privado pouco visível e controlável, convertendo a democracia em um aparelho para que decisões já tomadas sejam legitimadas, ao lado disso uma desigualdade social crescente coloca em xeque os pressupostos básicos da democracia liberal: “povo” com condições de vida semelhantes e direitos iguais e um regime passível de responsabilidade e controle (HIRSCH, 2010, p. 250).
Assim, o que estamos chamamos de neoliberalismo constitucional é a construção de um arcabouço regulatório em que cada vez mais instrumentaliza-se a democracia, redefinindo as relações entre o Estado, suas instituições e setor privado. Em outras palavras, ao contrário dos que equalizaram neoliberalismo com desregulamentação, neoliberalismo constitucional pressupõe regulação para proteger ou isolar forças de mercado de interferências democráticas e/ou de consideração do interesse público. “Há preferência pela democracia desde que ela respeite a “rule of law”, que organiza e garante as relações mercantis.” (GUIMARÃES, J. 2022)22 . Aqui, como um exemplo recente, podemos trazer o Projeto de Lei 7179/1723, do Senado Federal que está suspenso e tem como exigência presença de 30% de mulheres nos conselhos de administração das empresas públicas, sociedades de economia mista e demais empresas em que a União, direta ou indiretamente, demonstrando uma falta de atuação do próprio poder estatal, ainda que no Brasil tenhamos um arcabouço antidiscriminatório robusto dispositivado no Estatuto da Igualdade Racial.
Nesse viés, postular por uma agenda antidiscriminatória também passa por postular uma regulamentação e uma estruturação jurídica que ponha freios aos avanços autoritários do neoliberalismo, garantindo não só o acesso material de recursos aos grupos vulnerabilizados, mas a possibilidade de participação no desenvolvimento econômico, para isso deve-se levar em conta tanto os efeitos da “boa governança” neoliberal nas instituições com suas tendências à autonomização autoritária e como na intensificação das desigualdades pelos acessos aos recursos e direitos. Dessa maneira, as normas de um direito antidiscriminatório devem ser normas que buscam não só o acesso aos direitos, mas o fortalecimento dos processos participativos na gestão fragmentada de normas autorregulatórias.
Ao se falar em obrigações jurídicas, regras e normas, talvez a ideia mais negligenciada é a de que tanto o direito, como o Estado não são “produtos naturais” da interação entre pessoas, mas advindos das relações sociais. Isso quer dizer que são formas sociais específicas, cujo pleno desenvolvimento se dá numa sociedade mediada pela troca de mercadorias. Assim, o direito não teria sentido “se não revestisse um conteúdo significativo para a vida econômica da comunidade envolvida, embora possa se referir e se refere aos demais aspectos da vida social” (ALVES in MELO; KASHIURA JR; AKAMINE JR (orgs),2015, p. 32). De maneira geral, o Estado “(...) não é simplesmente definido como uma ligação organizativa dada e funcional, mas como expressão de uma relação de socialização antagônica e contraditória” (HIRSCH, 2010, p. 20) de maneira que as relações de dominação política têm bases fundadas na estrutura social, é a forma política24 do capitalismo. A título de contextualização, como capitalismo, adotamos o modo de produção no qual se universaliza a troca mediada pelo dinheiro e a propriedade como privada, nesse sentido, é o modo de produção no qual é basilar a exploração econômica do trabalho para criação de domínios. Ou seja, é no capitalismo que o produto do trabalho se descola e torna-se propriedade, os meios de produção são do domínio de poucos 25.
Tanto o direito como o Estado não podem ser lidos de modo “naturalizante”, como parte inerente e orgânica das relações sociais, mas a partir da suas especificidades históricas. De maneira contrária, conceber as especificidades históricas das formas sociais, bem como a articulação dessas formas sociais para manutenção, reprodução e expansão de um modo de produção específico26, como o capitalismo, abre-nos a oportunidade de compreender as contradições do atual sistema econômico. Partindo dessa concepção é possível determinar as estruturas e as contradições estruturantes do capitalismo, compreende-se, portanto, o fato de que determinar o racismo como estrutural27 é intimamente relacionado à noção de que o Estado e o direito contribuem materialmente para a manutenção, reprodução e ampliação da garantia de uma estrutura hegemônica, na qual se vale um grupo racial dominante. No embate entre raça e classe, portanto, "racismo não deve ser tratado como uma questão lateral, que pode ser dissolvida na concepção de classes" (ALMEIDA, in MELO; KASHIURA JR; AKAMINE JR (orgs), 2015 p. 749).
Nessa abordagem, “compreender o direito e o Estado em suas relações mais íntimas com o capitalismo faz da análise do racismo uma exigência teórica primordial” (ALMEIDA in MELO; KASHIURA JR; AKAMINE JR (orgs), 2015, p. 750). Essa análise estrutural, por sua vez, não pode estar descolada das percepções da subjetividade. Diferentemente, afirmar que a sociabilidade capitalista é regida por estruturas, como o racismo28, não é o mesmo que dizer que estas estruturas constituem ou se escalam para uma “superestrutura” apartada dos indivíduos, o que ocorre é que a subjetividade e formação das identidades, no capitalismo, são constituídas a partir das estruturas e se relacionam com tais contradições estruturais. Por conta disso, a ideia da neutralidade das formas sociais, como o Estado e o Direito, é o que chamamos de aparência neutra do capitalismo. Esta aparência busca afastar, também, a concepção de que os indivíduos são afetados na constituição da sua subjetividade pelas estruturas capitalistas; entendendo-se, erroneamente, que o processo de desigualdade e a subjetivação subordinada que este impõe seriam processos "espontâneos", ou "como um mero aspecto “cultural” o fato de negros e mulheres receberem os piores salários e trabalharem mais horas mesmo que isso contrarie disposições legais." (ALMEIDA, 2020).
Nessa interpretação, a igualdade e a liberdade são a aparência necessária de um sistema cuja essência é a desigualdade, sujeitos de direito são colocados numa “mesma régua” em suas relações, de forma que quem detém os meios da produção é igualmente livre de quem tem sua força de trabalho explorada. Nessa sociedade de sujeitos livres e iguais, o Estado se coloca como o estabilizador das relações sociais, ao passo que as instituições são colocadas como indispensáveis para a integração social. O Estado é, portanto, colocado como instância afastada da sociedade. Entretanto, na sociedade capitalista há outros conflitos que se articulam nas relações de dominação e exploração, tais conflitos ainda que não se originem a partir do capitalismo, tomam uma forma específica nele, logo, as relações de dominação de classe se realizam através da opressão racial e sexual, assim, “(...) relação entre Estado e sociedade não se resume à troca e produção de mercadorias; as relações de opressão e de exploração sexuais e raciais são importantes na definição do modo de intervenção do Estado e na organização dos aspectos gerais da sociedade” (ALMEIDA, 2020). A compreensão material do que é o racismo passa, portanto, por “(...) um olhar atento sobre as circunstâncias específicas da formação social de cada Estado (...)”(ALMEIDA, 2020), ou seja, o racismo é um fator estrutural que organiza as relações políticas e econômicas sendo ao mesmo tempo aquilo que as institucionaliza.
É partindo dessas premissas que Silvio de Almeida (2020) vai demonstrar que a história do racismo se entrelaça com a história das crises estruturais do capitalismo29 e que, a partir do Estado, serão moldados novos arranjos institucionais para reorganização das relações de produção. O autor vai trazer que “historicamente, as mudanças nas relações raciais coincidem com os períodos de crise do capitalismo e de reformulação nos parâmetros de intervenção estatal (...)” (ALMEIDA, 2020), nesse sentido, a alteração dos parâmetros de intervenção estatal a fim da retomada da estabilidade econômica e política sempre resultou em formas renovadas de violência e estratégias de subjugação da população negra tanto internacionalmente como nacionalmente.
Particularmente, para o nosso objeto de estudo, interessa a crise do fordismo que culmina no sistema liberal e revela fenômenos como a “governança corporativa”.30 Neste sentido, "nem todos eram atingidos pelos benefícios do fordismo, (...) raça, o gênero e a origem étnica costumavam determinar quem tinha ou não acesso ao emprego privilegiado (...)" (HARVEY, 2008, p. 132).
Nessa acepção, ao passo que alguns tinham acessos a direitos, aos grupos sociais minoritários não só o acesso foi desigual, mas como a atuação do Estado foi em sentido repressivo. Podemos destacar que nas intersecções entre o racismo e o neoliberalismo é que o regime de acumulação pós-fordista depende cada vez mais, na verdade, da supressão da democracia (ALMEIDA, 2020). Assim, ocorreram pela "racionalidade neoliberal":
(...) diluição do direito público em benefício do direito privado, conformação da ação pública aos critérios da rentabilidade e da produtividade, depreciação simbólica da lei como ato próprio do Legislativo, fortalecimento do Executivo, valorização dos procedimentos, tendência dos poderes de polícia a isentar-se de todo controle judicial, promoção do 'cidadão-consumidor' encarregado de arbitrar entre “ofertas políticas” concorrentes. (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 373)
Quando se fala em neoliberalismo se fala em Estado gestor, a incorporação da gestão empresarial faz com que o “(...) acesso a certos bens e serviços não é mais considerado ligado a um status que abre portas para direitos, mas o resultado de uma transação entre um subsídio e um comportamento esperado ou um custo direto para o usuário (...)” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 374). O efeito disso são reformas gerenciais da ação pública que vão em desencontro à cidadania social, de modo que se reforçam desigualdades sociais na distribuição e no acesso aos recursos em matéria de saúde, emprego e educação, fazendo com o que haja o fenômeno dos “subcidadãos” (DARDOT; LAVAL, 2016), sendo estes, não coincidentemente os grupos vulnerabilizados por condições de gênero, deficiência raça e classe, entre outras. Interessante ainda é observar, pelos dados, os setores em que a população negra está empregada, enquanto mulheres e homens não negros exercem suas funções em setores como o da educação, comunicação e finanças, mulheres e homens negros estão nos serviços domésticos, comércios e construção31.
Especificamente no tema da “governança da diversidade”, é relevante o ano de 197332, a crise do fordismo e do Estado de bem-estar social, que resulta no que compreendemos hoje como neoliberalismo. Caracterizado por uma acumulação flexível, o regime neoliberal vinha como uma tentativa do capital de lidar com problemas de “rigidez”33. Nesse contexto, a “(...) a exploração ilimitada e a destruição de recursos naturais formava não apenas a base, como também o limite e o momento de crise do fordismo (...)” (HIRSCH, 2010, p. 164). Como resposta, então, nasce uma nova gestão pública baseada numa nova forma de internacionalização da produção, apoiada de maneira diferente e nas estruturas dos Estados internacionalizados (HIRSCH, 2010, p. 180), de modo que “os espaços não existem independentes um dos outros, mas constituem-se e produzem efeitos no interior de uma configuração espacial social complexa (...)”.
Nesta nova configuração, cada vez mais, mais sujeitos influenciam na regulamentação internacional, embora isso ocorra simultaneamente em oposição com as forças institucionais de cada Estado (HIRSCH, 2010, p. 186). No neoliberalismo, a ideia de “boa governança” surge no horizonte para dar centralidade à difusão da concorrência generalizada. Os Estados são vistos, então, como uma unidade produtiva (DARDOT; LAVAL, 2016); "os dirigentes dos Estados foram colocados pelas mesmas razões sob o controle da comunidade financeira internacional, de organismos de expertise e de agências de classificação de riscos." (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 276)
Nesse processo, há o aumento do “(...) espaço dos mercados de capital e financeiros globais com atores aí dominantes, frente aos espaços nacionais-estatais com os seus compromissos sociais e suas relações de força (...)” (HIRSCH, 2010. p. 186). Não à toa, as práticas internacionais globais começam com debates sobre o impacto do desenvolvimento econômico na vida social, uma vez que a crise do fordismo evidencia os problemas de escassez dos recursos, a formulação política do capital internacional é gerada num cenário cada vez mais disputado. Assim, ao mesmo tempo que cresce a compreensão sobre os espaços institucionais nacionais, essa compreensão só se dá a partir de uma forte ideia de concorrência, tanto ao nível nacional como internacional.
Partindo disso, um dos traços34 mais importantes do neoliberalismo é uma nova formação capitalista a partir de uma concorrência estruturada. Atores globais internacionalmente ligados ganham maior peso nos mercados nacionais, uma vez que a internacionalização do capital é impulsionada pela financeirização, consolidando as aplicações especulativas como determinantes para o processo econômico. As discussões acerca do desenvolvimento econômico e responsabilidade social se estabelecem num terreno de correlacionada hierarquia dos espaços.
Se por um lado, temos debates como os da Conferência de Estocolmo (1972), por outro, debates sobre responsabilidade social no âmbito empresarial são iniciados, na década de 1970, época em que o economista Milton Friedman, da Universidade de Chicago, se posiciona afirmando que a única responsabilidade social que uma empresa deve ter é com seu próprio acionista. Dessa maneira, a compreensão da contradição presente na exploração ilimitada de recursos naturais limitados faz com que haja abertura para valorização de novas esferas sociais, mercantilizando-se, agora, recursos livres, elevando-se o domínio sobre a natureza (HIRSCH, 2010). Dessa forma, porque, especificamente, quando trazemos às discussões para o debate da responsabilidade social das empresas, como a criação de parâmetros de investimentos ESG, é preciso demarcar que a elaboração conceitual sobre “responsabilidade social” só foi possível nesse momento de internacionalização da produção.
Assim, as ações da sociedade internacional impactadas por diferentes atores: bancos, fundos de investimento, agências de aplicação especulativa, bancos centrais e organizações internacionais ganham maior importância e influenciam no desenvolvimento da regulação internacional. Tal regulamentação torna-se concorrencial à medida que não visa só ser uma figura monopolista estatal-intervencionista e corporativa. A contradição é que tais regulações de concorrência são impostas pelo Estado através da desregulamentação das instituições e da privatização da política. (HIRSCH, 2010, p. 187). As práticas estatais visam agora, mais ainda, orientar as atividades dos atores privados e incorporar os códigos destes mesmos atores na elaboração de suas normas e padrões. Intensificam-se, na lógica neoliberal, a ideia da delegação da integração das atividades da vida às empresas privadas a fim de garantir dois princípios: o princípio da maximização da aptidão dos agentes públicos e o princípio da minimização do gasto público35.
Na tentativa de decretar o fim da “era da burocracia” e garantir “eficiência” às práticas estatais, a gestão neoliberal admite apenas “stakeholders” (partes interessadas) que têm interesse direto no “negócio” em que adentram. Numa leitura da prática internacional, atrelado ao que falamos sobre crise, se é verdade que os debates acerca dos problemas sociais e ambientais causados pelo capitalismo têm se acirrado pelos efeitos materiais vividos nas últimas décadas, pela mobilização de grupos sociais frente à despolitização dos Estados nacionais, também é verdade que a regulamentação internacional abre espaço para disputa de diferentes sujeitos nas normas internacionais.
Para o debate da responsabilidade social empresarial, as chamadas Conferências Internacionais sobre Meio Ambiente exercem papel estratégico importante, são os seus documentos finais a síntese das concepções da “ordem internacional” sobre as características necessárias para um “desenvolvimento sustentável” , estando, entre elas a concepção da “responsabilidade socioambiental". Ao neoliberalismo, a concepção de governança é central, uma vez que ela é capaz de orientar as práticas de diferentes sujeitos por meio de normas autorreguladoras36. Sendo estas últimas, as normas essenciais a um regime de privatização da política em que se regulamenta um Estado gestor. Ou seja, a integralização das normas autorreguladoras fragmentadas partem de princípios em comum, de uma “boa governança” capaz de lidar com anseios por uma justiça social, regulamentada por sua vez, pelos Direitos Humanos. Por isso, a concepção da responsabilidade social empresarial, tendo o desenvolvimento sustentável como princípio, varia conforme a década, tornando-se um conceito ao mesmo tempo maleável e ambíguo, a depender a ênfase que se quer dar (compromisso social, responsabilidade social ou socioambiental e sustentabilidade) (TOSINI, VENTURA, CUOCO, 2008, p. 60).
Talvez o que não seja evidenciado é que estas práticas se baseiam, também, numa política de maximização da eficiência através da delegação das ações estatais, principalmente dos custos com direitos sociais. Resgatando ao nosso debate, as Conferências Internacionais do Meio Ambiente, estas, em verdade, se colocaram como grandes arenas de discussão de diferentes grupos sociais cujas demandas são traduzidas sob a forma de documentos internacionais conciliatórios de interesses contraditórios. Tudo isso tem efeitos diversos nas diferentes regiões do mundo. Nacionalmente, por exemplo, o início do debate no Brasil sobre os impactos sociais e ambientais do desenvolvimento econômico, é marcado pela década de 80 e tinha uma conotação ligada à filantropia, e uma crítica ao Estado por não suprir, a partir de políticas públicas, uma demanda de modificações de um cenário político e social afetado pelo desenvolvimento econômico. Um pouco mais tarde, a responsabilidade corporativa é traduzida na garantia constitucional da função social da propriedade privada. A função social, por sua vez, é orientada pelo conceito, da governança internacional, de desenvolvimento sustentável.
A retórica neoliberal, como resposta às mazelas sociais, parte da ideia da ineficiência burocrática do Estado e de uma necessidade de um sistema de negociações com diferentes atores, orientado por um Estado mais “estrategista” do que prestador de serviços sociais, que outorga ao setor privado a capacidade de produzir normas de autorregulação no lugar da lei, esperando que estes atores nacionais ou transnacionais ajam na coordenação de atividades internacionais, como o acordo de Basileia II, de 2004, que deixa a cargo das instituições financeiras internacionais seus próprios critérios de autocontrole (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 278).
Nesse sentido, globalmente, o neoliberalismo, intensificou os índices de desigualdade social e ao mesmo tempo que “(...) permitiu, por intermédio da securitização de créditos e produtos derivados, o desenvolvimento de uma prática sistemática de transferência externa dos riscos assumidos pelos bancos (...)” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 280). Ou seja, na tentativa de estabilizar o mercado financeiro internacional pela dispersão dos riscos de créditos foi instaurado um mecanismo de desestabilização sistêmica; "um “jogo de máscaras” que possibilita que se jogue sobre outras instâncias a responsabilidade pelo desmantelamento do Estado social e educador mediante a instauração de regras de concorrência em todos os domínios da existência." (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 282).
Trazendo para cá, Maria Célia Paoli (2002) reitera que esse discurso, utilizado por organizações privadas contra a ineficiência burocrática do Estado, foi uma forma do empresariado brasileiro se juntar ao “terceiro setor” e se tornar um ator, junto a outras organizações não governamentais, redefinidor de políticas públicas. A tomada dos discursos das elites brasileiras acerca das reduções das desigualdades sociais gerou um fenômeno denominado de privatização do público (OLIVEIRA, 1999) onde esses grupos privados usurpam funções reguladoras do Estado, tomam espaço e ocupam a sua maneira a esfera anteriormente destinada a políticas estatais (PAOLI, 2002). Essa ação desterritorializa os direitos universais, instaurando uma “cultura do altruísmo” e negando espaço a políticas realmente transformadoras e significativas para a redução das desigualdades sociais (PAOLI, 2002).
Neste contexto, o empresariado brasileiro, muitas vezes se inspirando em políticas e exemplos de políticas do empresariado de outros países, realizou ações no sentido de ser esse ator e passou a ser peça chave na formulação de políticas de redução das desigualdades, seguindo seus próprios interesses de influenciar neste campo anteriormente estatal. Dessa forma, surgiram iniciativas de aproximação com ONGs e um investimento em “marketing social” visando uma melhor percepção pública das ações empresariais nas décadas de 90 aos anos 2000 (PAOLI, 2002). Essa postura empresarial de se aproximar de pautas sociais e coletivas que ocorreu no final do século XX se estendeu até sua chegada em órgãos internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU). A partir dos anos 2010, as ações empresariais que visavam um impacto socioambiental de governança positivo se consolidam devido a uma nova regulamentação dessas políticas nacional e internacionalmente. Interessante recuperar que o PRI, seis princípios para investimento responsável, impactaram diretamente na construção de políticas para o setor privado transnacionalmente, não diferente seria no Brasil, como trouxemos no início da nossa apresentação. .
Partindo do exposto acima, conclui-se que algumas premissas fundamentais são necessárias às análises sobre a governança da diversidade, em primeiro lugar, o Estado baseado na gestão de uma governança é fenômeno próprio do neoliberalismo em que este sistema se apoia “(...) em fortes tendências para a internacionalização do Estado e para privatização da política (...)” (HIRSCH, 2010, p. 249). O Estado aparece como uma agência prestadora de serviços, estimulando uma gestão autorreguladora dos indivíduos e do setor privado, onde este último assume centralidade no controle da ação pública. No neoliberalismo, a divisão dos recursos privilegia os grupos dominantes e intensifica as desigualdades dos grupos sociais mais vulneráveis. Entretanto, essa divisão não é uma novidade, como vimos, a história do racismo moderno se relaciona diretamente e não por mera coincidência com as crises do capital, ainda que se fale em um Estado de bem-estar social, este Estado surge como um integrador social que privilegia certos grupos em detrimento de outros isso se dá de acordo com a classe, raça e gênero, de maneira a se preservar a dominância do poder.
A partir do estudo empírico do direito pela estratégia de análise de caso, esse texto teve como premissa levantar as discussões acerca da existência ou não de um capitalismo antidiscriminatório a partir do debate da “governança da diversidade” e “direito antidiscriminatório”. Realizamos nosso desenho de pesquisa pelo percurso do “caso à pesquisa” e, dividimos nossa investigação e exposição em dois momentos: no primeiro momento elaboramos hipóteses sobre a regulamentação da “governança da diversidade” no direito brasileiro, pela agenda do direito antidiscriminatório e, ainda pelo estudo do caso, testamos a hipótese de que a “governança da diversidade” é uma elaboração conceitual característica do neoliberalismo. Entretanto, para a discussão partimos de algumas premissas, a primeira delas é o caráter estrutural do racismo ao capitalismo e com esta estrutura, ao longo da história e a depender das lutas sociais e das relações de forças ganha diferentes conteúdos. Nesse sentido, nossa primeira parte é dedicada à compreensão de que as formas sociais capitalistas jamais se descolaram do racismo (ALMEIDA, 2015, p. 766) e isso pode ser evidenciado ao se recapitular os seus momentos de crise.
A partir desse exercício teórico, esmiuçamos os conceitos de “governança”, bem como “responsabilidade socioambiental” e, por fim, “governança da diversidade”, percebemos que não à toa eles surgem no horizonte, mas devido ao momento da produção em que a financeirização da vida se torna mais bem acabada, embaralhando-se as tradicionais funções dos Estados e do mercado. O neoliberalismo revela, então, que a separação entre Estado e mercado é tão mais aparente quanto frágil, e estabelece enquanto resposta contra esta rigidez. O Estado transforma-se, numa unidade produtiva, a política torna-se cada vez mais privatizada e atores do mercados se revelam como partes estratégicas e interessadas (stakeholders) na manutenção dos custos com direitos sociais. Surgem, nesse movimento complexo, as noções de “boa governança”, baseadas numa responsabilidade horizontal de hierarquias correlacionadas. No entanto, nesse sistema de negociação neoliberal, desigualdades são acentuadas e as bases fundamentais das instituições e dos processos democráticos são colocadas em questão por práticas pouco controláveis e pouco participativas, a objetividade econômica, numa retórica de “ineficiência burocrática” toma destaque.
Nesse contexto surgem os debates em prol de um sistema jurídico “antidiscriminatório” e que, de maneira geral, estabelece que mecanismos institucionais e políticas públicas destinadas à proteção de minorias e grupos vulneráveis devem ser elementos do campo jurídico (MOREIRA, 2020). Com o objetivo de dar corpo a este debate, este texto elabora uma crítica às propostas de regulamentação de “governança da diversidade” a partir do exemplo dos parâmetros de investimentos ASG. Tal crítica pretende chamar atenção aos riscos de tal regulamentação e propõe algumas alternativas na sua construção, a fim de frear práticas que fundamentam as tendências do autonomismo antidemocrático do neoliberalismo. Sendo assim, ainda que materialmente e teoricamente seja comprovado que as formas sociais capitalistas são estruturalmente racistas, reivindicamos a construção de um sistema protetivo das premissas democráticas, partindo do pressuposto de que princípios democráticos devem regular o setor público e privado. Nesse sentido, nosso texto tenta se inserir nos estudos sobre neoliberalismo e postular por um constitucionalismo democrático.
Essa pretensão não inibe a ideia do limite das formas sociais, mas pretende dar arcabouço teórico crítico suficiente para que não se abra mão da modificação das estruturas das relações de dominação e opressão37. Assim, dado a multiplicidade de atores, grupos, iniciativas, associações em condições de realizar mobilização social, a postulação por uma agenda antidiscriminatória, passa pelo fim da reprodução da fragmentação política típica do neoliberalismo. Isso quer dizer que a internacionalização deve ser baseada numa cooperação internacional no plano social disposta a se opor à mobilização social, por isso a disputa por modificações nas estruturas econômicas de investimento, nas estruturas de política internacional. Estas disputas podem se colocar em qualquer campo, aqui, evidenciamos investimentos e seus parâmetros, disputando pontos de atenção e alteração para o caso brasileiro, mas sem se esquecer de que o neoliberalismo deve ser confrontado por uma globalização política impulsionada por forças populares tanto a nível nacional, como internacional (HIRSCH, 2010, p. 307).