Servicios
Descargas
Buscar
Idiomas
P. Completa
No convés da justiça: Por uma ecologização decolonial do direito
Isabella Madruga da Cunha
Isabella Madruga da Cunha
No convés da justiça: Por uma ecologização decolonial do direito
Revista Direito e Práxis, vol. 15, no. 3, e84056, 2024
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
resúmenes
secciones
referencias
imágenes
Carátula del artículo

Resenhas

No convés da justiça: Por uma ecologização decolonial do direito

Isabella Madruga da Cunha
Universidade Federal do Paraná, Brasil
Revista Direito e Práxis, vol. 15, no. 3, e84056, 2024
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
FERDINAND Malcom. Uma Ecologia Decolonial: Pensar a partir do mundo caribenho. 2022. São Paulo. Ubu Editora

Received: 02 May 2024

Accepted: 07 June 2024

1. Introdução

A obra Uma Ecologia Decolonial: Pensar a partir do mundo caribenho, de Malcom Ferdinand aproxima de forma definitiva as lutas antirracistas/decoloniais/sociais e ambientais/ecológicas. A premissa inicial do autor, apresentada já no prólogo e sob a qual se constrói toda sua argumentação, é a constatação de uma dupla fratura colonial e ambiental da modernidade a qual cingiu a história colonial e a história ambiental do mundo.

Identificada essa problemática central, o autor traz a sua segunda proposição: fazer do mundo caribenho o palco de pensamento da ecologia, este ponto geográfico é o lugar de origem de Ferdinand, nascido na Martinica, mas também é, segundo ele, o olho do ciclone da modernidade - o local onde velho e novo mundo se encontraram pela primeira vez. Lugar que foi constituído como um dos porões da modernidade, em analogia construída a partir dos navios negreiros.

A experiência traumática, aterradora (e, recalcada pela modernidade pós-colonial) dos navios negreiros serve de linha a costurar todas as reflexões produzidas pelo autor, sendo que cada capítulo conta com um epílogo - a estória de um dos navios negreiros que atravessaram ou submergiram no Atlântico ou no mar do Caribe, ao enfrentar alguma tempestade ou ciclone.

O ciclone e a tempestade são as metáforas utilizadas, a partir de um resgate de Shakespeare e Aimé Césaire, para referir a crise ecológica e climática, aceitando o convite deste último para alcançar o centro da tempestade, o que é, para o autor, enfrentar as causas das acelerações destrutivas do mundo. O que o “ambientalismo desenraizado” (Acselrad, 2010), ou nos termos de Ferdinand, o ambientalismo da Arca de Noé, não faz.

O objetivo desta resenha, para além de apresentar a obra, é produzir ressonâncias entre a ecologia decolonial, proposta por Malcom Ferdinand, e o campo do direito, particularmente o direito ambiental. Isto, a partir da minha constatação, de que o movimento da ecologização do direito bebe numa construção epistêmica erigida sobre a dupla fratura ambiental e colonial identificada pelo autor. Assim, essa ecologização do direito não é capaz de produzir dispositivos hábeis a lidar com os conflitos socioambientais e a garantir direitos ambientais e territoriais tanto para os coletivos de humanos quanto de não-humanos.

Paralelamente, o direito é estabelecido por Ferdinand como uma das arenas de disputa na construção de um convés de justiça - isto é, um navio-mundo erigido sob uma ecologia decolonial que destitua a constituição colonial do Antropoceno, para abrir espaço a uma experiência radicalmente nova. Esse reconhecimento dado ao direito, embora restrito a referência de algumas ações judiciais propostas em âmbito dos tribunais internacionais com objetivo de promover políticas reparatórias e justiça climática, estratégia que no Brasil chamou-se de positivismo de combate, abre brechas para refletirmos sobre o papel do pensamento jurídico contestatório na construção de futuros - quando o cenário de emergência climática parece negá-los.

Para além desta seção introdutória, esta resenha se divide em outras duas seções. A segunda se destina a oferecer aos leitores e leitoras uma visão panorâmica da obra resenhada, sua estruturação e os principais conceitos propostos pelo autor. Em seguida, na terceira seção, explora-se como tem se constituído o movimento da ecologização do direito, especificamente no contexto brasileiro, para então problematizar seus fundamentos teóricos a partir dos conceitos propostos por Ferdinand em articulação com alguns outros autores da ecologia política latino-americana, com perspectiva decolonial.

2. Visão panorâmica da obra

A versão brasileira de Uma Ecologia Decolonial... conta com primorosa editoração e belíssima arte e diagramação da editora Ubu, que combinam com a escrita densa e literária de Malcom Ferdinand. Esse estilo do autor me surpreendeu diante da sua trajetória acadêmica, já que sua formação básica é na engenharia ambiental, contudo, derivada para o doutorado em filosofia e ciência política na Universidade de Paris Diderot.

O prefácio é da filósofa Angela Davis, que afirma que esta é uma obra que ela gostaria de ter lido décadas atrás, pois que teria lhe dado uma outra compreensão sobre como o racismo, especificamente através do colonialismo e da escravidão, foram parte fundamental na construção de um mundo baseado na destruição ambiental.

O livro se inicia com um prólogo e se encerra com um epílogo, está dividido em quatro partes, distribuídas em capítulos, dezessete no total. No prólogo, o autor já apresenta seu argumento fundamental, a constatação de uma dupla fratura ambiental e colonial, isto é, da real dificuldade de pensar estas questões em conjunto e de manter uma dupla crítica ao fazê-lo. Sua ecologia decolonial se propõe a produzir esta costura e pensar a crise ecológica e climática a partir do porão da modernidade - o navio negreiro. Esta ecologia forja-se no porão para emancipar-se até o convés, um convés de justiça, a construir o horizonte em comum de um navio-mundo.

O pensamento de Ferdinand é situado e espacial, o que se evidencia pela forma como ele organiza suas reflexões através de conceitos-chave como o navio negreiro e seu porão da modernidade, a tempestade e o ciclone colonial, e por fim, o Caribe, como mar de pensamento fazendo com que sua ecologia decolonial seja, a meu ver, uma proposição des-re-territorial (Haesbaert, 2007), resultante de um deslocamento epistêmico - pensar a ecologia desde o sul do mundo, o que também encontra eco na tradição crítica da ecologia política latino-americana (Alimonda, 2017).

A Parte I, “a tempestade moderna: violências ambientais e rupturas coloniais” introduz as noções de habitar colonial; Plantionceno; e Negroceno. O convite do autor é para que se pense a dupla fratura a partir do gesto principal da colonização: o ato de habitar. O habitar colonial consiste na concepção singular da existência dos europeus sobre a terra, suas relações com outros humanos e com não-humanos. É a geografia da colonização, a imposição territorial de um modo de vida, instituído através da propriedade privada. A plantation é sua forma primordial de ocupação territorial, a escravidão negra é sua condição. Para substituir a ideia de impactos ambientais do latifúndio, o autor cunha a expressão “matricídios da plantation”, resgatando o genocídio e apagamento epistêmico da Terra-mãe dos povos originários.

Nesse contexto, o autor retoma o termo Plantantionceno, conforme teorizado por Anna Tsing e Donna Haraway. Aqui a plantation não se limita às fronteiras do latifúndio, mas designa as injustiças espaciais globais, decorrentes das relações de poder e dependência. No nível material e econômico a ideia de economia das plantations, a meu ver, se aproxima muito da crítica da ecologia latino-americana ao extrativismo (Araóz, 2015).

Em seguida, o autor aprofunda a análise sobre a escravização de africanos e o tráfico transatlântico, a política do porão, a negação ao reconhecimento da condição de humanidade dos Pretos1. Disso Ferdinand conclui que a escravidão colonial também designa uma era geológica, uma forma de habitar, consumir recursos e se relacionar com outros humanos e não-humanos, que ele chama Negroceno. Trata-se da constatação de que a economia de produção da escravidão, destacando a particular espoliação dos corpos das mulheres escravizadas, desempenhou papel fundamental nas mudanças ecológicas e paisagísticas do planeta. O termo, porém, atravessa o período colonial para designar todos os que estiveram e estão na condição de fora-do-mundo, os excluídos, cuja subjetividade é negada e imposta por um marcador social. Para o autor, porém, essa Era também diz respeito às resistências forjadas nos porões da modernidade, os movimentos e clamores por justiça.

A Parte II, “a arca de Noé: quando o ambientalismo recusa o mundo” apresenta a crítica radical a um ambientalismo branco que desconsidera a colonialidade como traço fundamental da modernidade e se baseia numa episteme salvacionista seletiva, daí a figura da Arca de Noé. Nos capítulos desta seção, o autor compartilha estudos de caso de países caribenhos (Haiti, Porto Rico, Martinica e Guadalupe) que ilustram uma série de políticas ambientais que desconsideram as necessidades e os direitos territoriais dos povos e comunidades, em nome de proteger uma natureza pela ótica dos de fora. Tais situações, ressalvadas as particularidades do contexto caribenho, encontram muitos paralelos no Brasil, como a criação de unidades de conservação de uso restrito sobre o território de comunidades campesinas que ficam impedidas de acessar e cultivar a terra e a contaminação autorizada por agrotóxicos do território de comunidades tradicionais.

Na Parte III, “o navio negreiro: sair do porão da modernidade em busca do mundo” o autor parte de uma reflexão sobre a condição dos desembarcados do porão do navio negreiro, uma sobrevivência sem corpo, que lhes é alienado. A perda da terra e do corpo aqui, são acontecimentos engendrados um no outro. Olhando a partir desta condição, Ferdinand passa a apresentar as formas de resistência, especialmente o aquilombamento, dando ênfase à dimensão ecologista das fugas dos Pretos escravizados para as florestas, já que propõem uma ruptura com o habitar colonial. Tal proposição encontra eco nos estudos sobre os quilombolas e povos e comunidades tradicionais no Brasil, tanto naqueles que enfatizam a diversidade socioterritorial brasileira (Little, 2002), quanto nos que evidenciam uma relação diversa destes povos com o meio, mais harmônica (Santilli, 2005).

Examinadas as formas de resistência e denúncia erigidas desde o porão, mas que capturam as formas de ser e estar também de quem está no convés, o autor fecha a Parte III com a proposição da ecologia decolonial como o exercício de sair do porão do navio negreiro. Ferdinand posiciona a ecologia decolonial como uma ecologia de luta e a apresenta como uma renovação da crítica das colonizações históricas e atuais, propondo uma transformação das relações coloniais entre humanos, com as paisagens e com não-humanos e suas formas escravistas.

O autor localiza seu pensamento como um prolongamento ecológico das críticas à fratura colonial, que ele divide em quatro polos: i) o anticolonialismo pós segunda Guerra, pela abordagem soberanista e estatutária da descolonização; ii) o pensamento pós-colonial/estudos subalternos, pela crítica cultural a representação eurocêntrica dos colonizados; iii) o pensamento decolonial latino-americano como crítica das categorias de pensamento impostas pela colonização, com a denúncia da colonialidade do poder, do ser e do saber; iv) o feminismo decolonial e o pensamento ecofeminista crítico. A ecologia decolonial é posta pelo autor como um quinto polo, que localiza o questionamento do habitar colonial em seu centro de ação e traz a fratura colonial como elemento fundamental e nuclear da crise ecológica.

Por fim, a Parte IV, “um navio-mundo: fazer-mundo para além da dupla fratura” descreve uma perspectiva de horizonte, caminho ou alternativa, conceituada por Malcom Ferdinand através da ideia da política do encontro. Trata-se de uma contraposição ao ambientalismo tradicional, da arca de Noé, que nega ou busca apontar soluções para além da política. A ecologia decolonial, por outro lado, “a partir da figura do navio negreiro ressalta o caráter imediato e inevitável da experiência social e política do mundo” (p. 214). A política do encontro, nesse sentido, propõe a subversão das hierarquias para o estabelecimento de relações com os outros tais quais companheiros de bordo, a reivindicação da igualdade e a realização de um convés de justiça.

Nesse ínterim, o autor faz um apelo para que tomemos corpo no mundo, ou seja, para que realizemos a dupla tarefa de compreender simultaneamente como os corpos estão ancorados em relações materiais, biológicas, ambientais, mas também, socioeconômicas e políticas. Trata-se de romper a forma como a fratura ambiental e colonial inscreveu-se nos corpos. Embora o autor não faça essa referência, vejo ressonâncias entre esta proposição e a ideia de corpo-território, conceito proposto desde os feminismos populares e/ou comunitários da América Latina (Hernández & Jimenez, 2023). Ainda que a noção de território seja carregada de uma perspectiva do valor de uso, também pressupõe o reconhecimento do valor intrínseco da natureza, fundamentada em tradições espirituais e culturais dos povos originários e tradicionais.

Finalmente, o último capítulo da Parte IV trata precisamente da construção de um convés de justiça, e assim, do papel do direito neste tear. O autor estabelece que a política do encontro requer uma cosmopolítica da relação, ou seja, a apreensão da natureza como experiência coletiva e inclusive, conflituosa. Ao refletir sobre as alianças interespécies e os paralelos entre a causa negra e a causa animal, Ferdinand coloca no centro da sua ecologia decolonial a preocupação em compor um horizonte de justiça a partir da pluralidade constitutiva e as múltiplas ontologias, humanas e não-humanas. Ele sustenta que o reconhecimento da qualidade jurídica dos ecossistemas é uma das formas de se avançar nessa construção. Nesse viés, ele localiza a litigância climática, a mobilização de instrumentos jurídicos e a construção de novas categorias jurídicas, como ecocídio e justiça intergeracional, como ferramentas bastante relevantes.

Neste ponto, o autor faz a ressalva que para tal é necessário retirar a perspectiva intergeracional do impasse da dupla fratura ambiental e colonial, diferenciando uma abordagem liberal da justiça climática, limitada ao reconhecimento de um direito discriminado de poluir, daquela originária dos movimentos que denunciaram o racismo ambiental e constituíram a demanda por justiça ambiental - a qual está intimamente conectada às lutas decoloniais do mundo, segundo o autor. Seguindo esta linha de raciocínio, ele sustenta que não basta pensar a justiça intergeracional sob a perspectiva da poluição ou destruição dos ecossistemas no passado, mas necessariamente incluir nessa agenda as demandas por reparação pela escravidão e pelo tráfico transatlântico de pessoas.

Esse argumento é reforçado no epílogo, no qual o autor afirma que a crise ecológica é uma crise de justiça, denunciado o fato de que o ambientalismo branco e eurocentrado em sua perspectiva apolítica trata do colapso climático sem reconhecer suas origens e intrínseca relação com as escravidões e os genocídios coloniais. Noutro giro, Ferdinand manifesta que o enfrentamento à crise ecológico-climática de hoje é um prolongamento das lutas dos movimentos antirracistas, feministas e decoloniais. O que reafirma a centralidade de uma ecologia decolonial que desfaça a constituição colonial do Antropoceno e proponha um horizonte não mais fundado em um universalismo vertical que torna a experiência do homem branco europeu a medida de referência para tudo e todos/as/es.

3. A dupla fratura, a Arca de Noé e a ecologização do direito

A fratura ambiental desdobra-se da já conhecida crítica da cisão entre natureza e cultura produzida pelo pensamento e o ethos moderno. Mas na obra de Malcom Ferdinand, adquire bidimensionalidade, uma escala de valores vertical que coloca o “Homem” acima da natureza e uma escala horizontal que opera por valoração e homogeneização, escondendo as hierarquias internas de ambas as partes. Por um lado, as ideias de “planeta” e “meio ambiente” dos slogans ambientalistas dizem de um tipo de natureza que é entendida como válida de ser protegida: intocada, idílica, os grandes animais da fauna silvestre, as florestas sem gente, cordilheiras; excluindo-se os animais criados para abate, o contexto urbano, e as zonas de saque, usando o conceito de Araóz para referir às áreas foco do extrativismo, objeto colonial de exploração infinita (Araóz, 2015). Por outro, sabe-se que este “Homem” universal, se refere a um em específico: branco, cristão, burguês, com acesso à educação formal, heterossexual; em outras palavras, esse universalismo foi construído sobre ontologias racistas e patriarcais.

Por sua vez, a fratura colonial é territorial, se expressa na divisão dos espaços geográficos da Terra entre colonizadores europeus e colonizados não europeus, ou seja, Brancos e não Brancos. De forma isolada, ambas as fraturas já foram bastante descritas e criticadas, seja por tradições de pensamento, seja pelos movimentos sociais de luta por igualdade e dignidade. Entretanto, para Ferdinand, a problemática central do nosso tempo é pensar e agir de forma simultânea sobre esta dupla fratura erigida pela modernidade ocidental. Nesta linha de raciocínio é que o autor refere ao papel do direito como arena de disputa de sentidos, em particular, dos sistemas de justiça como espaços mobilizados a reconhecer a qualidade jurídica dos ecossistemas e o dever de reparação dos estados coloniais pelos crimes lesa humanidade.

A despeito das certeiras ressalvas apresentadas pelo autor, sobre a necessidade de se rever a compreensão limitada do princípio da solidariedade intergeracional, falta a compreensão do direito não apenas como sistema de justiça, mas também como área de produção de conhecimento. Não é incomum que autores de outros campos abandonem essa dimensão do direito, muito em face do próprio enclausuramento normativo do campo jurídico. Assim, a proposta desta resenha é também fomentar uma abertura epistêmica do direito, confrontando-o com a ecologia decolonial de Ferdinand.

Parte-se de um pressuposto teórico que lê o direito desde sua ancoragem espacial, na materialidade das relações sociais, econômicas, culturais, de afetos e conflitos (Franzoni, 2019). O direito produz espacialidades e constantemente des-re-territorializa comunidades inteiras de humanos, não humanos e suas inter-relações. Tal perspectiva denuncia a noção racionalista liberal do direito que o povoou de conceitos abstratos, gerais e universais, de maneira a mascarar e ocultar a materialidade do fenômeno jurídico - despolitizá-lo. A despolitização do direito encontra paralelos na despolitização do ambientalismo denunciada por Malcom Ferdinand, seu ponto de convergência, porém, é exatamente no direito ambiental.

O pensamento jurídico ambiental brasileiro toma como fundamento do direito ambiental os movimentos ambientalistas e a ecologia da Arca de Noé. Basta abrir os manuais de direito ambiental para verificar que são conceitos como os de “limites planetários”, “sustentabilidade forte”, “vida sustentável”, “pegada ecológica”, ou seja, altamente universalizantes e homogeneizantes, que são os mobilizados para fundamentar a necessidade de se regular as relações jurídicas entre ser humano e natureza e mesmo garantir um direito fundamental ao “meio ambiente ecologicamente equilibrado”, nos termos da Constituição Brasileira (Brasil, 1988). Há silêncio sobre o histórico colonial de degradação humano-ambiental, sobre a posição ocupada pelo Brasil como país dependente e objeto de expropriação da voragem extrativista. Fratura.

Isso me parece particularmente problemático na proposição da “ecologização do direito ambiental”, a evolução de um ordenamento jurídico baseado em noções antropocêntricas e utilitaristas, para um Estado de Direito Ecológico, o que se traduz em “uma completa ecologização do Direito por meio da incorporação da sustentabilidade” (Leite & Ayala, 2020, p. 35), o que significa permanecer dentro dos limites dos sistemas ecológicos, preservando sua substância e integralidade. Embora os autores alinhados com esta perspectiva estabeleçam que tal deve considerar questões de justiça, aludindo aos movimentos por justiça socioambiental, parecem não perceber que os seus pressupostos epistêmicos estão inseridos no paradigma do ambientalismo desenraizado, apolítico e, como nos ensina Ferdinand, colonial.

A natureza segue sendo tomada como externalidade homogênea e apropriável, porém, desde que mediada por parâmetros de sustentabilidade que desconsideram seu caráter plural, múltiplo, espacial e situado, mantendo simultaneamente a fratura ambiental e colonial. Isso fica evidenciado ao se analisar a obra de um jurista professor da Universidade Auckland que é grande referência na defesa da ecologização do direito, Klaus Bosselmann.

Bosselmann toma como pressuposto para pensar os desafios do direito ambiental, a teoria de Garret Hardin, a “Tragédia dos Comuns” (Bosselmann, 2010). A proposição de Hardin já foi amplamente contraposta e criticada pelos estudiosos dos comuns e não há espaço aqui para fazê-la a fundo2. Porém, é de se destacar que sua perspectiva está completamente inserida na noção moderno-colonial de cisão entre natureza e cultura, tal qual a de Bosselmann, que propõe a sustentabilidade como um princípio do direito ambiental, voltado a concretizar um desenvolvimento sustentável forte (Bosselmann, 2006). As questões socioeconômicas, políticas, raciais e de gênero, a divisão espacial do capitalismo e o papel dos povos originários, quilombolas, campesinos e tradicionais na manutenção e aprofundamento da biodiversidade, nada disso é considerado, problematizado, ponderado. Fratura. Dupla fratura.

A colonialidade da noção de desenvolvimento já foi amplamente demonstrada pela crítica advinda tanto da economia política quanto das ciências sociais na América Latina. Em síntese, ademais da linearidade e escopo de medição do crescimento econômico dos indicadores que medem os níveis de desenvolvimento (PIB), o parâmetro de vida boa é definido a partir de valores USA-eurocentrados (IDH, etc) (Gudynas, 2011). Assim, desenvolver-se é adquirir o estilo de vida ocidental.

A vinculação da realização do direito fundamental a um meio ambiente sadio ao imperativo do desenvolvimento, portanto, esvazia o conteúdo contestatório desse direito, com vistas a eliminar a tensão entre conservação e proteção jurídica da natureza e o crescimento econômico nos moldes do sistema capitalista. É o mesmo que ocorre com o direito à cidade, que fica vinculado ao paradigma do desenvolvimento urbano (Coelho e Cunha, 2020).

Vale dizer que no caso brasileiro é o próprio texto constitucional que tece essa vinculação, já no preâmbulo, ao instituir um Estado Democrático destinado a assegurar, ademais do exercício dos direitos, o desenvolvimento (Brasil, 1988). Contudo, a ecologização do direito enquanto proposta teórica produzida desde o pensamento jurídico contemporâneo, através de uma interpretação intertextual do ordenamento nacional e internacional, em contexto de emergência climática, não pode ficar refém da norma.

Em outras palavras, é preciso que a teoria jurídica empreenda a crítica radical às noções de desenvolvimento e sustentabilidade, para desnudá-las de seu abstracionismo e universalidade e compreendê-las desde seu lócus de produção. Para isso, a obra de Ferdinand oferece um guia fundamental do que uma ecologização decolonial do pensamento jurídico ambiental necessita desconstruir e adereçar para ser capaz de compreender os desafios de efetivação dos direitos socioambientais.

Supplementary material
Referências bibliográficas
ACSELRAD, Henri. Ambientalização das lutas sociais - o caso do movimento por justiça ambiental. Estudos avançados, n. 24, v. 68, 2010.
ALIMONDA, Hector. En Clave de Sur: La Ecología Política latinoamericana y El Pensamiento Crítico. In: Ecología política latinoamericana: pensamiento crítico, diferencia latinoamericana y rearticulación epistémica. Héctor Alimonda; Catalina Toro Pérez; Facundo Martín (Orgs.). Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO; México: Universidad Autónoma Metropolitana; Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Ciccus, 2017.
ARAÓZ, Horacio Machado. Ecología política de los regímenes extractivistas: de reconfiguraciones imperiales y re-ex-sistencias decoloniales en nuestra América. Bajo el Volcán [en linea], n. 1, v.23, 2015.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 5 de outubro de 1988, com as alterações determinadas até a EMC 132, de 20/12/2023. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/constituicao1988.
BOSSELMANN, Klaus. Strong and weak sustainable development: making differences in the design of law. SAJELP, v. 13, 2006, p. 40-49.
BOSSELMANN, Klaus. Losing the Forest for the Trees: Environmental Reductionism in the Law. Sustainability, v. 2, n. 8, 2010, p. 2424-2448.
COELHO, Luana Xavier Pinto. CUNHA, Isabella Madruga da. Direito à cidade contra o desenvolvimento. Revista Direito e Práxis, v.11, n.01, 2020, p.535-561.
DARDOT, Pierre. LAVAL, Christian. Comum: ensaios sobre a revolução no século XXI. São Paulo: Boitempo, 2017.
FRANZONI, Julia Ávila. Geografia Jurídica Tropicalista: a crítica do materialismo jurídico-espacial. Revista Direito e Práxis, v. 10, n.4, 2019.
GUDYNAS, Eduardo. Debates sobre el desarrollo y sus alternativas en América Latina: Una breve guia heterodoxa. In: Más Allá del Desarollo: Grupo permanente de Trabajo sobre Alternativas al Desarrollo. LANG, Miriam. MOKRANI, Dunia (coord). Quito: AbyaYala, Fundação Rosa Luxemburgo, 2011.
HAESBAERT, Rogério. Território e multiterritorialidade: um debate. GEOgraphia, v. 9, nº 17, 2007.
HARDT, Michael. NEGRI, Antonio. Bem-estar comum. Rio de Janeiro: Record, 2016.
HERNÁNDEZ, Delmy Tania Cruz. JIMÉNEZ, Manuel Bayón (Orgs). Corpos, territórios e feminismos: compilação latino-americana de teorias, metodologias e práticas políticas. 1ª Ed. São Paulo: Elefante, 2023.
LEITE, José Rubens Morato. AYALA, Patryck de Araújo. Dano Ambiental. 8ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
LITTLE, Paul E. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma antropologia da territorialidade. Brasília: UNB, 2002.
OVIEDO, Antonio Francisco Perrone. DOBLAS, Juan. As florestas precisam das pessoas. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2022. Disponível em: https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/florestas-precisam-das-pessoas.
Notes
Notes
1 Optei por seguir a terminologia e a grafia dada pelo autor.
2 A perspectiva privatista de Hardin defende que as áreas sem proprietário privado estariam sujeitas a maior degradação ambiental, constrastando com uma série de estudos que demonstram como terras fora do mercado contribuem para a conservação da natureza, a exemplo das terras indígenas no Brasil (Oviedo e Doblas, 2022). Em contraponto a tese de Hardin, todo um campo de estudo e ação política se desenvolveu entorno da promoção e defesa dos comuns. Ver, neste sentido, as obras de Pierre Dardot e Christian Laval (2017) e de Michael Hardt e Antonio Negri (2016).
Buscar:
Contexto
Descargar
Todas
Imágenes
Scientific article viewer generated from XML JATS by Redalyc