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A crítica racial à crítica jurídica: uma análise a partir de novos cenários da Educação Jurídica
Ana Laura Silva Vilela; Laís da Silva Avelar; Raquel Cerqueira Santos
Ana Laura Silva Vilela; Laís da Silva Avelar; Raquel Cerqueira Santos
A crítica racial à crítica jurídica: uma análise a partir de novos cenários da Educação Jurídica
Racial criticism of Brazilian Critical Legal Studies an analysis based on new scenarios of Legal Education
Revista Direito e Práxis, vol. 15, no. 3, e84481, 2024
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
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Resumo: O artigo situa a crítica racial como fundamento da crítica jurídica, tendo por lugar de análise novos cenários da educação jurídica. A primeira parte do texto posiciona os debates sobre crítica e educação jurídica e aponta para o silêncio sobre raça. Para discutir a dimensão racial de forma mais concreta, abordamos os impactos das ações afirmativas e as experiências de docentes negras na Educação Jurídica. Os quinze anos de existência da Revista Direito & Práxis acompanharam e contribuíram para os processos de ressemantização da noção de crítica jurídica impostos pelas mudanças históricas. A crítica e educação jurídicas também foram sacudidas por este contexto, e, não podem seguir inalterados diante de sujeitos racializados cuja presença desvela a branquitude do Direito e oferece novas perspectivas epistemológicas

Palavras-chave: Crítica Jurídica, Raça, Educação Jurídica, Ações Afirmativas, Docentes Negras.

Abstract: The paper argues that critical race theory must be on the basis of Brazilian critical legal studies, ellecting the new realities of legal education as locus of analysis. The first section of the text investigates the debates on Brazilian critical legal studies and legal education to highlight the silence on race. In order to discuss the racial dimension more accurately, we discuss affirmative actions programs' impacts and the experiences of black female professors in legal education. The fifteen years of Revista Direito & Práxis' existence have followed - and deployed - the processes of resemantization of the notion of Brazilian critical legal studies, due historical changes. Legal education was also shaken by this context, and could not remain dormant before the presence of racialized subjects which reveals the whiteness of Law and offers new epistemological perspectives.

Keywords: Brazilian Critical Legal Studies, Race, Legal Education, Affirmative Actions, Black Female Professors.

Carátula del artículo

Dossiê: Direito e Práxis 15 anos: perspectivas para o horizonte da crítica do direito

A crítica racial à crítica jurídica: uma análise a partir de novos cenários da Educação Jurídica

Racial criticism of Brazilian Critical Legal Studies an analysis based on new scenarios of Legal Education

Ana Laura Silva Vilela
Universidade Federal do Oeste da Bahia, Brasil
Laís da Silva Avelar
Universidade de Brasília, Brasil
Raquel Cerqueira Santos
Universidade do Estado da Bahia, Brasil
Revista Direito e Práxis, vol. 15, no. 3, e84481, 2024
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Received: 31 March 2024

Accepted: 17 May 2024

Introdução

Desde que as duas primeiras faculdades de Direito foram inauguradas no Brasil Império (1827), uma em Olinda e outra em São Paulo, a Educação Jurídica recebe críticas. Nacionalizada para garantir a independência política e abastecer os quadros burocráticos (SOUZA, 2011), a Educação Jurídica brasileira reúne vasta literatura1 sobre seu papel na conformação do Estado Liberal, seu caráter bacharelista e, no século XX, os riscos de sua tecnicização.

Os debates e sucessivas reformas institucionais se esforçaram num diagnóstico de crise epistemológica e pedagógica da Educação Jurídica (Lyra Filho, 1980, 1981; Warat, 1988). As análises da educação jurídica reivindicavam, a seu modo, pertencimentos à crítica jurídica, protagonizada por autores progressistas, alinhados à esquerda, que ofereciam apontamentos críticos em seus campos de atuação política e acadêmica (Lyra Filho, 2006). Os anos 2000 trouxeram alterações profundas na educação jurídica com a chegada de um projeto de esquerda ao poder que ampliou e interiorizou a malha de Instituições de Educação Superior (IES) públicas e privadas.

Na mesma conjuntura, ocorreu a crescente institucionalização de ações afirmativas, com recortes raciais e socioeconômicos, na educação superior, o aumento de debates sobre pesquisa jurídica e a consolidação da pós-graduação em Direito no país. As referidas mudanças aconteceram ao mesmo tempo em que a educação jurídica era fagocitada pelo mercado, seja com a proliferação de cursos em IES privadas (Kuhn de Oliveira, 2023) ou pelo ensino privado para concursos públicos.

Dentre estas contribuições há consenso que a educação jurídica se encontrava e ainda se encontra em crise2. O discurso sobre a crise é permanente. Sem pretender esgotar o debate centenário, que tem sido enfrentado, principalmente, por meio de reformas curriculares, e, partindo de acúmulos de pesquisa já iniciados em nossas trajetórias (Avelar, 2023; Santos, 2013; Vilela, 2014) e de nossas experiências3 como estudantes e docentes, demarcamos o que entendemos por Educação Jurídica e levantamos alguns aspectos conjunturais e epistemológicos importantes para os objetivos do presente artigo.

A expressão “Educação Jurídica4” traz implicações semânticas, especialmente quando relacionada à que se pratica em instituições de educação formal. Tomada comumente apenas pelo “ensino jurídico”, tal locução consiste em restrição ideológica. No fundo, exclui pesquisa e extensão como elementos constitucionais de qualquer definição possível de educação universitária. Neste texto, pensamos a Educação Jurídica realizada pelas instituições formais de educação e reguladas pelo poder público. Compreendemos aqui por Educação Jurídica, o debate e a implementação curricular; a matriz epistemológica que preenche os cursos jurídicos; o ensino de graduação e pós-graduação em Direito; a extensão universitária proposta por docentes e vivenciadas por estudantes de Direito; a pesquisa jurídica; a docência em Direito exercida por docentes juristas e de outras formações; a regulação estatal e social da educação jurídica; o acesso e permanência de estudantes nos cursos jurídicos; os estágios curriculares e extracurriculares e demais práticas de profissionalização em Direito.

Entendemos ainda por Educação Jurídica a aprendizagem sobre direitos que acontece em instituições formais e informais de educação. Isto significa considerar não apenas as experiências educativas que ocorrem em instituições públicas e privadas de educação superior, nas quais ocorrem os cursos de graduação e pós-graduação em Direito, mas também as experiências sócio-educativas de movimentos sociais e outras instituições da sociedade civil que promovem práticas pedagógicas a partir do conhecimento jurídico, a exemplo de ações de Educação Jurídica Popular promovidas por organizações não-governamentais, movimentos sociais, universidades e outros.

Uma categorização tão ampla ainda não é suficiente. Diferentes análises da educação jurídica concordam que segue prevalecendo o “senso comum teórico dos juristas”, diagnóstico do jurista Luís Alberto Warat (1988), que denuncia o conteúdo ideológico e pseudo-científico - fundado no dogmatismo e normativismo jurídico - que preenche as práticas judiciárias e retroalimenta as Escolas de Direito. Hoje, na feição atual do conservadorismo capitalista, na libido pelas carreiras estatais via concursos públicos, há um tipo de ensino de dogmática jurídica que se tornou negócio milionário, com a presença de inúmeros cursos preparatórios para aprovação no exame de ordem e nos concursos públicos. Portanto, a educação jurídica, historicamente às voltas com suas limitações pedagógicas, está diante de um espectro poderoso: a educação depositária se tornou um produto de altíssima oferta e demanda por consumo, cujo excesso é disponível instantaneamente pelas mídias digitais.

Lidar com o avanço tecnológico é somente um dos desafios que a Educação Jurídica possui em comum com a educação superior em geral e também com a universidade pública. A formação em Direito também foi sacudida pelo contexto de golpe jurídico-parlamentar em marcha desde 2013, o avanço do neoliberalismo, ascensão da extrema direita à presidência e governos locais, recrudescimento de discursos anti-gênero e, especialmente, do anti-intelectualismo. Esse, em especial, é fermentado junto a discursos de ódio contra as universidades e seus profissionais e a dissecação dos investimentos em educação e outros direitos sociais, tendo seu ápice na emergência sanitária global acarretada pela pandemia de Covid-19. Num cenário conturbado, a Educação Jurídica teve que lidar com questões difíceis, como a implementação da educação à distância5 por vias indiretas e a curricularização da extensão universitária6 em 2018.

Uma realidade tão arrasadora inibe discussões críticas sobre a Educação Jurídica e impede que ela se debruce sobre temas estruturais. A investigação mais profunda dos problemas elencados acima, obriga retomar a substância de debates anteriores, mas caminhar sobretudo para desencobrir e enfrentar aquilo que o acúmulo crítico jurídico ofusca na discussão da educação jurídica - como a importância de raça e gênero na formação social e qual o papel da universidade brasileira e da educação jurídica na reprodução de desigualdades. Compreender o que se entende por Direito, quem o ensina, quem é considerado jurista qualificado e produtor de conhecimento e crítica jurídica e quem são os sujeitos da extensão universitária são questões que dependem de um aprofundamento epistemológico e empírico. É preciso fazer novas perguntas para não seguirmos no caráter ensaístico e encobridor da bibliografia sobre Educação Jurídica.

Compreendemos esta característica encobridora a partir das noções de “epistemologia invertida” e “epistemologia da ignorância” (Mills, 2023), em diálogo com o que Beatriz Nascimento (2018) nomeia de “teorias mistificadoras”7. A crítica hegemônica no Brasil, formada sobretudo por corpos brancos-masculinos-sudestinos, denunciou importantes arranjos e dinâmicas de classe que forjam epistemológica e pedagogicamente a educação jurídica. Contudo, num território branco como o Direito, ao refletir sobre educação jurídica, a crítica hegemônica mantém um silêncio ensurdecedor sobre raça e seus correlatos - branquitude, racismo, epistemicídio, etc.

O esforço crítico em enfrentar os formalismos, dogmatismos, normativismos e classismos não se desdobrou numa denúncia de como estes “ismos”, constituintes da teoria-práxis jurídica, se assentam numa “moralidade branca” (Mills, 2023). A crítica jurídica hegemônica produziu uma crítica sem romper com os pactos da branquitude (Bento, 2022) e com seu “modelo cognitivo que impede a autotransparência e a compreensão genuína das realidades sociais”, entregando uma crítica limitada, baseada numa “epistemologia invertida, uma epistemologia da ignorância, um padrão particular de disfunções cognitivas [...] produzindo o resultado irônico de que os brancos, em geral, não serão capazes de compreender o mundo que eles próprios criaram” (Mills, 2023, p. 52). Ou seja, produziu o que entendemos como uma crítica invertida ou mistificadora, que ao mesmo tempo que desencobre também reproduz um “certo esquema de cegueiras e opacidades estruturadas” (Mills, 2023, p. 53) sobre a educação jurídica, fazendo com que apesar do acúmulo crítico alcançado nunca tenha se tocado em pontos nevrálgicos relacionados à eterna crise.

Neste texto, a partir dos aportes teóricos da crítica racial e de pesquisas empíricas que racializaram a discussão sobre o território jurídico, tentamos romper com este padrão crítico. Para isto, num primeiro momento, delimitamos e situamos a crítica jurídica hegemônica e refletimos sobre os silenciamentos produzidos por ela. Em esforço contrário aos debates críticos consolidados, propomos uma crítica à educação jurídica fundamentada na raça. Na sequência, a partir de duas cenas perturbadoras para a branquitude jurídica - o enegrecimento do corpo discente pelas políticas afirmativas e a docência de mulheres-negras no Direito - refletimos como experiências negras expõem questões fundamentais para uma crítica realmente comprometida com mudanças.

1. Educação e Crítica Jurídicas: desafios a partir da crítica negra

A preocupação com a educação jurídica é devedora da crítica do Direito, sendo que esta se desenvolveu de modo abrangente. Ao agrupar juristas de diferentes posições político-teóricas em reações ao normativismo e formalismo jurídicos, expôs o papel do Direito na reprodução das desigualdades e hierarquias sociais. É preciso ressaltar a abrangência do que se reivindica como crítica. Sob esta denominação estão múltiplas perspectivas gnoseológicas como “análise sistêmica, dialética, semiológica, psicanalítica” (Wolkmer, 2015, p. 129) e posturas políticas entre “enfoques emancipatórios, socialistas, liberais, reformistas e niilistas” (Wolkmer, 2015, p. 176).

As abordagens críticas não se restringem às construções teóricas, sendo visível sua influência na conformação de temas, disciplinas e práticas jurídicas8. A noção mesma de crítica é exigente da prática. A crítica jurídica brasileira se constrói por experiências e diálogos com reivindicações e movimentos sociais, produzindo uma agenda permanente de investigação epistemológica e metodológica sobre o conteúdo do Direito.

Dentre outros elementos, a constituição do campo jurídico crítico brasileiro se confunde com a atuação de determinados juristas, sendo destacada a presença do marxismo jurídico. Por um lado, a ênfase na promiscuidade entre Direito, Capital e reprodução de desigualdades cumpriu papel indispensável na disputa por direitos e abriu possibilidades de renovação da cultura jurídica. A produção bibliográfica destes intelectuais, em sua maioria homens brancos de classe média, tiveram papel indispensável na ampliação de debates e na formação de juristas que continuam a aprofundar a crítica jurídica no Brasil9. Distante de desqualificar esforços anteriores e em busca de somar ao debate crítico no Direito, pretendemos, neste tópico, discutir os silenciamentos da crítica jurídica a respeito da raça. Para a compreensão de raça, insistimos na importância de duas categorias erguidas no pensamento negro radical: a noção de práxis negra, proposta por Clóvis Moura (2021), e a perspectiva onto-epistemológica de raça, apontada por Denise Ferreira da Silva (2019).

Ainda na cartografia dos sujeitos que compuseram o repertório crítico jurídico brasileiro, é comum que, ao sistematizar o estado da arte, não apontem uma dimensão da crítica que, a partir dos anos 1980, complexifica as relações entre raça e Direito. O artigo “Cultura jurídica e diáspora negra: diálogos entre Direito e Relações Raciais e a Teoria Crítica da Raça” do jurista Rodrigo Portela Gomes (2021), publicado em edição anterior da Direito e Práxis, demonstra que, além de um campo transnacional de pesquisas mobilizado na Teoria Crítica da Raça10, em especial nos Estados Unidos, no Brasil há pelo menos duas obras pioneiras de mulheres negras que trabalham crítica jurídica e raça. Trata-se de textos de Eunice Aparecida de Jesus Prudente e Dora Lima Bertúlio, ambos da década de 1980. Ao longo de viradas históricas como a redemocratização, a institucionalização da pós-graduação em Direito no país e do acesso de pessoas negras via políticas de ações afirmativas, outras intelectuais em diferentes estados do país e com abordagens disciplinares variadas, intensificam a produção e constituem o campo “Direito e Relações Raciais”11 (Portela Gomes, 2021). Um dos traços comuns que o percorre é a constatação de apagamentos e silêncios a respeito da raça apesar da existência de arsenal crítico jurídico sendo produzido em torno dela (Portela Gomes, 2021). Podemos desde já apontar que a crítica jurídica sofre o impacto das mudanças de quais sujeitos passam a acessar a Educação Jurídica.

O silêncio da crítica jurídica e da Educação Jurídica em relação à raça merece análise minuciosa. Primeiro, pensemos no exemplo da matriz privatista da Educação Jurídica brasileira. Era comum, até muito recentemente, que os cursos de graduação em Direito tivessem dois ou três componentes curriculares - no máximo - dedicados ao Direito Constitucional. Por outro lado, era também frequente que fossem oferecidos múltiplos componentes relacionados ao Direito Civil. Longe de análises maniqueístas, vale ressaltar que o ensino do Direito Civil manteve pacto de silêncio sobre o que foi - por longuíssimo tempo - o instituto mais tutelado do ordenamento jurídico nacional e colonial: a propriedade sobre a vida negra escravizada, tendo em vista que esta questão foi central na longa tentativa de codificação das leis civis brasileiras nos fins do século XIX e início do XX (Grinberg, 2008).

O apagamento da raça no Direito tem raízes profundas e deliberadamente ocultadas, sendo um investimento de memória (Duarte; Scotti; Netto, 2019) que remonta a queima dos arquivos da escravidão por Ruy Barbosa. A finalidade seria evitar que, após a abolição, houvesse demandas por indenização dos senhores escravagistas (Duarte; Scotti; Netto, 2019). No rol de silenciamentos, há também o de momentos históricos, como, a Revolução do Haiti no início do século XIX, em que pessoas negras venceram o poder colonial e colocaram em prática ideais muito mais democráticos do que os panfletados nas duas revoluções burguesas antecedentes - nos EUA e na França (Queiroz, 2017; Santos, 2021). Esses são exemplos de injustiça epistêmica encarnada, que não só reduz a presença negra em sua agência e papel determinante na conformação do Direito e do capitalismo, como evita pensar a posição racial do Direito, que é predominantemente branca. Dessa forma, por muito tempo, a realidade racial foi exilada do Direito enquanto tema de urgência e dignidade epistêmica, sendo que nas escassas oportunidades que adentrava o campo jurídico, inclusos aqui a crítica e educação jurídicas, funcionava para reafirmar cenas de sujeição relacionadas às pessoas negras.

A ideia de uma crítica racial à crítica jurídica também é bastante ampla e precisa ser delimitada e complexificada. Neste texto, recorremos à crítica do racismo anti-negro, com ênfase nas experiências de pessoas negras nas universidades. Não significa que a crítica racial à crítica jurídica só diga respeito às pessoas negras. Apontamos que há uma necessidade de entender de que forma a crítica jurídica se aproxima dos povos originários. Suspeitamos que apesar do interesse em temas como “constitucionalismo latino-americano”, cujas experiências de descolonização do Estado, em países como Equador e Bolívia, têm como elemento central a resistência e os direitos indígenas, talvez o racismo anti-indígena brasileiro não tenha sido suficientemente colocado como problema na pesquisa jurídica, sob o risco de um distanciamento objetificador que também exotiza. O acesso de estudantes indígenas na Educação Jurídica pode anunciar agendas e metodologias de pesquisa comprometidas com a autodeterminação e soberania dos povos (Tuhiwai Smith, 2019). É necessário que a crítica jurídica se engaje na presença indígena nas universidades e problematize a intimidade entre Direito e colonialismo contemporâneo e os riscos da intimidade da pesquisa científica com a ampliação de injustiças contra os povos indígenas12.

1.1 Posicionar a raça no fundamento da educação e da crítica jurídica

Há consequências da reivindicação da raça para a crítica jurídica. A radicalidade e desconforto deste gesto são temidos, pois demandam compreender o racismo como estruturante do capital (Moura, 2020) e dos descritores ontológicos da modernidade, e, portanto, do Direito (Ferreira da Silva, 2014; 2019). É uma reivindicação que insiste em abordagens diferentes sobre as vidas das pessoas negras e os problemas que a raça enquadra ao Direito, que não sejam restritas a cenas de violência, folclorização, passividade, marginalidade histórica ou pertencimento ao passado.

Quando a raça é exposta no centro do capitalismo, recusa-se explicações simples de que o racismo consistiria em meras ações e episódios. Percebe-se que na história do capitalismo no Brasil, o escravismo não foi apenas simbólico ou jurídico, mas verdadeiro modo de produção indispensável à concretização de um capitalismo dependente de demandas externas (Moura, 2020). A história demonstra também que se o capitalismo escravista brasileiro se consolidou através da raça, a operação da racialização não é exclusiva dos grupos negros e dos povos indígenas. Existe uma filosofia do branqueamento, em que os brancos também são racializados, e se portam como grupo na defesa de seus privilégios, tendo em seu elo de coletividade o medo da rebelião. Mais que uma filosofia, o branqueamento foi instituído como uma política de Estado, a exemplo do estímulo à imigração europeia (Moura, 2020).

A contribuição marxista de Clóvis Moura foca na “práxis negra” enquanto ferramenta radical de análise, demonstrando que a rebelião negra é uma prática constante no capitalismo (Moura, 2021). Ao inserir as “dinâmicas raciais e os efeitos do colonialismo no centro da teoria crítica” (Portela Gomes; Queiroz, 2021, p. 736), Moura oferece elementos para uma hermenêutica que “reposiciona a dialética do senhor e do escravo a partir da agência do quilombola: do negro que nega a posição de objetificação imposta pelo sistema colonial” (Portela Gomes; Queiroz, 2021, p. 744).

A ênfase na práxis negra é também uma crítica ao colonialismo intelectual presentes na produção de conhecimento no Brasil. A crítica formulada por Clóvis Moura sobre o academicismo nas ciências sociais serve para o campo crítico do Direito no Brasil. Este fenômeno aparta os intelectuais da prática, resultando em um enquadramento limitado da questão racial e o registro de problemas brasileiros em lentes acadêmicas externas. Qual a noção de prática que informa a crítica jurídica brasileira? Quem exerce a prática e a crítica? Qual o engajamento da crítica jurídica no entendimento e concretização de políticas que questionam a hegemonia branca nas universidades (pensamento e presença) como as ações afirmativas? Como a educação jurídica e a crítica jurídica lidam com saberes que não emanam da dinâmica do Estado? A crítica jurídica confere dignidade epistêmica a autores e autoras negras e suas críticas? A crítica jurídica se deixa perturbar pela presença de pessoas negras na universidade? A crítica jurídica confere dignidade epistêmica aos saberes de comunidades quilombolas, povos de terreiro, povos indígenas, sem inscrevê-los na noção de marginalidade ou na categoria de objetos13? Qual a noção de história do capitalismo que informa a crítica jurídica brasileira? A crítica jurídica se ocupa de pensar sua posição racial?

É preciso atualizar e insistir na radicalidade da crítica, buscando entendê-la e desconstituí-la em suas estruturas. Um dos primeiros passos empreendidos pela intelectual Denise Ferreira da Silva foi mapear uma analítica da racialidade no pensamento moderno, para entender como a violência contra corpos racializados existe ao lado e dentro de discursos científicos, políticos, jurídicos, e do programa de Direitos Humanos. Ao analisar diversos autores pós-iluministas, ela demonstrou que a construção de um sujeito transparente, interior e auto-determinado exige a formulação de um outro afetável, racializado, corporificado, a quem não existe, pelas ferramentas modernas, a possibilidade de autodeterminação. A raça não seria então, um desdobramento, mas a condição da modernidade. Todo o edifício filosófico moderno, inclusive a crítica, seria devedora deste tipo de subjetividade a qual o sujeito racializado não pode concorrer, pois uma vez inscrito nela, realiza o mandato moderno que é o de sua destruição. Desta forma, com Denise Ferreira da Silva, aprendemos que para enfrentar o racismo precisamos desmontar os palcos teóricos e materiais que permitem o aparecimento da raça, e que as críticas desenvolvidas dentro deste arsenal simbólico-jurídico não resolvem o problema, mas o reproduzem (Ferreira da Silva, 2007; 2014).

A autora recusa soluções de inclusão baseadas na noção de sujeito transparente, pois ela se baseia sempre em diferença racial e numa busca por universalidade a qual os sujeitos racializados não concorrem. O quadro exumado pela autora se complexifica quando demonstra que mesmo programas críticos como o materialismo histórico dialético, ainda seguem a lógica do sujeito transparente e não resistem quando outros elementos perturbam a cena, como o corpo da nativa escravizada (Ferreira da Silva, 2019). Distante de abandonar a primariedade da matéria, a autora nos convoca - especialmente o campo jurídico (Vilela; Lopes, 2023) - a imaginar o que seria ler o tripé Colonialismo, Capitalismo e Patriarcado a partir do corpo feminino racializado (Ferreira da Silva, 2019). Convida a pensar a raça não como um elemento simbólico, mas como significante primordial da noção de matéria. Estas perguntas não são possíveis dentro de um quadro moderno de separação entre corpo/mente, exterioridade/objetividade, tempo/espaço. Dessa forma, nos provoca a descolonizar a noção de matéria, expondo a violência colonial implícita na cena do valor capitalista.

A modernidade capitalista precisa ser pensada e enfrentada “Outra-Mente” (Ferreira da Silva, 2019), interrompida a partir das noções de gênero, raça e matéria. Ao mover a cena do valor, a autora está desmontando léxicos caros à crítica jurídica. Demonstra o Direito enquanto violência e interpreta radicalmente o mandato de Frantz Fanon em Os Condenados da Terra (1968). Só é possível interromper um mundo em que a raça é possível, com o fim deste mundo, como o conhecemos. Apenas fora deste mundo, noções como de justiça podem se totalizar com ideias de descolonização e restituição de valor (Ferreira da Silva, 2019).

Mobilizar aqui autores como Clóvis Moura e Denise Ferreira da Silva não é uma tentativa de oferecer saídas, mas sugerir mais questões. As práticas negras seguem desconsideradas por uma certa crítica jurídica que tem dificuldades de ler, se atualizar e conferir dignidade epistêmica a discussões e autores que produzem há décadas, a exemplo da Teoria Crítica da Raça. Além disso, é preciso se perturbar, ser transformado epistemicamente pelas experiências negras, ouvir quais outras críticas emergem. Se a importância da leitura, estudo e entendimento de autores negros e negras é um passo indispensável, pouco realizado ainda, trata-se mais do que a conquista por erudição. É preciso deixar ressoar, que a crítica jurídica se estremeça com as questões colocadas, que altere suas categorias, suas agendas políticas. Expor a cena moderna, o sujeito transparente, diz respeito a pensar também a branquitude da crítica e de suas ferramentas modernas, e como esta cena não confere aos sujeitos racializados o lugar da intelectualidade.

2. Cena 1: Ações Afirmativas e Educação em Direito

As ações afirmativas, conforme definição de Feres Junior et al. (2018, p. 13), são “todo programa, público ou privado, que tem por objetivo conferir recursos ou direitos especiais para membros de um grupo social desfavorecido, com vistas a um bem coletivo”. No Brasil, essas políticas ganharam destaque inicialmente a partir da inclusão das reservas de vagas em Universidades e Institutos Federais para pessoas negras- pretas e pardas- asseguradas através da Lei nº 12.711/2012.

Na vasta bibliografia sobre o tema é comum associar a origem da implantação dessas políticas com os compromissos internacionais firmados pelo Brasil na III Conferência Mundial contra o Racismo, a Xenofobia e as Intolerâncias Correlatas realizada em Durban em 2001 (Feres Junior et al., 2018). Fruto da luta política dos diversos setores dos movimentos negro e indígena, tais políticas afirmativas, em especial a de reserva de vagas, atualmente, incluem não apenas os processos de seleção para a entrada em Universidades Públicas, mas também se estenderam para outros âmbitos, como a seleção de servidores públicos no âmbito federal através Lei Federal 12.990/2014, e se espraiou ainda no âmbito das legislações sobre concursos e seleções públicas estaduais e municipais (Igreja, 2021; AÇÕES AFIRMATIVAS RACIAIS E BUROCRACIA PÚBLICA, 2021).

Cabe salientar que a modalidade de reserva de vagas não é a única ação afirmativa em curso na maioria das Universidades Públicas que adotam a política. Outras ações no campo dos programas de permanência e pós-permanência estudantil se inserem dentro da concepção mais ampla da política pública em análise. É válido também pontuar que o critério de raça/cor não é o único utilizado para a delimitação do público alvo destas ações. Entretanto, no âmbito deste artigo, é a reserva de vagas para pessoas negras no ensino superior que atravessa nosso interesse teórico, nos instigando a refletir como a entrada de estudantes negros e negras no âmbito universitário, e em específico nos cursos de graduação em Direito, instituem novas práticas na educação jurídica, criando rasuras, inclusive, nas formulações críticas hegemônicas.

Os estudos sobre políticas de ações afirmativas nas universidades públicas brasileiras nos trazem indícios claros que a composição racial do corpo discente de fato vivenciou uma mudança significativa. É possível afirmar que a política de reserva de vagas alterou significativamente a composição dos sujeitos integrantes da universidade pública, em especial no que tange ao fator racial. Segundo dados de pesquisa realizada pela ANDIFES (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior), o percentual de cotistas nas universidades federais saiu de 3,1%, em 2005, para 48,3%, em 2018 (ANDIFES, 2022).

Não desejamos com esta afirmação dar por encerrado o debate sobre a política, isentá-la de críticas e de possíveis melhoramentos, nem mesmo assumir que é um direito conquistado e que não se encontra sob ameaças. Como demonstra pesquisa realizada pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA), entre 2020 e 2021, a porcentagem de vagas reservadas regrediu nas universidades públicas de todas as regiões brasileiras, a exceção do Centro-Oeste, o que demonstra que esta ainda é um política em disputa e alvo de ameaças (Freitas et al., 2021). O mesmo grupo de pesquisa, todavia, ao analisar a produção de estudos sobre as ações afirmativas etnorraciais, concluiu que 53% dos estudos avaliam tais políticas como “bastante positivas” (Campos et al., 2023). Neste artigo, preferimos partir da constatação da mudança racial que a reserva de vagas provocou na universidade brasileira e nos propor a teorizar acerca das consequências que a presença negra nas faculdades de Direito trouxe para a própria teoria do direito e para o campo jurídico.

A este respeito, uma primeira análise necessária é que a crítica hegemônica à educação jurídica, advinda sobretudo dos esforços produzidos ao longo das décadas de 1980 e 1990, não tematizou, ou tematizou pouco, a localização social dos sujeitos operadores do direito e seus marcadores raciais. Nas palavras de Maurício Araújo:

Do mesmo modo, enquanto as teorias críticas cunham o conceito de movimentos sociais e enxergam neles os sujeitos de uma nova cultura jurídica, há um apagamento das resistências negras e de seus saberes por meio das categorias gerais de classe, trabalhador, camponês, sem terra, sem teto, operário [...] (Araújo, 2021, p. 291).

A crítica jurídica hegemônica refletiu arduamente sobre o ensino jurídico e qual tipo de profissionais ele formava (profissionais reprodutores de hierarquias) e qual o Direito que deveriam manipular. Podemos dizer que, no Brasil do fim do século XX, esta crítica oscilava entre uma denúncia do ensino extremamente tecnicista e reprodutor de hierarquias e uma proposta de manejar o Direito de outra forma, a partir de uma perspectiva libertadora e que afirmasse uma sociedade democrática e plural capaz de dialogar e absorver as demandas dos movimentos sociais e grupos populares.

Ocorre que, na construção da crítica hegemônica o sujeito negro nunca foi pensado como aquele que opera e maneja o Direito, quando muito ele era visto como um dos grupos vulnerabilizados aos quais se deveria garantir o acesso a direitos, cabendo aos operadores em formação - brancos, em sua maioria - concretizar essa garantia. É esta rasura entre negro-tema e negro-autor (RAMOS, 1957, p.171) que as ações afirmativas e a reserva de vagas na educação superior permitem, ainda que parcialmente, operar dentro do campo jurídico, uma vez que adentra na formação jurídica aquele sujeito que era até então considerado o “Outro”.

Partindo da ideia de agência negra, tematizada por Clóvis Moura, pretendemos complexificar as noções de acesso à academia jurídica, evidenciando hierarquias raciais assentes no mundo jurídico e problematizando a possibilidade da crítica à educação jurídica que não seja racializada. Para tanto é necessário articular precariedades e potencialidades que negros e negras vivenciam ao penetrar o mundo jurídico.

2.1 Pensando Precariedades: novos sujeitos, velho Direito

Em texto que data de 1982 e que teve tradução publicada pela Direito e Práxis em 2021, Duncan Kennedy, ao analisar a formação de hierarquias nos cursos de graduação em Direito, demarca como a/o estudante negra/o, mulher ou proveniente da classe trabalhadora têm uma experiência de vivência universitária no curso bastante distinta daquelas que tiveram até então em sua formação e que diverge radicalmente da experiência dos seus colegas brancos, homens de classe média. Nas palavras do autor:

No curso de direito, os alunos precisam lidar com as implicações de sua classe social, sexo e raça de uma forma diferente (mas não necessariamente menos importante) da experiência do college.[...] Os alunos mudam a maneira como se vestem e falam; eles mudam suas opiniões e até mesmo suas emoções (Kenedy, 2021, p. 1435).

Paradoxalmente, a expansão universitária, que se dá concomitantemente com a chegada de pessoas negras aos cursos de Direito, também desloca uma série de precariedades para a academia jurídica. Se antes o mundo do Direito era o mundo que espelhava o mundo da elite branca brasileira, a ampliação e diversificação dos perfis de ingressantes nas faculdades vai impondo novas lógicas e práticas nesse espaço. A academia jurídica de hoje é feminizada (Bonelli, 2021) enegrecida e empobrecida se comparada a de algumas décadas atrás, e a crítica à educação jurídica, realizada no final do século XX pelos teóricos brasileiros, não pôde ou não quis atualizar a análise diante desta realidade.

Nesse sentido, podemos traçar caminhos dissonantes dos impactos que a ampliação da entrada de pessoas negras na graduação em Direito provocou. A interiorização dos cursos e o aumento do número de oferta de vagas em instituições privadas de ensino superior - onde a maioria dos estudantes negros ainda se insere - colocou a academia jurídica frente a outras realidades. Os cursos de Direito enegrecidos tiveram que se deparar com questões como, por exemplo, as dificuldades de acesso e transporte das/os estudantes do mundo rural às instituições de ensino. Esta mesma academia jurídica passa também a ser atravessada pelas demandas de negociação entre instituições de ensino superior interiorizadas e o poder local (prefeituras e câmara de vereadores) para viabilização dos cursos e se depara frente a frente com as precariedades do sistema de justiça na maioria das cidades brasileiras de médio e pequeno porte.

Os exemplos acima são apenas algumas das possíveis narrativas da realidade atual das Universidades Públicas brasileiras, mas devem ser articulados com uma percepção: a de que é no mínimo curioso que o aumento expressivo da entrada de pessoas negras no ensino superior, inclusive nos chamados cursos “tradicionais”, como é o caso do Direito, venha acompanhada de uma precarização das condições de ensino e de uma demanda mercadológica de ampliação da formação profissional. É visível o aumento na oferta de cursos de pós-graduação lato e stricto sensu e a proliferação dos cursos preparatórios os mais diversos, com focos que vão desde o Exame da Ordem dos Advogados até os concursos públicos para as diversas carreiras jurídicas estatais.

Longe de querer estabelecer uma relação de causa e efeito entre massificação do ensino jurídico, ingressos de pessoas negras e demandas mercadológicas, talvez seja importante levantar questionamentos e complexificar qual o peso efetivo que o título de graduação assume hoje no mercado que demanda a mão-de-obra com formação jurídica. Seria importante pensar, inclusive, quais os caminhos formativos que as elites brancas brasileiras têm se proposto a trilhar nos últimos anos, alguns deles perpassando por uma formação básica bilíngue e vislumbrando o ensino superior fora do país como novo ponto de chegada.

Se pensarmos, por exemplo, o perfil das pessoas que são absorvidas pela burocracia do poder judiciário, a temática das ações afirmativas por raça/cor ganha ainda outros contornos. Em pesquisa recente realizada pelo Conselho Nacional de Justiça acerca de pessoas negras no judiciário brasileiro, chamou atenção da equipe de pesquisa a dificuldade na obtenção dos dados acerca da raça/cor dos burocratas brasileiros. Afirma o relatório: “Além disso, preocupa o fato de que os tribunais não tenham registros atualizados de raça/cor em seus registros funcionais, visto que na atual metodologia o levantamento foi censitário e direcionado aos tribunais” (CNJ, 2021). Além da desconcertante ausência de dados na pesquisa - o que pode revelar muito das dificuldades da burocracia judicial em tratar o tema - vale ressaltar a disparidade entre as ocupações que as pessoas negras exercem no sistema de justiça: a presença de pessoas negras é consideravelmente maior na ocupação de estagiários, seguida da categoria de servidores técnicos e, finalmente, com uma distância percentual importante nas funções da magistratura, diferença essa detectada em todos os tribunais e âmbitos da justiça analisados.

No livro “Diploma de Brancura: política social e racial no Brasil - 1917-1945”, Jerry D’Ávila faz interessante reflexão sobre como a massificação do ensino básico e a consolidação da escola pública como aparelho de Estado se imbrica perversamente com o fim da escravização legal e com uma demanda de controle e treinamento profissional de meninas e meninos negros (D’Ávila, 2006). O autor argumenta que a formação oferecida para as crianças e adolescentes na época tinha como intuito a aproximação, treinamento e acomodação ao mundo branco, daí o sugestivo título do seu trabalho de pesquisa.

A presença do corpo negro nos espaços educativos, portanto, pode ser articulada a partir de uma lógica do adestramento e do controle e não garante, sozinha, um rompimento com as práticas hegemônicas. Esta afirmação articulada com os dados já apresentados chama a atenção para o caráter padronizante que a educação jurídica pode assumir ao formar mão de obra a ser absorvida pelo “baixo escalão” da burocracia do sistema jurídico, ou destinada a compor uma classe de “profissionais liberais” precarizados. Mas é possível, sim, pensar a presença desse corpo negro no campo da educação jurídica a partir das suas potencialidades, no sentido da fricção e instauração de novas práticas como sugerimos no tópico a seguir.

2.2 Afirmando potencialidades: outros atores, novo Direito

A ideia de práxis negra proposta por Clóvis Moura pressupõe, de saída, a necessidade de situar o sujeito na hierarquia racial brasileira. Ao construir uma análise da trajetória deste intelectual em sua dissertação de mestrado, Fábio Oliveira (2009) acentua que a afirmação racial de Clóvis Moura enquanto homem negro foi o primeiro movimento teórico para desenvolver a sua concepção de práxis negra, pois ao se apresentar como tal em suas aparições públicas o intelectual produzia um necessário deslocamento na “sociologia acadêmica” do período, rearticulando os lugares dos sujeitos de ciência, e da relação entre teoria e práxis política.

Nesse sentido, podemos pensar que o acesso de pessoas negras aos cursos de Direito em Universidades Públicas permite um ponto zero a partir do qual se pode pensar a educação jurídica: esta presença é, de início, um tensionamento que fricciona a desumanização pela negação da existência do “Outro”, típica do racismo. Com a impossibilidade de invisibilizar a existência de pessoas negras, a branquitude acadêmica precisa articular novas respostas para as ausências e violências que o sistema jurídico perpetua contra estes sujeitos. O primeiro ponto da afirmação de uma práxis negra é, portanto, a própria presença do sujeito negro no espaço acadêmico do Direito.

Além da presença, a agência negra na educação jurídica deve ser pensada como práxis, entendida no sentido mouriano de ação de rebeldia e resistência. Parafraseando Oliveira (2011, p. 50) é esta práxis que torna os estudantes negros sujeitos dentro da academia jurídica, trazendo novas orientações para a produção do Direito. Como afirma Sara Côrtes (2021), a entrada de pessoas negras também deve significar a entrada de novos vieses epistemológicos para pensar teoria e prática do Direito. Ao acionar o lugar do sujeito negro não apenas como objeto, mas também como elaborador da crítica, a autora afirma:

Ao enfrentar os desafios epistemológicos a partir da percepção do racismo institucional mais evidenciado por esta presença dos sujeitos protagonistas da pesquisa podemos contribuir para diluir as armadilhas da promessa de neutralidade axiológica, da demarcação teórica pelo argumento de autoridade e, principalmente, das repercussões sociais, políticas e subjetivas do epistemicídio. (Côrtes, 2021 p. 556)

É nesta esteira que presenciamos o surgimento de novos caminhos na produção do Direito que são abertos e trilhados por estes sujeitos. Eles são responsáveis por consolidar um campo de debate acerca do Direito e Relações Raciais, inaugurado por Dora Bertúlio, mas que se espraiou nas últimas décadas na institucionalização de programas de pesquisa e extensão - como o caso pioneiro do Programa Direito e Relações Raciais da Universidade Federal da Bahia (PDRR/UFBA) - e na recente institucionalização de novas disciplinas que transversalizam o tema.

Como afirma Maurício Araújo, já é possível evidenciar a “ascensão de um pensamento negro ocupando e tirando da zona de conforto a branquitude acadêmica e jurídica” (Araújo, 2021, p. 299), que desloca as dinâmicas de saber e poder da academia jurídica - como fez Clóvis Moura em relação ao campo da teoria social brasileira - e, em grande medida, a partir da experiência dos discentes negros que adentraram os cursos de Direito. A partir dessas rearticulações, o campo do Direito se vê impelido a centralizar o tema das relações raciais e encarar o racismo como ideologia fundante do Direito brasileiro. Outra faceta dessa experiência, capaz de tensionar a crítica hegemônica, é a vivência de corpos negros como docentes no campo jurídico. É sobre este tema que nos debruçamos a seguir.

3. Cena 2: A docência de mulheres-negras no Direito e suas narrativas de constrangimento

O racismo na universidade brasileira sempre teve uma face bem explícita representada pela discrepância da composição racial do corpo acadêmico. De um lado é importante não esquecer que a exclusão nunca foi total e que historicamente a presença de sujeitos negros no território universitário - como docentes, técnicos ou discentes - não começa com as políticas afirmativas institucionalizadas a partir dos anos 2000. De outro lado, é, de fato, a partir delas que podemos notar um real enegrecimento daquele território. Ao mesmo tempo, não se pode perder de vista que as políticas públicas de ações afirmativas - reflexo de histórica mobilização dos movimentos negros brasileiros, incluindo aí organizações negras acadêmicas desde a década de 1970 - não apresentam resultados significativos no que diz respeito à composição docente.

As análises dos impactos da Lei nº 12.990/2014, que prevê reserva de vagas para negras/os nas carreiras docentes federais, apontam, por exemplo, para grave desrespeito ao percentual legalmente previsto em lei e confirmam um cenário desanimador em relação ao objetivo de diversificar racialmente o corpo docente das universidades federais do Brasil (Mello; Resende, 2020). Depois de quase uma década da legislação federal, seguida por suas correspondentes nos níveis estaduais e municipais, os números apontam para a manutenção de desigualdade racial profunda entre negros e brancos nas carreiras docentes do país14. A combinação dos marcadores raça-gênero produz para as mulheres negras uma realidade de exclusão ainda mais acentuada (Brito, 2017a; 2017b).

O Direito é um dos territórios de reprodução dessa desigualdade racial no ensino superior. Em pesquisa publicada no ano de 2016, Maria da Glória Bonelli apontou que não havia nenhum docente negro em 25% dos cursos de Direito no Brasil, estando estes sujeitos totalmente ausentes em ¼ dos cursos de graduação na capital e no interior, “nos quais os alunos só têm à frente da sala de aula professores e professoras brancas como modelo profissional e como mentores no Direito” (Bonelli, 2016, p. 108). E, como veremos a seguir, a exclusão racial nos cursos jurídicos também se aprofunda em relação às mulheres-negras (Bonelli, 2021).

A discrepância racial entre negros e brancos na composição do corpo docente do Direito não pode ser elemento silenciado e invisibilizado nos debates sobre a educação jurídica. É sintomático que este tenha sido um assunto historicamente ignorado pela crítica jurídica. Este silenciamento, intrinsecamente relacionado ao pertencimento branco e masculino daqueles que produziram o que foi reconhecido como acúmulo crítico em relação à educação jurídica, deve ser visto como um dos motivos para construção de um debate que parece caminhar por recuos e de uma educação em eterna crise.

Racializar o debate é adentrar por caminhos de investigação que ajudam à compreensão de como a educação jurídica está assentada em processos corpo-epistêmicos historicamente prenhes de desacertos, limites e violências. O acesso às narrativas de professoras negras no Direito exemplifica isto (Avelar, 2023). Ao buscar compreender sobre a experiência de ser mulher-negra-docente num curso normásculo (Bonelli, 2017) e branco como o Direito, encontramos diversos achados e aspectos importantes, e historicamente ignorados, sobre o Direito e a educação jurídica. Formulações e denúncias que além de tudo constrangem os limites da crítica jurídica, apontando seu comprometimento com a branquitude e seus pactos de silêncio.

Seguiremos, portanto, os rastros abertos pelas narrativas de mulheres-negras-docentes do Direito (Avelar, 2023). A partir das experiências que narram sobre o ambiente jurídico, é possível encontrar pistas de como Direito, crise da educação jurídica e crítica jurídica são elementos que não podem ser pensados sem enfrentamento profundo do debate racial. É nesse sentido que compreendemos que a racialização do debate, começando pela escuta das denúncias e elaborações feitas pelos corpos não hegemônicos, é um imperativo político e ético com o qual a crítica terá de se haver se de fato o objetivo for transformação da teoria e práxis jurídicas.

3.1 O corpo-branco-docente do Direito e uma pesquisa movida por ausências

No ano de 2014, o Observatório do Ensino do Direito da Fundação Getúlio Vargas, a partir de dados extraídos do Censo da Educação Superior produzido pelo INEP em 2012, publicou um material sobre o perfil docente dos cursos de Direito no país (Ghirardi; Cunha; Feferbaum, 2014). Por este documento, os brancos representavam quase 52% da população docente nos cursos jurídicos em detrimento de 13% de pardos e 1,1% de pretos. Anos depois, com base no Censo do INEP de 2015, Bonelli (2021) apresentou o perfil docente do Direito desagregado por cor/raça e gênero. Entre os que se autodeclararam, os docentes homens de cor/raça branca/amarela representavam 34% do corpo docente dos cursos de Direito do país, docentes mulheres de cor/raça branca/amarela representavam 23%, docentes homens de cor/raça preta/parda/indígena 10% e docentes mulheres de cor/raça preta/parda/indígena 6%.

Ao longo da reflexão, Bonelli (2021) nomeia um processo de fragmentação no campo profissional docente do Direito, caracterizado, entre outras questões, por transformações na composição da docência jurídica. Apontando certa diversificação de um corpo antes dominado por uma “elite profissional de senhores brancos” (Bonelli, 2021), a autora observou que a ampliação da entrada de docentes-mulheres ocorre de forma significativa a partir dos anos 2000, naquele momento conhecido como o boom dos cursos jurídicos e de avanço da lógica de mercado na educação jurídica. Ou seja, a ampliação feminina acontece ao lado da precarização das carreiras docentes no Direito. Além disso, ao analisar os dados da composição docente é possível observar como a “diversificação” de gênero não é acompanhada por uma diversificação racial ou, em outras palavras, como “raça predomina sobre gênero, com os homens brancos e as mulheres brancas na frente nessa hierarquia e os homens negros e as mulheres negras seguindo na sequência” (Bonelli, 2021, p. 6).

As trajetórias formativas das três autoras do presente artigo ocorreram em instituições públicas de ensino, desde a graduação até o doutorado em Direito, e são atravessadas por uma presença rara de docentes negros e, de forma ainda mais excepcional, de mulheres-negras-docentes. O padrão branco que hegemonizou o corpo docente e as orientações teórico-metodológicas explica vários desconfortos e limites epistêmicos de nossa formação. Ao mesmo tempo, o interesse na temática da educação jurídica, seja a partir da reflexão do lugar da extensão dentro da formação em Direito (Santos, 2013), na construção de uma crítica, a partir do aporte teórico das teorias decoloniais, à educação jurídica (Vilela, 2014) ou na busca por entender as experiências de mulheres-negras-docentes do Direito (Avelar, 2023), também pode ser entendido como reflexo destes desconfortos.

Ao longo dos cinco anos como estudante de Direito da Universidade Federal da Bahia, duas das autoras deste trabalho tiveram apenas uma disciplina com uma docente negra, que lecionava como professora substituta. Somente em 2016, alguns anos depois da formatura das duas, é que a centenária Faculdade de Direito da UFBA passa a ter a primeira docente efetiva negra, a professora Tatiana Emília Dias Gomes. No Programa de Direito da Universidade de Brasília, local onde as três autoras cursaram o doutorado, houve apenas uma disciplina com uma docente negra, a professora Ana Cláudia Farranha, que até o momento de escrita deste texto continua sendo a única docente negra do programa.

Esta trajetória de ausências provocou o problema de pesquisa de doutorado de uma das autoras, que foi em busca das narrativas de docentes negras do Direito, produzindo a tese Docência negra: etnografando experiências de professoras negras do Direito (Avelar, 2023). Nesta pesquisa, com o objetivo de compreender como as experiências pessoais e profissionais daquelas mulheres atravessaram a sua constituição como professora e a sua atuação docente no Direito, foram feitas entrevistas de profundidade com três docentes negras do Direito.

O processo de campo foi intenso e, a partir dele, foi possível escutar narrativas de solidão, de violências, de despertencimento, de angústia, e, também, conhecer práticas de resistência construídas cotidianamente pelas entrevistadas. São narrativas muito pouco contadas sobre o Direito, produzidas a partir de corpos-sujeitos estranhados e silenciados dentro dos cursos jurídicos. Narrativas que constrangeram a ideia de liberdade e igualdade que ainda povoa muito o imaginário sobre a educação jurídica e o próprio Direito.

Realizando um exercício de síntese, podemos dizer que a crítica jurídica hegemônica, ao voltar-se para o funcionamento externo do Direito na sociedade brasileira, tendeu a atacar a educação jurídica a partir da acertada denúncia de seus processos de produção/reprodução do poder capitalista. Em outro sentido, as narrativas de mulheres-negras-docentes desencobrem como o Direito e a educação jurídica se estruturam por mecanismos internos, velados e sutis, de opressão que além da classe são estruturados por raça, sexo, gênero e etc. Mecanismos que não só organizam internamente o Direito enquanto ambiente profissional, orientam o que se entende e não se entende como conteúdo jurídico e corpo natural do Direito, como também produzem por práticas epistemicidas15, a base de um pensar e de um fazer que estrategicamente ignora como sujeito jurídico determinados corpos.

Assim, diferente do objetivo que originou a tese (Avelar, 2023), retornamos para aquelas contra-narrativas das docentes negras por entender que elas deixam entrever o que historicamente a narrativa hegemônica da crítica jurídica encobriu: os modos cotidianos que o racismo, sexismo e a branquitude se relacionam com a produção de uma educação jurídica. No diálogo com docentes negras do campo jurídico é possível acessar diversas dinâmicas cotidianas produtoras e reprodutoras de um Direito que, enquanto práxis e teoria jurídica, se manifesta de maneira limitada e racista.

3.2 Pensando a educação jurídica a partir de outros corpos: des-mitificando ou des-invertendo a crítica

A ausência histórica de docentes negros e a branquitude que marca o corpo docente dos cursos de Direito foi elemento sistematicamente ignorado pela literatura crítica hegemônica ao apontar o estado de eterna crise da educação jurídica. Revelador sobre a própria branquitude que constitui a crítica hegemônica, este apagamento produziu uma espécie de crítica mistificadora ou invertida, como já apontamos.

As narrativas de docentes negras constrangem a branquitude jurídica a partir de diversas dimensões, abrindo espaço para a compreensão de como a eterna crise da educação jurídica está umbilicalmente amarrada a esta hegemonia epistemológica e corporal branca-masculina. Seguindo os termos de Beatriz Nascimento (2018) e de Charles W. Mills (2023), pensamos estas narrativas como caminhos teóricos e metodológicos de nomeação da realidade racial abandonada pela crítica hegemônica para compreensão da educação jurídica, e, por isso, como caminhos para des-mitificar e des-inverter a crítica.

Explorando o material produzido em pesquisa anterior (Avelar, 2023), neste artigo apresentamos as narrativas de mulheres negras docentes no Direito a partir de três dimensões: 1) de denúncia de despertencimento, 2) de denúncia de ensino assentado em experiências e referências brancas e 3) de docência como uma práxis corporificada.

O anúncio do despertencimento surgiu em diversos momentos das entrevistas com as docentes negras do Direito. A sensação de despertencer surge num primeiro dia de aula, diante de uma “sala branca” e de “cadernetas de nomes e sobrenomes” ou num relato sobre a dificuldade de pertencer dentro de uma instituição privada, ao lado de colegas-docentes advogadas que chegavam com “aquelas bolsas, aquele salto” e que “chegavam mais cedo pra fazer [...] sociabilidade, conversar com o coordenador”, como contou outra professora (Avelar, 2023).

Outras vezes, o despertencimento é imposto pelo outro de formas bem diretas. Isso acontece, por exemplo, quando um professor branco, que se diz “amigo”, procura entender melhor a aproximação da professoras entrevistada com as/os discentes e lhe pergunta, dentro da sala de professores: “os seus alunos gostam tanto de você por conta do seu profissionalismo ou é apenas por pena porque você é negra?”; ou, ainda, quando discentes questionam cotidianamente o seu lugar de autoridade docente, desautorizando seu saber e suas práticas pedagógicas e se reúnem, por meio de abaixo-assinado, por exemplo, para se opor a sua permanência naquele espaço (Avelar, 2023).

A figura do “professor esperado” no Direito, que continua dentro de um perfil profundamente racializado, genderizado e classista, é outro ponto levantado durante as entrevistas para anunciar o despertencimento. Como escutado numa das entrevistas, “quanto mais longe desse homem, branco, ocupante de uma carreira jurídica prestigiada, mais complexa e tensa é a experiência docente dentro do ambiente jurídico” (Avelar, 2023, p. 243). Assim, cotidianamente, de formas às vezes mais sútil, outras menos, ser mulher-negra-docente é também viver, num certo “estado de alerta” dentro do ambiente profissional dos cursos jurídicos, com receio de a qualquer momento ser lembrada sobre o seu “lugar” (Avelar, 2023).

É interessante perceber, ainda, que mesmo diante de docentes com grande experiência de pesquisa, as docentes negras entrevistadas continuam despertencentes aos círculos de produção/publicação no Direito. Sobrecarregadas em rotinas de trabalho na graduação, as entrevistadas estão fora dos quadros de docentes da pós-graduação e não possuem condições de trabalho para se dedicarem à pesquisa e escrita acadêmica. O ensino na pós-graduação e o tempo para se dedicar à pesquisa e escrita surgem como um “lugar futuro” (Avelar, 2023), que nunca parece chegar. Delimitada ao campo do Direito no Brasil, Bonelli e coautoras (2019) apontam a tendência excludente da pós-graduação, sendo composta, segundo dados da CAPES de 2015, por 71% de docentes homens, tendo “o topo do segmento acadêmico controles de entrada que tornam o acesso mais fácil para aqueles com as características sociais privilegiadas” (Bonelli et al., 2019, p. 684).

Este despertencimento precisa ser pensado a partir de seus efeitos. Estar fora da pós-graduação é estar fora do lugar onde se produz pesquisa de forma central no ensino superior brasileiro, assim, fora de um espaço fundamental para a “disputa discursiva” (Borges, 2016) no Direito. Além de condições objetivas e materiais para dedicação à pesquisa, estar na pós-graduação permite encontros, conversas e acordos que abrem caminhos para acessar espaços de publicação. Num raciocínio contrário, despertencer aos “espaços de pesquisa, da pós-graduação, dos círculos de publicação, significa dizer que há uma exclusão dos seus discursos em um espaço central, prestigiado, um dos espaços autorizados de se dizer o Direito, de formulação do mundo jurídico” (Avelar, 2023, p. 313).

Por vários caminhos de despertencimento, as narrativas das docentes negras permitem identificar como o branco simboliza estética e corporalmente o ambiente jurídico e se apresenta como porta voz do que é o Direito. Isto abre espaço para a segunda dimensão da denúncia, já que as repetições de práticas de ensino que ignoram dinâmicas raciais, econômicas e de gênero precisam também ser entendidas a partir do perfil dominante do corpo docente. Afastar-se do tradicionalismo do ensino jurídico, a partir do rompimento com o método expositivo tradicional das aulas jurídicas ou por apostar num “ensino encarnado” (Souza, 2021), trazendo para a sala de aula uma abordagem a partir da realidade racial, por exemplo, é entendido como uma forma de bagunçar o ambiente, aquele “espaço de Deus”, onde “só entra os autorizados”, como nomeia uma das entrevistadas (Avelar, 2023).

Seja pela velha metodologia reduzida à exposição e monólogo docente, ou mesmo pelas “novas” metodologias ativas, quase nada mudou em um ensino do Direito repassado como uma técnica descontextualizada das condições sociais. Mas, longe de uma suposta neutralidade, o velho e descontextualizado ensino jurídico está, na verdade, assentado em experiências de vida e referências brancas (Banks, 1990; Williams, 1991). Acontece que neste cenário, problematizar o Direito a partir de outras experiências e de um olhar racial crítico, provoca incômodos, tanto em colegas docentes, como também nos discentes que não veem ali um debate jurídico (Avelar, 2023).

É curioso perceber que uma educação promovida centralmente por corpos brancos, produtores de um conhecimento comprometido com as experiências de si, centrado em seus valores e referências, é passado como des-encorpado, universal. Mais curioso ainda é notar como a crítica à educação jurídica nunca teve esta centralidade branca e seu falso universalimo como elementos fundamentais para compreensão da chamada “crise”, deixando entrever a profundidade em que o “pacto da branquitude” (Bento, 2022) opera no campo jurídico.

Bem diferente desta noção des-encorpada, o corpo assume centralidade nas narrativas das docentes negras (Avelar, 2023). Tanto quando apontam as violências, traumas e negociações decorrentes de ser um corpo-feminino-negro dentro de espaços de ensino jurídico, como quando analisam as possibilidades de ruptura, acolhimento e resistência que este mesmo corpo permite nestes espaços. Há uma afirmação da docência como uma práxis corporificada, ou seja, a todo tempo vivenciada e produzida a partir e por um corpo.

Consciente sobre os efeitos da presença do seu corpo negro-feminino, uma das entrevistadas desabafa que a todo tempo se pergunta como o aluno branco do Direito deve enxergá-la na sala de aula: “o que que ele sente? O que ele elabora? Em que medida ele está atento [ao que estou] falando? [...] Eu me fazia essa pergunta várias vezes ali na frente: que alcance está tendo o que eu estou dizendo?” (Avelar, 2023, p. 285). Além de produtor desses questionamentos, o corpo também protagoniza as estratégias de negociação. Lembrando sua experiência como coordenadora de curso, uma das professoras afirmou a necessidade de performar na “força”, por uma performance corporal masculina, de se afirmar pela “calça”, como anunciado por ela (Avelar, 2023).

Em alguns momentos, as narrativas de experiências a partir deste corpo-negro no ambiente jurídico se apresenta bem próximo da ideia fanoniana de ser “sobredeterminado pelo exterior”, “escravo” de uma “aparição” (Fanon, 2008, p. 108). Mas nem sempre isto implica em experimentação violenta. Como foi possível notar, algumas vezes, este mesmo corpo é âncora para processos de rupturas e resistências dentro da educação jurídica. Ou seja, a práxis docente negra, como ritual corporificado, permite a inscrição de outros debates, outras reflexões e outros afetos dentro do Direito.

O alcance, o impacto destes corpos negros-femininos vai além das “questões técnicas, pedagógicas”, como narra uma das professoras (Avelar, 2023), possibilita construção de diálogos e transferência com discentes negras/os, por exemplo; o corpo docente-negro-feminino mobiliza, ainda, o surgimento de questões e debates ainda que silenciosamente: “o fato de eu estar ali, já, ele [o debate racial] entra! E o fato de eu estar ali, ele entra e ele recorta, né, assim, esse assunto de diversas formas”, explicou outra docente (Avelar, 2023, p. 246). Pela “aparição” (Fanon, 2008) rompe-se a hegemonia do tradicionalismo jurídico, inscrevem-se outras linguagens: “Eu até discuti isso com eles [discentes], que somos isso né? Somos linguagem. Então, ‘minha pele é linguagem e a leitura é toda sua’. [...] Então, [...] eu acho que tem isso, né? Estar lá!” (Avelar, 2023, p. 250).

Por fim, apontar que há uma “uma grafia, uma linguagem [...] desenhada na letra performática da palavra ou nos volejos do corpo” (Martins, 2000, p. 84) e produzida no ato de ensino-aprendizagem, nos empurra de volta para a discussão anterior. Escancara-se ainda mais que, assim como o corpo negro, o corpo docente masculino-branco dominante na educação jurídica também produz e reproduz o fenômeno jurídico a partir de seu corpo e de seu lugar no mundo. É neste sentido que o imperativo de enegrecimento do corpo docente no Direito, tem a ver com relações historicamente apontadas pela crítica afrodiaspórica entre sujeito-corpo-conhecimento, ou seja, com a dimensão corpo-geopolítica (Bernardino-Costa et al., 2019) do conhecimento.

Uma educação jurídica em eterna crise precisa, então, enfrentar suas hegemonias, seus silêncios, pactos de violência e passar por uma refundação corpo-epistêmica. Esta refundação é fundamental para avanço da própria crítica que, enquanto hegemonizada por corpos-brancos-masculinos, não racializa os termos do debate, recusando-se a enfrentar suas responsabilidades e privilégios.

Considerações Finais

Os debates sobre a educação jurídica repetem um diagnóstico de crise. De início, muito se argumentou sobre a existência do bacharelismo, dogmatismo e caráter liberal. Nos últimos anos, depara-se com a atualização do capitalismo na educação jurídica: massificação, privatização, adestramento para concursos públicos e os desafios impostos pelas tecnologias de informação.

Há certa intimidade entre a crítica jurídica e as análises sobre a educação jurídica. Neste texto, apontamos a importância da crítica jurídica no Brasil, bem como seus silêncios em relação a raça. Se a crítica jurídica é também um legado do marxismo, perguntamos por que motivo a crítica jurídica nacional omite de seus relatos e ênfases contribuições críticas consolidadas, como a Teoria Crítica da Raça, que surge principalmente no âmbito das universidades estadunidenses e o campo de Direito e Relações Raciais no Brasil. Além disso, há autores brasileiros que trabalham o capital e a matéria a partir da centralidade da raça, conforme discutimos brevemente as contribuições de Clóvis Moura e Denise Ferreira da Silva.

Perguntar como a crítica se produz sem considerar o principal acontecimento que possibilitou o capitalismo e a presença do evento racial no mundo atual e consequentemente na cena jurídica, além de fragilizar a eficácia da crítica, tem outros desdobramentos. A crítica jurídica que não considera raça desvia da totalidade, não confronta a relação sujeito e objeto, e não pensa a sua posição racial na determinação do que é o jurídico, e quem pode adentrar a cena dos que podem falar sobre o jurídico. Mas, como propõem Laís Avelar e Maurício Araújo (2023), não se trata “de entregar a crítica às favas”, pois “a crítica à crítica é parte do reconhecimento deste campo, diferente daquele das tradições positivistas-dogmáticas, como um horizonte de diálogo e construção de uma visão do Direito enquanto espaço da liberdade" (Avelar; Araújo, 2023, p. 291).

As cenas da educação jurídica que mobilizamos então, são as ações afirmativas e as experiências de docentes negras no Direito. O ingresso de estudantes negros nas universidades, a princípio não reverberou na crítica jurídica. Por outro lado, a presença destes estudantes oferece demandas epistemológicas, que tem a ver com o repertório de vivências e expõem o lugar que o conhecimento moderno - de onde emerge a crítica jurídica - tenta submeter sujeitos racializados: o não lugar da intelectualidade. Escancara também quem são os que podem acessar a carreira docente e outros lugares de poder dizer o que é o Direito, como a pós-graduação em Direito e cargos de maior prestígio e poder no Sistema de Justiça.

As experiências de docentes negras na Educação Jurídica, ao articular gênero e raça, oferecem outros elementos críticos pouco considerados. A pesquisa de Laís Avelar (2023) em diálogo com outras docentes negras explicita categorias e experiências pouco valorizadas ou percebidas pela crítica jurídica: uma realidade de exclusão ainda mais aguda, quando há uma discrepância racial entre os que ocupam as carreiras docentes. A educação jurídica ainda é predominantemente branca e masculina, e quando as mulheres conseguem acessá-la são as mulheres brancas. Das narrativas das docentes emergiram três dimensões: 1) denúncias de despertencimento, 2) denúncias de um ensino assentado em experiências e referências brancas e 3) a docência como uma práxis corporificada.

O desvelamento da crítica jurídica que entendemos essencial não é para somar ao coro de crise e de desilusão. O ingresso de pessoas negras na Educação Jurídica, seja como discentes ou docentes, é oportunidade para enfrentamentos epistêmicos e agências negras. A Educação Jurídica tem se alterado diante destas presenças, resistências e do desvelamento da corporeidade, e cabe à crítica jurídica investigar sua corporalidade; afetar-se epistemologicamente e não tratar as contribuições negras como recurso de erudição e representatividade numérica; engajar-se na implementação das ações afirmativas não somente no ingresso dos estudantes e docentes mas nas alterações metodológicas e epistemológicas necessárias; ampliar as agendas de pesquisa considerando a urgência de pesquisa empírica sobre raça e gênero na educação jurídica; e construir espaços e estratégias mais democráticos de enunciação crítica e práxis jurídica.

Supplementary material
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Notes
Notes
1 Nesta vasta literatura nacional destacamos os trabalhos clássicos de Alberto Venâncio Filho, Alberto Machado, José Geraldo de Sousa Júnior, Horácio Wanderley Rodrigues, Roberto Lyra Filho, Sérgio Adorno, Luís Alberto Warat e outros.
2 Atribui-se a primeira evocação textual de uma “crise do ensino jurídico” ao jurista carioca San Tiago Dantas, na aula inaugural dos cursos da Faculdade Nacional de Direito, em 1955, intitulada: “A Educação Jurídica e a Crise Brasileira”. O texto completo está disponível em: https://santiagodantas.com.br/discurso/a-educacao-juridica-e-a-crise-brasileira/
3 Escrever a partir das próprias experiências na Educação Jurídica é recorrente, podendo ser possível identificar exemplos na literatura nacional e internacional. Destacamos entretanto, dois textos de juristas ligados à Teoria Crítica da Raça que problematizam a educação jurídica a partir de experiências: “Alchemy of Rights and Law” de Patricia Williams (1992) e “Pensando como um negro: Ensaio de Hermenêutica Jurídica” de Adilson José Moreira (2019).
4 Nesta vasta literatura nacional destacamos os trabalhos clássicos de Alberto Venâncio Filho, Alberto Machado, José Geraldo de Sousa Júnior, Horácio Wanderley Rodrigues, Roberto Lyra Filho, Sérgio Adorno, Luís Alberto Warat e outros.
5 A implementação da educação à distância nos cursos de bacharelado em Direito é uma demanda mercadológica intensa que se encontra sobrestada desde a Portaria nº 2.041 de 29 de dezembro de 2023 do Ministério da Educação. A Ordem dos Advogados do Brasil, instituição bastante presente no debate regulatório da Educação Jurídica, tem atuado na questão. É uma pauta de pesquisa pendente entender como este processo tem se delineado.
6 Nos referimos aqui à Resolução CNE/CES nº 7 de 18 de dezembro de 2018 que estabelece as diretrizes para a extensão na Educação Superior Brasileira e regimenta o disposto na Meta 12.7 da Lei nº 13.005/2014, que aprova o Plano Nacional de Educação - PNE 2014-2024 e dá outras providências. A previsão da curricularização está no “Art. 4º - As atividades de extensão devem compor, no mínimo 10% (dez por cento) do total da carga horária curricular estudantil dos cursos de graduação, as quais deverão fazer parte da matriz curricular dos cursos”.
7 A intelectual Beatriz Nascimento, assim como Mills (2023), aponta uma dimensão “mistificadora” das teorias produzidas pelos sujeitos brancos que, em geral, não enfrentam a questão racial: “O branco brasileiro de um modo geral, e o intelectual em particular, recusam -se a abordar as discussões sobre o negro do ponto de vista da raça. Abominam a realidade racial por comodismo, medo ou mesmo racismo. Assim perpetuam teorias sem nenhuma ligação com nossa realidade racial. Mais grave ainda, criam novas teorias mistificadoras, distanciadas dessa mesma realidade” (Nascimento, 2018, p. 45).
8 A crítica jurídica tem sido desenvolvida explicitamente em disciplinas jurídicas, como por exemplo, Criminologia, Direito Civil, Direito do Trabalho e outras.
9 Inclusive as autoras deste texto, cujas pesquisas de pós-graduação são possíveis por espaços originados da crítica jurídica, como o Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília, instituição onde nasce o Direito Achado na Rua.
10 A Teoria Crítica da Raça (Critical Racial Studies - CRT) consiste num movimento teórico-crítico de juristas racializados e racializadas (predominantemente negras e negros) que se desenvolveu em fins dos anos 1980, nos Estados Unidos, em crítica ao Critical Legal Studies (CLS). A CRT analisa e intervém criticamente na sociedade estadunidense pós direitos civis e explicita a função do direito na subjugação racial. Sobre o tema conferir: NERIS, Natália. Um efeito alquímico: sobre o uso do discurso dos direitos pelas/os negras/os. Revista Direito e Práxis, [S.L.], v. 9, n. 1, p. 250-275, mar. 2018. Disponível em:https://www.scielo.br/j/rdp/a/hWzsGqqfy9B9WrppRtTgG7Q/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 31 ago. 2022; DELGADO, Richard; STEFANCIC, Jean. Teoria Crítica da Raça: uma introdução. São Paulo: Contracorrente, 2021.
11 Remetemos à leitura do artigo de Rodrigo Portela Gomes, para maior profundidade e mapeamento do campo de Direito e Relações Raciais no Brasil.
12 Sobre os riscos da pesquisa acadêmica, a pesquisadora indígena Linda Tuhiwai-Smith (2019, p. 11) coloca questões importantes no livro Descolonizando Metodologias: “A palavra 'pesquisa', em si, é provavelmente uma das mais sujas do mundo vocabular indígena. Quando mencionada em diversos contextos, provoca silêncio, evoca memórias ruins, desperta um sorriso de conhecimento e de desconfiança, ela é tão poderosa que os povos indígenas escrevem poemas a seu respeito”.
13 Segundo Denise Ferreira da Silva (2007) é impossível que a crítica fundada nos descritores onto-epistemológicos modernos não reinscreva os sujeitos racializados no lugar do outro, destinado ao desaparecimento.
14 A dificuldade de acessar os dados e a invisibilização da variável cor/raça nos processos de construção dos censos oficiais dificultam a produção de análises sobre a desigualdade racial nas carreiras docentes no Brasil, conforme denunciam Rios e Mello (2019). Analisando o Censo da Educação Superior divulgado pelo INEP em 2019, a autora e o autor apontaram que, no ensino superior público e privado no país, apenas 16,4% são pessoas autodeclaradas negras (2% são pretas/os e 14,4%, pardas/os).
15 O epistemicídio pode ser entendido como um processo persistente de produção da inferioridade intelectual ou da negação, para certos grupos, da possibilidade de realizar suas capacidades intelectuais. Um dos aspectos da violência colonial o epistemicídio, para Sueli Carneiro, pode ser conceituado da seguinte maneira: “Para nós, porém, o epistemicídio é, para além da anulação e desqualificação do conhecimento dos povos subjugados, um processo persistente de produção da indigência cultural: pela negação ao acesso à educação, sobretudo de qualidade; pela produção da inferiorização intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitimação do negro como portador e produtor de conhecimento e de rebaixamento da capacidade cognitiva pela carência material e/ou pelo comprometimento da auto-estima pelos processos de discriminação correntes no processo educativo. Isto porque não é possível desqualificar as formas de conhecimento dos povos dominados sem desqualificá-los também, individual e coletivamente, como sujeitos cognoscentes. E, ao fazê-lo, destitui-lhe a razão, a condição para alcançar o conhecimento “legítimo” ou legitimado. Por isso o epistemicídio fere de morte a racionalidade do subjugado ou a sequestra, mutila a capacidade de aprender etc.” (Carneiro, 2005, p. 97, grifos nossos).
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