Dossiê: Direito e Práxis 15 anos: perspectivas para o horizonte da crítica do direito
Por uma crítica dos direitos sem garantias
For a critique of rights without guarantees
Por uma crítica dos direitos sem garantias
Revista Direito e Práxis, vol. 15, no. 3, e84160, 2024
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Received: 17 May 2024
Accepted: 20 July 2024
Resumo: O artigo é uma crítica sobre o quê pensamos sobre a luta por direitos, dirigindo-me, sobretudo, a nós, “críticos do Direito”, partindo de diferentes formas de organização política do campo popular brasileiro e de uma releitura da nossa tradição teórica. Adotamos a hipótese de que as maneiras de conceber a política de emancipação social está atrelada a como diagnosticamos e interpretamos o papel atribuído às lutas por direitos. Nossa contribuição a esse debate dialoga com recentes movimentos, coalizões e plataformas de luta, surgidas no país pós 2013, e que carregam em seus nomes, estratégias de ação e formas de organização política a centralidade da gramática dos direitos. Ilustraremos como essas experiências recentes, organizadas em coalizões e plataformas de sujeitos e de práticas, tramam, concreta e conceitualmente, uma ecologia organizativa de luta social que questiona nossos repertórios tradicionais de análise crítica, trazendo novos problemas sobre o que está em jogo quando abordamos as múltiplas crises da democracia liberal e os papéis da linguagem dos direitos para a transformação social. Em seguida, iremos resgatar, como vislumbre, parte da tradição da crítica dos direitos usualmente trabalhada no país, que tem servido de anteparo teórico para contestar as potencialidades das lutas sociais expressas em gramáticas jurídicas, para coteja-la frente aos caminhos abertos pelas experiências narradas. Propondo acrescentar às tradicionais agendas outra matriz reflexiva para a crítica dos direitos no Brasil, iremos explorar um caminho teórico aberto por nossas agendas de pesquisa recentes, que testa a rentabilidade da crítica dos direitos pensando-a por meio da teoria da organização política, como uma ecologia da práxis, e alguns de seus desdobramentos analíticos. O objetivo é ilustrar a rentabilidade de uma crítica mais política do que prescritiva sobre essas experiências, buscando regenerar nossos repertórios materialistas de análise, em termos “ecológicos”, reconhecendo como a pluralidade criativa de sujeitos e de práticas pode ser transformada em força e não em fraqueza das formas de luta social.
Palavras-chave: Crítica dos direitos, Luta por direitos, Teoria crítica, Teoria da organização política, Ecologia política.
Abstract: The article critiques our understanding of the struggle for rights, particularly addressing us, "legal critics." It draws on various forms of political organization within Brazil's popular movements and a reinterpretation of our theoretical tradition. We adopt the hypothesis that the ways we conceive the politics of social emancipation are tied to how we diagnose and interpret the role of rights struggles. Our contribution to this debate engages with recent movements, coalitions, and rights advocacy platforms that have emerged in the country post-2013, which emphasize the centrality of rights-based discourse in their names, action strategies, and political organization forms. We will illustrate how these recent experiences, organized in coalitions and platforms of subjects and practices, concretely and conceptually weave an organizational ecology of social struggle that challenges our traditional repertoires of critical analysis, raising new issues concerning the stakes involved when addressing the multiple crises of liberal democracy and the roles of rights language in social transformation. Subsequently, we will revisit, as a glimpse, part of the traditional critique of rights typically developed in the country, which has served as a theoretical bulwark to contest the potentialities of social struggles expressed in legal grammars, comparing it to the paths opened by the narrated experiences. Proposing to add another reflective matrix to the traditional agendas for the critique of rights in Brazil, we will explore a theoretical path opened by our recent research agendas, which tests the profitability of rights critique by considering it through political organization theory, as an ecology of praxis, and some of its analytical developments. The aim is to illustrate the profitability of a critique that is more political than prescriptive regarding these experiences, seeking to regenerate our materialist analysis repertoires in "ecological" terms, recognizing how the creative plurality of subjects and practices can be transformed into a strength rather than a weakness of social struggle forms.
Keywords: Critique of rights, Struggle for rights, Critical theory, Political organization theory, Political ecology.
1. Apresentação1
Nem todo trajeto é reto
Nem o mar é regular
Estrada, caminho torto
Me perco pra encontrar
Abrindo talho na vida
Até que eu possa passar
Source: Metá Metá
Este trabalho retoma reflexões que desenvolvi em 2019, em artigo publicado também na Revista Direito & Praxis, por ocasião de seus 10 anos, intitulado Geografia Jurídica Tropicalista. Escrevo para regenerar a aposta em um materialismo histórico espacialmente referenciado, pensando nos termos da organização política de recentes plataformas de lutas por direitos no país. Escrevo, também, desde a perspectiva de uma advogada popular e professora universitária, coordenadora do Grupo de Pesquisa LABÁ - Direito, Espaço & Política2, onde temos a oportunidade de formular, em investigações e projetos de extensão em parceria com diferentes sujeitos e entidades, parte de nossas análises teóricas. Por fim, escrevo também no terço final de minha primeira gestação, tentando amalgamar compaixão e crítica, nos termos de Angela Harris, para dialogar, com cuidado e indignação, com nossos repertórios de teoria crítica dos direitos.
A crítica, no sentido filosófico, é um voo sem garantias. Essa abertura para o futuro, contrária às amarras de destinação única, implica, necessariamente, um planejamento de voo que reconheça o caráter mutável e ativo do mundo e, consequentemente, dos percursos e dos planos de voo. Fabulando um diálogo entre dois teóricos críticos fundamentais, de tradição materialista, Milton Santos, brasileiro e Stuart Hall, britânico-jamaicano (Santos, 2006 e Hall, 2022), voar sem garantias não equivale a voar às cegas. Neste trabalho, dirijo-me, sobretudo, a nós, “críticos do Direito”, em um esforço de rever o que pensamos sobre as “lutas por direitos” de maneira atenta a como o mundo é em cada lugar, centralizando a dimensão política dessa tarefa. Trato menos de uma proposta revisionista, um apelo autoral conceitualmente escamoteado, e mais de somar às nossas melhores tradições teóricas um esforço de regeneração crítica, em que seu teste de verdade não dependa da paralisação do mundo para nos convencer dos nossos acertos e das nossas posições históricas.
Tratar a crítica materialista mais como método de pensamento e menos como um depósito substantivo de ideias que nos asseguram bons resultados - voar sem garantias - , serve como antídoto às armadilhas intelectuais que nos impedem de fazer “acordos com o mundo real”: levar a sério o que tem sido a luta por direitos no Brasil nos últimos anos, como ponto de partida crítico, responde para quê ela tem servido e o que ela tem podido ou não alcançar, mas não responde como a luta por direitos deve ocorrer ou qual a forma correta luta. Nosso plano de voo, nesses termos, suaviza e adiciona à prescrição do itinerário reflexivo a pergunta sobre as práxis atuais da luta por direitos, como lugar de partida para pensar sobre a transformação social. A libertação social não é algo que se deposita sobre os homens em explicações, revelações ou diálogo, afinal, como questiona Paulo Freire, quem, melhor que os oprimidos, para entender o significado terrível de uma sociedade opressora (Freire, 2013, p. 43)? A luta por direitos não ficou parada para caber nos mesmos repertórios teóricos que têm sido mobilizados para avaliar seu papel social emancipatório e ou intensificador das violências.
Partimos da hipótese de que as maneiras de conceber a política de emancipação social está atrelada a como diagnosticamos e interpretamos o papel atribuído às lutas por direitos. Trazendo para o nosso chão, iremos nos guiar pelo ciclo de lutas aberto a partir de 2013, cujos impactos ainda estão se desenvolvendo, para repensar os caminhos de suas expressões em uma “gramática jurídica”. Nos anos recentes, organizam-se, na sociedade civil, diversas entidades e movimentos sociais populares de escala nacional, que aderem à luta por direitos, em seus nomes e em suas bandeiras: para ficar com alguns, o Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos, de 2015 (antigo Movimento de Trabalhadores Desempregados); a Coalizão Direitos na Rede, de 2016; a Campanha Anti-Austeridade, denominada “Direitos Valem Mais”, de 2018; a Coalizão Negra por Direitos, de 2019; e o Movimento dos Trabalhadores sem Direitos, de 2022.
Essas expressões contemporâneas de lutas sociais no país e suas repercussões jurídicas serão o fio condutor do texto para interpelar outros caminhos de “crítica dos direitos”, pensando o contexto político e as condições materiais em que as lutas são organizadas hoje no país, não para recriminar, rejeitar ou aplaudir formas e sujeitos, mas para explorar possibilidades abertas de mudança social ignoradas e ou sufocadas pela “crítica tradicional”. Por essa expressão, denominados, grosso modo, os repertórios críticos (conceituais, normativos e políticos) majoritariamente mobilizados pelos teóricos críticos no Brasil, tomando como base principal para reconstrução (parcial e provisória) os argumentos presentes no dossiê de 10 anos da Revista Direito & Praxis, em 2019: diferentes tradições e escolas do pensamento crítico brasileiro e latino-americano, reflexões sobre as potencialidades presentes do materialismo histórico e perspectivas heterodoxas que ampliam o repertório da crítica dos direitos junto a matrizes pós-estruturalistas. Nossa proposta não é abandonar a reflexão conceitual ou o rigor para se pensar normativamente o mundo, mas de perspectivá-los com as experiências concretas, tomando-as seriamente como pontos de partida dos quais se evocam os repertórios teóricos.
No que se segue, proponho outra leitura para a matriz reflexiva da crítica dos direitos no Brasil, acrescentando às tradicionais agendas, uma perspectiva ancorada no debate sobre organização política, para mudar o eixo da pergunta sobre a luta por direitos: da tradicional prescritividade - o que deve ser? - para o debate da práxis - dada a diversidade própria desses repertórios sociais, como a transformamos em força e não em fraqueza? (Nunes, 2023). É um sintoma especialmente revelador da gramática das lutas sociais que as vítimas mais precarizadas do neoliberalismo, ao expressarem seus sofrimentos e reivindicações, façam uso da linguagem dos direitos. E é um sintoma especialmente revelador de alienação acadêmica que a crítica dos direitos caminhe mais sob os ditames históricos de seus próprios debates do que a partir dos sinais, práticos e políticos, das lutas que se aglutinam e transformam essa “gramática jurídica”. Como pensar o que está acontecendo? O objetivo é apresentar uma agenda de pesquisa em curso, sujando as mãos em experiências de luta e de formulações teóricas recentes, mantendo a pretensão tropical e pedestre de voar, em conexão com o solo, como entoa o Manifesto Antropofágico (Franzoni, 2019).
No contexto em que diferentes “momentos de perigo” socioambientais e políticos demandam respostas simbólicas e institucionais urgentes, propomos reler os repertórios epistêmicos e políticos da crítica dos direitos junto aos debates recentes sobre ecologia e teoria da organização política, para reposicionar o que está em jogo quando abordamos as múltiplas “crises” da democracia liberal e os papeis da linguagem dos direitos para transformação social. A virada à direita, em escala global, intensificada pela crise econômica de 2008 e a crise de legitimidade política e das instituições democráticas liberais que se seguiram, foram acentuadas pelas respostas governamentais à conjuntura e pela impotência reflexiva que limita os horizontes institucionais e simbólicos de emancipação social. A aliança entre as agendas neoliberais de governança e o conservadorismo político-moral tem combinado os elementos do anti-intelectualismo, do militarismo e do empreendedorismo, de maneira alastrada nas instituições e nas relações sociais, evidenciando que o ethos do “novo sujeito” circula entre diferentes grupos sociais e marca a preponderância da matriz discursiva do neoliberalismo, tornando as relações sociais mais suscetíveis aos apelos das agendas negacionistas e reacionárias (Nunes, 2022; Lynch e Cassimiro, 2022; Gago, 2018; Lacerda, 2019; Brown, 2019).
A literatura especializada tem nomeado essas dinâmicas de extrema fragmentação política, institucional, moral e simbólica na sociedade de crise de hegemonia e de crise dos sistemas de legitimação da ordem, que representam, também, uma fratura epistêmica e cognitiva na esfera pública (Cesarino, 2021; Mouffe, 2019; Fraser, 2019; Brown, 2019). Independente da nomenclatura e de suas diferenciações, esse contexto de instabilidade das instâncias de produção da ordem intensificam os conflitos entre os diferentes sistemas de ordenação social (Estado, Igrejas, poderes armados, movimentos sociais, sindicatos, escolas) (Feltran, 2014), também expressos na luta por direitos. Assistimos a uma captura confusa e temerária de estratégias progressistas, tradicionalmente associadas a partidos políticos, movimentos e organizações sociais em torno da defesa dos direitos humanos: a gramática dos direitos e a exploração da capacidade intervencionista do Poder Judiciário têm sido mobilizadas pela direita neoliberal e conservadora para destruir direitos, o uso de liberdades políticas clássicas (expressão, consciência, associação, protesto, religião) tem servido para criação de um campo de resistência antiprogressista em que a liberdade de pensar e de manifestar serve de anteparo para discriminação e perseguição de grupos, assim como para o desmonte de políticas sociais (Coelho; Almeida e Franzoni, 2021).
Esses processos de “desdemocratização" (Ballestrin, 2019) têm convivido com um acoplamento histórico e periódico entre o conservadorismo social, as opressões identitárias e o populismo de direita, de forma a questionar quais os papeis do Direito neste processo e das lutas sociais no seu reforço ou enfrentamento. Nestes anos de bolsonarismo e do que ficou conhecido como “aparthaid sanitário” (Pinheiro-Machado, 2022), esse pacto de morte do Estado-Capital acelerou o desmantelamento de medidas de seguridade social, o recrudescimento da violência contra movimentos sociais e a criminalização da pobreza, fomentando um ambiente hostil às redes de solidariedade e à defesa republicana da vida e da coisa pública. Esta não é, contudo, a história toda. Toda crise é uma crise vivida, o que implica a necessidade de se criar uma analítica para entende-la e que dê conta de como ela é experimentada pelas pessoas de carne e osso, expostas às intempéries. É nesse cenário, também, que a gramática dos direitos tem centralizado o eixo de gravidade de diversas articulações sociais por justiça.
As incertezas agudas quanto ao futuro e o apelo radical à contingência comandados por discursos conservadores e progressistas (não há alternativa, só há uma alternativa, a saída está nas repostas locais à conjuntura, ou nos totalitarismos de estados militarizados) retroalimentam um cinismo cognitivo e uma impotência reflexiva que estão e estiveram muito presentes no pensamento crítico - e, neste aspecto, como bradou Donna Haraway (1995)3, já erramos demais. Podemos, portanto, acolher o pensamento sobre a agência coletiva organizada, expressa, também, na luta por direitos, como um aspecto político importante para planejar voos rumo a futuros menos organizados pelos eixos de dominação vigentes. Para esta tarefa, nos amalgamamos ao caminho apontado pelo filósofo Rodrigo Nunes, em sua recente obra “Nem Horizontal, Nem Vertical: uma teoria da organização politica” (Nunes, 2023): pensar, da maneira mais honesta possível, as possibilidades abertas à transformação social em nosso tempo, os meios de que ela pode dispor e as formas que pode tomar.
Nunes apresenta uma ontologia da organização política como um continuum que vai da emergência de padrões organizativos simples até a decisão consciente por assumir uma determinada forma organizacional (definir estatutos, formas de filiação, lideres, eleição), entendendo que a transformação social não depende de uma estratégia ou de um partido, mas de uma multiplicidade de fatos combinados, de uma ecologia que nunca alcança um estado de equilíbrio final. Voltada à uma teoria da organização política que rejeita sua equivalência à forma-partido a obra discute, politicamente, uma teoria política sobre o que a organização é, sobre como pensar a respeito de organização e estratégia, e não sobre como se organizar ou sobre qual estratégia seguir. A radicalidade política dessa estratégia discute que muitos desafios das lutas sociais e políticas por transformação social estão além do debate conceitual e das prisões lógicas e ideológicas sobre a forma liberal do Estado de Direito e, nesses termos, diversos problemas concretos correm o risco de não serem devidamente pensados porque não cabem nos voos cegos das grandiloquentes teorias críticas.
O artigo se desenvolverá em três partes além desta apresentação. Primeiro, iremos ilustrar, sem a pretensão de desenvolver uma extensa ancoragem empírica dos exemplos e dos argumentos mobilizados, experiências recentes de lutas por direitos no país, que tem se desenvolvido em coalizões e plataformas de sujeitos e de práticas, tramando, concreta e conceitualmente, uma ecologia organizativa que questiona nossos repertórios tradicionais de análise crítica. Segundo, iremos resgatar, como vislumbre, parte da tradição da crítica dos direitos usualmente trabalhada no país, que tem servido de anteparo teórico para contestar as potencialidades das lutas sociais expressas em gramáticas jurídicas, para conjuga-la com os caminhos abertos pelas experiências narradas. Terceiro, iremos explorar uma senda teórica aberta por nossas agendas de pesquisa recentes, que testa a rentabilidade da crítica dos direitos pensando-a por meio da teoria da organização política, como uma ecologia da práxis, e alguns de seus desdobramentos analíticos.
2. Uma esquerda que não teme dizer direito
Um trabalhador? Sou sim
Pois tenho uma alma
Que deseja e sonha
Source: Mundo Livre S/A
A alma dos trabalhadores seria inútil, como um carro velho, se ela não sonhasse; como canta a música A Bola do Jogo, essa alma só daria “mais trabalho”. O filósofo Vladimir Safatle usa a expressão “pior politica” para designar variações de pensamentos de esquerda reféns de um pragmatismo anti-utópico; enquanto uns querem ser vistos como vitoriosos de uma época terminada de conflito ideológico, outros, denominados de viúvas da esquerda, nostálgicos melancólicos, entendem a arena dos conflitos e antagonismos sociais como limitada e intransponível, fornecendo a impressão de que nenhuma ruptura radical está na pauta do campo político (Safatle, 2012). Rodrigo Nunes nomeia de “dupla melancolia” o movimento pendular da esquerda entre a nostalgia da revolução russa e a derrota de maio de 1968: ao se definirem por oposição, as duas perspectivas manteriam uma a outra no mesmo lugar (2023, p. 87-88). Este cenário trágico, que não trata mais de pensar a modificação dos padrões de partilha do poder, de distribuição de riqueza e reconhecimento social, mas de gestão de modelos que se sabem defeituosos e que se afirmam como únicos possíveis (Safatle, 2012, p.14-15), retrata a imersão do nosso pensamento naquilo que Paulo Freire denomina de “fatalismo imobilizante”; um modelo de subjetividade, de razão e de governo neoliberal que se espraia entre os mecanismos de governança do “eu” e da política, rebaixando nossas expectativas quanto ao futuro e deflacionando nossa consciência política.
Olhar mais fundo, para além das pernas e braços dos trabalhadores - ou para além da estagnação do pensamento crítico - é um convite à contradição: experimentar as possibilidades de tirar, subir, girar a bola tradicional do jogo, entendendo os trabalhadores como sujeitos que têm desejos e sonhos - o que poderia, inclusive, mudar não só o resultado, mas o próprio significado do jogo; “bem-vindo ao no mundo”. Habitar as contradições é um alerta consciente da implicação recíproca dos avanços e recuos das lutas por direitos, das bolas desse jogo, e uma estratégia de teoria crítica materialista que compartilhamos para pensá-las de um ponto de partida situacional - aquilo que existe. A contradição que queremos explorar se situa no contexto em que o suposto esgotamento do pensamento de esquerda e suas melancolias paralisantes, que se desdobram em resignação política e institucional (Nunes 2023; Almeida, 2018; Safatle, 2016), convive com o surgimento de novas plataformas sociais de luta por direitos, que interpelam de forma variada o nosso contexto de múltiplas crises: quando mais precisamos formular e praticar mecanismos responsáveis de se fazer viver em meio a ruínas, estaríamos reféns do marasmo das derrotas sofridas e de um pragmatismo da “pior política”?
O que dizer, então, sobre junho de 2013 no Brasil? Se olhamos para os acontecimentos da última década no país, o violento golpe jurídico-parlamentar de uma presidente de esquerda, a extrema fragmentação e crise de legitimidade das instâncias de integração social, a chegada da extrema direita ao poder em 2018, em meio à irrupção de uma crise sanitária global e o retorno do governo do PT em 2022, apenas como um aprofundamento sistêmico de um “erro” consagrado em junho - tirar a política das instituições e gabinetes, para fazê-la também nas ruas - nos arriscamos a voar às cegas para pensar nossos desafios teóricos e práticos para transformação social. Se a esquerda não deve temer dizer seu nome, a teoria crítica tampouco deveria recusar-se a pensar com as lutas sociais. Nossa contribuição a esse debate dialoga com recentes movimentos, coalizões e plataformas de luta por direitos, surgidas no país pós 2013, e que carregam em seus nomes, estratégias de ação e formas de organização política a centralidade da gramática dos direitos. O objetivo é ilustrar a rentabilidade de uma crítica mais política do que prescritiva sobre essas experiências, buscando regerar nossos repertórios de análise, em termos “ecológicos”, reconhecendo a pluralidade criativa e sujeitos e de práticas.
O Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD), criado em 2015, é uma reorganização do antigo Movimento de Trabalhadores Desempregados. Esta entidade representa “aquelas e aqueles que vivem do trabalho, parte da grande classe trabalhadora, que muitas vezes ficam desempregadas/os, trabalhando informalmente sem nenhum direito e outras vezes ocupam postos de trabalho precarizados, terceirizados, de baixos salários”4. A luta por direitos centraliza os objetivos dessa entidade que pauta “o direito a um Trabalho Digno, a ter nossa Casa, com acesso à Saúde, a uma boa Alimentação, Educação para nós, nossos filhos, para nossos jovens e também acesso ao Lazer, ao Descanso, às diversas expressões Culturais”. Entendidos em maiúsculas, esses direitos são expressos pelo Movimento como “conquista de todo um povo”, rejeitando sua qualificação como favores ou mera assistência social. O MTD equivale direitos à “condições de vida”, para usar seus termos, em um adágio que simboliza a correlação entre esses direitos e a garantia da reprodução social.
Organizado em diferentes regiões do país, tendo caráter nacional, o MTD se estrutura por meio de núcleos territoriais, mobilizados em favelas e ocupações urbanas (Menezes, 2019). Seus repertórios de ação combinam o que nomeamos como trabalho de base e incidência política e jurídica, em diferentes esferas (comunidades, articulações da sociedade civil e órgãos públicos) e escalas (locais, regionais e nacional). Nas ocupações urbanas, por exemplo, o Movimento realiza cadastro e mobilização das famílias, distribuição de alimentos e itens de higiene pessoal, construção de hortas urbanas e de espaços culturais com os envolvidos. Como força política, além das ações de agitação e propaganda, a entidade integra, ainda, a Campanha Nacional Despejo Zero (CDZ) (Franzoni, Ribeiro e Pires, 2023), contribuindo com incidências políticas e jurídicas em torno da defesa do direito à moradia e de denúncia às políticas remocionistas.
A Coalizão Direitos na Rede5, criada em 2016, é um grupo que articula mais de 50 organizações acadêmicas e da sociedade civil em defesa dos direitos digitais, tendo como plataforma principal os princípios fundamentais para a garantia de uma Internet com acesso universal, respeito à neutralidade da rede, liberdade de informação e de expressão, segurança e respeito à privacidade e aos dados pessoais, assim como assegurar mecanismos democráticos e multiparticipativos de governança. Organizada para enfrentar diferentes ameaças aos direitos digitais, a Coalizão destaca uma série de ataques a direitos expressos na Constituição Federal e na Lei Geral de Telecomunicações, no que diz respeito à universalização da infraestrutura de telecomunicações que serve de suporte ao acesso à Internet, bem como aos direitos conquistados com o Marco Civil da Internet e seu regulamento, o Decreto 8.771, de abril de 2016, como agendas prioritárias de luta.
Essa plataforma plural se divide em 6 (seis) grupos de trabalho (GT) de caráter nacional, que refletem “as causas” da entidade: acesso, dados pessoais, eleições, inteligência artificial, liberdade de expressão, privacidade e vigilância. Cada GT pauta, sistematiza e promove ações combinadas de intervenção no debate público, nas políticas públicas e nas agendas legislativas e jurisdicionais, articulando diferentes repertórios de luta, como a incidência nas instituições de fiscalização e controle (Ministério Público Federal e Polícia Federal); participação como amici curiae em ações no Supremo Tribunal Federal (STF); produção de materiais de amplo alcance, cartas abertas, cartilhas, notas públicas e podcasts; e incidência parlamentar. Juntas, essas ações expressam um enfrentamento sistemático às ameaças aos direitos digitais, em escala nacional, que tendem a projetar mais as pautas do que as entidades envolvidas e que contribuem para um olhar púbico e não só individual para esse debate - a pauta é, sobretudo, a democracia e não a liberdade-propriedade.
A Campanha Anti-Austeridade, denominada “Direitos Valem Mais”6, de 2018, é um “esforço intersetorial comprometido com a democratização da economia e crítico às drásticas políticas de ajuste fiscal, adotadas pelo governo brasileiro nos últimos anos, que tanto destruíram a capacidade do Estado de proteger a população, de combater a miséria crescente e de efetivar políticas públicas garantidoras de direitos”. Já contribuíram para os acúmulos desta articulação mais de 200 associações, movimentos sociais e consórcios de gestores públicos; organizações, fóruns, redes, plataformas da sociedade civil; conselhos nacionais de direitos; entidades sindicais; associações de juristas e economistas e instituições de pesquisa acadêmica. A plataforma defende uma economia que esteja em prol das políticas de cuidado com a vida e com a concretização de um projeto de sociedade comprometido radicalmente como a justiça social, racial, de gênero e ambiental, com o bem viver da população e com a transição ecológica em um contexto de mudanças climáticas aceleradas.
Novamente, a defesa dos direitos está atrelada às agendas centrais para a reprodução social, sendo expressos pela Campanha como elementos fundamentais à vida coletiva e não apenas como garantias e liberdades individuais. Organizada em torno de temas urgentes no debate público, a Campanha prioriza as questões relativas ao controle do Teto de Gastos e do Orçamento Público, combinando diferentes instrumentos de mobilização e incidência política, como a produção de pesquisas e documentos técnicos; a advocacy legislativa, que pautou, por exemplo, retirar o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) do Teto; a construção de materiais educativos e atividades de mobilização e divulgação social, como as “Mil Rodas de Conversa”.
A Coalizão Negra por Direitos7, de 2019, articula mais de 240 organizações, entidades, grupos e coletivos do movimento negro brasileiro, em todo o país, que reafirmam seu legado de resistência, luta, produção de saberes e de vida, junto à defesa de princípios e de agendas concretas de transformação social. Partindo de uma concepção de Estado de Direito materializado na prática cotidiana de violências necropolíticas, essa articulação expressa como contraponto de esperança possível, a potência transformadora de mulheres, homens, jovens e LGBTTQI+, favelados e periféricos, aquilombados e ribeirinhos, encarcerados e em situação de rua, negras e negros, que formam a maioria do povo brasileiro. Os valores da colaboração, ancestralidade, circularidade, partilha do axé (força de vida herdada e transmitida), oralidade, transparência, autocuidado, solidariedade, coletivismo, memória, reconhecimento e respeito às diferenças, horizontalidade e amor são os guias para a produção de um vasto enredo de incidências políticas feitas, nos termos de sua Carta-Proposta, em seu próprio nome.
Organizada em perspectiva internacionalista, essa Coalizão em “defesa da vida, do bem-viver e de direitos arduamente conquistados, irrenunciáveis e inegociáveis", busca unificar em luta toda a população afro-diaspórica, por um futuro livre de racismo e de todas as opressões. Por meio da definição de 14 princípios e de 25 agendas de incidência política, a entidade promove ações articuladas para o enfrentamento ao racismo, ao genocídio e às desigualdades, injustiças e violências derivadas desta realidade. São repertórios de trabalho a realização de campanhas de conscientização, denúncia e advocacy; a produção de materiais técnico-políticos para intervir em produções legislativas, situações de violação de direitos, discussões jurisdicionais, eleições, estruturas administrativas e debates públicos; participação como amici curiae em ações no STF e forte incidência internacional nos órgãos de defesa dos direitos humanos.
O Movimento dos Trabalhadores sem Direitos8, de 2022, os “SEM DIREITOS”, como anunciam, é uma entidade popular que articula parte da população brasileira que “não tem emprego fichado, é tudo temporário, por conta própria, precarizado, sem proteção social, sem respeito à saúde e à vida do trabalhador”. O movimento faz referencia aos camelôs, ambulantes, costureiras, diaristas, entregadores e motoristas de aplicativos, manicures, cozinheiras, catadores de recicláveis, pedreiros, trabalhadoras e trabalhadores informais “que passam a vida inteira na correria para garantir formas de sobrevivência para suas famílias”. Denunciando um mundo do trabalho que “é selva e cada um está por cada si” ou que engana os trabalhadores por meio de promessas vazias de melhora, “por não ter mais que bater cartão”, os Sem Direitos convocam e constroem a união e a força coletiva para que os governos criem políticas públicas que assegurem direitos essenciais e que vincule as empresas. Estão na agenda da entidade a luta pelo trabalho, renda, comida, moradia e saúde que, se não garantidos, serão conquistados “na marra”, como evidencia a história.
Organizado em rede com o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), os Sem Direitos têm dimensão nacional, estando presente em diferentes centros urbanos do país, como São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Recife, reforçando e atualizando repertórios de ação política como ocupações para fins de trabalho, uso e moradia; atos e manifestações de rua e incidência política. Ainda, o Movimento produziu e divulgou um documento, “Propostas para uma Política Nacional para o Trabalho da Economia Popular”, com estratégias concretas “de governo” para enfrentar o contexto violento e aterrador de desigualdade social que denunciam.
De um breve levantamento das cartas de princípios dessas organizações, seus documentos de apresentação e dos materiais representativos de suas atuações, ao menos cinco questões/pautas aparecem como fundamentais: um, o combate à desigualdade socioeconômica e à sua necropolítica, combinado às demandas por reconhecimento na vida social e institucional; dois, a posição de que essas desigualdades sociais, raciais, reprodutivas só serão devidamente enfrentadas por forte intervenção de políticas estatais (não pelo livre mercado) de redistribuição de poder e riqueza, expressa também nas lutas por terra, moradia, benefícios sociais, direitos digitais; três, a defesa da democracia, como um contra-ataque à captura das instituições e espaços majoritários pelos poderes do dinheiro e da violência, e quatro, como defesa da soberania popular, combinando direito de resistência com a defesa intransigente dos direitos de liberdade (nas eleições, na internet, nas ruas); e por fim, o compromisso político popular que traduz os problemas e as necessidades sociais da perspectiva dos que são mais vulneráveis a eles e, sobretudo, de uma forma que faça sentido para as camadas populares.
Do que extraimos dos materiais da Coalizão Negra por Direitos, nota-se, por exemplo, que a questão central das lutas por reconhecimento das diferenças está necessariamente vinculada às agendas de justiça social, pleiteando-se uma universalidade não constituída, mas existente, e não a defesa de grupos distintos muito organizados do ponto de vista identitário. Essa plataforma, que aglutina interesses de sujeitos diversos, mulheres, homens, jovens e LGBTTQI+, favelados e periféricos, aquilombados e ribeirinhos, encarcerados e em situação de rua, negras e negros, pretende-se uma força organizadora de lutas por direitos que centraliza a agenda anti-racista e sua capilaridade institucional, que desenha um “sujeito coletivo de determinação provisória” e que disputa dentro e fora dos aparatos estatais (incidências politicas “em seu próprio nome”). Nesses termos, a luta por direitos acontece, na nossa avaliação, abrindo-se para um campo produtivo de indeterminação parcial sobre seus sujeitos, descentrados de identidades fixas, mas “unificados em luta”, contribuindo para o que Jacques Rancière (2014) denomina de trazer de volta a promessa de universal de forma polêmica; ao contrário do que as lutas por reconhecimento são acusadas de desenvolver.
Ainda, a Coalizão Direitos na Rede e Direitos Valem Mais, não abrem mão do fortalecimento da capacidade de intervenção do Estado, rejeitando abertamente soluções privadas para problemas públicos e coletivos, entendendo, em termos práticos, que não temos, ainda, outros meios eficazes para o controle das desigualdades e para o enfrentamento das fraturas sociais. Defender o Estado como agente principal para determinadas necessidades sociais não impede de entendê-lo, também, como instância de legitimação das violências. O que parece interessante nessas iniciativas é a compreensão do próprio Estado como escala - uma visão que entende o aparato institucional a partir do que ele tem sido: uma miríade de relações que não formam um bloco fechado e coeso, que pode ser permeável a diferentes tipos de ações, a depender das correlações de forças envolvidas. E uma recusa em abandonar o alcance e a capilaridade estatal para demandas “universais”, rifando-as aos interesses privados.
O MTD e os Sem Direitos estão, concretamente, organizando pessoas que experimentam as variadas formas de exploração e precarização nos centros urbanos, em torno de demandas representadas juridicamente como necessidades das trabalhadoras e dos trabalhadores, dispostos a fazer valer o exercício da soberania popular, via desobediência civil e direito de resistência. Essas entidades estão, também, fazendo a luta por direitos agindo com e contra o sistema institucional, à despeito da querela conceitual que questiona suas práticas como reformistas ou revolucionárias. Combinando informais, camelôs, ambulantes, sem teto, desempregados, sub empregados, os Movimentos articulam necessidades sociais como moradia, trabalho, saúde, segurança, educação, em amálgamas jurídicos, como direitos devidos a sujeitos plurais, construindo uma unidade que reside, também, mais na luta (força e função) do que na identidade (forma).
As lutas por direitos que não temem em associar mais direitos a demandas materiais e sociais concretas, com caráter universal, expressam também demandas por justiça: são disputas que incorporam, vão além ou são indiferentes ao marco normativo existente, polemizando a promessa de universal instituída, reinserindo-a em outras bases. Essas experiências “desobedientes” podem ser vistas como práticas criativas em direção ao aprofundamento da democracia, não necessariamente em termos liberais. Situações de conflito envolvendo ocupações temporárias ou permanentes em defesa de direitos, como a moradia, o trabalho, a alimentação, não são apenas direitos de resistência, mas exibem fraturas da própria lógica dos direitos individuais liberais, como a propriedade privada e as afirmações do individualismo. Há um reforço contraditório, problemático e criativo que aponta para conteúdos normativos para o Direito e os direitos além de matrizes liberais, ainda que mobilizando mecanismos internos e outros externos ao Estado de Direito.
A experiência de base do MTD em ocupações urbanas, por exemplo, e sua participação, junto à Coalizão Negra por Direitos, na Campanha Nacional Despejo Zero (CDZ), ilustram ações que mobilizam o excesso político dos direitos para conflagrar outras imaginações institucionais, respostas públicas e subjetivações políticas. Em moratória inédita, nacional e internacionalmente, a CDZ arrancou do Supremo Tribunal Federal, por um período de um ano e cinco meses, a suspensão dos despejos em todo o território brasileiro, em assentamentos urbanos e rurais, durante a pandemia de Covid-19 (Franzoni; Ribeiro e Pires, 2023). A pluralidade de sujeitos e práticas, unificada e testada em luta, evidencia uma ecologia de ferramentas e de repertórios simbólicos e políticos forjados junto ao cotidiano de quem vive as consequências da exploração e da precarização. Suas repercussões contemporâneas, desdobrando-se em decisões e situações que, por vezes, se traduzem em mais vida, mais dignidade e chance de futuros mais justos, para essa população, devem ser incorporadas ao pensamento crítico sobre os direitos.
Voar, sem plano de voo adaptado aos terrenos e trajetos, nos cega nas arenas complexas das formas contemporâneas de lutas sociais. Quais questões devemos fazer sobre a luta por direitos, para construir a crítica, sem pretender ter todas as respostas? Estarmos munidos de excelentes ferramentas teóricas não nos livra do trabalho duro de melhorá-las junto às situações, aos conflitos e os seus desdobramentos sociopolíticos.
3. As (in)consistências da crítica dos/aos direitos: nem nostalgia, nem ocaso
Qualquer
Lapso, abalo, curto-circuito
Qualquer susto que não se mereça
Qualquer curva de qualquer destino que desfaça o curso de qualquer certeza
Qualquer coisa
Qualquer coisa que não fique ilesa
Qualquer coisa
Qualquer coisa que não fixe
Source: Arnaldo Antunes
Iremos resgatar, como vislumbre - já que parcial e incompleto, a tradição da crítica dos direitos mobilizadas no país e que tem servido de anteparo teórico para contestar as potencialidades das lutas sociais expressas em gramáticas jurídicas. Esta reconstrução tomará como base o dossiê de comemoração dos 10 anos da Revista Direito & Praxis, publicado em 20199. Ao todo, 10 (dez) artigos produzem balanços importantes sobre diferentes tradições e escolas do pensamento crítico brasileiro e latino-americano, reflexões sobre as potencialidades presentes do materialismo histórico, a partir da atualização e da revisão do pensamento do teórico do Direito E. Pachukanis e textos críticos articulados com perspectivas heterodoxas, ampliando o repertório da crítica dos direitos junto a matrizes pós-estruturalistas. Apresentaremos os principais argumentos mobilizados neste dossiê, uma fonte ilustrativa importante de aspectos mais ou menos estáveis do pensamento crítico sobre o Direito e sobre a crítica dos direitos no país, como um exercício breve, mas fundamental, de auto-reflexão teórica; nos avaliar enquanto avaliamos a história e os ganhos da crítica.
Somos herdeiras de uma vasta e plural tradição crítica que tenciona o legado dos direitos liberais com o seu papel na humanização de intervenções militares, monetárias e moralistas nas diferentes formas de vida. A luta por direitos e seus repertórios de justiça social, por reconhecimento e redistribuição (Fraser, 2003), convivem com uma herança crítica que tem expressado as contradições desses processos em termos lógicos - a inclusão dos subalternizados no regime de direitos positivados não tem sido capaz de eliminar diferentes formas de dominação e exploração, e em termos ideológicos - enquanto proclamamos que a Ordem Jurídica nos garante igualdades formais, vamos legitimando, na prática, desigualdades sociais que se desenvolvem por meio desses próprios direitos. Propomos, junto a essas questões, adicionar a pergunta: como esses repertórios críticos, cujos argumentos aparecem vislumbrados no dossiê estudado, contribuem para a análise política sobre a atualidade das lutas por direitos no país, exemplificada no item anterior? Além de pensá-las normativamente, essas teses trazem quais vantagens para a reflexão sobre a práxis dessas lutas (como se articulam, quais estratégias são mais funcionais, como as contradições se institucionalizam, por exemplo)?
A Crítica Jurídica Brasileira, se é que podemos nomeá-la como um campo bem delimitado, é múltipla, tendo seu desenvolvimento atravessado longos períodos de regime autoritário, cujas marcas violentas já precediam e se atualizam no nosso Estado de Direito. Como já pudemos desenvolver (Coelho; Almeida e Franzoni, 2021), as formulações teóricas construídas desde o início do século XX, nesse território simbólico-material afro-latino, carregam, em suas diferenças, compromissos históricos com as lutas sociais e com as trajetórias intelectuais que reivindicam os direitos como instrumento de libertação dos povos e à serviço dos mais pobres. Esse imaginário e a prática jurídica estão, como tendência, atrelados à crítica da violência colonial em suas multifacetadas expressões e transformações históricas na forma-jurídica e na forma-Estado. A crítica jurídica amefricana, nos termos de Lélia Gonzalez, manifesta-se embebida nos acúmulos do materialismo-histórico de maneira entrecortada por outras tradições, agências e forças que mobilizam as lutas no continente: a teologia e a filosofia da libertação, o bem-viver ameríndio e os saberes de matriz africana.
Trabalhos jurídicos fundacionais atrelando direito e as relações raciais foram desenvolvidos por intelectuais negras que denunciavam o papel do sistema jurídico na construção de desigualdades e hierarquias raciais (Ferreira; Queiroz; 2018) e, articulado nacionalmente, vivenciamos histórico e importante movimento de crítica dos direitos, sobretudo na segunda metade do século XX, deflagrado pelo Movimento do Direito Alternativo (MDA) e a Nova Escola Jurídica Brasileira. O resgate e a consolidação desses debates e movimentos críticos têm sido feitos pelo campo do Direito Insurgente, dando contornos históricos e organicidade ao pensamento crítico latino-americano (Pazello, 2018) e pelo Pensamento Jurídico Afrodiaspórico (Pires, 2019; Moreira, 2020), contribuindo fundamentalmente para o desenvolvimento e para visibilizar a longa trajetória, estrategicamente esquecida, das teorias jurídicas raciais no continente.
Agrupamos os materiais do dossiê em três blocos, tendo vista suas semelhanças normativas, epistêmicas e bibliográficas: (i) crítica “descolonial”10 e perspectiva situada; (ii) crítica marxista lógica e ideológica; (iii) e crítica heterodoxa. Evidente, outro arranjo dos textos poderia ser produzido e, portanto, ressalto o seu caráter particular voltado a um exercício de contestação de determinados repertórios críticos, para regenerá-los - não abandoná-los - junto à outras questões trazidas pelas experiências mencionadas de luta por direitos e seus desdobramentos político-normativos. Ou seja, o vislumbre proposto quer mais uma "zona de contestação”, nos termos de Haraway, em que importantes posições teóricas são reciprocamente confrontadas com desafios políticos e pragmáticos, do que propor um caminho preciso e definido para a crítica.
Os textos do primeiro bloco, “Pluralismo jurídico: um referencial epistêmico e metodológico na insurgência das teorias críticas”, de Antonio Carlos Wolkmer; “Crítica das dimensões modernas: a historicidade dos direitos humanos desde o giro descolonial nuestroamericano”, de Andriw Loch e Lucas Fagundes; e “O Direito Achado na Rua: condições sociais e fundamentos teóricos”, de José Geraldo de Souza, apresentam uma perspectiva de crítica contra-hegemônica, normativa e epistemologicamente, situada nas práticas do “sul global”. Os trabalhos releem a tradição do materialismo histórico por meio do giro descolonial, das práticas sociais locais e dos saberes periféricos.
A proposta do artigo de Wolkmer é repensar a própria teoria crítica a partir de uma hermenêutica orientada pelo “Sul”, apresentando o “pluralismo jurídico” como uma prática social fundada nos múltiplos saberes periféricos e contra hegemônicos e como uma alternativa epistemológica e metodológica ao Direito individualista-liberal e universalista. Partindo da insuficiência dos repertórios tradicionais da metodologia etnocêntrica liberal, o autor defende que essa revisão da crítica pode servir como orientação contrária à absolutização da aplicação normativa, da homogeneização social e da presunção de neutralidade do Direito, que tendem a reforçar a perpetuação da colonialidade e da supremacia do Norte-global, pela difusão da ideologia do individualismo possessório e do próprio capitalismo. As principais referências utilizadas são os teóricos Enrique Dussel, Joaquim Herrera-Flores, Anibal Quijano, Nelson Maldonado-Torres, Boaventura de Sousa Santos e Liliana López.
Este compromisso com a praxis também aparece no texto de Andriw Loch e Lucas Fagundes, que debate a historicidade dos Direitos Humanos, desde uma perspectiva descolonial, para questionar a tradição teórica liberal que narra sua “evolução em gerações/dimensões de direitos”. Novamente, o “eurocentrismo” e “etnocentrismo” são denunciados como violência epistemológica, que ao imprimir um caráter homogeneizante aos Direitos Humanos, lidos em perspectiva evolutiva e linear, criam uma dupla armadilha: invisibilizam a forma como as lutas anticoloniais por direitos se deram nos países da América Latina e da África, e hierarquizam a história europeia como um padrão estável a ser seguido, por meio do referencial atrasado/moderno. Na discussão proposta são, novamente, referenciados os autores Enrique Dussel, Anibal Quijano, Nelson Maldonado-Torres e Boaventura de Sousa Santos, além de Franz Fanon, Alejandro Rosillo Martínez e Catherine Walsh.
O terceiro texto deste bloco, do professor José Geraldo de Souza Júnior, apresenta um balanço epistêmico, normativo e institucional do projeto Direito Achado na Rua. Desenvolvido na esteira do processo de redemocratização do país e da criação e fortalecimento de importantes movimentos sociais populares e partidos políticos progressistas, este projeto, resultado de reflexões e práticas de diversos intelectuais da “Nova Escola Jurídica Brasileira” influenciados por Roberto Lyra Filho e pelo MDA, repercutiu em propostas para mobilização do discurso e da prática jurídica de forma atrelada à defesa dos direitos humanos, à ampliação da cidadania, à justiça social e ao aprofundamento da democracia. Responsável por revolucionar o ensino do Direito na UnB, com repercussões conceituais e práticas presentes em todas as regiões do país, o Direito Achado na Rua desempenha um papel fundamental para a formação crítica do Direito, construindo uma linha de pensamento transformadora que surge da rua (espaços públicos), na busca por bases epistemológicas e práticas categóricas no processo de mudança social (“humanismo emancipatório”). As principais referências trabalhadas no artigo foram os teóricos Boaventura de Sousa Santos e Roberto Lyra Filho.
Com contribuições teóricas e políticas fundamentais para a crítica dos direitos, estes textos priorizam um questionamento situado da tradição jurídica-liberal, aprimorando nosso repertório epistêmico e prático para o trabalho transformativo da doutrina, do ensino e da luta por direitos, centralizando experiências e autores do “sul global”. O Direito, conforme trabalhado pelos textos, é compreendido como um sistema não-popular e etnocêntrico, fundamental aos processos continuados de colonização, operando como um mecanismo moderno de dominação que impede o avanço de pautas progressistas. De acordo com essa perspectiva, o “verdadeiro” direito, oriundo da perspectiva dos movimentos sociais, das ruas, dos sujeitos periféricos, só pode ser conhecido e empregado na transformação social caso sejam vencidos os obstáculos de ocultamento e dominação do discurso universalista liberal. Como consequência, o Direito estatal é, quando muito, uma ferramenta tática de disputa, a ser apropriada e vencida por consensos comunitários produzidos pelo “campo popular”, com origem em lutas nas ruas, nas favelas, nos quilombos, nas comunidades e territórios tradicionais.
Essa descrição apressada de um debate tão assentado importa para sumarizar alguns desafios dessas perspectivas “descoloniais” que, para fins analíticos, irei agrupar em apenas dois11: a estabilização do “popular” como identitarismo e os “localismos” de partida que reificam a experiência conflitiva e multifacetada das lutas. O que aparece como estabilizador nesses estudos é, também, aquilo que pode traí-los na sua pretensão normativa emancipadora. A circularidade da denúncia da modernidade colonial e de sua tradução em instrumentos jurídicos de dominação mascarados pelos repertórios da igualdade formal e da universalidade dos direitos humanos pode contribuir para a manutenção de uma lógica identitária aplicada às camadas populares (os subalternizados e colonizados) (Franzoni, 2018). Ao contrário do que buscam argumentar, esses textos de matriz descolonial tendem a produzir uma compreensão igualmente identitária do “sujeito oprimido”, traduzido em oposição ao “sujeito padrão”, refugiado em uma dimensão fetichizada “das experiências locais” que são, antes de tudo, marcadamente plurais, diversas e contraditórias.
Esses “localismos” de partida podem, ademais, prejudicar uma compreensão política das lutas por transformação social, ao entenderem que apenas essas práticas dispersas, de fronteiras e limites bem demarcados junto ao “povo” e aos “movimentos sociais”, trazem contribuições radicais, em chaves anti-universalistas, para além do Estado de Direito liberal. O risco é rifarmos as marcas dessas experiências em vitórias e conquistas institucionais, apagando o movimento dialético do próprio liberalismo político-jurídico, que, em termos pragmáticos, representa avanços fundamentais para a organização política e para reprodução social mais justa12. Embora a escola do Direito Achado na Rua matize esse dualismo “nós X eles”, reconhecendo as potencialidades de lutas dentro e fora dos aparatos institucionais, o seu apelo nostálgico em relação a promessas não-cumpridas (do momento constituinte em 88, por exemplo), transformado em um crucial horizonte emancipatório, dificulta o aparecimento de “imaginações institucionais” críticas que empurrem para frente (se apropriar do futuro), e não para trás (voltar ao passado), os projetos de transformação social.
As experiências de movimentos, coalizões e plataformas por direitos, nos últimos anos, evidenciam um agir em múltiplas escalas - de esferas institucionais, do social e geográficas - que reforçam a importância de pensar as lutas por direitos em chaves analíticas que combinem a importância do local e do global. Rodrigo Nunes dá o nome de “ação distribuída” para os repertórios políticos que mesclam ações coletivas (pessoas que convergem intencionalmente e se envolvem em processos de planejamento e deliberação) e ações agregadas (resultado agregado de múltiplas pequenas mudanças, onde as pessoas percebem a si mesmas como participantes de uma identidade comum mais ampla) (Nunes, 2023, p. 43). Não podemos recusar, na crítica, a tarefa de pensar a dimensão sistêmica dos problemas radicais (pobreza, desigualdade social, crise climática), nem abandonar as riquezas que advém de ações mais dispersas de enfrentamento. O que queremos defender é que o ponto de partida da teoria crítica dos direitos deve ser a “ação distribuída” das experiências de luta e não o tipo de organização política por de trás ou a tradição intelectual a que se filiam.
O segundo bloco do dossiê apresenta diferentes argumentos teóricos que resgatam a crítica da economia política materialista, para atualizá-la frente ao contexto de reestruturação produtiva do capitalismo financeiro e globalizado, às exigências de se pensar a exploração desde o “sul global” e para testar repertórios normativos de diferentes autores do campo. Os textos “As diferenças entre o marxismo jurídico de Roberto Lyra Filho e Márcio Bilharinho Naves”, de Nathalia Souza e Paulo Costa; “Forma e Violência Jurídica na Acumulação Capitalista: sobre relações de troca e expropriação”, de Guilherme Gonçalves e o “O capital como sujeito e o sujeito de direito”, de Vinícius Casalino, aprofundam o argumento lógico e ideológico de que a forma-jurídica liberal e seu sistema positivo de propriedade privada e contrato protegem e definem o sistema econômico de exploração capitalista, ainda que sob um regime de igualdade de direitos, denunciando sua “falsa consciência” e aprimorando conceitos fundamentais à crítica jurídica marxista.
O artigo de Nathalia Souza e Paulo Costa questiona a possibilidade de uso emancipatório do Direito, na ordem capitalista, a partir da divergência entre dois autores críticos brasileiros. Enquanto Roberto Lyra Filho, defensor da tese da superveniência do direito, acredita que este prevalece em relação ao fim do sistema capitalista e às vontades da classe dominante, sendo fundamental na própria luta social, Márcio Bilharinho Naves, ao contrário, defende a tese da não superveniência do direito, entendendo-o como um importante instrumento capitalista, fundamental para a lógica de universalização do circuito de trocas. Lyra se escora nas obras da G. Hegel, G. Lukács, E. Bloch, A. Gramsci, e autores da Escola de Frankfurt. Naves fundamenta-se, sobretudo, em L. Althusser e E. Pachukanis.
A contribuição de Guilherme Gonçalves trabalha o antagonismo complementar da teoria do fetichismo do Direito de Pachukanis e a teoria da acumulação primitiva de Marx para explicar a difusão sociojurídica do capitalismo no mundo, com enfoque no “sul global”. O ponto de partida do autor são as diferentes dinâmicas de reprodução capitalista, que incluem a forma fetichizada da troca (institucionalizada) de equivalentes e da exploração do trabalho assalariado, e os processos continuados de acumulação primitiva de capital, mobilizados pelo uso da força e da violência explícita. Conforme Gonçalves, a teoria pachukaniana, insuficiente à realidade imposta pela colonização, não explica a expansão do capitalismo nas periferias que nunca possuíram igualdade formal ou ficção de indivíduos proprietários. Neste contexto de violência institucional explícita, o Direito é força bruta, criando-se e legitimando-se simultaneamente nas mãos daqueles que capturam territórios e, por consequência, expandem o capitalismo por meio da lógica da acumulação primitiva. As principais referencias mobilizadas pelo autor são Karl Marx, Rosa Luxemburgo e E. Pachukanis.
Revisitando, também, a teoria de Pachukanis, o trabalho de Vinícius Casalino propõe uma reelaboração teórica do conceito de sujeito de direitos; além de representação da mercadoria, essa categoria representaria também os movimentos do “valor” que, ao se autonomizar como sujeito do processo capitalista, refletiria nas pessoas, nos seus desejos e comportamentos, os atributos do próprio capital. Como consequência, o conceito marxista de fetichismo que, a princípio, reflete nas mercadorias atributos que são do trabalho humano, existiria, também, em um segundo grau: liberdade, igualdade, propriedade privada e autonomia da vontade, atributos que, em tese, são atrelados à pessoa e lhe conferem independência em relação à mercadoria e ao dinheiro, são, na verdade, atributos do valor, que usa o corpo biológico da pessoa como suporte-titularidade de seu próprio movimento. Reescrevendo Pachukanis, para Casalino o valor assume posição tanto de sujeito quanto de substância do processo de produção; sua apresentação objetiva é o fetiche da mercadoria e sua apresentação subjetiva é o fetiche do sujeito de direito. As principais referências do artigo são Karl Marx, E. Pachukanis e Márcio Bilharinho Naves.
Esse apanhado teórico marxista resgata e atualiza debates primordiais para a crítica dos direitos, pensando e reescrevendo com autores e enfoques situados, ensinamento importante do materialismo histórico: a determinação histórica do nosso mundo e das nossas relações implica que não há contradições e lutas sociais que se originem apenas na vontade dos sujeitos. As formas de vida, os processos sociais e sua transformação emancipadora estão inscritos em limites históricos do terreno que operamos. Nesses termos, a crítica dos direitos melhora quando lida junto às atualizações conceituais que amarram acumulação primitiva, sujeito de direitos e rupturas institucionais, às transformações do capitalismo e das relações sociais. Ocorre que, como defendemos, a noção de que todas as contradições na sociedade, como as concernentes às lutas por direitos, começam com a contradição entre capital e trabalho pode acarretar no que denominados de “truque do transcendental” (em diálogo com o “truque de Deus”, de Haraway).
Essas amarras conceituais e epistêmicas que integram o truque, grosso modo, operam como um artifício indulgente com as nossas tradições intelectuais que tende a subestimar a “disciplina da conjuntura”, conversando com Hall, e invisibilizar a pluralidade das práticas, ao operarem pelo dualismo rompimento total X uso estratégico do Direito. Os debates sobre a crítica dos direitos que se concentram no tema da forma-jurídica liberal e seus mecanismos (revistos e atualizados) de alienação, tendem a apresentar uma orientação prescritiva em que se pergunta, sobretudo, que tipo de premissas teóricas ou até mesmo ações e condutas devemos comungar para atingir que tipo de resultado: um mundo que será revelado por trás do véu que nos esconde ou deturpa “a verdade”. Nossa proposta, nos termos da ecologia política de Rodrigo Nunes, passa por uma modulação da pergunta: “dado o que é, o que podem ser” as lutas por direitos?
Quando centramos a “verdade” da crítica dos direitos, exclusivamente, nas diferentes armadilhas da forma-jurídica liberal, nos arriscamos a trazer, pela porta de trás, a ideia de que há uma única maneira, ou forma de luta política e epistêmica que deveria ser compartilhada por todos os engajados na transformação social. Admitir a “pluralidade ecológica” como ponto de partida dessas lutas, sem pressupor que elas poderiam ou até mesmo deveriam em algum momento se homogeneizar ou convergir numa só entidade ou sujeito coletivo, forma-política ou discurso, evita uma crítica “oposicionista” que invisibiliza a diversidade de saberes-práticas disponíveis, que não devem ser descartadas de antemão, sob a justificativa de não se adequarem à “cartilha”.
Como evitar o equívoco de descartar ou perder processos de transformação por enquadrá-los como dissonantes de um conteúdo revolucionário? Como evitar que a análise normativa necessária aos processos de transformação se desligue das apostas feitas por aqueles que estão mais expostos às intempéries? Pensar por adição, como ensina Haraway, reconhece a continuidade produtiva dos legados teórico-práticos de que somos herdeiros, de maneira composta à inversão da pergunta que se dirige, primeiro, às experiências. Partir do que está acontecendo nos auxilia a explicar, ainda, que o caráter popular e progressista das lutas por direitos advém menos de sua filiação a um sujeito político determinado, ao tipo/nome/forma de organização ou à cartilha a ser seguida e mais do arranjo das forças e da capacidade dos sujeitos envolvidos nas disputas.
Para construir uma nova ordem política, cultural e jurídica não é preciso refletir um coletivo ou um projeto já formado, como lembra Stuart Hall, mas modelar um novo coletivo, inaugurar um novo projeto histórico. Como nossos inimigos não jogaram parados, precisamos constantemente reavaliar seus movimentos, lembrando que não há garantias que os trabalhadores (o povo, os subalternizados, os colonizados) atuarão segundo seus supostos interesses diretos, muito menos que a crise do capitalismo beneficiará os anticapitalistas (Hall, 2022). A lição é simples; sem o truque, nos resta o trabalho de fazer acontecer e, portanto, nos imergir, também, na compreensão política das práticas.
Reconhecer que as contradições que organizam as lutas por direitos habitam múltiplas causalidades, além do conflito capital X trabalho, o compreende como uma determinação fundamental, mas não equivalente, autônoma ou apriorística às outras determinações sociais. As denúncias contra o racismo religioso protagonizadas pela Coalizão Negra por Direitos, por exemplo, articulam sujeitos, repertórios de ação e pautas diferentes e completares: ações públicas de denúncia, como o “Ato Minha Fé é Antirracista - em Defesa de Todas as Vidas Negras”, relativo ao brutal assassinato João Alberto Silveira Freitas, em um supermercado da rede Carrefour, na cidade de Porto Alegre; o manifesto “Enquanto houver RACISMO, não haverá DEMOCRACIA", documento político que exige o comprometimento da sociedade brasileira com o fim do processo contínuo de genocídio da população negra e as diversas ações de incidência em defesa das pessoas e das religiões de matriz africana. Direito à vida, Justiça social, democracia e tolerância religiosa, centralizadas pela agenda antirracista, como defendido, são agendas que demandam estratégias combinadas de enfrentamento e defesa que, por vezes, vão além do conflito capital X trabalho.
O terceiro e último bloco do dossiê apresenta textos que agrupamos como exemplos de críticas heterodoxas13. Os artigos “Geografia jurídica tropicalista: a crítica do materialismo jurídico-espacial”, de minha autoria; “Para que serve ser uma pessoa no Direito? Diálogos no campo crítico”, de José Rodrigo Rodriguez e Simone Silva, e “Raça como elemento central da política de morte no Brasil: visitando os ensinamentos de Roberto Esposito e Achille Mbembe”, de Danielle Araújo e Walkyria Santos, incorporam referenciais teóricos pós-estruturalistas, para fazer, grosso modo, a “crítica da crítica” e apresentar outras bases epistêmicas para trabalhar a crítica do Direito e dos direitos.
O texto de minha autoria desenvolve o marco teórico da Geografia Jurídica Crítica para contribuir com a Teoria Crítica do Direito articulando-a a um materialismo situado, engajado, epistêmica e politicamente, com as dimensões socioespaciais da reprodução social. A proposta teórica testa uma formulação que serve de guia para trabalhar o potencial de se pensar direito e espaço conjuntamente: a forma-jurídica configura os aspectos da nossa existência a partir de certas imagens do espaço que tendem a forjar - de forma acoplada, historicamente, à economicização de todas as esferas da vida - a compreensão do jurídico como algo apartado da política e da fenomenologia dos corpos. O artigo detalha as repercussões do “giro espacial” das abordagens jurídicas, dimensionando um materialismo-espacial que invoca a necessidade de abraçarmos os pontos de vista que cruzam cultura, ecologia, política e reprodução social para reconstruirmos metodologias e análises sobre os enlaces entre Estado e Capital que levem em conta as perspectivas e as diferentes posições dos corpos que produzem e se afetam nas situações e conflitos estudados. As principais referências são Henri Lefebvre e Andreas Philipopoulos-Mihalapoulos.
Opondo os pensamentos de Pachukanis aos de F. Neumann, M. Foucault e J. Butler, o artigo de José Rodrigo Rodriguez e Simone Silva, reavalia, criticamente, o papel da pessoa humana e das liberdades no Direito. Para os autores, o desafio contemporâneo, em sociedades complexas, exige dimensões que ressaltem as relações entre subjetividades, poder e conflito para avaliar a forma e o conteúdo dos direitos. Rejeitando a perspectiva de Pachukanis, em cotejo com a de Neumann, compreendem que a igualdade formal e a autonomia por ela gerada são fundamentais para as lutas dos trabalhadores e para o caráter emancipatório do Direito, pois permitem a inclusão de novas agendas e disputas, dinamizando instituições e conflitos sociais. Essa igualdade se materializa na figura do “sujeito de direitos”, garantindo uma individualização que ampara a reivindicação de demandas. Os autores trazem ainda Foucault e Butler para trabalhar as relações entre reivindicações e lutas por direitos como exercício de liberdades e de uso dos aparatos normativos que podem ressignificar sujeitos e institucionalidades.
O artigo de Danielle Araújo e Walkyria Santos trabalha os conceitos de biopoder e necropolítica, de forma racializada, combinando os repertórios de Roberto Esposito e Achille Mbembe, para discutir a política de morte da população negra brasileira, junto aos dados do Mapa de Violência e Atlas da Violência. Atrelando racismo e biopoder, as autoras discutem as relações entre colonialidade e liberalismo universalista, para conformação de um “necropoder”, cuja expressão máxima de soberania residiria na capacidade de escolher quem pode viver e quem pode morrer, controlando, como forma de governo, a própria mortalidade da população. Nesses termos, a raça se tornaria um dispositivo tanatológico, que objetifica a população negra e sustenta o temor da onda negra com base em práticas persuasivas do Estado em criar um “corpo marginal, perigoso, sujo e monstruoso, quase não humano”, cuja exclusão seletiva e reiterada do sistema de direitos e garantias constitucionais operaria, ideologicamente, como uma “prevenção” para a sociedade, um cuidado de si próprio.
Esses trabalhos protagonizam uma retomada indecorosa do materialismo histórico, confrontando-o com abordagens heterodoxas da crítica dos direitos e do Direito, compreendendo o legado do liberalismo político-jurídico de forma conflitiva e polêmica. Entendendo que as lições trazidas pelas teorias feministas, teorias raciais críticas, teorias do discurso e da linguagem reafirmam que o direito é disputado e contestado na sua criação e na sua aplicação, esses artigos conectam representação simbólica, discurso normativo e as formas de exercício do poder aos corpos, aos territórios e às relações sociais, problematizando as correlações entre direito, subjetividades, política e apropriação privada. A crítica da economia política e a crítica da forma-jurídica podem ser coloridas (Coelho, Almeida e Franzoni, 2021). Essa proposta epistêmica, anunciada em maior ou menor medida nos trabalhos do terceiro bloco do dossiê, ainda está por ser aterrada nos repertórios de crítica dos direitos.
Algumas das experiências apresentadas pelos repertórios de lutas por direitos no país, anteriormente descritas, assumem a junção de várias agendas políticas e teóricas lidas como inconciliáveis, como compromissos práticos simultâneos. A conexão entre lutas por direitos e transformação social pode avançar justamente porque fracassa. Não se trata de ignorar as armadilhas perniciosas da luta por direitos e muito de seu rebaixamento político e alienação, nem de relativiza-las, mas de afirmar que a melhor maneira de evitar essas armadilhas é compreender o que deve ser conservado e reconstruído no interior de nossos ideais, aquilo que neles não se reduz à mera aderência rebaixada ou alienação.
Dizer que o Direito é um campo de disputa aberto à ressignificação política dos sujeitos e das práticas, assim como evidenciar as vantagens epistêmicas que o giro espacial trás para evitar que a teoria jurídica caia nas armadilhas tradicionais do campo crítico, ou assumir a centralidade da raça para o trato crítico e irrecuperável do liberalismo, contribui para ampliar nosso repertório sobre as relações entre poder, conteúdo dos direitos e suas armadilhas. Contudo, em que medida avançam na tarefa política da crítica, de pensar a partir dos usos, “sujando as mãos” em formulações teóricas sobre como organizar a luta por direitos de forma que reforcem nossas plataformas de transformação social, que façam sentido para os mais vulnerabilizados e que funcione?
Os repertórios das Teorias Raciais Críticas (Harris, 2012; Crenshaw, 2002; Willians, 1991; Delgado, 1987) no campo do Direito, inclusive, trouxeram contribuições cruciais para repensar o radicalismo anti-liberal, complexificando o debate sobre as diferentes raízes da opressão e o que está em jogo quando se luta por direitos. Embora reconheçam as ambiguidades do discurso e da racionalidade jurídica, os críticos raciais não são contrários à sua mobilização. Para esses autores, a luta pelos direitos civis, nos Estados Unidos, provou que minorias podem beneficiar-se do discurso dos direitos; além disso, compreendem que, no contexto de subordinação racial, os direitos possuem uma importância transformadora que transcende o problema de seu “caráter indeterminado”, sendo um centro de gravidade fundamental para as lutas sociais e um mecanismo de “pausa” àqueles que, de outra forma, avançariam nos instrumentos de opressão. Por apostarem na restruturação de aparatos teóricos e práticos para a lida com os direitos de maneira radicada na visão dos grupos subalternizados, o movimento operou diferenças importantes com a Critical Legal Studies tanto na forma de diagnosticar os fundamentos da exploração, da subordinação e da dominação; quanto nas estratégias para superá-las.
Temos uma vasta crítica ao conteúdo dos direitos no país, mas temos pouca elaboração sobre a luta por direitos como forma de organização política, sobre sua dimensão institucional e suas estratégias (ações, argumentações), escalas de atuação, redes e arranjos. Retomando a pergunta de Richard Delgado, será que os críticos têm o que as minorias querem e precisam? Para além de enquadrar os direitos na aposição prévia de categorias teóricas, como contribuir com a tarefa de “construir o social”, já experimentada e formulada pelas lutas? Como sintetiza Safatle (2012), além de teorias sobre o poder, precisamos também de boas teorias de governo: refletir quais são as técnicas jurídicas, os tipos de endereçamento institucionais e de incidência política, à altura das transformações que queremos alcançar.
4. A droga da crítica dos direitos: o veneno, o remédio e a receita
Peguei um balaio, fui na feira roubar tomate e cebola
Ia passando uma véia, pegou a minha cenoura
"Aí minha véia, deixa a cenoura aqui
Com a barriga vazia não consigo dormir"
E com o bucho mais cheio comecei a pensar
Que eu me organizando posso desorganizar
Da lama ao caos, do caos à lama
Um homem roubado nunca se engana
Source: Chico Science/Nação Zumbi
As lutas por direitos são, ao mesmo tempo, algo que precisamos e algo que devemos temer? Entendê-las apenas como perigo, ou adotá-las como único meio de transformação social, reforça um dualismo que impede de enxergarmos tratar-se mais de responder sobre a dose do que sobre a substância: dependendo da medida, os direitos, como condições de possibilidade de muitas lutas sociais, são veneno e remédio14. Nossos repertórios teóricos que indexam a luta por direitos, nos formatos atuais, às fórmulas que forçam a compreensão da realidade à luz de suas próprias premissas intelectuais, podem se equivocar por contribuirem para reflexões incorretas e, sobretudo, por projetarem práticas que mal compreendem o nosso mundo. Não basta dizermos que a luta por direitos é uma arena de disputa em que, simbólica, política e juridicamente temos vivenciado muitas derrotas. Nos termos de Stuart Hall (2022), a proposta crítica deve lembrar que a nossa história não é apenas indexada pelas deduções incorrectas que por vezes são feitas sobre ela, mas também é marcada e obscurecida pelas práticas erradas que adotamos como resultado de uma má compreensão de tudo.
Um antídoto possível é pensar, como convoca Rodrigo Nunes, as ecologias das formas de organização política experimentadas por essas entidades e plataformas, que estão conectadas a conteúdos de esquerda e com projetos de emancipação social. A proposta não é, reitero, nos render à indulgente paixão pela prática, mas, ao contrário, nos forçar a pensar melhor. Unir, nas contradições abertas por essas novas experiências, crítica política e discursiva. Nesses termos, a teoria crítica deve se abrir para a construção de diagnósticos que compreendam a ecologia da práxis dessas lutas e suas experiências de organização, além de debater, exaustivamente, as armadilhas de determinadas amarras conteudísticas. Pensar melhor a transformação social e as lutas por emancipação, envolvendo as perguntas sobre como esses grupos se articulam, trabalham, que estratégias têm funcionado, o que pode ser reproduzido e ter sua capilaridade e amplitude reforçada, reconhecendo uma pluralidade de práticas e de organizações, pode contribuir para revisitarmos nossas propostas sobre as estratégias de repartição de poder, de distribuição de riqueza e reconhecimento social, em tempos de urgências sociais e climáticas.
Fazer a crítica dos direitos nos termos de uma “ecologia política”, insisto, passa por criar pensamento sobre nossas práticas, sem temer infringir os mandamentos revolucionários anti-Estado, anti-liberalismo. Do contrário, e isso é fundamental, ficaremos reféns de doutrinas e teorias jurídicas sobre o sentido e conteúdo das normas, o controle e fiscalização dos poderes, as técnicas de raciocínio jurídico - sobre o quê fazer e o que deve ser feito -, produzidas por pensamentos mais conservadores, amalgamados ao individualismo metodológico e à lógica da eficiência econômica. Não por acaso, as correntes “neoconstitucionalistas”, de análise econômica do Direito, de contratualização do Direito Administrativo, têm hegemonia para tratar, em termos supostamente progressistas, as discussões “de governo” sobre os direitos, em contextos de crise democrática, crimes ambientais, inovações tecnológicas e perpetuação de desigualdades.
Pensando com as experiências contemporâneas de luta por direitos que têm se dado em coalizões e plataformas de sujeitos e de práticas, dizer-se em nome dos direitos parece querer dizer mais que a distorcida retórica liberal que amalgama direito e propriedade privada, pela ideia do contrato entre sujeitos (Franzoni, 2018, p. 63-75). Os direitos, como expressão de liberdades, representariam o sistema de defesa dos interesses particulares dos indivíduos, de suas propriedades privadas e de seus modos de expressão, sendo, em última instância, modulações do direito de propriedade (Franzoni, 2018; Safalte, 2012, p. 68). O caráter plural das estratégias de luta dessas coalizões e movimentos, sua forma de organização em rede e em diferentes escalas e a centralidade de demandas coletivas, por exemplo, impossibilitam o esgotamento dos sujeitos que representam nas determinações identitárias atualmente impostas e na equivalência entre direitos e propriedade privada. Ainda, essas diferentes plataformas e movimentos expressam uma correlação entre direitos e reprodução social da vida que rearranja, de forma interessante, a defesa da democracia e da articulação entre justiça social, racial, reprodutiva e climática. Não o tempo todo, em todas as práticas, decisões e formatos.
O que não podemos abandonar, contudo, é a habilidade política em construir pontes que podem forçar nossa imaginação institucional a se apropriar de uma lógica que torce e adiciona às gramáticas tipicamente liberais (e neoliberais) de pensar-fazer, estratégias mais republicanas para a defesa dos direitos. As contradições, recuos e limites desses processos recentes de luta, podem indicar, ainda, um novo tipo de fracasso, um erro em novas bases, que não aciona, de maneira viciada, os diagnósticos tradicionais da crítica. Abre-se a possibilidade, nesses termos, de pensarmos as relações entre direitos, trasindividualidade15 e republicanismo (bem comum?), com as agendas de transformação social, sem nos aprisionarmos na espera de um determinado sujeito coletivo, de determinada forma de luta e de um compromisso normativo pré-acabado para nos guiar.
A potência coletiva de agir dessas entidades e plataformas expressa a dimensão política de suas organizações, que trabalham o poder em termos daquilo que ele é (como se acumula, concentra, reproduz e mantém); como ele é empregado (quais as melhores estratégias e táticas para qual finalidade); e como o poder pode alcançar melhores resultados (quais os objetivos, cotejados às circunstancias e recursos existentes).16 O que pode parecer irreconciliável em termos conceituais e desafiar nossa habilidade de compreensão crítica são, por vezes, “práxis à quente”, dimensões organizacionais que testam caminhos políticos, agendas e procedimentos, conectando objetivos de transformação social mais amplos, com objetivos de transformação diários - como conectar o fim do mundo, com o fim do mês?17. Nesses contextos, o que era um instrumento de emancipação pode também se tornar uma força usada para deter e desviar, em vez de amplificar e canalizar, a capacidade de agir coletiva das lutas por direitos. Como entender esses possíveis desequilíbrios entre esforços e efeitos das lutas, levando em conta as armadilhas da forma jurídica liberal e também as estratégias de organização mobilizadas pelos sujeitos e entidades?
A crítica sem garantias é, nos termos de uma ecologia política da praxis, um pensamento que não recusa “a receita” para lidar com o veneno e o remédio das lutas por direitos, mas a trabalha desde uma perspectiva eminentemente política - quais as doses, em quais contextos? - e menos prescritiva - para este mal, só há essa medida. Propomos, ao menos, três repercussões teórico-práticas que integram nossa agenda de pesquisa em curso: (i) trabalhar a luta por direitos como “ação distribuída”, (ii) que conta mais sobre a força de sujeitos diversos que se distribuem de diferentes modos, do que sobre a forma de suas expressões políticas e que, nesses termos, (iii) se compõem como sujeitos políticos coletivos indeterminados.
As recentes plataformas por direitos têm a característica de combinarem diferentes organizações políticas (partidos, movimentos sociais, entidades, ONGs, grupos universitários) em torno de agendas comuns, diferentes procedimentos de lutas (comunicação e mobilização popular, incidência política, litigância, trabalho de base) e diferentes escalas de atuação (local/nacional/internacional, dentro e fora de instituições do Estado). Como nebulosas, nos termos de Rodrigo Nunes, essas ecologias de luta, com diversos graus de centralização, podem contribuir para a combinação de ações coletivas (como as ações da Campanha Despejo Zero), com ações agregadas (como as campanhas nos espaços digitais por uma Ministra Negra no STF, “#MinistraNegraJá”), estruturando espaços comuns em que essas ações comunicam-se, relacionam-se e estabelecem entre si circuitos de feedbacks positivo e negativo (Nunes, 2023, p. 44).
Operando como uma rede, o circuito aberto por essas lutas ajuda a pensar Estado, Direito, Mercado, por exemplo, como escalas e miríade de relações (Franzoni, 2019). Não há um ente ou um direito fora das relações e dos conflitos sociais existentes, para serem aplicados ou levados aos casos - essas entidades, ao contrário, são “coisas e relações” que integram os próprios conflitos. Como ações distribuídas, as lutas por direitos mencionadas lembram, para os voos de qualquer crítica, que não há uma sede específica do poder para ser atacada, destronada e ocupada. Nesses termos, o que fazer e como pensar devem estar articulados à compreensão do poder (do Estado, do Direito, do Mercado) incutido nos meandros profundos da vida cotidiana e, claro, nos endereços tradicionais (Parlamento, mercado financeiro, nos meios de comunicação de massa).
O argumento crítico de que as lutas por direitos reforçam mecanismos de alienação e poderiam ser intercambiadas pelas lutas por necessidades sociais, pode avançar no debate simbólico e prático do fetichismo18, mas não deixa de recair em diversos problemas concretos que a efetivação das necessidades continua exigindo, ao se relacionarem com o Estado e as instituições jurídicas (além das inadequações conceituais e políticas já apontadas pelas TRCs). Crimes ambientais, crises sanitárias, colapso climático, alimentação adequada, educação, envolvem necessidades sociais cuja resposta passa por organização, escalas e capilarização dependentes, necessariamente, dos direitos, das instituições e do Estado - quem mais precisa, evidentemente, sabe muito bem disso. O olhar cético para a luta por direitos pode ser também um olhar clínico e político de seu exercício como forma de luta social, como estratégia de organização integrante de diferentes repertórios de lutas politicas, ao invés de limá-lo conceitualmente como uma anti-forma universal. Não é e não será sempre necessário que a luta social se traduza como luta jurídica, mas isso não exclui a luta por direitos como parte importante das ecologias políticas de transformação social.
Ao mesmo tempo, essa distribuição (de ações, de sujeitos, de repertórios) como prática política também evidencia que as lutas por direitos não encarnam um sujeito coletivo unificado, um meta-indivíduo nos termos liberais, necessariamente. Parte das lutas contemporâneas tem dimensões “transindividuais”, ou seja, referem-se a processos de unificação parcial e contingente, atrelados às agendas e pautas políticas ligadas aos princípios e ao momento político das organizações. A compreensão dessa dimensão indeterminada do sujeito coletivo impede que moralizemos, pelos mecanismos simplistas de crítica, as práticas dessas lutas como contraditórias ou irrefletidas - por exemplo, evita afirmarmos que participar de mesas de negociação com empresas e órgãos do Estado seria paradoxal à agenda política antirracista de combate ao genocídio negro ou que litigar perante o STF por justiça social contraditaria a luta de base pela organização popular. A transindividualidade pode indicar, novamente, que parte dos dilemas e contradições dessas lutas são problemas radicais a serem resolvidos na prática: não está prescrito e proscrito quando e quanto da luta social deve se traduzir em luta jurídica.
Esses processos experimentais e organizados de disputas em gramáticas jurídicas - o ponto de encontro de muitas lutas sociais populares -, pode construir, também, processos de subjetivação política transformadora (Franzoni, 2018). Há a constituição de uma “pedagogia das lutas” que expressa o aprendizado coletivo que se adquire pela participação nessas redes e coalizões, como algo que se acumula e que se pode reproduzir. O caráter contingente do sujeito coletivo (sujeito universal indeterminado), forjado nas tramas das “ações distribuídas” dessas plataformas, indica quem e em nome da experiência de quem essas lutas fazem e falam. E, ainda, manifesta-se como expressão de outras subjetividades emergentes, capazes de contrapor-se ao neo-sujeito neoliberal, que só podem surgir pela práxis da organização e resistência coletivas, e se espalhar, difusa e intergeracionalmente, nas camadas mais desprotegidas da sociedade. Essas apostas, inclusive, integram debates fundamentais de juristas críticos como Angela Harris e Patricia Willians, cujos materiais estão disponíveis em português e publicados na Direito & Praxis19.
A busca da crítica dos direitos pela forma é sintomática de um apelo nostálgico que aprisiona nossa imaginação em mecanismos, por vezes, despolitizantes e elitistas. O ceticismo perante a luta por direitos - e seus desdobramentos institucionais e intelectuais20 - é um importante aliado à compreensão dessas práticas como forças que não, necessariamente, realizam ou perpetuam as formas. O crítico cético é aquele que enxerga como essas experiências administram a tensão entre as diferentes forças que atuam dentro de determinadas formas, entendendo que o funcionamento, a perpetuação, a destruição ou transformação dessas formas dependem, justamente, dessas próprias tensões. Decidir por concentrar esforços técnico-jurídicos para que mudanças sociais ocorram impulsionadas pelo Sistema de Justiça e ou fortalecer repertórios de desobediência civil, são dilemas práticos (conjunturais, históricos) das lutas por direitos que, se fixados de antemão, negligenciarão a potência das práticas coletivas.
Retomando o fim do meu artigo de 2019, “contra as elites vegetais, em comunicação com o solo”, a crítica sem garantias é, também, uma contestação entre tempo e espaço. Grande parte dos “modelos de crítica dos direitos” operantes na literatura nacional não centralizam o tempo e suas repercussões (teóricas, simbólicas, práticas) para o debate político-intelectual, em espécie de voo cego inconsequente. Identificar problemas comuns a diferentes tradições do pensamento crítico sobre os direitos; destrinchar categorias que temos como ganhas, percebendo inconsistências em nosso pensamento e elucidar decisões práticas de experiências de lutas por direitos, que nos auxiliam a pensar quais escolhas são melhores e piores, aqui e agora, são ferramentas ecológicas, espaço e temporalmente referenciadas, para se viver em mundos com chance de futuros mais justos. O tempo de esperar por uma revolução é o tempo em que continuamos falando sobre nós mesmos. Melhor seria revolucionar pensamento e ação a partir de outras lógicas e dimensões de tempo, em coalizão epistêmica e política com as lutas sociais, entendendo que dá trabalho mover-se da lama ao caos, do caos a lama, para garantia de imaginações e mundos com chances de futuros mais justos.
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Notes