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Plataformas digitais como Aparelho Ideológico de Estado: precarização do trabalho e subjetividade jurídica na sociedade neoliberal
Celso Naoto Kashiura; Oswaldo Akamine; Tarso de Melo
Celso Naoto Kashiura; Oswaldo Akamine; Tarso de Melo
Plataformas digitais como Aparelho Ideológico de Estado: precarização do trabalho e subjetividade jurídica na sociedade neoliberal
Digital platforms as Ideological State Apparatus: precarious work and legal subjectivity in neoliberal society
Revista Direito e Práxis, vol. 15, no. 3, e83057, 2024
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
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Resumo: O avanço da precarização do trabalho e o desenvolvimento da tecnologia da informação no arranjo social específico que caracteriza o capitalismo contemporâneo suscita a discussão sobre o papel das plataformas digitais no processo de reprodução das relações de exploração específicas desse momento histórico. Partindo das concepções de Evgeni Pachukanis e de Louis Althusser e buscando uma aproximação para com as reflexões de matriz foucaultiana de Pierre Dardot e Christian Laval, o presente artigo propõe o entendimento das plataformas digitais como aparelho ideológico de Estado que realiza uma ideologia regional centrada na subjetividade empresarial (ideologia do empresariamento de si). Conclui-se, assim, que o aparelho ideológico das plataformas digitais atua na reprodução das relações de exploração características da sociedade neoliberal pela constituição de uma forma de subjetividade que promove ativamente o próprio assujeitamento como vivência imaginária de uma relação do empresário com seu próprio “capital humano”.

Palavras-chave: Aparelho ideológico das plataformas digitais, Ideologia do empresariamento de si, Subjetividade jurídica.

Abstract: The dissemination of precarious work and the development of information technology in the specific social arrangement that characterizes contemporary capitalism raises a discussion about the role of digital platforms in the process of reproduction of the specific exploitation relations of this historical moment. Taking as a starting point the conceptions of Evgeni Pashukanis and Louis Althusser and attempting an approach to the Foucauldian reflections of Pierre Dardot and Christian Laval, this article proposes to understand digital platforms as an Ideological State Apparatus that performs a regional ideology centered on the entrepreneurial subject (ideology of self-entrepreneurship). It follows that the ideological apparatus of digital platforms acts in the reproduction of the relations of exploitation characteristic of neoliberal society through the constitution of a form of subjectivity that actively promotes its subjection under the imaginary experience of a relation between the entrepreneur and his own “human capital”.

Keywords: Ideological apparatus of digital platforms, Ideology of self-entrepreneurship, Legal subjectivity.

Carátula del artículo

Dossiê: Direito e Práxis 15 anos: perspectivas para o horizonte da crítica do direito

Plataformas digitais como Aparelho Ideológico de Estado: precarização do trabalho e subjetividade jurídica na sociedade neoliberal

Digital platforms as Ideological State Apparatus: precarious work and legal subjectivity in neoliberal society

Celso Naoto Kashiura
Faculdade de Direito de Sorocaba - FADI, Brasil
Oswaldo Akamine
Faculdade de Direito de Sorocaba - FADI, Brasil
Tarso de Melo
Strong Business School, Brasil
Revista Direito e Práxis, vol. 15, no. 3, e83057, 2024
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Received: 23 March 2024

Accepted: 17 May 2024

Introdução1

Um espectro parece rondar as projeções imaginárias de sociedades futuras às quais somos apresentados pela literatura e pelo cinema: o espectro da criatura que se volta contra o criador, do avanço tecnológico que reduz a humanidade à submissão, da máquina que se faz sujeito e assujeita a espécie humana. A história da ficção científica repete sem descanso esse assombro: o Moloch devorador e a robô fantástica de Metropolis, as “leis da robótica” que visam prevenir o desastre em Eu, robô, o ardiloso HAL9000 de 2001, os replicantes de Blade Runner, a Skynet e o dia do juízo final de Exterminador do Futuro, a rebelião das máquinas e a prisão virtual de Matrix são apenas alguns exemplos. Que tais exemplos alegorizam, em grau variado, o temor do capital - certamente não por acaso identificado à “humanidade” - quanto à sublevação dos trabalhadores explorados - identificados, a princípio, à máquina e ao assujeitamento - é por si evidente, mas não se trata, por ora, de tematizar essa alegoria. Trata-se de colocar em questão essa inversão imaginariamente associada à tecnologia, de assujeitada a sujeito, confrontando-a com uma alternativa: os avanços tecnológicos, sobretudo aqueles relacionados à tecnologia da informação e à inteligência artificial, podem produzir não simplesmente a temida situação em que a espécie humana é despida da condição de sujeito, mas, ao invés disso, novas modalidades de subjetividade.

Nesse sentido, diante do fenômeno cada vez mais intenso, no arranjo específico que caracteriza o capitalismo contemporâneo (que podemos identificar como sociedade neoliberal - cf. itens 2 e 3 e especialmente notas nº 10 e 23 abaixo), da precarização do trabalho mediante plataformas digitais e considerando, com Althusser (1999, p. 172), que “um modo de produção não subsiste a não ser na medida em que é garantida a reprodução das condições da produção, entre as quais o papel determinante é desempenhado pela reprodução das relações de produção” e que tais relações de produção e tal reprodução não são sempre iguais a si mesmas, pois apenas podem existir num arranjo determinado, historicamente contingente e, portanto, específico,2 as páginas a seguir procuram enfrentar os seguintes questionamentos: (1) qual o papel das plataformas digitais na reprodução das condições de produção? (2) qual forma de subjetividade é especificamente mobilizada nessa reprodução? (3) qual a relação desse papel e dessa subjetividade com o direito?

No percurso proposto para fazer frente a essas questões, situaremos, de início, as bases teóricas que constituem o ponto de partida da análise a ser desenvolvida: trata-se de reflexão fundada no materialismo histórico,3 destacadamente na crítica do direito de Evgeni Pachukanis e na teoria da ideologia de Louis Althusser. A seguir, buscaremos delinear o que entendemos por plataformas digitais e propor a sua aproximação ao conceito althusseriano de aparelho ideológico de Estado. Por fim, discutiremos a ideologia regional realizada pelas plataformas digitais e sua relação com a ideologia dominante, o que exige sobretudo investigar o conteúdo específico da subjetividade implicada nas práticas materiais associadas a ela. Para tanto, proporemos uma aproximação para com as considerações de matriz foucaultiana sobre a “fábrica do sujeito neoliberal” desenvolvidas por Pierre Dardot e Christian Laval.

1. Bases teóricas: Pachukanis e Althusser

Partimos da crítica do direito de Pachukanis, cujas posições - que entendemos idênticas àquelas de Marx acerca do fenômeno jurídico (Kashiura Jr.; Naves, 2022, p. 37) - trataremos de expor de forma sucinta, vez que já assimiladas e desenvolvidas adequadamente noutras produções teóricas brasileiras vinculadas sobretudo às pesquisas de Márcio Bilharinho Naves (Naves, 2014, 2000; Kashiura Jr., 2015, 2014; Kashiura Jr.; Naves, 2013; Akamine Jr. et al., 2020; Akamine Jr. et al., 2022).4

No essencial, podemos destacar na obra de Pachukanis a centralidade da forma sujeito de direito e a radical concepção do caráter histórico da forma jurídica. O sujeito de direito, esse “átomo da teoria jurídica” (Pachukanis, 2017, p. 137) que compõe com a forma mercadoria as “duas formas absurdas” (Pachukanis, 2017, p. 141) da produção capitalista, é “a forma social por meio da qual, na sociedade burguesa, o trabalhador direto pode dispor, numa relação formalmente livre e igual com o capitalista, de sua força de trabalho, sem sacrifício de sua autonomia” (Kashiura Jr., 2020, p. 241). A capacidade volitiva abstrata que se materializa nesse ato de disposição da própria força de trabalho só se constitui pela subsunção real do trabalho ao capital que reduz o trabalho humano a trabalho materialmente abstrato (Naves, 2014, p. 68): logo, a subjetividade jurídica se circunscreve historicamente ao modo de produção especificamente capitalista. A concepção de Pachukanis assim interdita - e tal interdição se torna cabal pelos avanços propostos por Naves (2014)5 - qualquer possibilidade de subjetividade jurídica pré ou pós-capitalista: não resta, afinal, qualquer traço de “naturalidade” ao sujeito de direito e a extinção do modo de produção capitalista só pode significar a extinção dessa forma social.

Às reflexões de Pachukanis, agregaremos a concepção de Althusser acerca do processo de reprodução das relações de produção capitalistas e, em específico, acerca da ideologia.6 Althusser se destaca, nesse ponto, por refutar o entendimento - então e ainda corrente, mesmo no interior do materialismo histórico - da ideologia como conjunto de ideias desprovido de materialidade (falsa consciência, representação distorcida da realidade etc.), para propor que a ideologia é material, tem uma dinâmica sobretudo inconsciente e está centrada no processo de interpelação do indivíduo como sujeito.

A ideologia “representa a relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência” (Althusser, 1999, p. 203) e “tem uma existência material” (Althusser, 1999, p. 206), pois consiste em práticas e rituais centrados em aparelhos ideológicos de Estado - a isto, Althusser (1999, p. 209) acresce que “toda prática existe por meio de e sob uma ideologia” e que “toda ideologia existe pelo sujeito e para os sujeitos”. Trata-se, num contexto mais amplo, de discutir o papel da assim chamada superestrutura na reprodução das condições de produção:7 ideologia e aparelhos ideológicos de Estado atuam nesse processo de reprodução sobretudo pela constituição das formas de subjetividade requeridas para a existência continuada da produção capitalista. É por essa razão que Althusser (1999, p. 210) aponta como tese central de sua teoria da ideologia aquela segundo a qual a “ideologia interpela os indivíduos como sujeitos”: “a categoria de sujeito é constitutiva de toda ideologia, mas […] só é constitutiva de toda ideologia enquanto esta tem por função (que a define) ‘constituir’ os sujeitos concretos”.

A interpelação ideológica constitui sujeitos que “andam sozinhos” - que, como “centros de iniciativas”, exercendo a liberdade que (para esse fim) lhes é atribuída, praticam por si mesmos o próprio assujeitamento ao capital (Althusser, 1999, p. 291-292). A forma dominante, no modo de produção capitalista, desse “andar sozinho”, dessa subjetividade que se realiza pelo próprio assujeitamento, é a da subjetividade jurídica: é como sujeito de direito que o trabalhador assalariado, exercendo sua liberdade, vende, numa relação contratual característica do “éden dos direitos humanos”, a sua força de trabalho, assujeitando-se ao “curtume” da produção capitalista. Foi, em suma, o que constatou Edelman (1976, p. 135), “respond[endo] então à questão aberta por Althusser” (e fazendo-o sobretudo pela conjugação das concepções de Althusser e de Pachukanis).8

Podemos, assim, avançar - como fizemos em Kashiura Jr., 2015 - que a ideologia jurídica constitui a ideologia regional dominante da ideologia burguesa, o que implica que a subjetividade jurídica

[…] constitui a ‘evidência primeira’, a evidência do sujeito, a partir da qual opera a interpelação. É a subjetividade jurídica, antes de tudo, que constitui o indivíduo como ‘livre’, ‘capaz’, ‘responsável’ para o seu próprio assujeitamento - é, portanto, a partir da forma sujeito de direito que a interpelação ‘recruta’ os indivíduos como sujeitos e lhes impõe, na ilusão (jurídica) da liberdade, o seu lugar no processo social. (Kashiura Jr., 2015, p. 65)

2. Aparelhos ideológicos de Estado e plataformização do trabalho

Se aderimos à concepção althusseriana da materialidade da ideologia, é preciso voltar atenção específica aos aparelhos ideológicos de Estado: é neles - ou, mais precisamente, nas práticas e rituais que neles se realizam - que reside, no essencial, essa materialidade. O processo de constituição da subjetividade assujeitada, essencial à reprodução das condições da produção e, por essa razão, núcleo do que Althusser entende por ideologia, só existe pelo e no conjunto dessas práticas e desses rituais. Por isso, como observa Montag (1995, p. 63), a ideologia “é imanente a seus aparelhos e a suas práticas, não existe fora desses aparelhos e coincide inteiramente com eles”.

Em 1969, Althusser (1999, p. 104) oferece a seguinte “definição provisória”:

Um Aparelho ideológico de Estado é um sistema de instituições, organizações e práticas correspondentes, definidas. Nas instituições, organizações e práticas desse sistema é realizada toda a Ideologia de Estado ou uma parte dessa ideologia (em geral, uma combinação típica de certos elementos). A ideologia realizada em um AIE garante sua unidade de sistema ‘ancorada’ em funções materiais, próprias de cada AIE, que não são redutíveis a essa ideologia, mas lhe servem de ‘suporte’.

Desenvolvendo o argumento, Althusser indica que os aparelhos ideológicos de Estado são “múltiplos, distintos, relativamente autônomos” (Althusser, 1999, p. 163), mas “concorrem para o mesmo resultado: a reprodução das relações de produção, isto é, das relações de exploração capitalistas” (Althusser, 1999, p. 272). Cada aparelho ideológico de Estado é um “sistema complexo que compreende e combina várias instituições e organizações, e respectivas práticas” (Althusser, 1999, p. 108), e “concorre” para a reprodução das relações de produção “da maneira que lhe é própria” (Althusser, 1999, p. 272), isto é, pela realização de uma ideologia regional. A unidade dessas ideologias regionais “é garantida por sua subsunção à ideologia dominante” (Althusser, 1999, p. 280): tal como um “concerto […] dominado por uma única partitura, […] a partitura da Ideologia da classe atualmente dominante” (Althusser, 1999, p. 272). Essa ideologia dominante, por sua vez, “não se torna dominante por graça divina, nem tampouco em virtude da simples tomada do poder de Estado, mas pela instalação dos AIE, nos quais essa ideologia é realizada e se realiza” (Althusser, 1999, p. 293-294).

Ora, a “partitura única” da ideologia dominante não se perpetua nessa condição automática ou indefinidamente. A ideologia dominante não se torna dominante senão pelos e nos aparelhos ideológicos de Estado e sua dominância nunca está assegurada de uma vez por todas. Contra a crítica segundo a qual sua concepção resvala num “funcionalismo”, Althusser (1999, p. 241) propõe a tese do “primado da luta de classes sobre a ideologia dominante e os aparelhos ideológicos de Estado”:

A luta pela reprodução da ideologia dominante é um combate inacabado que deve ser sempre retomado e está sempre submetido à lei da luta de classes. […] Do mesmo modo que a luta de classes nunca cessará, assim também nunca cessará o combate da classe dominante em sua tentativa para unificar os elementos e as formas ideológicas existentes. Isso equivale a dizer que, embora seja essa a sua função, a ideologia dominante nunca chegará a resolver, totalmente, suas próprias contradições que são o reflexo da luta de classes. (Althusser, 1999, p. 240-241)

Isto significa que os aparelhos ideológicos de Estado são sede da luta de classes - ou seja, espaços em que a classe dominada pode opor resistência à ideologia dominante. Por isso, dentre as causas para o caráter inevitavelmente inacabado da unificação da ideologia dominante, Althusser (1999, p. 240) aponta “a luta de classe a ser travada contra as formas nascentes da ideologia da classe dominada”. Nesse sentido, a tese do primado da luta de classes sobre a ideologia e seus aparelhos repercute o caráter também inacabado do próprio processo de reprodução - que, na medida em que não reflete uma produção capitalista sempre igual a si mesma, não pode permanecer inalterado indefinidamente -, razão pela qual Althusser (1999, p. 240) elenca ainda “a transformação histórica do modo de produção que impõe a ‘adaptação’ da ideologia dominante à luta de classes” como uma outra causa para o caráter inacabado da unificação da ideologia dominante. Se considerarmos que o “papel fundamental” dos aparelhos ideológicos de Estado “é garantir a perpetuação da exploração dos proletários e outros trabalhadores assalariados” (Althusser, 1999, p. 225), as transformações históricas das formas concretas de levar a cabo tal exploração tendem a exigir transformações sucessivas no processo de reprodução, particularmente na ideologia (isto é, nas formas de subjetividade concretamente constituídas pela interpelação) e em seus aparelhos (isto é, nas práticas e rituais pelos quais se constituem tais formas de subjetividade). Se considerarmos, mais ainda, que as “relações de produção capitalistas são, ao mesmo tempo, as próprias relações da exploração capitalista” (Althusser, 1999, p. 53) (ou seja, não há produção capitalista essencialmente diversa de suas formas concretas de exploração) e que não há modo de produção sem a reprodução das condições da produção (Althusser, 1999, p. 172), é preciso concluir que a ideologia e seus aparelhos são constitutivos dos arranjos históricos específicos nos quais - e somente nos quais - o modo de produção capitalista pode existir.

Assim, ao enumerar, em 1969, os aparelhos ideológicos religioso, escolar, familiar, jurídico, político, sindical, da informação e cultural como aqueles em atuação, Althusser (1999, p. 264) adverte tratar-se de uma “lista empírica”, provisória, que “deverá ser examinada em detalhe, submetida à prova, retificada e remanejada”. Podemos, a essa altura, acrescentar que tal enumeração não pode ser senão provisória: as transformações na produção capitalista e na conexão concreta entre ela e o processo de reprodução podem levar, a qualquer tempo, à extinção, à fusão ou à constituição de novos aparelhos ideológicos de Estado, demandando continuamente prova, retificação e remanejamento.

Com isso, colocamo-nos em condições de enunciar nossa tese de que, no arranjo específico entre produção capitalista e sua reprodução que hoje se difunde na maior parte do mundo - que podemos chamar de sociedade neoliberal -, em que os avanços tecnológicos, sobretudo da tecnologia da informação, desempenham um papel central,9 é preciso considerar um acréscimo à lista provisória dos aparelhos ideológicos de Estado, de modo a incluir as plataformas digitais.10

Para iniciar o desenvolvimento dessa tese, recorremos à definição de Srnicek (2017, p. 43), segundo a qual:

[…] plataformas são infraestruturas digitais que permitem que dois ou mais grupos interajam. Para tanto, elas se colocam como intermediárias que reúnem diversos usuários: consumidores, anunciantes, provedores de serviços, produtores, fornecedores e até objetos físicos.

Destacando esse papel de intermediação, Srnicek (2017, p. 44) acrescenta que uma plataforma digital “se posiciona (1) entre usuários e (2) como o terreno sobre o qual suas atividades ocorrem, o que lhe dá acesso privilegiado para registrá-las”, e, na sequência, apresenta uma classificação, em função das atividades intermediadas ou do modo como se realiza a intermediação, em cinco tipos de plataformas (Srnicek, 2017, p. 49 et seq.). A discussão a seguir privilegia as plataformas nomeadas “enxutas” (“lean platforms”), que “buscam reduzir sua propriedade de ativos a um mínimo e lucrar reduzindo custos tanto quanto possível” (Srnicek, 2017, p. 49-50).11

São as assim chamadas “plataformas enxutas” que se encarregam da intermediação das relações de trabalho precarizadas que, com intensidade crescente, caracterizam a sociedade neoliberal - Srnicek (2017, p. 75) menciona, nesse quadrante, empresas como Uber (que parece constituir o modelo desse setor), TaskRabbit e Mechanical Turk, mas podemos incluir aqui, considerando as especificidades do mercado brasileiro, iFood, Rappi e 99, bem como tantas outras com atuação semelhante. Não se trata de analisar cada uma dessas plataformas digitais individualmente - ainda que tal investigação possa revelar especificidades importantes dos mecanismos de precarização do trabalho por meio da tecnologia da informação -, mas, considerando que um aparelho ideológico de Estado congrega várias instituições e suas respectivas práticas (Althusser, 1999, p. 108), de analisá-las como conjunto unificado por uma ideologia regional comum - como um sistema.

Numa tal perspectiva, devemos notar que essas plataformas digitais demandam dos trabalhadores precarizados certo conjunto de práticas comuns. O motorista da plataforma de transportes ou o entregador da plataforma de entregas de alimentos, na qualidade de trabalhadores autônomos que contratam serviços de intermediação digital, devem, antes de tudo, realizar o próprio cadastro, via aplicativo, na plataforma e, uma vez cadastrados, devem indicar a própria disponibilidade para o trabalho. Devem dispor dos meios necessários à prestação do serviço em questão: antes de tudo, o aparelho celular, mas também o carro, a motocicleta etc., cuja manutenção é de sua inteira responsabilidade, assim como a qualificação necessária (habilitação etc.) para utilizá-los. No período em que permanecem disponíveis, devem aceitar ou recusar as demandas de serviços comunicadas via aplicativo, bem como a remuneração proposta unilateralmente pela plataforma. Devem avaliar os usuários e se submeter à avaliação deles, assumindo a responsabilidade por prover o serviço de modo a incrementar continuamente a própria avaliação: se a quantidade ou a qualidade das demandas aumenta ou cai, em função da média das avaliações recebidas, o mérito ou a responsabilidade é exclusivamente do trabalhador, não da plataforma. Devem organizar a própria jornada de trabalho, tanto no que diz respeito à intensidade quanto à duração, para que sua remuneração total seja suficiente não apenas para a reprodução imediata dos meios de trabalho e da própria vida, mas também para angariar reservas para fazer frente a quaisquer emergências: alheias às garantias do direito do trabalho, essas relações de trabalho transferem ao trabalhador o risco do acidente, da doença, da velhice etc.12

Tais práticas não se reduzem por completo à natureza ideológica - são, como observa Althusser (1999, p. 103), “práticas materiais […] ‘ancoradas’ em realidades não-ideológicas”. Assim como, a título de exemplo, o aparelho familiar é perpassado pela “reprodução biológica dos representantes da ‘espécie humana’” e o aparelho sindical, por “uma realidade que não se reduz a essa ideologia, neste caso, a luta de classes” (Althusser, 1999, p. 104), as plataformas digitais viabilizam formas de comunicação que operacionalizam várias modalidades precarizadas de trabalho e, em especial, como argumenta Srnicek (2017, p. 48), funcionam como “aparelhos de extração de dados”. Contudo, ainda que não se reduzam à ideologia, as práticas demandadas pelas plataformas digitais têm um efeito ideológico: exigem, afinal, que os indivíduos submetidos ao trabalho precarizado realizem, por conta própria, “os gestos e atos de seu submetimento” (Althusser, 1999, p. 292) ao capital e o fazem num sentido bastante específico, reforçando a vivência imaginária dessa submissão como exercício de autonomia. E essa autonomia é identificada à autonomia do empresário: trata-se de escolher o próprio horário de trabalho, as demandas que serão aceitas e o modo de realizá-las, mas especialmente de escolher como investir os próprios recursos (nesse caso, o tempo e as próprias forças mentais e corporais) e de assumir o risco por essa escolha. Desse modo, as plataformas digitais atuam na reprodução das condições da produção atribuindo aos indivíduos submetidos a suas práticas um “papel” na estrutura social e o fazem sobretudo porque contribuem para a constituição de certa forma de subjetividade.

3. Plataformas digitais, sujeito empresarial e ideologia jurídica

Se a “lista empírica” dos aparelhos ideológicos de Estado só pode ser provisória, o mesmo se aplica às ideologias regionais, cujo arranjo constitui concretamente, a cada momento e diante da luta de classes, a ideologia dominante. Como consequência, para considerar as plataformas digitais como aparelho ideológico de Estado, é preciso apontar a ideologia regional que esse aparelho realiza e a forma de subjetividade aí implicada, assim como sua relação com a ideologia dominante. Trata-se de reconhecer que, a despeito do caráter alegadamente “eterno” da ideologia “em geral” (Althusser, 1999, p. 196 et seq. e p. 275 et seq.), a ideologia dominante e suas ideologias regionais têm caráter histórico e, portanto, a interpelação ideológica só pode ser compreendida em sua contingência: como adverte Thévenin (2010b, p. 71), “o conteúdo histórico dessa interpelação precisa ser definido a cada vez”, e, no mesmo sentido, Bidet (1999, p. 14) pontua que a “ideologia e a interpelação […] apresentam formas históricas diversas, segundo a diversidade histórica das formas de constituição da subjetividade”.

Para avançar na inteligência do “conteúdo histórico” da interpelação ideológica cuja sede é o que podemos chamar de aparelho ideológico das plataformas digitais, isto é, da “forma histórica” de subjetividade que se constitui pelas e nas práticas que esse aparelho ideológico demanda dos indivíduos, propomos uma aproximação quanto às considerações de Dardot e Laval (2016, p. 321 et seq.) acerca da “fábrica do sujeito neoliberal”. Antes, porém, uma breve digressão metodológica se faz necessária: considerando que os argumentos de Dardot e Laval são construídos a partir de uma matriz foucaultiana, enquanto as reflexões aqui desenvolvidas se inserem numa perspectiva marxista althusseriana, o que poderia justificar uma tal aproximação e em que termos tal aproximação pode ser realizada?

É relevante ressaltar, de início, que esse procedimento não é, de modo algum, estranho ao althusserianismo. O próprio Althusser declaradamente se aproxima de Bachelard para propor o conceito de corte epistemológico e de Lacan para formular o caráter inconsciente da ideologia, assim como busca aproximações importantes com Espinosa e com Maquiavel em momentos determinados de sua produção teórica. E, de modo similar ao que se verifica em tais aproximações, o que propomos não é uma síntese ou fusão Althusser-Foucault, algo que poderia resultar num terceiro gênero (um althusser-foucaultianismo ou um foucault-althusserianismo), mas uma assimilação parcial de elementos da teoria de Foucault numa reflexão desenvolvida no interior dos quadros do althusserianismo.

Essa assimilação só pode ser razoável se houver suficiente compatibilidade entre as problemáticas teóricas diversas em questão, de modo a permitir que as noções assimiladas não se choquem com a problemática teórica que as recebe e que possam nela ser razoavelmente desenvolvidas e articuladas. Entendemos que essa compatibilidade existe - as duas obras, como propõe Montag (1995, p. 56), são “alternativas uma à outra”, mas “não são opostas e externas entre si”13 - e que se funda num questionamento comum que perpassa tanto a obra de Foucault quanto a de Althusser: aquele acerca da constituição material da subjetividade.

A mais inescusável questão que Althusser e Foucault propuseram diz respeito ao sujeito. A insistência obstinada de ambos quanto ao indivíduo não ser dado, mas constituído ou produzido como centro de iniciativas, um efeito e não uma causa dos processos conflituosos da ideologia ou do poder (uma tese central a ambas as obras) tem, como Althusser pondera, ‘tudo o que é preciso para chocar-se com […] senso comum.’ (Montag, 1995, p. 59)

Há, é verdade, críticas (em geral, veladas) de Foucault a Althusser, mas mesmo essas críticas, ainda quando contundentes, não invalidam a hipótese de um vínculo possível entre as duas matrizes teóricas.14 Nesse sentido, podemos constatar, por exemplo, uma conhecida observação de Foucault (1999, p. 40), na aula de 14 de janeiro de 1976 de Em defesa da sociedade, segundo a qual:

[…] em vez de orientar a pesquisa sobre o poder para o âmbito do edifício jurídico da soberania, para o âmbito dos aparelhos de Estado, para o âmbito das ideologias que o acompanham, creio que se deve orientar a análise do poder para o âmbito da dominação (e não da soberania), para o âmbito dos operadores materiais, para o âmbito das formas de sujeição, para o âmbito das conexões e utilizações dos sistemas locais dessa sujeição e para o âmbito, enfim, dos dispositivos de saber.

Podemos observar que há proximidade entre aquilo a que Foucault propõe dirigir a análise teórica - “sistemas locais de sujeição” e seus “operadores materiais” - e alguns dos eixos fundamentais da teoria da ideologia de Althusser. De resto, a censura de Foucault parece aqui se dirigir ao caráter estatal dos aparelhos ideológicos, uma vez que essa concepção voltaria a análise teórica para o centro do poder político e não para sua periferia (como indica a contraposição entre os conceitos de soberania e dominação) - mas não há identidade, em Althusser, entre os aparelhos ideológicos de Estado e a soberania em seu sentido jurídico tradicional (mais próxima do que Althusser identifica como aparelho repressivo de Estado), como nota Bidet (2014, p. 227):

Na realidade, Althusser também está muito atento à disseminação do poder nos poros da sociedade: tudo é político, logo relação estatal de poder. Longe de nos incitar a compreender o poder do Estado a partir do topo, ele oferece uma lista ‘provisória’ de ‘aparelhos ideológicos de Estado’ […] que potencialmente abrange todos os vasos sanguíneos da vida social.

Mais relevantes, porém, são as contraposições recorrentes de Foucault ao conceito de ideologia, que não raro parecem dirigidas em específico aos escritos de Althusser sobre o tema - e que encontram eco, como veremos, em Dardot e Laval.

Nesse quadrante, em Teorias e instituições penais (aula de 8 de março de 1972), Foucault (2020, p. 182) se refere a “[e]feitos de saber [que são distintos de] operações ideológicas”, devendo-se entender tais operações por “todos os procederes pelos quais as práticas e as instituições penais são justificadas, explicadas, repetidas, inseridas no interior de sistemas de racionalização.”

Em A verdade e as formas jurídicas (1973), Foucault (2002, p. 26-27) aponta uma identificação, que alega promovida pelo marxismo, entre ideologia e erro:

Chegamos assim a esta noção muito importante e ao mesmo tempo muito embaraçosa de ideologia. Nas análises marxistas tradicionais a ideologia é uma espécie de elemento negativo através do qual se traduz o fato de que a relação do sujeito com a verdade ou simplesmente a relação de conhecimento é perturbada, obscurecida, velada pelas condições de existência, por relações sociais ou por formas políticas que se impõem do exterior ao sujeito do conhecimento. A ideologia é a marca, o estigma destas condições políticas ou econômicas de existência sobre um sujeito de conhecimento que, de direito, deveria estar aberto à verdade.

Em Vigiar e punir (1975), Foucault (2014, p. 29), ao tratar do “investimento político do corpo” que produz “ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso”, fala de uma “sujeição” que “não é obtida só pelos instrumentos da violência ou da ideologia”. No que tange em específico a essa última, ressalta que essa sujeição do corpo “pode ser calculada, organizada, tecnicamente pensada, pode ser sutil, não fazer uso de armas nem do terror, e no entanto continuar a ser de ordem física”.

Parece-nos claro que tais críticas de Foucault se baseiam num conceito de ideologia como conjunto de ideias, representações mentais, racionalizações etc. que eventualmente se contrapõe, como o erro à verdade, à ciência. Essa contraposição da ideologia à ciência figurou certamente na produção teórica de Althusser, sobretudo até meados da década de 1960, mas foi objeto de retificação posterior. Já em 1967, Althusser (2015, p. 213) advertia que o “corte [epistemológico] deixa intacto o domínio objetivo social ocupado pelas ideologias (religião, moral, ideologias jurídicas, políticas etc.)”15 e, em sua autocrítica (1974), reconhece o desvio teoricista de sua formulação original, “apesar de tudo o que […] dizia por outro lado sobre a função antes de tudo prática, social e política da ideologia” (Althusser, 1978, p. 92). A esse respeito, portanto, as críticas de Foucault parecem alcançar Althusser e as posições de ambos afinal convergem.

Contudo, o que tem mais peso para a compreensão da relação entre ambos é a insistência de Foucault quanto ao caráter ideal da ideologia. Podemos notar, na passagem de Teorias e instituições penais acima reproduzida, que justificação, explicação, repetição e racionalização diferem de práticas e instituições precisamente pelo caráter material destas últimas e ideal das primeiras. Na passagem de Vigiar e punir, por sua vez, a contraposição entre violência e ideologia parece remeter à contraposição entre aparelho repressivo e aparelhos ideológicos de Estado e a advertência, contra a ideologia, de que a sujeição pode “continuar a ser de ordem física” só pode implicar uma concepção da própria ideologia como algo que não pertence a essa ordem.

Se a presença de Althusser, ainda que sem qualquer menção nominal, é decisiva nesse momento do pensamento de Foucault (Montag, 1995; Pallotta, 2015) - Balibar (2015, p. 89) chega a falar numa “onipresença” -, é preciso concluir que essa noção de ideologia que Foucault se esforça por criticar é precisamente aquela que Althusser (1999, p. 207) denomina “representação ideológica da ideologia que a reduz a ideias dotadas, por definição, de existência espiritual”, cuja base só pode ser “um sujeito dotado de uma consciência onde forma ou reconhece livremente as ideias em que acredita”. Trata-se, portanto, da concepção de ideologia contra a qual todo o esforço teórico de Althusser se volta, precisamente para afirmar ideologia como materialidade. É por essa razão que Balibar (2015, p. 89) afirma que “esse é um dos pontos em que Foucault é mais perverso, porque atribui sempre implicitamente a Althusser a exata concepção de ideologia da qual ele queria liberar o marxismo”.16 No mesmo sentido, Montag (1995, p. 71):

Apesar (ou, talvez, por causa) das tentativas sutis e enormemente complexas de Althusser para voltar a noção de ideologia contra as concepções ideológicas de ideologia, Foucault expressou desconfiança quanto ao termo ideologia desde o começo de sua carreira e suas desconfianças, é preciso dizer, foram comumente dirigidas contra os usos do termo promovidos por Althusser. […] Quase imediatamente depois da publicação de ‘Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado’ em La pensée em 1970, os termos da crítica de Foucault à ideologia mudam. […] ideologia parecia logicamente confinada ao reino da consciência e das ideias, portanto destinada a permanecer idealista, desviando a atenção do que realmente importa a qualquer forma de sujeição: o corpo, o corpo que trabalha e que produz valores, o corpo que obedece ao agir ou abster-se de agir. Num certo sentido, essa crítica da ideologia não pode ser razoavelmente dirigida contra o ensaio de Althusser, pois seus termos, sua insistência na primazia do corpo, são exatamente aqueles que descrevemos em Althusser.17

As discussões sobre as práticas socialmente difusas - e não concentradas no poder em seu topo - e de caráter material - e não, em definitivo, como as críticas de Foucault a Althusser poderiam indicar, apenas ideal - pelas quais se realiza a constituição da subjetividade na sociedade burguesa indicam “uma proximidade maior do que se poderia pensar entre os dois teóricos” (Pallotta, 2015, p. 132). Como destaca Montag (1995, p. 75), a materialidade do processo de constituição da subjetividade é essencial a ambos, visto que “a tese central de Althusser (ideologia interpela indivíduos como sujeitos) só adquire sentido completo se relacionada ao que podemos chamar de leitura de Foucault acerca da materialidade da ideologia, uma noção reescrita como a ‘ordem física’ das disciplinas”.

Voltando a Dardot e Laval (2016, p. 7, p. 14, p. 17, p. 30), encontramos repetidas advertências no mesmo sentido: “o neoliberalismo não é apenas uma ideologia”. Trata-se de tentativa de demarcar posição quanto ao marxismo que, trilhando o mesmo caminho das tentativas no mesmo sentido de Foucault, claramente retoma a concepção de ideologia também reiterada por Foucault. Noutras palavras, Dardot e Laval (2016, p. 30) querem indicar que não se pode compreender o neoliberalismo se o reduzirmos a um conjunto de ideias, a uma racionalização, a uma representação falseada de mundo etc.: “Continuar a acreditar que o neoliberalismo não passa de uma ‘ideologia’, uma ‘crença’, um ‘estado de espírito’ […] é travar o combate errado e condenar-se à impotência.” Quanto a isso, contudo, o marxismo de matriz althusseriana certamente está de acordo.

Mais ainda, é preciso assumir que Dardot e Laval (2016, p. 21) estão corretos ao afirmar que “não podemos nos contentar com as lições de Karl Marx” para compreender as especificidades da sociedade neoliberal, visto que o “neoliberalismo emprega técnicas de poder inéditas sobre as condutas e as subjetividades”. E não podem, a esse respeito, bastar as lições de Marx pelas razões que Althusser (1994, p. 457) perspicaz e audaciosamente identifica: porque a inteligência da dinâmica específica de constituição das formas de subjetividade demanda ultrapassar um “limite absoluto” de Marx. É preciso considerar, contra a concepção de uma “economia” como “causa expressiva” de sua própria reprodução e, por consequência, das formas de subjetividade e de todas as instâncias da superestrutura mobilizadas nessa reprodução, os papeis específicos, historicamente contingentes e essenciais para a reprodução das condições da produção desempenhados pelas instâncias da superestrutura, sobretudo pelas formas de subjetividade.18

Logo, entendemos razoável propor lançar luz sobre o conteúdo específico da interpelação ideológica na sociedade neoliberal ao avançar o que segue: as plataformas digitais realizam, como aparelho ideológico de Estado, uma ideologia regional centrada na figura daquilo que Dardot e Laval (2016, p. 321 et seq.) identificam como “sujeito empresarial”: o “homem competitivo, inteiramente imerso na competição mundial” (Dardot; Laval, 2016, p. 322), que “se conduza realmente como uma entidade em competição e que, por isso, deve maximizar seus resultados, expondo-se a riscos e assumindo inteira responsabilidade por eventuais fracassos” (Dardot; Laval, 2016, p. 328); “sujeito ativo que deve participar inteiramente, engajar-se plenamente, entregar-se por completo a sua atividade profissional” (Dardot; Laval, 2016, p. 327),

[p]orque o efeito procurado pelas novas práticas de fabricação e gestão do novo sujeito é fazer com que o indivíduo trabalhe para a empresa como se trabalhasse para si mesmo e, assim, eliminar qualquer sentimento de alienação e até mesmo qualquer distância entre o indivíduo e a empresa que o emprega. Ele deve trabalhar para sua própria eficácia, para a intensificação de seu esforço, como se essa conduta viesse dele próprio, como se esta lhe fosse comandada de dentro por uma ordem imperiosa de seu próprio desejo, à qual ele não pode resistir. (Dardot; Laval, 2016, p. 327)19

A “grande novidade” na constituição dessa forma de subjetividade “reside na modelagem que torna os indivíduos aptos a suportar as novas condições que lhes são impostas, enquanto por seu próprio comportamento contribuem para tornar essas condições cada vez mais duras e mais perenes” (Dardot; Laval, 2016, p. 329.) Seu contexto inequívoco é o da precarização crescente das relações de trabalho e do medo, em que “uma nova regra do jogo muda radicalmente o contrato de trabalho, a ponto de aboli-lo como relação salarial” (Dardot; Laval, 2016, p. 335) e, em consequência, “nada mais é garantido para toda a vida” (Dardot; Laval, 2016, p. 336).

A corrosão progressiva dos direitos ligados ao status de trabalhador, a insegurança instilada pouco a pouco em todos os assalariados pelas ‘novas formas de emprego’ precárias, provisórias e temporárias, as facilidades cada vez maiores para demitir e a diminuição do poder de compra até o empobrecimento de frações inteiras das classes populares são elementos que produziram um aumento considerável do grau de dependência dos trabalhadores com relação aos empregadores. Foi esse contexto de medo social que facilitou a implantação da neogestão nas empresas. Nesse sentido, a ‘naturalização’ do risco no discurso neoliberal e a exposição cada vez mais direta dos assalariados às flutuações do mercado, pela diminuição das proteções e das solidariedades coletivas, são apenas duas faces de uma mesma moeda. Transferindo os riscos para os assalariados, produzindo o aumento da sensação de risco, as empresas puderam exigir deles disponibilidade e comprometimento muito maiores. (Dardot; Laval, 2016, p. 335)

Tal sujeito empresarial seria “produzido pelo dispositivo ‘desempenho/gozo’” (Dardot; Laval, 2016, p. 354), que mostra certa “novidade” (Dardot; Laval, 2016, p. 353) com relação ao conceito de dispositivo de eficácia formulado por Foucault. A atuação desse dispositivo de desempenho/gozo “não consiste em transformar um sujeito em puro objeto passivo, mas conduzir um sujeito a fazer o que aceita querer fazer” (Dardot; Laval, 2016, p. 355), de modo que é o “desempenho máximo que se torna o alvo da ‘reestruturação’ que cada indivíduo deve realizar em si mesmo” (Dardot; Laval, 2016, p. 356). A constituição da subjetividade empresarial parece, assim, mobilizar, por um lado, um “gozo sem obstáculos”, mas a sua “face sombria” é

[…] a vigilância cada vez mais densa do espaço público e privado, a rastreabilidade cada vez mais precisa dos movimentos dos indivíduos na internet, a avaliação cada vez mais minuciosa e mesquinha da atividade dos indivíduos, a ação cada vez mais pregnante dos sistemas conjuntos de informação e publicidade e, talvez sobretudo, as formas cada vez mais insidiosas de autocontrole dos próprios sujeitos. (Dardot; Laval, 2016, p. 374)20

Há, é verdade, toda uma mudança na estruturação interna das empresas que impõe essa nova forma de subjetividade e, ao mesmo tempo, dela tira máximo proveito, mas o setor empresarial - ou, para retomar a terminologia althusseriana, o sistema de instituições que atua, com máxima intensidade, na constituição dessa subjetividade do “desempenho máximo”, do desejo permanente de superar a si mesmo, até o limite de abolir as “restrições” do contrato de trabalho e qualquer resquício de distância entre trabalhador e empresa, sob vigilância e rastreabilidade antes insondáveis é precisamente o das plataformas digitais.21

Ora, as plataformas digitais submetem trabalhadores precários a práticas e rituais que acentuam especialmente a promoção ativa da própria submissão ao trabalho - não apenas no sentido de dispor-se para trabalhar, mas de exigir de si sempre mais desempenho e tomar para si sempre mais responsabilidade - e, com isso, realizam uma “representação da relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência” (Althusser, 1999, p. 203) em que se destaca o imaginário do indivíduo que depende apenas de si mesmo, que colhe os frutos dos próprios (bons ou ruins, mas sempre escolhidos) investimentos (de tempo, de preparo, da própria vida), que assume todo o risco - numa palavra, do empresário. O que há de específico, portanto, na ideologia regional realizada pelo aparelho ideológico das plataformas digitais - que podemos chamar de ideologia do empresariamento de si - é que a “relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência”22 nela representada tem de imaginária precisamente a relação empresarial para com condições de existência que, muito distantes da realidade da empresa, dizem respeito à imposição de uma submissão crescente à precariedade no trabalho e, por extensão, também na vida fora do trabalho. Como adverte Srnicek (2017, p. 78 e p. 81), o aparelho celular é “uma ferramenta de sobrevivência vendida pelo Vale do Silício como ferramenta de libertação” e “autoemprego não é um caminho escolhido livremente, mas uma imposição forçada”. Em contraposição ao imaginário do empresariamento de si, algoritmos e inteligência artificial tornam possível que esse assujeitamento seja potencializado quanto à exploração do trabalho: não apenas pelo corte de custos trabalhistas e previdenciários ou com capital fixo, mas pelo rastreio, controle, remuneração dinâmica, ajuste de oferta etc. que tornam os negócios sempre mais rentáveis para os reais empresários por detrás das plataformas.

A ideologia do empresariamento de si promove, assim, a vivência imaginária do trabalho sem garantias, sem remuneração decente, sem limitação de jornada etc., cuja intensidade da exploração é acentuada sob mediação da tecnologia da informação, como atuação empresarial: o trabalhador submetido à plataforma digital, sem um empregador imediatamente visível, sem alternativas num contexto de desemprego e subemprego generalizados,23 vivencia sua submissão como autonomia, como atividade em que não depende de mais ninguém, em que se valoriza por si mesmo e, portanto, em que deve, para o seu próprio bem, exigir sempre mais desempenho de si mesmo.

Note-se que o aparelho ideológico das plataformas digitais não cumpre seu papel na reprodução das condições da produção por simplesmente difundir um certo ideário que propagandeia que o trabalhador deve entender-se como empresário. Há, certamente, difusão desse ideário e não apenas pelas plataformas digitais, mas - se estivermos de acordo com o argumento de Karsz (1974, p. 222) segundo o qual “[e]xplicar um AIE é explicar como as relações de produção são reproduzidas num ponto preciso do sistema social” - categorizá-las como aparelho ideológico de Estado não significa reduzi-las a aparelho de propaganda ou de difusão de ideias.24 Pouco importa se, de fato, o trabalhador precarizado mediante plataformas digitais representa mentalmente a si mesmo como empresário ou se tem aversão a todo o discurso elaborado em torno dessa ideia. Pouco importa se se ilude com a promessa de que tudo que o separa de tornar-se milionário é “trabalhar enquanto eles dormem” ou tem consciência de sua condição de classe. Althusser (1999, p. 282) parafraseia Pascal para lembrar-nos de que não são as ideias, mas as práticas que têm primazia no processo ideológico: “ponha-se de joelhos, mexa os lábios como na oração e acreditará”. O aparelho ideológico das plataformas digitais prescreve práticas materiais que mobilizam indivíduos para papéis definidos na reprodução das condições da produção: o indivíduo submetido a essas práticas é levado a promover como sujeito empresarial o próprio assujeitamento e é levado a fazê-lo por atos específicos, com um sentido específico, de um modo que não se confunde por completo com a realização desse movimento característico da ideologia - o assujeitamento pelo próprio sujeito - quando realizado por outros meios.

Resguardada a sua especificidade, a ideologia do empresariamento de si, como ideologia regional, está ainda relacionada à ideologia dominante. Isto significa que, ao realizar-se no aparelho ideológico das plataformas digitais, a ideologia do empresariamento de si se conecta à forma dominante de interpelação ideológica na sociedade capitalista: a interpelação do indivíduo como sujeito de direito, portador de uma capacidade volitiva abstrata por meio da qual pode promover o seu próprio assujeitamento ao capital, “andando sozinho” para, como diz Marx, levar a própria pele ao mercado. Relacionar-se e conectar-se não podem significar aqui uma inteira confusão entre ideologia do empresariamento de si e ideologia jurídica.25 No concerto de “partitura única” da ideologia dominante, cada ideologia regional é composta por seu peculiar conjunto de instrumentos que emitem um peculiar conjunto de notas. O que afirmamos é que a “evidência” primeira a que remete a subjetividade empresarial - no processo de “[remissão]26 perpétua de uma ‘evidência’ [a] outra” do qual “toda ‘evidência’ ideológica retira sua confirmação imediata e, através das diferentes práticas dos AIE, se impõe a cada indivíduo” (Althusser, 1999, p. 245) - é a “evidência” da subjetividade jurídica:: não por acaso, o empresário de si é pressuposto como “proprietário” de seus próprios dados e o seu assujeitamento, nas plataformas, depende de seu consentimento expresso. O trabalhador precarizado que, submetido às práticas prescritas pelas plataformas digitais, representa o seu assujeitamento ao capital como exercício imaginário de liberdade empresarial, como ato de valorização de seu “capital humano”, é, antes de tudo, um sujeito de direito que contrata,27 que exerce em condições formais de liberdade e igualdade jurídicas o ato de vontade pelo qual “anda sozinho”. Se o faz sob a representação de sua relação imaginária com suas condições reais de vida como relação empresarial ou de gestão de capital, isto reforça, sem dúvida, o seu papel de sujeito do próprio assujeitamento - e lhe atribui um lugar específico (de empresário sem empresa, de gestor de capital sem capital) numa estrutura social específica (sociedade neoliberal), que demanda modalidades também específicas de exploração do trabalho.

A subjetividade empresarial é, portanto, uma das formas de subjetividade demandadas pela reprodução das condições da produção no quadrante específico da precarização das relações de trabalho que acompanha a ascensão do capital financeiro no que podemos denominar sociedade neoliberal. Sua constituição, no processo de interpelação ideológica, ocorre sobretudo pelas e nas práticas do aparelho ideológico das plataformas digitais, que, assim, participa, sob a “partitura única” da ideologia dominante, realizando a ideologia do empresariamento de si, da “[garantia da] perpetuação da exploração dos proletários e outros trabalhadores assalariados” (Althusser, 1999, p. 225).

Considerações finais

Com base em Pachukanis e Althusser, pudemos constatar que as plataformas digitais prescrevem um conjunto específico de práticas aos trabalhadores precarizados a elas submetidos, tomando parte no processo de interpelação ideológica e, assim, contribuindo para a reprodução das relações de exploração específicas que caracterizam o arranjo específico que constitui o capitalismo contemporâneo. Podemos, então, sumarizar da seguinte forma as respostas às questões que propusemos: (1) As plataformas digitais atuam na reprodução das condições da produção como aparelho ideológico de Estado, realizando uma ideologia regional centrada na (2) interpelação dos indivíduos como sujeitos empresariais, forma de subjetividade que pode ser compreendida a partir da assimilação de contribuições de Dardot e Laval e que (3) remete, antes de tudo, à “evidência primeira” da subjetividade jurídica.

Pudemos, assim, avançar as noções de aparelho ideológico das plataformas digitais e ideologia do empresariamento de si como contribuições para a inteligência, em chave althusseriana, das especificidades da sociedade neoliberal e de seu processo de reprodução. Ao mesmo tempo, buscamos apontar a conexão desse aparelho ideológico e dessa ideologia regional com a ideologia dominante por meio de remissão à subjetividade jurídica, núcleo da ideologia jurídica, ideologia regional dominante da ideologia burguesa.

Retomando a metáfora com que abrimos a presente reflexão, podemos observar afinal que, se o assombro da ficção científica com a possibilidade da revolução das máquinas reverbera o assombro do capital quanto à possibilidade da revolução do proletariado, os avanços da tecnologia da informação que caracterizam a sociedade neoliberal se encaminharam no sentido inverso: ao invés da máquina que de assujeitada se faz sujeito, o que se realizou foi um aprofundamento da interpelação do trabalhador como sujeito que se assujeita. Em certo sentido, a exploração do trabalho foi radicalizada pela introjeção de seu mecanismo na própria constituição da subjetividade empresarial, que vivencia essa introjeção como imaginária valorização de si como capital. Mas essa constatação não é, no fim das contas, apenas (embora sobretudo) a constatação de uma derrota da classe operária: relembrando a advertência de Althusser, nenhuma ideologia se sustenta pela “graça divina” e o primado da luta de classes sobre a ideologia e sobre os seus aparelhos mantém permanentemente abertas as possibilidades de resistência.

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Notes
Notes
1 Registramos nosso agradecimento a José César de Magalhães Jr., cuja amizade é, para nós, a demonstração prática das convergências possíveis entre Foucault e Althusser.
2 Com isso, entendemos evitar a compreensão da “história do capitalismo” como “desenvolvimento de uma essência sempre idêntica a si mesma” que Dardot e Laval (2016, p. 22) corretamente criticam. Esse “essencialismo” atribuído extensivamente por Dardot e Laval (2016, p. 26) ao marxismo em geral é também criticado pelo marxismo de matriz althusseriana. Não é exagero afirmar que a obra de Althusser, desde o início da década de 1960, com conceitos tais como todo complexo estruturado com dominante (Althusser, 2015), passando pela discussão sobre reprodução e ideologia (que embasa a reflexão contida no presente artigo) e pela formulação de conceitos como processo sem sujeito nem fins (Althusser, 1973) na década de 1970, até a sua última fase, a do materialismo do encontro (Althusser, 2005), culminando naquilo que Morfino (2006) nomeou primado do encontro sobre a forma, tem como uma de suas preocupações centrais precisamente pensar a contingência.
3 Assim buscamos atender, ainda que por via de outro referencial, ao “chamado” de Gonçalves (2014, p. 334): “Se o pensamento marxista pretende se apresentar como uma alternativa no interior do campo do direito, precisa intervir nos debates correntes, oferecendo um potencial superior de explicação e de formulação de políticas ao do mainstream jurídico neoliberal.”
4 Exposições das ideias centrais de Pachukanis, embora inspiradas por leituras que não coincidem com as que sustentamos, podem ser encontradas em Elbe, 2019; Ferreira, 2023; Ripstein, 2023.
5 Nota Farias (2024, p. 5): “Os pressupostos deixados por Pachukanis e principalmente por Marx permitiram, assim, que Naves fizesse avançar a análise da forma jurídica para definir o direito como uma ‘forma do capital’ que organiza o circuito de troca de mercadorias e transforma os indivíduos em ‘equivalentes vivos’ necessários à manutenção do processo de valorização do valor.”
6 Sobre a interação entre esses autores, Almeida (2016, p. 359) afirma: “A perspectiva althusseriana a respeito da subjetividade jurídica e da ideologia no campo do Direito mostra pontos de compatibilidade entre a teoria de Althusser e de Pachukanis. Em ambos, o capitalismo é descrito como modo de produção cujas características específicas implicam uma ideologia própria, na qual a subjetividade jurídica se insere como a forma mais bem acabada.” A mesma articulação pode ser encontrada em Motta, 2019.
7 Nesse sentido, Althusser (1994) é explícito ao relatar que seu ensaio “Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado” (1969) foi uma tentativa de superar, pela via da reprodução, um “limite absoluto” de Marx: a superestrutura, não como simples “manifestação”, mas como condição de existência da infraestrutura. Algumas consequências dessa ponderação de Althusser serão desenvolvidas no item 3 a seguir.
8 Thévenin (2010a, p. 26 et seq.) argumenta que o texto em que Edelman propõe essa relação entre interpelação ideológica e subjetividade jurídica (“O direito captado pela fotografia”, 1973) produziu efeitos nas obras posteriores do próprio Althusser, levado a reconhecer que “todos os ‘sujeitos’ em ação nas ideologias da ideologia dominante são apenas formas diversas de um mesmo sujeito, o sujeito jurídico”.
9 Eis o diagnóstico de Antunes (2020, p. 11-13): “[…] nas últimas décadas, as empresas ‘liofilizadas e flexíveis’, impulsionadas pela expansão informacional-digital e sob comando dos capitais, em particular o financeiro, vêm impondo sua trípode destrutiva sobre o trabalho.” “A terceirização, a informalidade e a flexibilidade se tornaram, então, partes inseparáveis do léxico e da pragmática da empresa corporativa global. E, com elas, a intermitência vem se tornando um dos elementos mais corrosivos da proteção do trabalho […].” “As tecnologias de informação e comunicação configuram-se, então, como um elemento central entre os distintos mecanismos de acumulação criados pelo capitalismo financeiro de nosso tempo.” “É quase impossível, hoje, encontrar qualquer trabalho que não tenha alguma forma de dependência do aparelho celular.”
10 Embora não seja o caso de nos alongarmos nesse debate, é preciso notar que a história do desenvolvimento da tecnologia da informação é paralela àquela do processo de financeirização da economia capitalista; a partir de certo ponto, desdobram-se de modo a compor, finalmente, uma mesma lógica. Assim como, ao cabo dos trente glorieuses, a finança passa a estruturar os setores tradicionais da economia, no século XXI, sobretudo após a crise de 2008, as plataformas digitais se tornam o centro institucional da operacionalização dessa dinâmica. A centralidade social da dataficação permitiu a cunhagem de diversas expressões para identificar o capitalismo contemporâneo: “capitalismo de vigilância” (Zuboff, 2019, 2020), “capitalismo tecnológico” (Morozov, 2018) ou “capitalismo digital” (Fuchs, 2019), entre outros. Todas essas expressões, contudo, têm por pressuposto a mobilização de infraestruturas tecnológicas específicas, ensejando o que Nick Srnicek (2017) chama de “capitalismo de plataforma”.
11 A partir de referenciais similares, Oliveira, Carelli e Grillo (2020, p. 2622) propõem a definição: “[…] plataformas digitais de trabalho seriam modelos de negócio baseados em infraestruturas digitais que possibilitam a interação de dois ou mais grupos tendo como objeto principal o trabalho intensivo, sempre considerando como plataforma não a natureza do serviço prestado pela empresa, mas sim o método, exclusivo ou conjugado, para a realização do negócio empresarial.”
12 Um relato muito mais próximo e vívido das práticas a que a plataforma digital sujeita os “motoristas parceiros” pode ser encontrado em Souza, 2024.
13 Contra a tradição crítica que visa apartar os autores, Montag (1995, p. 57) pontua: “Não é apenas o que as críticas a Althusser e a Foucault de fato dizem que nos permite ligar de maneira muito estreita esses textos, mas também aquilo que não dizem, as preocupações teóricas comuns tanto a Althusser quanto a Foucault que são negligenciadas pelos comentadores com a regularidade de um sintoma, os silêncios e os lapsos que os comentários partilham e que foram impostos a eles pela conjuntura histórica na qual foram escritos.” Em defesa da conexão fundamental entre ambos, ver ainda Rodin, 2020 e Silva; Paraná; Pimenta, 2020.
14 Eximimo-nos de examinar aspectos biográficos da relação entre Althusser e Foucault, já que tais aspectos não podem explicar de imediato a relação teórica entre suas obras. Para mais detalhes a esse respeito, remetemos a Eribon, 1995. Ressaltamos apenas a notável consideração intelectual que, a despeito das discordâncias e das circunstâncias, Althusser parece ter nutrido por Foucault para pontuar que as reflexões aqui expostas são inteiramente inspiradas por esse mesmo ânimo.
15 A esse respeito, Balibar (2004, p. 33-34) nota: “Althusser estabelece uma relação de antagonismo entre os dois termos, na qual um (a ciência) é definido no campo do conhecimento, enquanto o outro (a ideologia) é definido fora desse campo, sem relação inicial com ele, como sistema de relações sociais. […] A relação entre ciência e ideologia é, portanto, uma relação desigual em todos os aspectos, heterogênea, cujos termos não podem se associar espontaneamente, ‘atuar’ diretamente um sobre o outro, senão mediante a intervenção de um terceiro termo: a prática.” Ainda nesse sentido, ver Karsz, 1974, p. 205 et seq.
16 Em carta ao editor incluída em Foucault, 2020, p. 261-264, Balibar reproduz o mesmo argumento: “De um lado, há o fato de Foucault atribuir quase sistematicamente a Althusser a teoria da ideologia que Althusser procurou retificar e substituir no marxismo. É o grande ponto de fricção e de incompatibilidade entre eles […]. É preciso dizer que então Althusser já havia publicado textos que se afastavam singularmente da ideia de ‘corte epistemológico’, ‘politizando’ a relação da ideologia com a história, mas é preciso dizer também que esses textos eram fragmentários e contraditórios e que Foucault, por sua vez, se aproveita disso para escolher sistematicamente a interpretação mais cientificista e atribuí-la a Althusser.”
17 Ainda nessa linha, Pallotta (2015, p. 138-139): “Ora, a despeito do fato de Foucault jamais ter querido constatá-lo, precisamente em seu artigo de 1970, Althusser propôs um novo conceito de ideologia: um conceito material segundo o qual as ideias de um sujeito ‘são seus atos materiais inseridos em práticas materiais’. Assim, pode-se questionar se Foucault, ao rejeitar o conceito de ideologia, levou realmente em conta a novidade do conceito althusseriano: com efeito, o poder disciplinar concebido por Foucault é material, como é material a ideologia ritualizada em práticas reguladas por aparelhos ideológicos como concebida por Althusser.” Bem como Silva, Paraná e Pimenta (2020, p. 326): “Assim, uma das principais afinidades entre Althusser e Foucault repousa na destruição do mito dualista que opõe Poder e Sujeito e na elaboração de ferramentas conceituais capazes de iluminar a produção de sujeitos por relações de poder ou, nos termos de Althusser, a produção de sujeitos através da interpelação ideológica. A ‘reordenação conceitual’ realizada por Althusser ao enfatizar, inspirado em Pascal, a primazia das práticas na constituição das ideias e do sujeito ou a materialidade da ideologia, aproxima-o, assim, de aspectos da analítica foucaultiana do poder.”
18 Nesse sentido, Hirsch, Kannankulam e Wissel (2017, p. 728): “O todo social, que Althusser compreende como estrutura com dominante, não se deixa reduzir a um traço essencial como ‘a economia’. Esse todo e a dominância, verificável no capitalismo, da instância econômica [podem] ser [compreendidos] em sua existência apenas através da remissão às instâncias ideológicas e políticas.” Trata-se, portanto, de contrapor radicalmente, como sintetiza Karsz (1974, p. 200), o “lema”: “mude a economia, a ideologia acompanhará”.
19 Noutra passagem, Dardot e Laval (2016, p. 333) prosseguem: “Trata-se do indivíduo competente e competitivo, que procura maximizar seu capital humano em todos os campos, que não procura apenas projetar-se no futuro e calcular ganhos e custos como o velho homem econômico, mas que procura sobretudo trabalhar a si mesmo com o intuito de transformar-se continuamente, aprimorar-se, tornar-se sempre mais eficaz. O que distingue esse sujeito é o próprio processo de aprimoramento que ele realiza sobre si mesmo, levando-o a melhorar incessantemente seus resultados e seus desempenhos.”
20 A partir de uma outra perspectiva, Cukier (2020, p. 2506) anota: “A multiplicação dos controles informáticos e das avaliações dos trabalhadores pode, assim, resultar simultaneamente em uma aceleração dos ritmos de decisão e na substituição de decisões por prescrições rígidas, conduzindo a ‘lógicas paradoxais’ como ‘ser autônomo, mas não tomar decisões’.” Registre-se ainda a ponderação de Abílio (2020, p. 119): “O gerenciamento algorítmico conta com a possibilidade de cruzar e administrar uma ampla gama de dados em tempo real, pautar a atividade dos trabalhadores e ao mesmo tempo extrair das decisões e estratégias individuais novas definições e procedimentos.”
21 É imprescindível registrar que Dardot e Laval publicam A nova razão do mundo originalmente em 2009 - antes da proliferação das plataformas digitais e do fenômeno da uberização do trabalho.
22 Karsz (1974, p. 198), comentando a teoria da ideologia de Althusser, nota que: “O imaginário não se encontra na representação ideológica, mas nas relações com as condições reais que a ideologia representa. […] A representação ideológica é, assim, sem dúvida, real. É material e eficaz.”
23 Marx (2013, p. 502-503) já havia notado, no séc. XIX, que: “Como máquina, o meio de trabalho logo se converte num concorrente do próprio trabalhador. […] A parcela da classe trabalhadora que a maquinaria transforma em população supérflua, isto é, não mais diretamente necessária para a autovalorização do capital, […] inunda todos os ramos industriais mais acessíveis, abarrota o mercado de trabalho, reduzindo assim o preço da força de trabalho abaixo de seu valor.” A especificidade da configuração contemporânea do capitalismo reside num desenvolvimento da tecnologia que simultaneamente aumenta de maneira brutal a parcela “supérflua” da classe trabalhadora e estabelece meios antes inéditos para uma exploração ainda mais intensa do trabalho dessa parcela - meios que tendem a se estender inclusive para a exploração do trabalho da parcela da classe trabalhadora “diretamente necessária para a autovalorização do capital”. A possibilidade de reprodução dessas relações de exploração demanda a constituição de uma forma específica de subjetividade.
24 A despeito das críticas ao conceito de ideologia como idealidade, que, como já apontamos, repercutem as críticas de Foucault, são Dardot e Laval que se empenham para deslocar, na interpretação das concepções de Foucault sobre a constituição da subjetividade, o foco do “corpo” para a “mente”: “O princípio geral do dispositivo de eficácia não é tanto, como se disse muitas vezes, um ‘adestramento dos corpos’, mas uma ‘gestão das mentes’. Ou antes deveríamos dizer que a ação disciplinar sobre os corpos foi apenas um momento e um aspecto da elaboração de certo modo de funcionamento da subjetividade. […] O novo governo dos homens penetra até em seu pensamento, acompanha, orienta, estimula, educa esse pensamento.” (Dardot; Laval, 2016, p. 324-325) Entendemos, contudo, que a possibilidade de assimilar as concepções de Foucault e de matriz foucaultiana a uma teoria althusseriana deve se pautar na dimensão sobretudo corpórea das práticas (disciplinares ou ideológicas) pelas quais as formas de subjetividade são constituídas. Nesse sentido, concordamos com Montag (1995, p. 76): “A alma é a prisão do corpo: nenhuma afirmação captura tão bem o desespero que muitos leitores alegam ter encontrado tanto em ‘Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado’ quanto em ‘Vigiar e punir’.”
25 Não há, na ideologia jurídica, o elemento de introjeção da demanda por desempenho (como uma espécie de gerente, fiscal ou capataz permanente de si mesmo), na forma de um desejo que deve ser próprio (um querer ir além de si), que produz, no sujeito empresarial, a dualidade de colocar-se simultaneamente como aquele que exige mais desempenho e aquele que é exigido quanto a isso. Por isso, podemos dizer que, em certo sentido, a subjetividade jurídica diz respeito, antes de tudo, à capacidade de assujeitar-se, de fazer-se mercadoria, enquanto a subjetividade empresarial destaca o fazer-se sujeito da venda de si, a promoção ativa, como negociante que busca valorizar seu negócio.
26 Optamos por alterar aqui a tradução do francês renvoi de correspondência para remissão, visto que expressa mais adequadamente o sentido da reflexão de Althusser.
27 São ainda a figura do contrato e, por conseguinte, a subjetividade jurídica que medeiam a relação entre trabalhador precarizado e plataforma digital, o que mantém a atualidade das teses tanto de Pachukanis quanto de Edelman. A esse respeito, ver Kashiura Jr.; Akamine Jr., 2021; Melo, 2021; Gediel; Rossa, 2024. De todo modo, vale mencionar que o processo de uberização das relações de trabalho se apresenta como o contrário do vínculo empregatício, que é a regra geral do direito do trabalho e fundamenta o acesso ao sistema de proteção que decorre do contrato de trabalho, o que inclui múltiplos direitos individuais e coletivos do empregado em face do seu empregador, bem como a cobertura previdenciária de natureza pública. Não resta dúvida de que essa espécie de vinculação digital ao trabalho que a uberização promove já alterou a forma como muitos trabalhadores veem sua relação com as empresas, com o trabalho e consigo próprios, porque tal relação passou a ser mediada pela ideologia do empresariamento de si, que, consequentemente, vai determinar também as reivindicações que o trabalhador fará - e, mais ainda, deixará de fazer - a quem explora sua força de trabalho. Perversamente, é essa “abdicação do emprego” que será utilizada como argumento, pelos governos, tribunais e empresas, para que o trabalho intermediado por aplicativo fique fora do campo de proteção do direito do trabalho, sendo a desproteção apresentada como uma reivindicação que partiu dos próprios trabalhadores, que não querem mais ser “empregados”. Vão neste sentido as recentes declarações do presidente Lula, após seu governo apresentar um projeto de lei para regulamentar o trabalho por aplicativos como trabalho autônomo: “É verdade que os trabalhadores gostariam de ter oportunidade de ter uma forma de trabalho que lhe desse garantia, sem se dar pela CLT. A vida inteira, quando a gente está dentro de uma fábrica, a gente sonha em ser autônomo. Naquele tempo em que não tinha empresa de aplicativo […] meu sonho dentro da fábrica era ser motorista de táxi, ou sair da fábrica e montar um barzinho. E o barzinho era sempre perigoso porque eu poderia beber mais dentro do balcão do que vender. Agora as pessoas querem se virar por conta própria e não querem mais ficar presas à CLT” (reunião do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia, 7 mar. 2024). A compreensão precisa dos impactos da forma específica de regulação do trabalho intermediado por plataformas (se será como empregado, autônomo ou outro enquadramento, como se debate no Brasil e em todo o mundo neste momento) exige desdobramentos que não estão no escopo deste artigo, mas a tendência geral dessa regulação parece não apenas não contrariar, mas possivelmente agravar as constatações sobre o aparelho ideológico das plataformas digitais aqui apresentadas.
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