Resumo: Discussões críticas sobre a tese do Antropoceno apontam para a necessidade de uma reconfiguração radical da política e do direito. Propomos que possíveis caminhos para essa reconfiguração estão presentes nas práticas de defesa do território e modo de vida do povo Munduruku, especialmente no processo de autodemarcação do território Daje Kapap Eypi, no médio curso do rio Tapajós, iniciado em resposta à paralisação da demarcação da terra pelo governo brasileiro e ao avanço do licenciamento da Usina Hidrelétrica São Luiz do Tapajós. A partir de uma análise dos conflitos em torno deste território, investigamos o embate entre duas lógicas jurídicas antagônicas: de um lado, um direito do Antropoceno, que reforça a separação entre natureza e sociedade, rejeita modos existência que fogem a essa dualidade, e aprofunda o extrativismo predatório; e, de outro, um direito cosmopolítico dos Munduruku, no qual direitos e obrigações são constituídos por redes de entidades humanas e mais-que-humanas, por práticas autônomas de tomada de decisão e pela experiência situada e viva do território. Argumentamos que o direito cosmopolítico dos Munduruku tem constituído territórios capazes de frear o avanço do extrativismo e da destruição ecológica, e deve ser entendido como uma prática jurídica que sustenta e repara as condições de vida num planeta ferido.
Palavras-chave: Autodemarcação Munduruku, Antropoceno, Direito cosmopolítico.
Abstract: Critical discussions about the Anthropocene point to the necessity of a radical recasting of politics and law. We propose that potential paths for this recasting can be found in the practices through which the Munduruku defend their territory and way of life, particularly in the self-demarcation of the Daje Kapap Eypi territory, initiated in 2014 in response to the Brazilian government's halt on the land demarcation process and the advancement of the São Luiz do Tapajós Hydroelectric Dam licensing. Through an analysis of conflicts surrounding this territory, we investigate the clash between two antagonistic legal logics: on one side, a law of the Anthropocene, which reinforces the separation between nature and society, rejects modes of existence that transcend this duality, and deepens predatory extractivism; and on the other, a cosmopolitical law of the Munduruku, in which rights and obligations are constituted by networks of human and more-than-human entities, autonomous decision-making practices, and the situated experience of territory. We argue that the cosmopolitical legal practice of the Munduruku has established territories capable of halting the advance of extractivism and ecological destruction and should be understood as a legal practice that sustains and repairs the conditions of life on a damaged planet.
Keywords: Munduruku self-demarcation, Anthropocene, Cosmopolitical law.
Dossiê: Direito e Práxis 15 anos: perspectivas para o horizonte da crítica do direito
O direito cosmopolítico Munduruku como prática jurídica contra o Antropoceno
The cosmopolitical law of the Munduruku: a legal practice against the Anthropocene
Received: 20 April 2024
Accepted: 09 August 2024
O povo Munduruku não fala à toa. As palavras pronunciadas por nossos pajés, velhos e velhas, caciques, cacicas, guerreiros, guerreiras e crianças realmente acontecem. Nossos cantos há muitos séculos contam que somos um povo guerreiro e não perdemos nenhuma batalha. Essas são as palavras verdadeiras, e por isso continuamos cantando e fazendo nossos rituais. Já a palavra dos pariwat [brancos] é cheia de dapxi [mentira]. É por isso que eles escrevem tudo, para ver se a palavra fica mais forte e esconde atrás do papel que assinam as coisas ruins que sempre fazem (...). Mostramos que aqui na Mundurukânia não é o dinheiro que manda. Temos terra para plantar, temos peixe, caça, e o rio para navegar. Se não temos combustível, nós vamos remando e chegamos sempre no lugar que queremos (Manifesto Munduruku, 2017)1.
O que pode o direito no tempo das catástrofes (STENGERS, 2015), diante das transformações radicais trazidas pela irrupção do Antropoceno, das mudanças climáticas, do plantationceno (HARAWAY, 2015; TSING, 2022)? O que pode o direito num planeta ferido, marcado pelo extrativismo e pelas dinâmicas sociais e ecológicas impostas pela lógica da acumulação de capital (MACHADO ARÁOZ, 2023; MOORE, 2022a), um planeta cada vez mais carente de refúgios onde velhas e novas ecologias possam emergir, se recompor, e vingar (TSING, 2017)?
Ao longo dos últimos anos, essas questões têm gerado uma efusão de debates, críticas e agenciamentos no campo jurídico. A consolidação do direito climático, o reconhecimento de sujeitos de direito mais-que-humanos (ACOSTA; MARTÍNEZ, 2011; SANTAMARIA, 2014; GARAVITO, 2024), e debates sobre os crimes relacionados ao colapso socioambiental sistêmico - como o ecocídio e ecogenocídio (EICHLER, 2020; SHORT; CROOK, 2022) -, são alguns dos movimentos que os diagnósticos de época têm gerado dentro do Direito. Apesar de suas diferenças, a maior parte desses debates volta sua atenção para a necessidade de reformulação, reconfiguração e ampliação do Direito com “D” maiúsculo, ou seja, do sistema jurídico produzido e controlado pelo Estado.
O presente artigo dialoga com esses movimentos, mas investiga os horizontes do direito no atual tempo de catástrofes por meio de outra chave, informada por discussões da antropologia contemporânea e focada nas juridicidades (LE ROY, 2004) que emergem em contextos não-estatais, notadamente nos territórios e modos de vida indígenas, que estão, muitas vezes, em tensionamento com o Estado. Trata-se de atentar para modos de constituição de direitos e obrigações que confrontam o extrativismo predatório e a lógica de subjugação da natureza que subjaz tanto às crises ecológicas quanto às instituições centrais do Direito moderno (LATOUR, 2002; VIÑUALES, 2018). Em diálogo com proposta cosmopolítica de STENGERS (2018), usamos o termo direito cosmopolítico para nos referir a juridicidades abertas a elementos do cosmos excluídos pelo Direito moderno e capazes de frear a imposição do mundo uno e homogêneo da modernidade e do “progresso” sobre os demais. A cosmopolítica de Stengers, junto com a antropologia da virada ontológica (LATOUR, 2002; VIVEIROS DE CASTRO, 2002; DE LA CADENA, 2018; POVINELLI, 2023) e as vozes dos povos indígenas e tradicionais (KOPENAWA; ALBERT, 2010; BISPO DOS SANTOS, 2023) nos ajudam a ver e a transitar entre diferentes modos de existência, e a buscar arranjos políticos e jurídicos pautados pela multiplicidade e pela diferença.
É por esse prisma que olhamos para o processo de autodemarcação do povo Munduruku, cujo território tradicional está situado no sudoeste do Pará, leste do Amazonas e oeste de Mato Grosso. Os Munduruku do médio rio Tapajós demandam há décadas o reconhecimento de suas terras tradicionais, como o território Daje Kapap Eypi, conhecido pelos pariwat (não indígenas) como Terra Indígena (TI) Sawré Muybu. Esta terra foi identificada em 2013 por um Grupo de Trabalho instituído pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai)2. No entanto, no ano seguinte, os Munduruku foram avisados, em reunião registrada com a presidente do órgão, que o governo federal não daria continuidade ao processo de demarcação, já que o reconhecimento da TI representaria um obstáculo à construção do complexo hidrelétrico projetado para a bacia Tapajós-Teles Pires3.
É nesse momento que o movimento de resistência Munduruku - constituído por lideranças, guerreiros, guerreiras, juventude, pajés e associações Munduruku - dá início à autodemarcação, um conjunto de práticas, protocolos, tecnologias e articulações que visa garantir o direito ao território. Nos anos seguintes, apesar do arquivamento do licenciamento da Usina Hidrelétrica (UHE) São Luiz do Tapajós, que inundaria parte de Daje Kapap Eypi, o território seguiu sendo pressionado por garimpeiros, grileiros e madeireiros, e impactado pela instalação de portos de transbordo de soja e pelo trânsito de balsas de grãos pelo rio Tapajós (OLIVEIRA; VIEIRA, 2021). As autodemarcações, enraizadas na organização cosmopolítica Munduruku, tem feito frente a esses processos, consolidando-se como prática de afirmação do modo de vida Munduruku4.
No presente artigo, pensamos a autodemarcação à luz de debates recentes sobre as rupturas ecológicas que marcam a experiência e os diagnósticos do tempo presente, bem como suas implicações para o direito. Tomamos a tese do Antropoceno como ponto de partida devido à amplitude das reflexões e críticas que ela tem catalisado em diferentes campos do saber. Esta tese propõe que estaríamos hoje vivendo numa nova época geológica moldada pela ação do Homem - do Antropos - e marcada pela degradação sistêmica das condições que sustentam a vida na terra (ZALASIEWICZ et al., 2021). Seguimos críticas que apontam para a necessidade de desnaturalizar e descolonizar o Antropoceno (MACHADO ARÁOZ, 2023; FERDINAND, 2022; HARAWAY, 2023), e que exploram a necessidade de reconfiguração do Direito - seus imaginários, práticas e normas - diante das rupturas ecológicas dos nossos tempos (GREAR, 2020).
Mais que reimaginar e reformar o Direito do Estado, os desafios colocados pelo Antropoceno nos provocam a olhar além dele e a prestar atenção em outros modos de constituição de direitos e obrigações, outras juridicidades (LE ROY, 2004; FILHO, 2014). Aproximando os debates sobre o Antropoceno a discussões latino-americanas sobre pluralismo jurídico e autonomias indígenas (YRIGOYEN, 2009; SIEDER, 2017; MARÉS, 1998; CLAVERO, 1995), pensamos a autodemarcação como prática jurídica que, expressando a juridicidade de grupos Munduruku, tem feito frente às lógicas e processos que subjazem as rupturas socioecológicas que testemunhamos, como a objetificação da natureza, o autoritarismo extrativista, e o rebaixamento dos mundos que não se sujeitam ao modo de produção capitalista-colonial. Propomos que a autodemarcação seja entendida como manifestação de um direito contra o Antropoceno.
Nossa pesquisa sobre os conflitos em torno de Daje Kapap Eypi foi feita com base numa revisão da literatura e relatórios produzidos acerca das disputas em torno do território. Reconstruímos os processos de demarcação e autodemarcação com base em processos administrativos, ações judiciais e diálogos com interlocutores Munduruku. As cartas publicadas pelo Movimento Munduruku Ipereg Ayu (MMIA) e por outros sujeitos coletivos Munduruku em momentos de embate com o governo tiveram especial importância, bem como etnografias e pesquisas recentes sobre os conflitos, a territorialidade e a ação política Munduruku5. Pretendemos, a partir desses trabalhos e de outras fontes, demonstrar que, no âmbito destes conflitos, é possível identificar tanto uma sensibilidade jurídica própria do movimento de resistência Munduruku (OLIVEIRA, 2021) quanto uma juridicidade própria, um sistema de constituição de direitos e obrigações sancionáveis que se manifesta nos processos de autodemarcação.
O restante do artigo está organizado da seguinte maneira: a parte 2 revisita a intensificação dos conflitos em torno de Daje Kapap Eypi nos anos 2010, e apresenta o surgimento da autodemarcação como prática política e jurídica de afirmação do território e modo de vida Munduruku. A parte 3 elabora em maior profundidade as discussões críticas em torno da tese do Antropoceno, analisando a longa história colonial e moderna por trás das catástrofes ecológicas atuais. Discute também o campo de pesquisa que tem explorado horizontes jurídicos contra o Antropoceno e propõe o conceito de direito cosmopolítico para pensar esse campo a partir das lutas dos povos indígenas e, mais especificamente, a partir da juridicidade presente nas autodemarcações Munduruku. Concluímos com comentários sobre o papel do direito cosmopolítico Munduruku na sustentação e reparação das condições de vida num planeta ferido.
Não trocamos as riquezas naturais de nossos rios e os espíritos de nossos antepassados por promessas de demarcação de nossas terras - que já é o nosso direito - nem por espelhinhos e bugigangas (Carta dos povos Kayabi, Apiaká e Munduruku à presidente Dilma Rousseff, 2011) 6.
O mito Munduruku sobre o território Daje Kapap Eypi tem muitas versões. Em uma delas (COUDREAU, 1941 [1897], emLOURES, 2017), o grande Deus criador Karosakaybu7 certo dia decidiu testar o coração dos Munduruku. O seu filho Caru-Taru havia retornado de uma caçada de mãos vazias, e Karosakaybu o enviou à maloca de Acupari, onde os homens acabavam de voltar de uma caçada abundante, para pedir que compartilhassem a caça. Apesar da fartura, os Munduruku de Acupari negaram o pedido de Caru-Taru, dizendo que cabia ao seu pai alimentá-lo. Karosakaybu mandou seu filho mais duas vezes à maloca para pedir um pouco da caça. De novo, o pedido foi negado. Karosakaybu se enfureceu. Num gesto acompanhado de palavras encantadas, transformou em porcos bravos todos os habitantes de Acupari e os confinou em um curral. É então que entra em cena Daydo, um tatu traiçoeiro com poderes mágicos, que conta ao filho de Karosakaybu sobre os porcos, atiçando a sua curiosidade. Um dia, Daydo abre a porta do curral quando Caru-Taru se aproxima. Nesse momento, os porcos o agarram e o levam embora para se vingar do seu pai. Ao fugir, eles desceram do alto onde estava o curral em direção ao rio Tapajós e estreitaram o leito do rio para atravessá-lo. Deixaram na montanha a marca do rastro por onde passaram. O rastro dos porcos é seguido das pegadas de Karosakaybu, inscritas sobre as pedras ao tentar resgatar seu filho.
Para os Munduruku, o lugar onde essas marcas estão inscritas é conhecido como Daje Kapap Eypi - ou “os fechos”, em referência ao local onde o leito do rio foi estreitado pelos porcos. Uma carta de lideranças Munduruku narra a história da seguinte forma:
Dajekapap (os Fechos).
É a passagem dos porcos, é um lugar sagrado (...). Nesse local, no verão se pode ver o rastro esculpido na rocha, que é o rastro das marcas do pé do Karosakaybu, quando chegou ali logo que seu filho foi levado à outra margem do Tapajós pelos porcos e ele havia desistido de procurar seu filho. Do lado direito da margem do Tapajós se pode ver a rocha partida em forma de vala, é a passagem dos “porcos”, é o caminho por onde eles desceram. O Karosakaybu, por desgosto, ficou muito sentido pela perda do seu filho e resolveu deixar uma cobra surucucu para que ninguém pudesse se fazer de deus. Deixou uma cobra para morder qualquer pessoa que passasse por aquele lugar (...). (Carta das lideranças Munduruku ao Governo, 8 de junho de 2013) 8.
A história da travessia dos porcos traz elementos importantes para pensar o modo de vida Munduruku e sua relação com o território. De uma parte, o mito fala de normas de conduta - ao transformar em porcos os que não compartilharam o alimento, Karosakaybu estabeleceu que não dividir a caça rompe com as normas de sociabilidade Munduruku e pode trazer consequências graves (DIAS, 2021). Ao deixar a cobra no lugar em que perdeu seu filho, estabeleceu um lugar interdito cuja violação também traria consequências graves. Ao mesmo tempo, o mito aponta para os poderes dos Munduruku e sua relação com a terra. Tanto Karosakaybu quanto os Munduruku possuem a capacidade de alterar, constituir, transformar a terra em território, em espaço gerado na relação e no acontecimento, carregado de intensidade e sentido, que a um só tempo é constituído e constitui o corpo coletivo. Os Munduruku são constituídos por esse território, por sua história e pelos mitos, pelos lugares sagrados e pelas obrigações que eles implicam.
Nos relatos Munduruku, Daje Kapap Eypi não tem contornos bem definidos, fronteiras claras, ou bordas fixas como aquelas que delimitam uma propriedade. Trata-se de um lugar até hoje marcado pela memória coletiva e pela cobra deixada por Karosakaybu, e que se interconecta com um território Munduruku, histórico e mitológico, muito mais vasto.
Os primeiros registros de ocupação Munduruku no do médio Tapajós datam do século XVIII (FUNAI, 2013). Ao menos desde a segunda metade do século XX, as famílias Munduruku que residiam na vila Pimental, na margem direita do médio rio Tapajós, usavam o território tradicional de Daje Kapap Eypi para fazer roça, pescar e caçar. Segundo relatório da Funai, para a realização destas atividades, os Munduruku “sempre utilizaram o território da terra indígena, especialmente o rio Jamanxim e os locais próximos de onde é hoje a Aldeia Velha. Também realizavam, três ou quatro vezes ao ano, expedições mais longas, nas quais percorriam boa parte do território da TI Sawré Muybu” (2013: 63) De acordo com relatos do cacique Juarez Saw (FUNAI, 2013, p. 66) houve, nos anos ‘80 e ‘90, sucessivas tentativas dessas famílias de fixar moradia no território, que não lograram êxito devido a um ocupante não-indígena que se dizia proprietário da área. No início dos anos 2000, a interrupção do atendimento à saúde indígena em Pimental e o preconceito que os indígenas sofriam na vila levaram os Munduruku a enfrentar o pretenso proprietário (pela Constituição Federal, ninguém pode ter propriedade dentro de uma terra tradicional indígena) e se mudar para o local onde hoje está a Aldeia Velha, no território de Daje Kapap Eypi.
Visto pelos olhos das agências de planejamento do governo nos anos 2000 e 2010, quando os planos para ditadura militar para o desenvolvimento da Amazônia estavam sendo retomados e atualizados, a bacia do rio Tapajós era um estoque ocioso de recursos e commodities, incluindo madeira, minérios e energia. Em 2007, o lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) pelo governo federal marcou o avanço do desenvolvimento predatório sobre a região. Juntos, o PAC 1 e 2, o último de 2011, previam investimentos na produção de estudos e inventários de potencial hidrelétrico de onze bacias hidrográficas, nove delas no estado do Pará (BNDES, 2011; VERDUM, 2012). O projeto do governo era a conversão de quase todos os afluentes do rio Amazonas em cadeias de reservatórios para a geração de energia hidrelétrica. Sobre a bacia do Tapajós-Teles Pires, estava projetada a construção de um complexo hidrelétrico composto por 43 barragens de grande porte, três delas no próprio rio Tapajós (FEARNSIDE, 2016).
As barragens inundariam cachoeiras do rio Tapajós, e as eclusas associadas a elas permitiriam a passagem de barcaças para o transporte de commodities, principalmente a soja, rumo aos portos do norte do país. Trata-se de um projeto territorial estrutural - parte do qual já foi instalado - que integra UHEs, hidrovias e portos visando a exploração de commodities para o mercado global; um projeto de transformação do território que, incentivando a expansão da agropecuária e da mineração, resultaria na contaminação dos rios e igarapés por agrotóxicos e por mercúrio, no avanço da grilagem, no alagamento de terras indígenas e de áreas de conservação ambiental. Um horizonte de colapso socioecológico que atravessaria as escalas do local ao global, arruinando territórios e culturas, esgotando recursos hídricos, e fomentando o desmatamento e a emissão de gases de efeito estufa.
Uma das barragens previstas para a região integrava a Usina Hidrelétrica (UHE) São Luiz do Tapajós, projetada para se estender por 123 km do rio Tapajós e 76 km do rio Jamanxim, inundando 376 km2 de terras (FEARNSIDE, 2016). Sua construção causaria o alagamento de parte de Daje Kepap Eypi e levaria à remoção de aldeias Munduruku, violando frontalmente o art. 231 da Constituição Federal de 1988, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT, 1989) e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (ONU, 2007).
Junto com o Ministério Público, comunidades ribeirinhas, organizações e movimentos sociais, os Munduruku resistiram à usina desde pelo menos 2009, quando o projeto ganhava tração no governo. Naquele ano, mandaram uma carta ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao Ministro das Minas e Energia, Edson Lobão, e às demais autoridades do setor energético brasileiro anunciando o que fariam caso o governo levasse a UHE adiante:
Essas barragens vão trazer destruição e morte, desrespeito e crime ambiental, por isso não aceitamos a sua construção. Se o governo não desistir do seu plano de barragens, já estamos unidos e preparados com mais de 1.000 (mil) guerreiros, incluindo as várias etnias e não índios. Nós, etnia Munduruku, queremos mostrar agora como acontecia com os nossos antepassados e os brancos (pariwat) quando em guerra, cortando a cabeça, como vocês veem na capa deste documento. Por isso não queremos mais ouvir sobre essas barragens na bacia do Rio Tapajós (...)10.
O Estado implementou uma política deliberada de silenciamento e invisibilização dos povos da região, incluindo os Munduruku e a comunidade tradicional de Montanha e Mangabal. Em 2011, o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) emitiu a Resolução nº 3/2011, que qualificou as UHEs São Luiz do Tapajós, Jatobá, Chacorão e Jardim Ouro Fino como “projetos estratégicos de interesse público, estruturantes e prioritários para efeitos de licitação e implementação” (CNPE, 2011). Pouco tempo depois, foi editada a Medida Provisória nº 558/12, convertida na Lei Federal nº 12.678/12 que reduziu as Unidades de Conservação que seriam afetadas pelas barragens e que, portanto, dificultariam sua implementação (TORRES; CAMARGO, 2016). Apesar da inexistência de estudos conclusivos sobre os impactos da desafetação das UCs e dos protestos do Ministério Público Federal, 75.630 hectares de áreas de conservação foram extintos. Em março de 2013, o governo federal deflagrou uma operação militar e policial conhecida como a Operação Tapajós, que deslocou homens da Força Nacional, da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal para Itaituba para escoltar os 80 pesquisadores incumbidos de levantar - contra a vontade expressa dos Munduruku - informações para estudo de impacto das usinas. Essa “operação de guerra” cercou as aldeias e as comunidades beiradeiras por dias seguidos de violência (LOURES, 2017). Todas estas são manifestações do autoritarismo extrativista do Estado brasileiro.
Diante dos ataques contra sua existência, os Munduruku devolveram uma constelação de formas de luta, concatenando a ação política combativa com vias institucionais de reivindicação de direitos. Baseado em extenso trabalho etnográfico junto aos Munduruku, LOURES (2017) analisa o surgimento do Movimento Munduruku Ipereg Ayu (MMIA), que, a partir de 2012, executou uma série de ações de denúncia, reivindicação e afirmação de direitos. Fundado em meio à intensificação do confronto com o Estado e com o desenvolvimentismo, o MMIA iniciou 2013 com grande ímpeto de resistência. Realizou um trabalho intenso de base e de organização de assembleias Munduruku, onde temas coletivos eram pautados, discutidos e deliberados. O MMIA também organizava delegações a Brasília, onde, em junho de 2013, os Munduruku ouviram do então ministro Gilberto Carvalho que o governo não renunciaria às hidrelétricas no Tapajós, e que a consulta com os povos indígenas não teria poder de veto (LOURES, 2017, p.143). Uma decisão do Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF-1) chegou a suspender o licenciamento da UHE por conta da ausência de Consulta Livre, Prévia e Informada (CLPI) dos povos e comunidades impactadas. Tal decisão, como outras que prejudicavam os planos do governo, foi barrada por uma Suspensão de Segurança, sob o argumento de risco de grave lesão à ordem pública (OLIVEIRA, 2016).
Nessa época, comunidades Munduruku notaram a presença de pesquisadores dentro do seu território no alto Tapajós. Eles realizavam levantamentos para o Estudo de Impacto Ambiental da UHE Jatobá. Tais atividades eram inaceitáveis para o MMIA, pois seus membros entendiam que os estudos deveriam ser precedidos pela CLPI. De acordo com LOURES (2017:151),
Cerca de dezoito guerreiros e guerreiras do MMIA (oriundos de diferentes aldeias), então, partiram (....) em duas voadeiras rumo à Mamãe-Anã. Lá encontraram 25 pesquisadores a serviço da Concremat, empresa contratada para a realização dos estudos demandados para o licenciamento da hidrelétrica Jatobá. Os Munduruku abordaram a equipe de pesquisa, confiscaram seus materiais e solicitaram que três dos pesquisadores os acompanhassem com o intuito de garantir a atenção do governo federal.
A expulsão dos pesquisadores foi um ato de afirmação dos Munduruku dos seus direitos sobre território tradicional, bem como da capacidade do Movimento de garantir esses direitos, mesmo que em confronto com o Estado.
O MMIA buscou dialogar e compor com as instituições e com o Direito do Estado. Em inúmeras cartas e manifestações públicas, reivindicava os direitos dos povos indígenas estabelecidos na Constituição Federal de 1988 e exigia, nos termos Constitucionais, a demarcação de Daje Kapap Eypi. O processo de demarcação de terras indígenas regulado e implementado pelo Estado gira em torno do conceito de “terra tradicionalmente ocupada”, introduzida no sistema jurídico pela Constituição Federal de 1988 em decorrência da intensa mobilização indígena e indigenista (LACERDA, 2008). O termo se refere a um modo de ocupação do território que é próprio um povo ou comunidade, onde a terra, identidade, e existência estão vinculados. As terras tradicionais seguem um regime jurídico distinto do regime da propriedade. De domínio da União, elas não podem ser transacionadas no mercado, não podem ser cedidas e nem incorporadas ao patrimônio de particulares (MARÉS, 1998). São terras que estão em grande medida interditas ao capital, destinadas ao usufruto exclusivo indígena. O direito sobre ela é originário, anterior ao ordenamento jurídico, ou seja, constituído pelas juridicidades indígenas, não pelo Direito do Estado. Tal direito é apenas declarado, e não constituído, pelo processo de demarcação. A terra tradicional enquanto categoria jurídica abre o Direito aos direitos indígenas. Trata-se de um constructo que tem a possibilidade de mediar entre e compor com diferentes mundos e juridicidades.
Em 2012, em resposta às reivindicações Munduruku, a Funai instituiu um GT para identificar e delimitar a terra Munduruku localizada à margem direita do médio curso do rio Tapajós. No âmbito do processo de demarcação, essa área passou a ser chamada de Terra Indígena (TI) Sawré Muybu. Dentro do processo de demarcação regulamentado pelo Decreto 1.775 de 1996, cabe ao GT a elaboração de um Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) caracterizando a terra indígena a ser demarcada. O GT realizou investigações históricas e etnográficas sobre os Munduruku e sua presença na bacia do Tapajós, além de visitar o território e colher relatos de lideranças e famílias, visando identificar a existência e definir os limites da TI.
Em 2013, o GT submeteu à Funai o RCID da TI Sawré Muybu, onde identificou como sendo de ocupação tradicional Munduruku uma área de 178.173,00 hectares, uma “unidade socioambiental indissolúvel e necessária à reprodução física e cultural dos Munduruku que nela habitam” (FUNAI, 2013, p. 290). De acordo com o RCID,
A TI Sawré Muybu possui uma área de 178.173,00 ha (...). A área identificada (...) localiza-se na área de impacto direto da UHE São Luiz do Tapajós, em fase de planejamento, cuja instalação, se efetivada, implicará em supressão territorial de aproximadamente 7% da terra indígena identificada. A área, habitada em caráter permanente por 113 pessoas, está compreendida pelo rio Tapajós, ao norte e ao oeste, e pelo rio Jamanxim e igarapé Barreiro ao leste e ao sul (FUNAI, 2013, p. 5).
Tomado em seu contexto político, o RCID revela as contradições, tensões e composições que subjazem ao processo de demarcação. Trata-se de processo instituído no âmbito do mesmo governo que buscava viabilizar um projeto territorial em confronto com os direitos Munduruku, num contexto de guerra instaurada pelo governo contra os últimos. Aninhada nessa guerra, a Funai produz um documento, o RCID, que poderia, se levado adiante, inviabilizar o projeto de construção da UHE São Luiz do Tapajós e seu contínuo extrativista. Essa possibilidade foi impedida pelos agentes estatais e empresas interessadas diretamente na instalação de hidrelétricas e de projetos de mineração na região, como o Consórcio Tapajós, a Rio Vermelho Mineração, associações de garimpeiros e a Confederação Nacional da Indústria (CNI).
O RCID foi engavetado pelo governo, que não deu prosseguimento ao processo de demarcação11. Numa audiência realizada com lideranças Munduruku em 2014, a então presidente da Funai, Maria Augusta Assirati, reconheceu que o RCID se encontrava “na sua mesa”, mas que não seria publicado por decisão de outros setores do governo que entendiam que o avanço da demarcação criaria obstáculos para projetos de infraestrutura prioritários12. O governo federal optou por fingir que os Munduruku de Sawré Muybu não existiam, passando, inclusive, a fingir que o relatório de identificação da área, produzido pelo próprio governo, também não existia. Esse “faz de conta” (Molina, 2017), uma dissimulação por parte do governo, é uma estratégia no avanço das frentes extrativistas. Por esses atos, o governo federal tentava fazer desaparecer os povos indígenas e comunidades tradicionais daquele território, mesmo que documentos produzidos por ele mesmo atestassem essa existência.
A demarcação feita pelo Estado, ao mesmo tempo em que abre um canal de possível afirmação do modo de vida Munduruku, está submetida ao governo, à sua política, sua temporalidade, sua forma de entender o que é o território e ao seu ímpeto de controle e soberania. Está submetida à lógica de mercantilização da terra, das florestas e dos rios. Dentro dessa lógica, o Direito é praticado, no mais das vezes, para viabilizar o avanço do extrativismo e da violência contra os povos indígenas e contra outras vidas humanas e não humanas. Foi esta lógica, na forma de uma ordem política vinda “de cima”, que bloqueou o avanço do processo demarcatório da TI Sawré Muybu. O processo de demarcação se assemelha mais a uma guerra do que a um processo administrativo.
Face à interrupção da demarcação, os Munduruku abriram um novo caminho de ação política para reafirmar o seu direito a Daje Kapap Eypi - um direito anterior ao Direito do Estado. A autodemarcação que começa em 2014 está ancorada nas formas de organização (cosmo)política dos Munduruku que surgiram anos anteriores, como a criação e consolidação do MMIA, a afirmação dos locais sagrados, e a intensificação da agenda de assembleias, onde comunidades e lideranças do médio e do alto Tapajós se encontram. Está enraizada também em práticas e mais antigas, como nas expedições tradicionais pelo território e nas obrigações devidas aos locais sagrados.
A decisão de realizar a primeira autodemarcação em 2014 foi tomada em assembleia, depois de conversas e consultas com as comunidades, com os pajés, jovens, guerreiros e guerreiras. De acordo com Alessandra Korap Munduruku, liderança do médio Tapajós, coordenadora da Associação Pariri, que hoje representa 13 aldeias Munduruku do médio Tapajós, e uma das autoras deste artigo, todos os aspectos da autodemarcação são deliberados coletivamente, junto com as lideranças e comunidades, incluindo as datas, os locais a serem percorridos, as formas de organização, de envolvimento de aliados e de trato de eventuais invasores encontrados dentro do território. De acordo com um Comunicado ao Governo emitido pelas lideranças Munduruku no dia 3 de novembro de 2014,
Nós, povo Munduruku, aprendemos com nossos ancestrais que devemos ser fortes como a grande onça pintada e nossa palavra deve ser como o rio, que corre sempre na mesma direção. O que nós falamos vale mais que qualquer papel assinado. Assim vivemos há muitos séculos nesta terra.
O governo brasileiro age como a sucuri gigante, que vai apertando devagar, querendo que a gente não tenha mais força e morra sem ar. Vai prometendo, vai mentindo, vai enganando (...). O governo não quer fazer a demarcação porque isso vai impedir as hidrelétricas que eles querem fazer em nossos rios, chamadas de São Luiz do Tapajós e Jatobá. Já que o governo não quer fazer a demarcação, decidimos que nós mesmos vamos fazer. Começamos a fazer a autodemarcação e só vamos parar quando concluir nosso trabalho.
Queremos dizer também que estamos juntos, parentes do alto e baixo, lutando para a demarcação da terra indígena Daje Kapap Eypi, conhecida pelos pariwat como Sawré Muybu. Esse trabalho agora é prioridade para nós. Decidimos que os Munduruku que fazem parte do Movimento Munduruku Ipereg Ayu, do alto Tapajós, e Associação Pahyhyp, do médio Tapajós, não vamos participar da reunião com o governo nos dias 05 e 06 de novembro. E só voltaremos a falar com o governo depois que a terra indígena Sawré Muybu for demarcada e homologada13.
As autodemarcações são expedições realizadas a regiões específicas do território, integradas por grupos de 10-50 indígenas acompanhados por jornalistas, pesquisadores, membros de associações indigenistas e ambientalistas, bem como de representantes de povos e comunidades aliados. Nas primeiras expedições, foi notável a presença de lideranças da comunidade tradicional de Montanha e Mangabal, que também estava ameaçada pelo complexo hidrelétrico. Os Munduruku que integram a autodemarcação são chamados de guerreiros. Eles se reúnem em comitiva e entram na floresta para identificar os pontos de desmatamento, furto de madeira, queimadas, presença de garimpos ilegais e de maquinários utilizados na derrubada das árvores ou nos garimpos, abertura de ramais, entre outras violações ao território. De acordo com as declarações públicas do MMIA e da Associação Pariri, o trabalho da autodemarcação é feito para garantir que as fronteiras da TI estejam protegidas contra invasores e, por isso, faz-se também a afixação de placas que identifiquem que o território pertence ao povo Munduruku.
As expedições são realizadas com aparelhos de georreferenciamento, gerando uma base de dados sobre o território que será depois compartilhada com parceiros e com autoridades. São também registradas por jornalistas e pelos próprios Munduruku por meio dos seus coletivos audiovisuais, como o Coletivo Audiovisual Wakoborun. De acordo com Alessandra Korap Munduruku,
Desde as primeiras invasões do garimpo, o povo Munduruku se comunica com a sociedade através das cartas. E hoje a gente usa a comunicação do vídeo. Tanto pelo nosso coletivo audiovisual, mas também junto com comunicadores, jornalistas. Porque não adianta a gente ir sozinho no mato fazer autodemarcação e ninguém ficar sabendo o que estamos fazendo. Temos que fazer algo que vai mostrar que nós estamos indo e enfrentando sozinhos, sem o Estado, mostrar que não paramos no tempo. Não estamos esperando o governo reagir, o governo nunca reage. Mas a gente diz “olha, vocês estão aí no escritório em Brasília, vocês não querem sair daí, mas nós estamos aqui com nosso corpo, com nosso povo fazendo fiscalização, nós estamos aqui com as nossas famílias, então estamos aqui com todos os dados, com GPS, colocando as placas, anotando, fazendo o trabalho que o governo não quer fazer, e se o governo não demarca o território, nós demarcamos com as nossas próprias mãos”. Nossa comunicação é essa. Depois da autodemarcação, a gente faz outra carta, para dizer para a mídia que nós não paramos, que a gente continua enfrentando para defender o território, por isso a comunicação para nós é uma ferramenta poderosa (KORAP MUNDURUKU, 2024).
De fato, as cartas Munduruku seguem sendo fundamentais para registrar as reivindicações, os direitos e as práticas de afirmação territorial Munduruku. Na I Carta da Autodemarcação do Território Daje Kapap Eypi, datada de 18 de novembro de 2014, lemos o seguinte:
Hoje, 17 de novembro, faz três meses que reunimos com a FUNAI e representantes do governo em Brasília-DF exigindo a publicação do relatório da demarcação da Terra IPI` WUYXI`IBUYXIM`IKUKAM; DAJE KAPAP EYPI I`ECUG`AP KARODAYBI. Em 2013, o relatório delimitando nosso território foi concluído, mas não foi publicado e escutamos como resposta da então Presidente da FUNAI, Maria Augusta, dizendo que a nossa terra é uma área de empreendimentos hidrelétricos, e que por causa do interesse de outros órgãos do governo o relatório não foi publicado (...). Nunca abaixaremos a cabeça e abriremos a nossa mão, a luta continua! Somos verdadeiros donos da Terra, já existimos antes da chegada dos portugueses invasores (...).
Agora decretamos que não vamos esperar mais pelo governo. Agora decidimos fazer a autodemarcação, nós queremos que o governo respeite o nosso trabalho, respeite nossos antepassados, respeite nossa cultura, respeite nossa vida. Só paramos quando concluir o nosso trabalho (grifos nossos) 14.
O direito originário ao território tradicional, aquele previsto na Constituição e a cargo no Estado, aparece nas cartas Munduruku como uma miragem, uma mentira, como palavras enganosas. As normas que protegem o território Munduruku aparecem como despidas de eficácia, subordinadas a interesses econômicos. A autodemarcação de Daje Kapap Eypi demonstra que, apesar das mentiras do Estado, existe uma obrigação de respeitar o território e seus verdadeiros donos que é decretada e garantida pelos próprios Munduruku. Trata-se de uma obrigação que recai sobre todos e que é sancionada pelas formas de autogoverno Munduruku. Estas últimas, por sua vez, estão ligadas ao poder de Karosakaybu, ao percurso dos porcos, às obrigações estabelecidas diante dos locais sagrados e das formas de vida Munduruku. De acordo com a III Carta da autodemarcação do território Daje Kapap Eypi, publicada em 28 de novembro de 2014,
Hoje, pela primeira vez durante a autodemarcação, chegamos ao local sagrado Daje Kapap Eypi, onde os porcos atravessaram levando o filho do Guerreiro Karosakaybu. Sentimos algo muito poderoso que envolveu todo nosso corpo.
Outra emoção forte que sentimos hoje foi ver nossa terra toda devastada pelo garimpo, bem perto de onde os porcos passaram. Nosso santuário sagrado está sendo violado, destruído, 50 pc’s (retroescavadeiras) em terra e 5 no rio. Para cada escavadeira, 5 pobres homens, em um trabalho de semiescravidão, explorados de manhã até a noite por 4 donos estrangeiros (...).
Sentimos o chamado. Nosso guerreiro, nosso Deus, nos chamou. Karosakaybu diz que devemos defender nosso território e nossa vida do grande Daydo, o traidor, que tem nome: O governo brasileiro e seus aliados que tentam de todas as formas nos acabar.
Nós estamos lutando pela nossa demarcação há muitos anos, sempre que a gente vai pra Brasília a FUNAI inventa mentiras e promessas para nos acalmar. Sabemos que a Funai faz isso para ganhar tempo para construção da hidrelétrica do Tapajós, agora nós cansamos de esperar.
Sem chorar ou transformando as lágrimas em coragem, em Assembleia tomamos a seguinte decisão: A FUNAI tem três dias para publicar o nosso relatório e dar continuidade à demarcação, homologação e desintrusão da nossa terra15.
Novamente, a carta anuncia uma tentativa de diálogo com o Estado, reivindica que este cumpra o que está no seu Direito. Mas já avisa, que caso isso não aconteça, o que foi deliberado pelos Munduruku. A autodemarcação é retratada como experiência que ativa a memória mítica e reforça a identidade coletiva Munduruku. A experiência de se emocionar em locais sagrados, e ao mesmo tempo de testemunhar sua destruição, ativam e reforçam a identidade guerreira Munduruku. O chamado para a autodemarcação vem de Karosakaybu, que chama os seus para a guerra. O mítico, o sagrado, o território vivido e compartilhado irrompem enquanto radical afirmação do direito ao território, não mais mediado pelas pela Funai, mas agora garantido pelo autogoverno Munduruku.
No início de julho de 2015, foi realizada uma nova etapa de autodemarcação de Daje Kapap Eypi. Em cinco dias na floresta, foram visitados seis pontos dentro do território. Novamente, foram encontrados ramais madeireiros, extração ilegal de palmito, madeira e açaí. Em 11 de julho, os Munduruku publicaram a IV Carta da Autodemarcação:
A intenção do pariwat e do governo federal é só destruir mesmo, e a intenção do indígena é preservar. Por que a gente preserva? Porque esse patrimônio foi dado a nós por nosso guerreiro Karosakaybu, a terra é a nossa mãe de onde tiramos nossa sobrevivência e onde podemos viver de acordo com a nossa cultura.
Daje Kapap Eypi é um lugar sagrado para todo o povo Munduruku, seja do alto ou médio Tapajós. Temos que preservar a nossa natureza, o nosso rio, os nossos animais e as nossas frutas, deixadas por Karosakaybu.
Estamos realizando a autodemarcação para mostrar que essa terra é nossa, para que os brancos respeitem a nossa terra. Queremos ter autonomia em nossa terra, queremos que nós, indígenas, possamos ser os fiscais e protetores dessa terra como sempre fomos16.
Em abril de 2016, em meio ao processo de impeachment da então presidente Dilma Rousseff, o RCID de Sawré Muybu foi publicado no Diário Oficial. Em agosto do mesmo ano, IBAMA arquivou o processo de licenciamento da UHE São Luiz do Tapajós, afirmando que “o projeto apresentado e seu respectivo Estudo de Impacto Ambiental (EIA) não possuem o conteúdo necessário para análise da viabilidade socioambiental, tendo sido extrapolado o prazo previsto na Resolução Conama 237/1997 para apresentação das complementações exigidas” (IBAMA, 2016).
Nos anos seguintes, as práticas Munduruku de afirmação do seu território seguiram. O arquivamento da UHE não amenizou as pressões sobre a Mundurukânia, mas mudou o foco da luta. A partir de 2018, o MMIA passou a confrontar com mais intensidade o garimpo ilegal dentro das suas terras. O governo federal, por sua vez, passou a assumir uma postura pró-garimpo.
A quinta etapa de autodemarcação no médio Tapajós ocorreu em julho de 2019. Foram percorridos mais de 100 km do território. Os Munduruku se organizaram em 5 grupos- os guerreiros Pusuru Kao, Pukorao Pik Pik, Waremucu Pak Pak, Surup Surup e a guerreira Wakoborun - que expulsaram dois grupos de madeireiros de dentro do território17. Em 2020, uma pesquisa realizada pela Fiocruz e pela WWF demonstrou a extensão dos impactos do garimpo sobre os corpos e o território Munduruku (BASTA; HACON, 2020). Todos os Munduruku testados pela pesquisa estavam contaminados por mercúrio. De cada dez participantes, seis apresentaram níveis de mercúrio acima do limite máximo de segurança estabelecido por agências de saúde. A contaminação era maior em áreas mais impactadas pelo garimpo, nas aldeias que ficam às margens dos rios afetados. Nessas localidades, nove em cada dez participantes apresentaram alto nível de contaminação (BASTA; HACON, 2020).
Passada a fase mais aguda da pandemia de COVID-19, os Munduruku retomaram, em setembro de 2021, a autodemarcação de Daje Kapap Eypi. Durante o percurso de mais de 15 quilômetros dentro do território, foi encontrada uma pista de pouso clandestina e uma extensa área desmatada. Era um momento de muitos ataques, em diferentes níveis, aos direitos e às vidas indígenas. O governo federal buscava abrir os territórios para a mineração, o STF iniciava o julgamento do marco temporal, as manifestações indígenas em Brasília eram marcadas pelo conflito e pela recusa do governo em receber delegações indígenas.
As autodemarcações seguiram, demonstrando a resiliência da organização cosmopolítica Munduruku, a força do seu território e do seu autogoverno. Alessandra Munduruku retratou a autodemarcação como prática territorial cuja lógica está menos na definição dos limites da terra tradicional e mais na experiência do contato vivo com o território e seus ensinamentos, que são mediados pela ancestralidade e pelas histórias Munduruku:
É que a gente, quando vai, a gente não vai só para delimitar o território, botar as placas, a gente vai conhecendo cada pé de árvore, os animais e o que eles comem…porque muitos na aldeia não tem a árvore, mas os mais velhos quando vê eles falam “isso aqui serve para remédio” e tal.. aí a mulherada, os homens já vão tirando para fazer remédio. É um conhecimento incrível, eu fico muito impressionada porque não é só pegar o facão, roçar e cortar uma planta. É você ter o conhecimento daquilo que a floresta tá te ensinado ali, os mais velhos te ensinam, e aí os pássaros, que não têm muito perto da aldeia, mas ali tem muito, no meio da floresta, né. Alguém diz “esse aí é o cântico tal”, e vai contando história…é incrível quando mostram “aqui foi onde o Karosakaybu perdeu o filho”, então cada lugar que a gente vai é uma história. Tem um lugar bem incrível que tem a marca do pé de Karosakaybu, o pessoal fala que ele pisou ali… aqui é dele, ele passou aqui, essa marca é dele, essa é a história que os mais velhos contam...e a gente vê isso…a história dos porcos criados por Karosakaybu, não é só uma história não contada, é uma história que viveram, de muitos milhares de anos. Eles falam do surgimento do rio Tapajós, de como as mulheres surgiram, como surgiram esses pássaros, então quando a gente vai não é só para saber do limite, a gente vai por conta do conhecimento tradicional, mas o branco nunca vai entender isso. Eles têm o céu e a terra, eles sempre falam isso “você tem que entrar na igreja porque tem deus, quando você morrer você vai pro céu” mas continua destruindo. E a gente fala assim, não é isso que a gente entende, a gente entende que quando a gente morrer, a gente vai no lugar da mãe dos peixes, das cachoeiras, locais sagrados… a gente vai para se transformar em algo para proteger o lugar (...). Quando olho para o céu agora, eu falo “parece tão grande”, para nosso modo ele também é grande mas a nossa visão é muito maior, né? Muito maior que o ser humano destruir por conta do minério. Lá nas Sete Quedas, conversando com os mais velhos, eles falam assim: “aqui, destruíram o local sagrado, mas não totalmente porque eles estão lá cantando, eles estão lá protegendo, porque eles não foram destruídos totalmente”. Então ainda tem o espaço, ainda é um céu enorme. Não é aquele céu pequeninho…ele é enorme e muito grande, que acho que os pariwat achavam que iam destruir, mas não destruiu, eu acho bem incrível essa história (KORAP MUNDURUKU, 2024).
Mais do que (ou além de) tomar para si uma obrigação que era do Estado - de demarcar a terra indígena -, a autodemarcação também institui algo radicalmente diferente. Não se trata apenas de implementar, por outros meios, um direito já previsto na ordem jurídica regulada pelo Estado, embora essa seja uma dimensão, inclusive afirmada pelos Munduruku, do que é a autodemarcação. Há também algo diferente. O Direito do Estado, por mais que reconheça o direito dos Munduruku sobre seu território tradicional, bem como sua forma de vida, seus usos e costumes, tende a submeter todos eles à lógica da mercantilização da terra, do extrativismo, da acumulação. Essa estratificação marca o Direito estatal, até mesmo em suas versões formalmente multiculturais e plurinacionais. As autodemarcações apontam para uma outra lógica jurídica, fundada não na acumulação e na rentabilidade, mas na habitabilidade (MACHADO ARÁOZ, 2023); praticado não às custas dos rios e da floresta, mas em conjunto com o que eles trazem e ensinam. Um direito sancionado pelo MMIA, pelas associações, pelos caciques e pajés, pelas comitivas auto-organizadas, por Karosakaybu. Um direito ao território do acontecimento, da experiência, das relações e do modo de vida Munduruku.
A autodemarcação é um gesto de reivindicação dos direitos fundamentais negados aos povos indígenas pelo Estado. E ela é ao mesmo tempo a afirmação de uma outra juridicidade, enraizada no modo de existência e na cosmopolítica Munduruku. É regida por uma temporalidade distinta daquela que governa demarcação feita pelo governo: trata-se do tempo da tomada de decisão nas assembleias, o tempo dos pajés, que acompanham tanto as deliberações quanto as expedições, e o tempo da urgência de defesa do território. Trata-se de outra forma de percorrer e se relacionar com o território, para além (mas incluindo) a colocação de marcos, o georreferenciamento por GPS. Trata-se de reativar e reforçar a relação coletiva, mítica, histórica e incomum com o território.
Entendemos a autodemarcação como prática de autonomia indígena. Loures afirma “durante a autodemarcação foi como [os Munduruku] se comparassem ao governo dos pariwat (brancos) e revitalizassem o próprio governo” (2017, p. 220). Essas práticas performam e constituem uma construção jurídica complexa que deve ser lida tanto em relação ao Direito quanto como juridicidade (LE ROY, 2004) indígena. Encontramos a intencionalidade contínua de diálogo e composição com a legalidade do Estado, dos instrumentos jurídicos nacionais e internacionais, com os tribunais. A autodemarcação é uma prática de afirmação do território contra o extrativismo, o saque, o desmatamento e a destruição - objetivos em grande medida convergentes com a Constituição Federal de 1988. No próximo item, pensamos na autodemarcação como uma prática cosmopolítica, que simultaneamente articula com e desafia o Direito e que, analisada a partir do nosso tempo das catástrofes, pode ser capaz de segurar o céu (KOPENAWA; ALBERT, 2010).
A tese do Antropoceno nasceu na virada do século XX para o XXI nas pesquisas e nos laboratórios das ciências da terra, principalmente a geologia e as ciências atmosféricas (CREUZEN e STOERMER, 2000; CREUZEN, 2002). Ela propõe que a humanidade teria causado transformações tão estruturais na composição geoquímica do globo terrestre que nós estaríamos vivendo hoje numa nova época geológica, sucessora do Holoceno e batizada de Antropoceno em homenagem ao seu pretenso criador (ou causante), o Antropos, o Homem. O Antropoceno, segundo esses cientistas, é constituído por uma série de marcadores biogeoquímicos antropogênicos que incluem a alta concentração de gases de efeito estufa (GEEs) na troposfera, o acúmulo de isótopos radioativos nas rochas, o ritmo acelerado de perda de biodiversidade, a acidificação dos oceanos, dentre outros (ZALASIEWICZ et al., 2021). Todos esses marcadores caracterizam um mundo menos habitável.
A proposição de que o Antropos teria se tornado uma força geológica capaz de influenciar a formação das rochas, da atmosfera e da biosfera desafia um dos paradigmas fundamentais da modernidade: a separação, ou bifurcação, entre natureza e sociedade (WHITEHEAD, 2015 [1920], LATOUR, 2013). No imaginário da ciência e da política moderna, a natureza seria composta por matéria destituída de sentido, desprovida de intenção ou subjetividade, submetida a leis imutáveis decifradas pelas ciências naturais. Já a sociedade seria o reino da agência humana, da ação consciente, do sentido, da subjetividade formadora de mundo, da racionalidade. A tese do Antropoceno mescla essas dimensões - a formação da terra agora resulta da ação humana, e natureza não aparece mais como como matéria inerte, palco mudo para o desenrolar da história social. Aparece como agente. Como diz Chakrabarty (2009), o que sabemos sobre mudança climática e sobre o papel antropogênico na atual crise não só modifica as ideias sobre o ser humano, descolonização e globalização, mas também nos obriga a eliminar a distinção entre história natural e história humana. Mas não existe uma Humanidade genérica por trás dessas crises. Como aponta Chakrabarty, falar em humanidade não pode ocultar o papel do capitalismo e da dominação imperial, igualando países ricos e seu modelo de desenvolvimento com regiões do mundo que pouco contribuíram para seus impactos.
Em muitas de suas elaborações, a tese do Antropoceno se restringe a discussões técnicas sobre os marcadores moleculares e as origens tecnológicas da nova era, atribuídas a avanços científicos, técnico-produtivos ou bélicos como a invenção da máquina a vapor ou do arsenal atômico. Ademais, o termo Antropoceno sugere que toda a Humanidade, uma Humanidade abstrata e genérica, está igualmente implicada nas rupturas socioecológicas que testemunhamos. Autores como FERDINAND, MACHADO ARÁOZ e HARAWAY ajudam a historicizar e a descolonizar o Antropoceno. Argumentam que as origens das crises ecológicas que testemunhamos devem ser procuradas não nas grandes invenções europeias ou em moléculas, mas em situações sócio-históricas pouco visitadas, como nos porões da modernidade (FERDINAND, 2022), ou no seu subterrâneo extrativista (MACHADO ARÁOZ, 2023), cenas que os discursos científicos e políticos hegemônicos evitam ou escondem.
É nos porões dos navios negreiros e suas jornadas que FERDINAND (2022) busca essas origens. Ele encontra ali os seres e entidades às quais a modernidade recusou um lugar no mundo - pessoas escravizadas, territórios, tradições, sistemas culturais e políticos, modos de existência. Violentamente internalizadas no mundo colonial-moderno, essas entidades foram submetidas à sua lógica fundacional, constituída por uma dupla fratura: a primeira é a fratura ambiental, que decorre da “grande partilha” da modernidade, da oposição dualista que separa natureza e cultura e estabelece uma estrutura vertical que coloca o Homem acima da natureza, transformando a última em “coisa” disponível para a apropriação. A segunda é a fratura colonial, que aloca pessoas num continuum estruturado pelo racismo do Ocidente e seu eurocentrismo religioso, cultural e étnico onde alguns são mais humanos que outros. Trata-se da estratificação que legitimou a escravização e genocídio dos povos originários. É essa dupla fratura, argumenta Ferdinand, que está na base da modernidade capitalista. É ela que cria e legitima a existência de pessoas sem um lugar na terra, e que transforma o mundo - como no caso do mundo Munduruku - em botim de guerra.
MACHADO ARÁOZ (2023) elabora argumento semelhante, mas construído a partir do legado de pensamento político e social latino-americano e centrado no extrativismo e na colonialidade. Para descolonizar o Antropoceno, argumenta o autor, é preciso remeter ao longo século XVI, quando foram deitadas as bases para a expansão da ecologia-mundo capitalista e colonial. As formas basilares dessa ecologia-mundo são a plantation, a mina, o catolicismo de guerra, a escravização massiva, e a invenção da natureza enquanto matéria crua, apta para o infindável saque. O autor posiciona a produção da entidade “América” como espaço subalterno, como mera “natureza”, objeto de saqueio, fonte presumidamente inesgotável de recursos naturais para abastecer as metrópoles, no centro da constituição da ecologia-mundo capitalista-colonial.
O encontro com a história colonial e com o extrativismo transforma a tese do Antropoceno. O extrativismo, “um tipo de prática que remete a uma economia propriamente de guerra; uma modalidade de ocupação e produção do espaço geográfico que faz do território não um habitat, mas sim uma zona de saque, de superexploração” (MACHADO ARÁOZ, 2023, p. 424), irrompe como a base subterrânea do colapso ecológico que testemunhamos. As formas Mina, Plantação e Violência aparecem como tecnologias políticas da ocupação e disposição de corpos e territórios definidos pela rentabilidade como princípio essencial da lógica extrativista, que é oposta à ideia de habitabilidade a partir do qual seria possível estruturar um mundo baseado num novo regime de relações.
Falar das guerras ligadas à expansão do extrativismo e da sua ontologia moderna-colonial nos lembra que o mundo é um pluriverso, constituído por muitos mundos que a modernidade é incapaz de transformar plenamente em espelho e monólito (DE LA CADENA; BLASER, 2018). Existem e sempre existirão modos de existência que excedem à lógica moderna, à dupla fratura ambiental e colonial que a constitui. O trabalho etnográfico de Marisol de la Cadena, Mario Blaser, Viveiros de Castro, Anna Tsing e outros fornece pistas e conceitos para pensar a partir dessas zonas de fricção ontológica - como aquela que vemos no embate entre os Munduruku e o Estado. Pensando junto com VIVEIROS DE CASTRO (2004), DE LA CADENA (2018) nos lembra que, na base de muitos conflitos que chamamos de ambientais, existe um conflito ontológico, um desentendimento fundamental sobre o que está em jogo, sobre o objeto mesmo da disputa. Pensemos no caso de Daje Kapap Eypi. Seria um erro pensar que os Munduruku e o Estado se referem à mesma coisa quando falam do rio, do território, da floresta. Esses antagonistas falam de entidades distintas, e essa distinção está enraizada nas ontologias que constituem os mundos dos quais são parte. Para o Estado (junto com rede de agentes, incluindo o capital transnacional que sustenta o barramento de rios, os cientistas que medem o seu potencial hidrelétrico etc.), o rio Tapajós é um estoque de energia e submetido ao seu poder soberano, ao qual cabe decidir como e quando ele será explorado. Para os Munduruku que integram o movimento de resistência, o Tapajós é parte de uma outra entidade, um território de vida que compõe sua existência, sua identidade, sua memória, seus direitos e obrigações. Esse território não serve à maximização do lucro ou da rentabilidade. Como colocaram os Munduruku: “Aqui na Mundurukania não é o dinheiro que manda. Temos terra para plantar, temos peixe, caça, e o rio para navegar. Se não temos combustível, nós vamos remando e chegamos sempre no lugar que queremos”18.
Esses sentidos são a todo momento silenciados pelo Estado, que age para impor a entidade terra-recursos-propriedade que pode ser comprada ou indenizada, tomada e submetida à conquista. Trata-se de um ataque contra termos pelos quais os Munduruku fazem a vida, existem e lutam. Negar o desentendimento sobre o que é o território é central na operação de guerra colonial. Para fazer referência a essa negação, pegamos emprestado o conceito de Antropo-cego (“Anthropo-Not-Seen”), criado por DE LA CADENA (2018), uma crítica e uma brincadeira com a tese do Antropoceno. Para a autora, o Antropos moderno-colonial não é a entidade onipotente que sua conceituação como força geológica poderia sugerir. É, também, uma entidade definida pela ausência da capacidade de enxergar no sentido metafórico, de ver e se relacionar com o outro, de compor com o que está fora do seu modo de existência. O Antropos colonial-moderno é cego na medida em que sua vontade de destruição não consegue enxergar, ou se recusa a ver, outros modos de existência, bem como suas formas de resistência, transgressão e insubordinação.
Essas pistas ajudam a pensar nas disputas em torno de Daje Kapap Eypi. Não está tão claro, nesse caso, se o Estado e o Direito são propriamente incapazes de ver ou se dissimulam o que veem. Em todo caso, as lutas Munduruku insistem em fazer com que a guerra apareça como o que ela é - a violência da conquista virada contra o mundo Munduruku. Como vimos acima, as ações dos Munduruku no âmbito dessa guerra são empreendidas junto a grupos aliados, mas também a Karosakaybu - grande deus guerreiro -, os porcos e os ancestrais. As autodemarcações revelam que os Munduruku são obrigados por essas relações - pelo chamado de Karosakaybu, dos peixes, rios e entidades que constituem seu mundo a garantir a existência do território. É por meio de uma forma de fazer política aberta ao cosmos - às entidades excluídas da política pela modernidade - que os Munduruku engajam com o direito e o Estado, seja por meio de composições, seja por meio do confronto.
Ao falar do Antropoceno, partimos das críticas elaboradas acima. Entendemos o Antropoceno como uma era de rupturas socioambientais extremas cuja origem está na dupla operação moderna-colonial de subjugação da natureza e produção de pessoas menos-que-humanas, bem como na expansão da ecologia-mundo capitalista que ela sustentou ao longo dos séculos. Pensado desde a América Latina, o Antropoceno se manifesta não só nos eventos climáticos extremos, mas nas marcas do extrativismo e na sua violência, que produzem mundos sem gente - espaços de mega mineração, plantations de cana-de-açúcar, soja e gado, usinas hidrelétricas, campos de exploração petrolífera - e gente sem mundo. Por fim, o Antropoceno é constituído pela incapacidade ou recusa de ver dos agentes da modernidade, que negam outros modos de existência, de outras formas de organizar as relações entre natureza e cultura, e que buscam silenciá-las ou destruí-las.
A situação vivida pelo povo Munduruku reflete cada uma dessas dimensões. Hoje, o rio Tapajós, que atravessa todo o território tradicional Munduruku, está contaminado pelo mercúrio, um subproduto da mineração ilegal. Os corpos dos Munduruku também estão, junto com tudo que vive do rio (BASTA; HACON, 2020). O garimpo, a extração madeireira, e a grilagem de terras pressionam seu território de vida, o mesmo que é ameaçado por projetos de geração de energia, por portos de soja, por interesses minerários. O avanço extrativista ameaça transformar Daje Kapap Eypi num mundo sem vida, e transformar os Munduruku em gente sem mundo. É contra essa guerra que os Munduruku lutam. Aí está o Antropoceno, como cenário onde disputas entre mundos emergem.
Essa caracterização do que é a era das catástrofes ajuda a pensar em que seriam práticas políticas, culturais e jurídicas contra o Antropoceno. Medidas como a transição energética fundada na aceleração da exploração mineral e a precificação de emissões de carbono passam ao largo de confrontar as raízes do Antropoceno. Elas podem comprar algum tempo, que provavelmente será usado para aprofundar o extrativismo e dar sobrevida à ecologia-mundo capitalista. A dupla fratura seguiria ilesa e operante. Um enfrentamento mais radical ao Antropoceno pode ser encontrado nas formas de habitar o mundo fundadas sobre lógicas, práticas e imaginários que escapam às dualidades e à violência da modernidade colonial, práticas (cosmo)políticas e jurídicas constituídas por agenciamentos abertos às entidades que a modernidade exclui da política (como a “natureza”), e que façam frente à expansão extrativista.
Propomos pensar em duas lógicas jurídicas distintas e antagônicas em sua relação com o Antropoceno. A primeira consiste no que chamamos de um direito do Antropoceno, constituído por imaginários, normas e práticas jurídicas que herdam e atualizam a dupla fratura moderna-colonial. Trata-se de um direito que subjuga a “natureza” à “humanidade”, que divide e estratifica a última e, por meio do autoritarismo, da tutela ou de outras formas de pacificação, silencia e invisibiliza os mundos que fogem à sua lógica. Decretos, medidas provisórias, resoluções e suspensões de segurança são alguns dos instrumentos jurídicos, administrativos e legislativos que abrem caminho para que o projeto extrativista e as rupturas ecológicas avancem sobre a floresta amazônica e territórios de povos tradicionais. O direito do Antropoceno é a lógica dominante do Direito estatal, instrumentalizado pela ideologia do mundo único e do crescimento econômico acima de tudo.
Dois construtos são centrais ao direito do Antropoceno e para a compreensão de sua operação no caso de Daje Kapap Eypi: a personalidade jurídica e a propriedade privada. A personalidade jurídica consiste na aptidão para ser sujeito de direitos e obrigações jurídicas. Ela representa a capacidade de falar diante do direito, de ter sua vontade levada em consideração pelo sistema jurídico. Trata-se de um construto imerso em séculos de teoria sociológica, filosofia moral e teoria jurídica. A forma como a personalidade jurídica é distribuída pelo direito estatal-moderno está firmemente ancorada na dupla fratura19. Pesquisadores da teoria da personalidade jurídica (KURKI, 2019) nos lembram que, ao menos desde a filosofia jurídica e moral de Immanuel Kant, o status de sujeito é concedido tão somente a uma parcela ínfima do mundo: a humanidade. E o termo humanidade em Kant não se refere à concepção ordinária do ser humano, mas a uma parte dele: a sua natureza racional. Apenas pessoas enquanto agentes racionais são seres morais com dignidade e direitos. Este ser dotado de razão instrumental e valor é o Antropos da modernidade colonial cristalizado nos sistemas jurídicos a partir do séc. XVIII. Já as coisas podem ser usadas apenas como meio; elas não têm valor, têm um preço.
Ao escrever sobre o direito do Antropoceno, GREAR (2020) aponta que, ainda hoje, a possibilidade de falar e agir dentro do sistema jurídico está condicionada à ideia do sujeito racional, que é ao mesmo tempo separado e superior ao mundo e sobre o qual exerce poder. Trata-se, nas suas palavras, de um sujeito quase-desencarnado. Desencarnado, pois ele ainda é definido pela razão instrumental que o separa tanto do restante do mundo quanto do seu próprio corpo, feito de matéria, sobre o qual exerce domínio. Mas esse sujeito é apenas quase-desencarnado, pois o espectro sem corpo imaginado pela filosofia e pelo direito ocidental é inatingível para seres corporalmente específicos. Existe sempre um corpo contrabandeado no sujeito de direitos que se quer desencarnado e racional (Ahmed, 1996, p. 56): ele é masculino, branco, e imerso em relações de poder. Todo o corpo que não corresponde a essa imagem é marginalizado ou excluído.
O direito à propriedade privada é uma das formas mais centrais por meio das quais o direito do Antropoceno garante liberdade e poder aos sujeitos racionais. Trata-se da capacidade jurídica de projetar a razão e a vontade sobre as coisas, sobre tudo aquilo que é destituído de dignidade e de direitos. A noção moderna de propriedade se baseia na divisão entre sujeitos possuidores e objetos possuídos (NODARI, 2007). No caso da terra, essa separação se dá entre sujeitos que exploram e que se apropriam, e objetos explorados e apropriados.
O que seria então um direito que foge, resiste, ou escapa, mesmo que parcial ou erraticamente, às premissas do direito do Antropoceno, e que poderia fazer frente aos seus fundamentos? Para responder essa pergunta, partimos de debates consolidados dentro do campo jurídico do pluralismo jurídico (WOLKMER, 2015; 2019; YRIGOYEN FAJARDO, 2004; BONILLA MALDONADO, 2007) e da autodeterminação indígena (MERINO, 2022; ROMIO; COLLIAUX, 2022). Na América Latina, há um amplo campo que discute o direito pluralista, não legalista e dogmático, ligado às práticas de resistência. Trata-se de um direito popular, insurgente, achado na rua, dentre outras denominações, ligado a movimentos sociais e à crítica teórica postcolonial (SOUZA JÚNIOR, 2019). Ao mesmo tempo, o direito indígena tem sido um campo de pesquisa e produção teórica, com algum grau de reconhecimento constitucional e nas instituições do estado nos países andinos e da América Central (CLAVERO, 1995; 2017; MARÉS, 1998; YRIGOYEN, 2009).
Pensamos junto com LE ROY (2004) e a partir do seu conceito de multijuridismo, que aponta para a existência de múltiplas ordens jurídicas para além do Direito Estatal. A juridicidade, para Le Roy, é mais ampla que o direito positivo estatal, e implica “o caráter obrigatório de um ato ou relação, ou seja, a possibilidade de imposição de sanção, qualquer que seja a autoridade garantidora, desde que ela seja passível de mobilização” (FILHO, 2014, p. 294). O mundo é povoado de juridicidades e, como vimos no caso dos Munduruku, o Estado não é a única entidade apta a sancionar. O MMIA, os guerreiros Munduruku, e Karosakaybu têm, dentro da política e do cosmos Munduruku, capacidade semelhante. A relação dos Munduruku com seu território, composto por vínculos, mitos, experiências, locais sagrados, porcos e outras entidades, é passível de sanção e, portanto, é jurídica. Estamos, assim, dentro de um campo jurídico múltiplo, reconhecido, inclusive, pelo art. 231 da Constituição Federal, no conceito de direito originário, que pressupõe uma juridicidade anterior ao regime constitucional, e na afirmação dos usos, costumes e formas de vida indígenas. A próxima pergunta, então, é: o que faz da juridicidade Munduruku, conforme ela se manifesta nas suas práticas de afirmação territorial (e de sancionamento dos atos que violam esse território) um direito contra o Antropoceno?
Com as transformações jurídicas vinculadas ao reconhecimento das juridicidades indígenas, bem como seu direito à autodeterminação e ao território, começa a surgir um espaço dentro do campo jurídico para enxergar embates que não são apenas entre culturas, usos e costumes, mas também entre modos de existência - conflitos ontológicos sobre a própria constituição do mundo, conflitos multinaturalistas (VIVEIROS DE CASTRO, 2002) - e suas formas jurídicas plurais. Dada a dificuldade de fazer o Direito dialogar com formas de vida que questionam suas categorias fundacionais, como a propriedade, o sujeito moderno de direitos, e a soberania una do Estado, passamos a procurar pelas frestas, ambiguidades ou silêncios, que, tal como imaginários recentes das constituições plurinacionais andinas (SCHAVELZON, 2012; 2018), nos permitem refletir sobre esses (des)encontros e disputas.
A filósofa Isabelle Stengers (2018) ajuda a pensar a partir dessas brechas. O trabalho de Stengers parte de uma provocação: o que pode ser uma prática política que não esteja ancorada na concepção moderna de uma natureza “muda” e objetificada? Seu argumento central é que a forma como a política moderna é organizada está baseada justamente na fratura ambiental ou na bifurcação da natureza discutida acima. O mundo moderno onde a natureza é muda, inerte e passiva - onde só os Homens têm intenção, racionalidade e dignidade - é uma construção da ciência moderna e das suas formas de produzir realidade. Como ela, outros mundos e outras formas políticas existem, abertas aos elementos e entidades do cosmos às quais a dupla ruptura da modernidade recusa agência e status. Essas políticas, abertas cosmos mais-que-humano, ora sagrado, ora enraizado na terra, distante do imperativo da razão instrumental e da subjugação do mundo aos seus cálculos, são aquilo que Stengers chama de cosmopolíticas (2015). Elas podem apontar caminhos para fora do Antropoceno. Passamos, como afirma Sztutman (2019), a reconhecer os “seres da natureza” como agentes que interagem conosco, a prestar atenção a outros povos, coletivos, comunidades e grupos que, evocando seus deuses, seus territórios, seus mitos e espíritos, se recusam a excluir o cosmos de suas práticas políticas e jurídicas.
A afirmação do movimento de resistência Munduruku do seu território e a autodemarcação de Daje Kapap Eypi representam um direito que, em diálogo com Stengers, chamamos de cosmopolítico. As cartas e práticas envolvidas na autodemarcação revelam que obrigações sancionáveis são constituídas por redes de entidades humanas e mais-que-humanas, por práticas autônomas de tomada de decisão e pela experiência situada e viva do território. Trata-se de uma juridicidade que faz irromper outros cosmos, outros mundos, sobre a forma como os direitos e obrigações são instituídos pelo Estado e por outros agentes da dupla-fratura colonial-extrativista. O direito cosmopolítico Munduruku tem, a duras penas, enfrentado as lógicas, práticas, e instituições que sustentam as violências e as feridas que a modernidade colonial infringe sobre os corpos e a terra20. Tem constituído um direito que confronta as formas jurídicas do extrativismo que alimenta o Antropoceno desde os territórios. Por isso, o direito Munduruku é um direito cosmopolítico contra o Antropoceno.
A tese do Antropoceno formula desafios profundos e urgentes à forma de constituir o mundo, à política e ao direito que são próprios da modernidade. Esses desafios, argumentamos, nos provocam a buscar horizontes e respostas para além da reforma e reelaboração das instituições do Estado, ele mesmo um dos agentes centrais do Antropoceno orientado pelo modo capitalista de desenvolvimento. Neste artigo, propusemos que os desafios colocados pela tese do Antropoceno, e principalmente por suas leituras críticas, nos levam a olhar, novamente, para o tema das autonomias e juridicidades indígenas, agora com uma nova perspectiva, pautada pela urgências da crise ecológica multinível e pela lente analítica da virada ontológica na antropologia, que permite enxergar os conflitos entre modos de existência, entre ontologias, e afirmar que ainda vivemos num mundo conformado por muitos mundos.
É no modo de vida Munduruku que encontramos formas jurídicas que constituem um direito capaz de enfrentar o Antropoceno, e de apontar outros horizontes de mundo. A partir da análise dos embates em torno do território Daje Kapap Eypi, vemos que as autodemarcações refletem uma juridicidade própria de grupos Munduruku, uma rede de direitos e obrigações sancionáveis tecida por entidades humanas e mais-que-humanas, por práticas autônomas de tomada de decisão e pela experiência situada e viva do território. Este direito cosmopolítico tem freado, a duríssimas penas e com altos custos para as comunidades Munduruku, o avanço de diferentes formas de extrativismo predatório sobre seus territórios, e tem afirmado o modo de existência Munduruku diante das frentes de “desenvolvimento” que o ameaçam com propostas de grandes obras, desmatamento e extrativismo. O direito Munduruku tem desafiado e freado uma lógica de desenvolvimento pautada nas fraturas da modernidade, e afirmado insistentemente um outro horizonte de existência.
É como forma de habitar e percorrer o território que os Munduruku demarcam e constituem um território cosmopolítico, seja nas instâncias onde esse caminhar é performado e publicizado em diálogo com as instituições do Estado, da sociedade e da lei; seja na constituição cotidiana e concreta das formas de estar num lugar, configurando um território ocupado tradicionalmente. Nesta autodemarcação contínua e autônoma, encontramos princípios que nos levam a dialogar com a crise do Antropoceno, de um lado, mas também com a crise do Direito do Estado e com as dificuldades de avançar na garantia dos direitos contidos na Constituição de 1988. Frente ao desmonte do marco constitucional dos direitos indígenas que vemos no avanço da forma predatória e neoliberal de mercantilização dos territórios, rios e culturas dos povos, atentamos para discussões e especialmente práticas que nos permitem imaginar um direito cosmopolítico.
O campo emergente de pesquisa e incidência jurídica que questiona o papel do Direito frente aos desafios do Antropoceno, das mudanças climáticas, do etnocídio e ataques às territorialidades indígenas deve levar em conta a importância de juridicidades como esta na sustentação e reparação as condições de vida num planeta ferido mas marcado pela multiplicação de focos de resistência e alternativas como a autodemarcação Munduruku.