Resumo: Este artigo discute a situação atual dos direitos humanos no Brasil, a partir da análise de dados extraídos de Relatórios de Direitos Humanos, enfatizando-se o período dos últimos quatro anos (2019-2022). Em primeiro lugar, procura-se analisar a perda de objetivos no campo das políticas públicas de direitos humanos, apontando-se as suas consequências sociais. Tendo-se em vista a extensão do campo dos direitos humanos, a análise procura dar especial atenção a certas categorias de direitos humanos, quais sejam: (i) o direito à saúde; (ii) o direito à segurança alimentar; (iii) o direito dos povos indígenas; (iv) o direito à democracia; (v) a educação em direitos humanos. Em segundo lugar, e, baseando-se na concepção filosófica do reconhecimento social, o artigo também procura verificar como a denegação de políticas públicas de direitos humanos aprofunda as cicatrizes históricas do país, afeta as formas de vida democráticas e dissemina uma cultura de desrespeito.
Palavras-Chave: Políticas Públicas, Direitos Humanos, Denegação de Reconhecimento Social, Estado Democrático de Direito.
Abstract: This article discusses the current human rights situation in Brazil, based on the analysis of data extracted from Human Rights Reports, emphasizing the period of the last four years (2019-2022). First, it seeks to analyze for the loss of objectives in the field of human rights public policies, pointing out its social consequences, especially regarding issues such as: (i) the right to health; (ii) the right to food security; (iii) the right of indigenous peoples; (iv) the right to democracy; (v) the human rights education. Secondly, based on the philosophical conception of social recognition, the article seeks to verify how the denial of human rights public policies deepens the historical scars of the country, affects democratic ways of life and disseminates a culture of disrespect.
Keywords: Public Policies, Human Rights, Denial of Social Recognition, Democratic Rule of Law.
Artigos inéditos
A situação atual dos direitos humanos: entre destroços, desincentivos e retrocessos. A fronteira e o limite do Estado Democrático de Direito
The current situation of human rights: among wreckage, disincentives and setbacks. The border and the limit of the Democratic Rule of Law
Received: 19 December 2022
Accepted: 09 October 2023
Os direitos humanos tiveram um grande impulso, logo após a ditadura civil-militar (1964-1985), no período de redemocratização do Brasil (1985-1988), num ciclo virtuoso de trinta anos num processo de construção (1988-2018), que trouxe inúmeros ganhos para a agenda dos direitos humanos, em suas complexas interfaces. Neste período, podem-se destacar: i.) a constitucionalização dos direitos humanos fundamentais; ii.) a proliferação da legislação infraconstitucional; iii.) o alinhamento da legislação do país com as exigências internacionais; iv.) o aumento da representatividade do Brasil em foros internacionais; v.) a disseminação do conhecimento acerca dos direitos humanos, através de iniciativas de educação em direitos humanos. Logo após, no período de 2013-2018, a crise econômica global oriunda de 2008 (Barroso, 2023, p. 1657)1, as turbulências políticas, o ‘impeachment-golpe’ de 2016, e, sobretudo, o governo autoritário de 2019-2022, foram fenômenos que, somados e interconectados entre si, vieram provocando uma profunda erosão na perspectiva destas conquistas.
Se os direitos humanos integraram o árduo processo de recuperação democrática do Brasil contemporâneo, tendo assumido um importante protagonismo, é fato que este discurso entrou em colapso, sob as pressões da polarização política, recuando a uma expressão tímida do debate público. Nesta mesma medida, enquanto o discurso dos direitos humanos se enfraquecia, a esfera pública era tomada por uma larga pulverização de intolerâncias, discursos de ódio e posições polarizadas, que advinham dos protestos de 2013. A cultura autoritária e avessa aos limites da democracia é restaurada como reação a um estado de crise do período anterior (2013-2018) (Aliaga, Ázara, 2022, p. 09)2. Contando com o medo como estratégia política, para o governo brasileiro (2019-2022) foi possível manter a opinião pública dramaticamente retraída e os movimentos sociais desarticulados em suas iniciativas de lutas setoriais, o que reduziu o espectro de inovações no imaginário social dos direitos humanos. Desta feita, o que se viu foi o surgimento de um Estado caracterizado por ser liberal na economia, por ser autoritário na forma de lidar com os conflitos sociais, por ser conservador nos valores e por ser antidemocrático no modo de lidar com os limites da democracia.
O que se percebe, com isso, é que, ao primeiro sinal de instabilidade econômica, ativam-se todos os mecanismos do autoritarismo social, em favor de projetos políticos e econômicos desfavoráveis à cultura dos direitos humanos, que se vê francamente afetada pelas iniciativas que implicam em retrocessos e em desincentivos (Bittar, 2021, p. 32-46)3. A cultura dos direitos humanos é de difícil construção, especialmente num país de passado colonial, e, por isso, ela é tão sensível ao retrocesso e, ao mesmo tempo, tão frágil na possibilidade de seu retraimento, de modo que não logra prosperar num ambiente de turbulência política, obscurantismo, crise econômica e instabilidades institucionais, sendo levada ao desmoronamento, especialmente na dimensão dos apelos à sua realização e à sua efetividade (Dornelles, 2017, p. 155)4. Num ambiente infenso, a cultura dos direitos humanos tem dificuldades de se firmar e progredir. Ela, no mais das vezes, resiste e sobrevive, mas é facilmente escanteada, desencorajada, perseguida e marginalizada. Por isso, a impressão que se tem é a de que a cultura dos direitos humanos, no período 2019-2022, ao mesmo tempo em que era sufocada, resistia, sendo que algumas de suas dimensões foram mais afetadas do que outras.
No período de 2019-2022, os direitos humanos não foram afetados apenas pela denegação de políticas públicas sistemáticas, consistentes e contínuas, das quais o Brasil se mostra sempre carente. Mais do que isto. Criou-se um ambiente infenso à progressão, defesa e promoção de uma cultura centrada em direitos humanos, com o surgimento de certas práticas sociais, entre as quais se encontram: i.) os discursos de ódio; ii.) a violência político-eleitoral; iii.) a difusão de fake news; iv.) os ataques à democracia; v.) as milícias digitais; vi.) mortes e perseguições de lideranças; vii.) a realização de atos antidemocráticos. Enquanto estas práticas se multiplicavam, também se processavam: i.) as mortes pela pandemia; ii.) o aumento da pobreza; iii.) o aumento da fome e das desigualdades socioeconômicas; iv.) o crescimento da população de rua; v.) a degradação ambiental e a invasão das terras indígenas.
Este artigo se propõe a verificar o que de fato ocorreu, neste campo, sob a sombra de uma ‘guerra ideológica’, que foi fabricada para representar um método de governo, como bem constata João César de Castro Rocha (Rocha, 2021)5. Assim, a tarefa aqui não é outra senão a de tomar os destroços como ponto de partida, para compreender a estratégia que construiu os desincentivos à cultura dos direitos humanos, indicando os possíveis retrocessos neste setor. Com isso, se trata de produzir um diagnóstico do tempo presente, voltado para o tema concreto dos direitos humanos, tendo os dados como pano de fundo empírico da análise. A ideia de diagnóstico do tempo presente aponta para os bloqueios à emancipação social (Bressiani, 2013, p. 258)6, sendo uma categoria própria da tradição filosófica da Teoria Crítica da Sociedade, que aqui será trabalhada adotando-se as categorias do pensamento de Axel Honneth (Honneth, 2003; Honneth, 2015)7. A eleição por esta abordagem se deve ao fato de a Teoria Crítica da Sociedade permitir uma abordagem que contempla, a um só tempo, a criticidade e a problematização dos fenômenos sociais estudados, valorizando a interdisciplinaridade e a visão de mundo democrática. Nestes termos, nos limites deste artigo, o que se pretende não é nada diferente da tarefa de operar um entrecruzamento entre a matriz filosófica conceitual e a concretude dos dados empíricos - algo já ensaiado por outros teóricos, a exemplo de Thomas Kühn (Kuhn, 2007, p. 312) -8, encontrando-se nesta abordagem a melhor maneira para apreender os desafios do presente para os avanços emancipatórios da cultura dos direitos humanos.
Assim, a perspectiva de análise deste artigo irá partir de dados empíricos, encontrados nos diversos Relatórios de Direitos Humanos9, produzidos nos últimos 4 anos (2019-2022), para deles extrair reflexões que procuram apontar para: i.) os danos sobre a cultura dos direitos humanos; ii.) os desincentivos às políticas de direitos humanos; iii.) os retrocessos sociais na ausência de políticas de direitos humanos. Tendo-se em vista que o campo dos direitos humanos é dotado de ampla vastidão, a pesquisa empírico-analítica irá se limitar a abordar as dimensões mais prejudicadas e afetadas pelo cenário do presente: i.) o direito à saúde; ii.) o direito à segurança alimentar; iii.) o direito à democracia; iv.) a agenda ambiental e os direitos dos povos indígenas; v.) a educação em direitos humanos. Assim, o subtítulo do artigo emprega os termos ‘destroços’, ‘desincentivos’ e ‘retrocessos’ exatamente no sentido de apontar para um quadro de fragilização dos direitos humanos, no Brasil contemporâneo.
Assim, este artigo pretende enfrentar o tema, desenvolvendo alguns tópicos essenciais para a compreensão do problema. No item 2 (As políticas de direitos humanos: uma redução de concepção, uma perda de objetivos) pretende-se discutir como a redução de proposta da área de Direitos Humanos no âmbito governamental irá impactar na diminuição das políticas públicas, com resultados desastrosos em termos de efeitos sociais. Estes serão estudados nos subitens 2.1. (A negação do direito à vida: negacionismo, pandemia e saúde), no tocante ao direito à saúde, no subitem 2.2. (A retrogradação da segurança alimentar: pobreza, fome e desigualdades econômico-sociais), no tocante à fome e pobreza, no subitem 2.3. (A obstrução da agenda ambiental: meio-ambiente, violência no campo e povos indígenas), no tocante à situação dos povos indígenas, no subitem 2.4. (A ‘desdemocratização’ da democracia: valores democráticos, intolerância ideológica e violência político-eleitoral), no tocante a valores democráticos, e, finalmente, no subitem 2.5. (A desestruturação da educação em direitos humanos: escolas, cidadania e direitos), no tocante às políticas de educação em direitos humanos. Por sua vez, no subitem 3 (Uma vitrine estilhaçada: sociedade e eticidade democrática sob escombros) procura-se investigar, do ponto de vista filosófico, na perspectiva da Teoria Crítica, como a denegação de direitos implicou em afetação do reconhecimento dos sujeitos de direitos, analisando-se nos subitens finais (3.1.; 3.2.; 3.3.), as patologias sociais, a regressão social e a denegação de direitos. Enquanto culminância desta análise, ao final, alcançar-se-á através da síntese conclusiva, um diagnóstico do tempo presente, no tocante ao tema dos direitos humanos no Brasil.
Nos últimos 4 anos (2019-2022), os direitos humanos não foram desativados por completo. Inclusive, pode-se dizer que houve até a ampliação do catálogo de direitos fundamentais, na medida da inclusão de um novo inciso (inc. LXXIX) ao art. 5º. da Constituição Federal de 1988, que deve ser considerado a mais recente inovação no âmbito dos direitos fundamentais, em face dos avanços das novas tecnologias. No entanto, se isto é verdade, também se deve dizer que a cultura dos direitos humanos foi enfraquecida nas dimensões política, social e, inclusive, em termos de investimentos públicos. Existem práticas sociais disseminadas que não suprimem, mas deformam a realização dos direitos (declarados, vigentes e legislados), criando um abismo entra a previsão legal e a efetividade dos direitos. E isso porque os direitos humanos não se desenvolvem apenas como conjunto de textos legais, dependendo de uma cultura favorável ao desenvolvimento da ‘eticidade democrática’ - tendo-se aqui presente o significado da expressão no pensamento filosófico de Axel Honneth (Honneth 2015, p. 631) -10, o que acentua a ideia de co-dependência entre democracia e direitos humanos - para relembrar a interconexão que aparece de forma nítida e clara no interior da Filosofia do Direito de Jürgen Habermas (Habermas, 2003, p. 133)11.
Por suas características históricas e sociais, um país como o Brasil precisa de políticas públicas robustas na área dos direitos humanos, na medida em que a sua efetividade depende destes incentivos, sem os quais os ideais constitucionais não logram a se realizar. Mas, em termos práticos, no âmbito governamental, a área dos direitos humanos passou a ser representada pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH)12, assumindo-se com esta configuração institucional um foco de atuação liberal e conservador, o que implicou numa redução de concepção, abrangência e alcance das políticas públicas de direitos humanos. Diante dos objetivos de sua efetivação, o 3º. Programa Nacional de Direitos Humanos (3º. PNDH) teve uma perda de objetivos, pois restam como não atendidas as múltiplas demandas sociais concernentes ao tema. Não é demais afirmar que setores inteiros ficaram à míngua, enquanto outros setores viveram o desincentivo, a estagnação, quando não a inércia e a paralisia, o que está associado a um desmonte sistemático do Estado brasileiro, como bem analisa José Celso Cardoso Junior (Cardoso Junior, 2019, p. 166)13. É fato que no período de 2019-2022, o governo brasileiro não praticou diretamente graves violações de direitos humanos de que se tenha notícia, como aquelas que foram praticadas durante o período da ditadura civil-militar (1964-1985). Isto não invalida a tese de que há nisto uma clara continuidade daquilo que a Comissão Nacional da Verdade não pôde tratar14. Mas, acima de tudo, retrocessos, desincentivos e denegação de direitos foram comuns, a exemplo dos casos de ataques à liberdade de imprensa15, a regressão na proteção a defensores de direitos humanos16, as constantes evocações à ideia de golpe militar, a explosão dos casos de feminicídios17, além da exposição do país a um cenário de fragilização institucional que acenava na direção de um golpe militar ao final do mandato presidencial, registrados através do 08 de janeiro de 2023.
O abandono institucional intencional e sistemático tem uma consequência notável para uma sociedade marcada pelo passado colonial, pela violência, pelo autoritarismo e pelo déficit democrático: o recuo imediato na agenda da efetividade dos direitos humanos. Neste termos, por si só, a denegação ao exercício dos direitos humanos é uma forma de sabotagem ao progresso da cultura de direitos humanos, algo que se produz e reproduz sistematicamente no imaginário social. Mais do que isso, quando se observa o Relatório Periódico Anual da ONU, tem-se o resultado do período estampado na forma de números, registrando-se um descumprimento em face das 242 metas e objetivos da Avaliação Periódica, ao nível de 80% das recomendações18, o que situa o Brasil numa posição de desempenho muito baixo perante os órgãos de monitoramento do sistema ONU. Do mais amplo leque das políticas públicas de direitos humanos - sabendo-se da amplitude da expressão ‘direitos humanos’, por conter direitos civis e políticos, econômicos e culturais, ambientais e de reconhecimento -, ao longo dos próximos itens se procurará explorar, de forma mais profunda e específica, a situação atual concernente aos seguintes temas: i.) pandemia e direito à saúde; ii.) pobreza, fome e desigualdades socioeconômicas; iii.) meio-ambiente, violência no campo e povos indígenas; iv.) valores democráticos, intolerância ideológica e violência político-eleitoral; v.) educação em direitos humanos.
O impacto da pandemia, do isolamento social e das mudanças na tecnologia foram enormes em todo o mundo. Em particular, no Brasil, em face da atuação desumana e da má gestão da pandemia pelo governo brasileiro (Ventura et alii, 2022, p. 2206-2257)19, o país figura no 17º. lugar no que tange ao número de mortes por COVID-19 no mundo, com cerca de 700 mil mortos (registradas no mês de dezembro de 2022). E isso se deve ao negacionismo e à falta de políticas adequadas de saúde, visando a proteção da população, especialmente considerada a situação daquelas partes da população que são mais afetadas pelas más condições de vida. A crise sanitária aprofundou as assimetrias sociais, e, desta forma, pôde-se detectar o enorme número de vítimas da pandemia entre negros e pobres residentes em áreas periféricas, expostos à falta de água, condições de habitação e higiene, em espaços urbanos e rurais, como apontam as pesquisas a este respeito20.
O agravamento da pobreza e da fome trouxeram consigo uma piora nos quadros da segurança alimentar da população. Com isso, se percebe que o crescimento do número de pessoas que passam fome, bem como, das desigualdades socioeconômicas e da pobreza são fatores alarmantes da agenda do presente. Neste ponto, a queda na avaliação do Brasil, do ano de 2021 para o ano de 2022, da 86ª para a 87ª posição de IDH é sintomática do retrocesso do país, apesar de ocupar uma posição indexada como high human development (0,754)21. Neste tocante, o maior prejudicado vem sendo o direito à segurança alimentar22, na medida em que as condições alimentares da população se degradaram gravemente23. E isto se deve ao enorme desafio trazido pelo impacto da pandemia de COVID-19, unido à forma de gestão dos efeitos da pandemia, cujo resultado foi uma piora das condições de vida.
A insegurança alimentar se tornou um problema de proporções enormes, na medida em que, em termos concretos, o Relatório Informe 2021-2022: o estado dos direitos humanos no mundo, produzido pela Anistia Internacional, aponta para o fato de que a insegurança alimentar aumentou 53% desde 2018, sendo que metade da população brasileira não tinha acesso integral e permanente a alimentos24. No que concerne à questão da fome, em 2022, o II Inquérito Nacional sobre Vigilância Alimentar, organizado pela Rede Penssam, aponta para uma situação gravíssima, na medida em que se registra o número de 33 milhões de brasileiros em situação de fome25. No que concerne à pobreza, com base em estudo do IBGE, através de dados comparados do período compreendido entre 2012 e 2021, neste ano (2021) alcançou-se a pior marca da série histórica, qual seja, a de 62,5 milhões de pessoas que se encontram em situação de pobreza, o que corresponde a 29,4 % do total da população brasileira. Dentro deste universo, 17,9% se encontram na extrema pobreza, o que corresponde a 8,4 milhões de pessoas26. Os números expõem a dimensão do problema e deveriam alarmar as autoridades.
É um dado já conhecido no campo das pesquisas empíricas que as desigualdades socioeconômicas estão associadas à desigualdade racial, e, também, à situação da violência no Brasil, que afeta de forma dramática a população de jovens negros, como aliás se pode verificar no Relatório Atlas da Violência 2021, produzido pelo IPEA e pelo FBSP27. Mas, neste campo, para além disto, é importante grifar a alta exponencial do número de população em situação de rua, em todo o país. A redução do número de empregos, a alta inflacionária dos preços, o aumento do custo de vida, trouxeram, entre várias consequências, o crescimento do número de pessoas em situação de rua. Com um arco de crescimento de 38%, no período entre 2019 e 2022, o Brasil passou a registrar 281.472 mil pessoas (2022), ou ainda, este aumento é da ordem de 211%, se for considerada a década de 2012-2022, tomando-se como referência as informações produzidas pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA)28.
Um outro eixo de graves preocupações decorre da destruição ambiental, que alcançou níveis sem precedentes, tendo em vista o desmonte das políticas públicas ambientais no Brasil. A destruição ambiental, especialmente da Amazônia, é algo grave por si mesmo, na medida em que afeta um bioma sensível e de importância internacional. Mas, em cadeia, ela afeta diretamente a população indígena, num ciclo que envolve violência no campo29 - segundo o Relatório Informe 2021-2022: o estado dos direitos humanos no mundo, produzido pela Anistia Internacional, o número de conflitos rurais do ano de 2020 foi o maior desde 1985 -30 e, por isso, envolve a questão da sobrevivência dos povos indígenas31. O alerta a este respeito aparece no Relatório Atlas da Violência 2021 (IPEA; FBSP), que aponta para a gravidade da persistência da violência contra os povos indígenas, especialmente nos Estados de Amazonas, Mato Grosso do Sul e Roraima, onde conflitam as fronteiras do agronegócio com as terras indígenas protegidas32.
Os direitos dos povos indígenas são afetados em escalada33, contando com a omissão do Estado e com a conivência em face dos poderes locais. Neste sentido, o Relatório violência contra os povos indígenas no Brasil, do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), aponta para o aumento em 15 das 19 categorias de violências contra os povos originários, devendo-se registrar o aumento no número de invasões de terras indígenas (305 casos, em 2021), exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio34, destacando-se também o número elevado de 176 assassinatos de indígenas (2021)35. Na medida em que o latifúndio e a concentração de terras continuam a progredir, em torno dos interesses do agronegócio e da produção extensiva, as terras indígenas oferecem um limite que não se quer respeitar, sabendo-se que a terra tem significado duplo, seja de terra ancestral, seja de equilíbrio ambiental necessário para o modo de vida dos povos indígenas.
A democracia nunca foi estável no Brasil, e está longe de se realizar plenamente, em função da ausência de espírito republicano da população36. Isso se deve a fatores históricos e políticos que remontam aos períodos pré-republicanos. Mas, até aqui, nenhuma novidade. No entanto, especialmente, a partir da polarização política e das eleições de 2018, o ataque aos valores democráticos tornou-se sistemático e regular, tanto da parte de segmentos sociais, quanto da parte do governo (Schwarcz, 2017, p. 599)37. Após a ditadura civil-militar (1964-1985), o período de reconstrução da democracia (1988-2018) implicou o aprofundamento da consciência democrática e o repúdio às violações de direitos humanos, período dentro do qual as evocações autoritárias haviam escasseado e se reduzido a grupos minoritários, o que não necessariamente vacinou o país para lidar com a polarização política dos últimos anos, como aliás aponta a historiadora Lilia Schwarcz (Schwarcz, 2019, p. 36)38.
Mas, a polarização política, a Operação Lava-Jato, o ‘impeachment-golpe’ de 2016 vieram numa escalada que somente incrementou a restauração do lugar político dos discursos autoritários (Avritzer, 2020, p. 17)39. A partir daí, a democracia se viu desafiada, testada e, apesar de sua resistência, colocada à prova no âmbito de suas instituições. Isto em função de atitudes antidemocráticas no interior da democracia40, da emergência dos discursos de ódio, de intolerâncias políticas e de violência praticada por milícias digitais. Com isso, as eleições de 2018 levaram o país a institucionalizar um ciclo de controle político pela violência (estatal, paraestatal e social) como modo de governar (2019-2022). Neste sentido, a partir de então, ganharam impulso os seguintes fenômenos sociais: (i) a cultura política da perseguição; (ii) a ameaça de morte ao opositor; (iii) a conversão do opositor em inimigo; (iv) a disseminação do uso de armas de fogo, fator de incremento à violência fatal41; (v) os ataques às autoridades públicas e aos ministros do STF42; (vi) a rejeição à regularidade do processo eleitoral e aos ataques ao sistema da justiça eleitoral; (vii) os ataques às urnas eletrônicas; (viii) os protestos antidemocráticos; (ix) a rejeição dos resultados das eleições.
A crise turbina um ambiente de alta intolerância, o que vem permitindo a reaparição de fenômenos antes considerados socialmente desativados, como é, por exemplo, o caso do neonazismo. Conforme noticia o jornal Uol, os grupos neonazistas se multiplicaram 270% no período de 2019-2021 (3 anos), encontrando-se 530 células extremistas, com aproximadamente 10.000 indivíduos43. Ora, o primeiro resultado prático deste tipo de situação não é outro senão, conforme noticia a mídia, a democracia brasileira ser rebaixada, em sua avaliação no Democracy Index 2021, recebendo nota de 6,86, passando a ocupar a 47ª. posição na lista dos países do mundo44. Além disso, o segundo resultado disto não poderia ser outro, senão aquele veiculado no Relatório Violência política e eleitoral no Brasil, produzido pela ONG Terra de Direitos e Justiça Global, qual seja, um aumento de 400% nos casos de violência política no período eleitoral (assassinatos, atentados, ameaças, agressões, ofensas, criminalização, invasões), destacando-se 523 casos de violência no período 2020-202245.
Neste ponto, adotando-se a análise do filósofo Leonardo Avritzer, pode-se dizer que estão no centro desta visão de mundo, tanto a antipolítica, quanto a retórica da violência (Rocha, 2021)46, que são as duas faces do mesmo movimento belicista e autoritário de governo (Avritzer, 2020, p. 25)47. E isto porque está voltado para construir a ideia de política como guerra, permitindo que a escalada da violência política e eleitoral no Brasil alcançasse o seu cume no período das eleições nacionais de 2022, segundo reportagem da Carta Capital48. Num ambiente sociopolítico forjado nestes termos, sofreram o direito à democracia, os valores democráticos, o diálogo político, a tolerância democrática e o sistema eleitoral, na medida em que, numa inversão de perspectiva, a democracia foi tomada como exceção e o golpe foi tomado como regra49, forçando-se a iminência da fronteira entre o regime de exceção e o regime democrático. Daí, ao longo do período de 2018-2022, a ameaça de autogolpe e de dissolução dos poderes ter sido evocada com uma constância e regularidade assustadoras.
Se as políticas de educação em direitos humanos têm um importante papel em promover o acesso aos direitos, em desenvolver uma cultura de respeito e cidadania, além de combater e evitar a propagação das violências, elas trazem uma colaboração indispensável para a cultura dos direitos humanos. Neste sentido, o Brasil deu passos significativos no sentido da implementação de políticas públicas de educação em direitos humanos, desde o marco do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH, 2003-2006). A partir de então, com base no Plano Nacional, Estados e Municípios ganhavam progressivos avanços. Ao se considerar a importância da educação em direitos humanos para o ambiente escolar, para a criação da cultura de cidadania e para o acesso aos direitos, toda perda neste plano - entendida como interrupção ou estagnação de políticas públicas - implica um retrocesso na consciência formativa e cidadã das novas gerações.
Nestes termos, deve-se apontar que as conquistas anteriormente apontadas sofreram uma abrupta interrupção, no período 2019-2022, de forma a afetar dramaticamente a progressão da educação em direitos humanos em todo o país50. No mapeamento do grau de institucionalização da Educação em Direitos Humanos, o Instituto Aurora, no documento intitulado Panorama da Educação em Direitos Humanos no Brasil: o biênio 2021-2022, aponta que: i.) o Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos foi extinto no ano de 2019, através de Decreto (no. 9.759, de 11 de abril de 2019)51; ii.) a Secadi foi encerrada, não desenvolvendo mais iniciativas centradas na diversidade; iii.) o Pacto Universitário pela Educação em Direitos Humanos foi descontinuado; iv.) as ações de implementação da educação em direitos humanos foram drasticamente reduzidas e tiveram o seu alcance minorado em Estados e Municípios; v.) a execução orçamentária nesta área foi mínima52.
No Brasil, a ‘eticidade democrática’ ainda é turva e dificilmente se traduz num ‘nós’ bem identificado. Aqui, quer-se entender por ‘eticidade democrática’ - nos termos da filosofia de Axel Honneth, em sua obra O direito da liberdade (Honneth, 2015, p. 631)53 - nada mais do que o processo de sedimentação ao nível das práticas e dos costumes da liberdade social, tanto na esfera da família, quanto na esfera da sociedade e do Estado. Assim, a ‘eticidade democrática’ acaba impactando na configuração dos níveis de desenvolvimento da cultura política e, também, por consequência, na avaliação que redunda na ‘qualidade da democracia’, pois se está sedimentada e consolidada - nos termos da Antropologia Crítica de Luís Roberto Cardoso de Oliveira, em torno dos direitos ético-morais (Oliveira, 2022, p. 24) -54, não implica mais a necessidade de uma luta carnal pela sobrevivência ou contra a estigmatização social (Melo, 2020, p. 77)55.
Esta concepção tem vital importância nesta discussão, na medida em que não se parametriza a democracia pela institucionalidade (dimensão formal) -, mas sobretudo pelo grau de permeabilidade da ação social à noção de respeito (dimensão material)56. Na linha da Teoria da Democracia de Jürgen Habermas (Habermas, 2003, vol. 1, p. 354)57, os procedimentos políticos e judiciários não deixam de ter a sua importância para garantir a proteção a direitos fundamentais, mas isso não basta para os processos cotidianos de socialização, que ainda remanescem ameaçados de serem levados à vala comum dos despojos da história. Por isso, a Teoria da Democracia de Axel Honneth, inspirada nas concepções democráticas de John Dewey (Honneth, 2007, ps. 218-219)58, aponta corretamente para a ideia de democracia cooperativa59, enquanto exigência de internalização autoeducativa do(a)s cidadão(ã)s, no que tange aos valores mínimos que constituem o cerne da vida democrática comum60. Nesta perspectiva - tendo-se presente a análise de Rúrion Melo (Melo, 2020, ps. 76-77) -61, uma Teoria Crítica da Democracia pressupõe uma preocupação vigilante e emancipatória com as formas de vida, e, também, com as formas de convívio dos direitos humanos, encarnados nos moldes de comportamentos predispostos ao exercício do respeito como tarefa de socialização, na medida de uma cooperação reflexiva entre os parceiros do direito (Melo, 2020, p. 82)62.
Nos últimos anos, o governo brasileiro (2019-2022) permitiu que se formasse uma atmosfera de intensa intolerância social. É certo que o afastamento social imposto no período da COVID-19 (2020-2021) já significou uma fratura importante nos laços sociais. Mas, um pouco para além disso, é necessário constatar que a atmosfera política do país já era intensamente marcada por discursos de ódio, desde 2018, durante a campanha eleitoral, o que apenas se prolongou no período 2019-2022. A intolerância política, os desincentivos à cultura dos direitos humanos, o estímulo à cultura do golpe e do retorno à ditadura, os ataques aos poderes (especialmente, ao judiciário)63, além da mobilização de bases sociais antidemocráticas, vieram permitindo ao governo brasileiro fragilizar ainda mais a ‘eticidade democrática’ ainda em formação no país. Atualmente, em 2023-2024, o que se apreende são apenas os escombros deste processo, que deixou seus estilhaços por todos os lados. As formas de vida democráticas, a tolerância social e o convívio social estão profundamente danificados, e ainda cobrarão anos de incentivos para serem retomados, ou, ao menos, revertidos.
Nestes termos, foi possível a formação de condições para que, no Brasil contemporâneo, uma vez retraída a cultura dos direitos humanos, se alastrassem as patologias sociais ligadas à cultura do desrespeito64. Na Teoria Crítica de Axel Honneth, a ideia de patologia social (Honneth, 2015, p. 157)65 aponta para a dimensão da perda de cooperação social, fundada na denegação de reconhecimento - na medida em que a ideia de reconhecimento (Annerkenung) está alicerçada na intersubjetividade do elo que une ego e alter, em sua co-dependência existencial (Bressiani, 2013, p. 269) -66, o que demonstra a existência de um convívio social fundado na irracionalidade. Por isso, as patologias sociais aqui serão tomadas para designar as ações sociais comprometidas com a negação social do outro. Enquanto expressões de irracionalidades sociais - ainda que inconscientizadas, no nível da justificação, e fomentadas pelo ambiente social e estímulos sócio-políticos - são reveladoras do déficit de ‘eticidade democrática’ entre nós e da disseminada cultura da desconsideração - como, inclusive, se pode constatar a partir das pesquisas antropológicas empíricas, nos termos da Antropologia de Luís Roberto Cardoso de Oliveira (Oliveira, 2022, p. 22) -67, o que expõe e coloca a nu o quanto a incivilidade habita a carne da civilidade.
O projeto autoritário de governo, que se instalou no Brasil, é um sintoma e um reflexo social, e, a um só tempo, um empecilho para a ‘eticidade democrática’, na medida em que dissemina autorizações políticas para modelos de ação social que infringem a possibilidade do alastramento da cultura dos direitos humanos. As estigmatizações produzidas pelos discursos de ódio (xenofobia, racismo, sexismo, homo-trans-fobia, exclusão, elitismo) e o fomento à cultura da violência acabam por fornecer incrementos à formação de patologias sociais, na medida em que a cooperação social, o trânsito entre pares do processo de socialização e a livre comunicação estão a priori bloqueados para inúmeros atores sociais (indivíduos; grupos; classes; setores).
A construção de estereótipos de ‘inimigos sociais’ muito menos ajuda para a construção de uma cultura de paz, respeito, igualdade, liberdade e garantias de inclusão. Ela somente aprofunda uma característica marcante da tradição colonial brasileira, qual seja, a diferença entre uns (colonizadores-superiores) e outros (colonizados-inferiores), sendo que a estes outros (colonizados) se devolve o fosso da indiferença, do ódio e da violência, algo que é próprio dos discursos da desigualdade, da dominação e com fortes propensões autoritárias68. A negação ao reconhecimento que as patologias sociais acabam por produzir suscita bloqueios à autoestima e à estima social, funcionando como barreiras, enfrentadas por indivíduos e grupos, que terão de conviver com o incremento de dificuldades para alcançar a autorrealização e a realização através da inserção social (Bressiani, 2013, p. 275)69. O resultado não é outro senão a fratura dos elos sociais, com a perda de incremento no convívio plural, ativo e democrático.
Na medida em que a cultura dos direitos humanos fornece as condições de socialização que impedem o reconhecimento, percebe-se que a vitalidade da democracia e do pluralismo se nutrem do grau de realização dos direitos humanos. Os desincentivos, a denegação de direitos humanos e o combate ostensivo aos avanços da área acabam por implicar uma denegação de reconhecimento. Especialmente, no caso, a gravidade disto decorre do fato de atingir a matriz de direitos universais. Há nisto um consentimento implícito para que, no imaginário social do presente (e do futuro), a negação do sentido aos direitos humanos implique uma recusa sistemática ao modus moderno de construção da identidade dos sujeitos. O único resultado possível da progressão deste estado de coisas no Brasil, do ponto de vista histórico, é o retardamento do horizonte de possibilidades de construção de uma sociedade moderna - que esteja liberada do fardo do passado colonial (Maciel, Torres, 2007, p. 202) -70, que não seja nos termos de uma modernidade incompleta e periférica.
A retórica da violência, a evocação do uso de armas, a disseminação dos discursos de ódio, a agressividade eloquente dirigida a grupos sociais específicos torna o ambiente social infenso à possibilidade de resguardar, proteger e promover a liberdade social internalizada na ação social. Nestes termos, a regressão social é a única alternativa. Indispostos entre si, com relações sociais bloqueadas, tendo interações limitadas e enviesadas, construídas e tecidas no fio da sobrevivência, trabalhando no nível de uma pugna constante em face de ambientes hostis, a autolimitação da ação social se torna um padrão por si mesmo negador não somente do reconhecimento nas interações sociais, mas, também, negador da possibilidade de um lugar na vida social.
Na medida em que parcelas significativas da população se encontram alijadas das mínimas condições de acesso à segurança alimentar, à moradia, à proteção em face da violência, à proteção em face da exclusão social, o processo de socialização se torna imperfeito, excludente, violento, autoritário, distorcido e injusto. Os impedimentos políticos e sociais aos avanços na área dos direitos humanos significam uma denegação de humanidade a parcelas da população, ora estigmatizadas, ora abandonadas, ora invisibilizadas. Nestes termos, com uma integração social deficitária, a ausência de reconhecimento (Annerkenung) se torna realidade para uma parte significativa da população, algo que deve participar de qualquer perspectiva civilizatória de sociedade. Isso deixa claro que, no Brasil, existe um lapso entre as exigências do Direito, os efetivos comportamentos sociais e a lógica de compreensão de certos setores sociais, que ainda não internalizaram os valores mínimos de uma sociedade democrática, tolerante e plural. Aquilo que o Direito prevê enquanto expressão de direitos fundamentais consagrados na legislação, e em âmbito constitucional, se desfaz como possibilidade de realização efetiva nas condições reais de interação dos atores sociais.
Toda a cultura do Direito que se conhece no Brasil, está instituída na base do estável e persistente valor da Constituição Federal de 1988 - em cujo cerne está a noção de dignidade da pessoa humana (art. 1º., inciso III) - e opera nos termos do Estado Democrático de Direito - de suas instituições e dos limites impostos ao exercício dos poderes. Apesar do ambiente latino-americano de elevado grau de instabilidade institucional, a Constituição Federal de 1988 provou ser, a um só tempo, um documento forte e maleável, para garantir a continuidade do projeto constitucional, e, sobretudo, o Supremo Tribunal Federal demonstrou ter um singular papel de salvaguarda da ordem constitucional (Barroso, 2023, p. 1668)71, na condição de guardião da Constituição (Barroso, 2019, p. 23)72.
Nos termos do pensamento de Axel Honneth - aqui, tomada a obra Luta por reconhecimento -, sabendo-se que as diversas esferas de manifestação da vida implicam amor, solidariedade e direito, adota-se a noção de ‘Direito’ para designar aquela dimensão em que “...pretensões individuais cuja satisfação social uma pessoa pode contar de maneira legítima, já que ela, como membro de igual valor em uma coletividade, participa em pé de igualdade de sua ordem institucional” (Honneth, 2003, p. 216)73. Nesta linha de compreensão, o universo do ‘Direito’ abriga em seu interior a noção de respeito, cultiva-a como um imperativo social e faz dele o elemento agregador da vida em comum (Honneth, 2003, p. 216)74. Por isso, os direitos devem colocar o(a)s cidadãos(ãs) em pé de igualdade e permitir condições de generalização de seus interesses (Saavedra, 2007, p. 104)75. Sem participarem de uma ‘comunidade de direitos’, ou, ao se sentirem dela alijados, os indivíduos e os grupos não somente estão privados da efetividade dos direitos, da fruição dos direitos, como estão privados de reconhecimento social - como demonstram as pesquisas aplicadas de Thomas Khün (Kühn, 2007, p. 312) -76, e de autorrespeito - como demonstram as pesquisas conceituais de Giovani Saavedra (Saavedra, 2007, p. 105-106)77.
No Brasil, a esfera dos direitos ainda não se encontra consolidada. A tradição do país vem marcada pela denegação de direitos, algo que está profundamente ancorado na persistência da cultura autoritária, esta que é responsável pela denegação da política democrática. Há, assim, uma recíproca implicação entre a negação de democracia e a ausência de direitos78 - quando a antipolítica se encontra com a negação do valor da democracia, na medida de seu interesse em cassar os processos de legitimação social do discurso dos direitos humanos -79, e a cada ciclo de rupturas democráticas, golpes, descontinuidades institucionais, novamente se reabrem as feridas mal curadas da tradição histórica do país. Em particular, são afetados aqueles direitos mais elementares que, uma vez sonegados à população, retornam como fantasmas que rondam a ordem democrática e a estabilidade do país. A denegação de direitos tem significado a exclusão social de números expressivos da população brasileira - e, aqui, está-se a falar de um terço (1/3) da população brasileira distante da dignidade, da inclusão e da estima social, levando-se em consideração o que a este respeito afirma o sociólogo Jessé Souza (Souza, 2018, p. 137) -80, o que cria um caldeirão de desigualdades e um embate constante em face de injustiças econômicas81, que alimenta o elevado e mortífero ciclo da violência no país. E, nos termos da filosofia de Axel Honneth, a exclusão social é uma dramática forma de desrespeito e limitação da autonomia individual (Honneth, 2003, p. 216)82.
Não por outro motivo, a agenda dos direitos humanos está imbricada com a agenda de desenvolvimento e consolidação da democracia, assim como deve ser cumprida com rigor, persistência e coerência. Igualmente, o que há de emancipatório no Direito está associado ao avanço do reconhecimento contido nos direitos humanos, e o que há de recusa ao reconhecimento é produtor de repressão social83. Aqui, o que está em jogo é a honra, a dignidade e o lugar da pessoa humana na vida social - seguindo a linha de pensamento contida na obra Luta por reconhecimento, de Axel Honneth (Honneth, 2003, p. 217) -84, tomada como sujeito de direitos, dotada de autonomia e portadora de reconhecimento social85. A gramática moral do desrespeito passa pela enormidade dos fenômenos da exploração, do subemprego, da discriminação, da violência86, fenômenos que foram identificados como largamente integrantes - e os registros dos Relatórios apontam para isso, em termos de cifras concretas - da vida social brasileira contemporânea. Isto torna injustificável o recuo das políticas públicas de direitos humanos, pois atingem o cerne do projeto constitucional vigente, bem como atingem a lógica moderna imanente a partir da qual a modernidade tornou possível associar desenvolvimento econômico com progressivo respeito à dignidade humana87.
Neste artigo, procurou-se analisar a situação dos direitos humanos no Brasil, tomando-se o período 2019-2022, e, tendo-se presente a análise de Relatórios, com dados empíricos acerca de temas específicos de direitos humanos. Ao se privilegiar o encontro sinérgico entre a reflexão analítico-conceitual e a reflexão empírico-crítica, é que se torna possível afirmar que se contemplam os destroços de um tempo. De um lado, se está diante de um enfraquecimento da cultura democrática, e, de outro, se está diante de um desmonte sem precedentes das políticas públicas de direitos humanos. Um ciclo virtuoso de desenvolvimento da democracia e da cultura dos direitos humanos foi interrompido, para deixar atrás de si os estilhaços da promoção da visão que lhe é oposta: a da divisão, do ódio e da indiferença social.
Nestes termos, dentro dos limites do que se propunha, este artigo alcança resultados reflexivos que apontam para a formação de um diagnóstico do tempo presente, especialmente no tocante aos direitos humanos. Aqui, pode-se apontar para uma realidade social, política e econômica refratária à lógica do reconhecimento social - o que está embutido na denegação de políticas públicas de direitos humanos -, algo que afeta uma enormidade de cidadãos(ãs) brasileiros(as), que se deparam com relações sociais estigmatizantes, fraturadas, precárias, autoritárias, violentas e excludentes. Mais do que isso, o artigo procura apontar para o fato de que a denegação de direitos humanos na realidade brasileira permite a multiplicação de formas de vida malogradas. A descontinuidade das políticas de direitos humanos não combina com os desafios sociais inerentes à realidade brasileira, de modo que a sua denegação apenas representa o aprofundamento das condições de degradação do convívio social.
Nesta linha, o diagnóstico do tempo presente é desalentador, na medida em que aponta para: i.) o incremento das desigualdades socioeconômicas; ii.) a dessolidarização e o enfraquecimento da ‘eticidade democrática’; iii.) a negação social do valor moral dos direitos humanos; iv.) a desconstrução das políticas públicas de direitos humanos que lograram êxito no passado; v.) a obstrução à dimensão emancipatória do Direito e a ênfase no aspecto repressor do Direito. Os danos que decorrem dos retrocessos sociais, da denegação de direitos e da retrogradação do convívio democrático ainda se sentirão por muitos e longos anos. Mas, desde já, um dos piores danos à consolidação da democracia e à cultura dos direitos humanos está na restauração do imaginário autoritário da ditadura civil-militar - que foram demonstrados pelos atos de 08 de janeiro de 2023 -, rescaldo que vem alimentando um imaginário social explícito de apoio à ruptura democrática, a formas violentas de protestos e ao crescimento da intolerância política. O desalento aqui não decorre do fato da luta pelos direitos humanos se diluir, em face das patologias sociais, mas pelo fato de, novamente, através dos erros deste passado-presente, o país recuar na possibilidade de se tornar um país exemplar em matéria de direitos humanos.