Artigos inéditos
Received: 07 February 2023
Accepted: 03 March 2024
DOI: https://doi.org/10.1590/2179-8966/2024/73294
Resumo: O artigo resulta de um esforço acadêmico e político de questionar a branquitude. Em função disso, pretende-se adotar teóricos do Direito Antidiscriminatório, da Sociologia e da Psicologia que se dedicam a esse fenômeno social. Entre os temas emergentes do Direito Antidiscriminatório, destaca-se a hermenêutica do oprimido. Dentro desse tema de estudo, a pesquisa se propõe a suscitar outro desafio científico complementar: a investigação sobre a hermenêutica jurídica a partir da lógica do opressor. Nesse sentido, parte-se do pressuposto de que neutralidade e objetividade devem estar ligadas não apenas às perspectivas hermenêuticas ditas tradicionais, mas principalmente à branquitude. Em função do exposto, o problema da pesquisa se constitui em uma pergunta objetiva: como a hermenêutica jurídica tradicional incorpora elementos da branquitude no Brasil? De maneira pragmática, o objetivo geral da pesquisa será analisar como a branquitude se reverbera pela comissão e omissão na hermenêutica jurídica brasileira. Enquanto objetivos específicos, pretende-se: a) analisar a literatura sobre branquitude a fim de caracterizar a categoria conceitual e as suas manifestações sociais; b) conceituar e caracterizar as manifestações da da branquitude na hermenêutica jurídica a partir de elementos comuns identificados em julgados; c) analisar a prática dos tribunais brasileiros e realizar a dialética com os conceitos estabelecidos. Em conclusão, identificou-se que as categorias hermenêuticas jurídicas da Branquitude por Comissão e por Omissão são instrumentos eficazes para fins de identificação dos discursos da branquitude no judiciário brasileiro, marcado pelo pacto narcísico que conserva, sempre em nova moda, vantagens materiais e simbólicas. Além disso, apontou-se a necessidade de diferenciar a hermenêutica desatenta à realidade social da postura interpretativa própria da branquitude.
Palavras-chave: Hermenêutica, Branquitude, Comissão, Omissão.
Abstract: The article results from an academic and political effort to question whiteness. As a result, it is intended to adopt theorists of Anti-Discrimination Law, Sociology and Psychology who are dedicated to this social phenomenon. Among the emerging themes of Anti-Discrimination Law, the hermeneutics of the oppressed stands out. Within this subject of study, the research proposes to raise another complementary scientific challenge: the investigation of legal hermeneutics from the oppressor’s logic. In this sense, it is assumed that neutrality and objectivity must be linked not only to the so-called traditional hermeneutic perspectives, but mainly to whiteness. In light of the above, the research problem is an objective question: how does traditional legal hermeneutics incorporate elements of whiteness in Brazil? In a pragmatic way, the general objective of the research will be to analyze how whiteness reverberates through commission and omission in Brazilian legal hermeneutics. As specific objectives, it is intended to: a) analyze the literature on whiteness in order to characterize the conceptual category and its social manifestations; b) conceptualize White Legal Hermeneutics by Omission; c) conceptualize White Legal Hermeneutics by Commission; d) analyze the practice of the Brazilian courts and carry out the dialectic with the established concepts. In conclusion, it was identified that the legal hermeneutic categories of Whiteness by Commission and by Omission are effective instruments for identifying whiteness discourses in the Brazilian judiciary, marked by the narcissistic pact that preserves, always in new fashion, material and symbolic advantages. In addition, it was pointed out the need to differentiate hermeneutics inattentive to the social reality from the interpretative posture of whiteness itself.
Keywords: Hermeneutics, Whiteness, Commission, Omission.
1. Introdução
Inicialmente, o artigo realizou um esforço acadêmico e político de questionar a branquitude. Em função disso, foram adotados teóricos do Direito Antidiscriminatório, da Sociologia e da Psicologia, que se dedicam a esse fenômeno social. Nesse sentido, o artigo não está apoiado em uma única corrente de pensamento, tendo em vista que o Direito Antidiscriminatório, em sua gênese, é um saber construído coletivamente a partir de uma perspectiva interdisciplinar. Entre os principais autores que compõem esses ramos do saber, destacam-se Moreira (2020) e Bento (2002), pertencentes à tradição jurídica crítica e à psicologia social, respectivamente.
Entre os temas emergentes do Direito Antidiscriminatório, destaca-se a hermenêutica do oprimido, posição que reclama a interpretação jurídica a partir da posição dos grupos sociais marginalizados, visto que, a partir dessa prática, os mecanismos de marginalização social são considerados relevantes para a hermenêutica jurídica, em oposição à tradição liberal ligada à neutralidade e à objetividade dos processos interpretativos. O pensamento moderno conferiu ao termo hermenêutica o status de teoria da interpretação, com o objetivo de obter o aval da racionalidade científica: “No seu uso aparece sempre implícita uma espécie de consciência metodológica. Não apenas possuímos a arte da interpretação como também podemos justificá-la teoricamente” (GADAMER, 2004, p. 113).
Assim, a hermenêutica jurídica se constituiu em um instrumento de autolegitimação de processos interpretativos, sob a ótica da razão. Por causa disso, não decorre uma unicidade, visto que essa área do conhecimento convive com o que foi intitulado por Dorantes (2005) como pêndulo hermenêutico, que é uma oscilação entre os extremos do univocismo - que pugna pela existência de uma única interpretação correta - e do equivocismo - posição interpretativa relativista que busca oferecer respostas às demandas contemporâneas.
Especialmente no Brasil, o campo da hermenêutica jurídica passou por grande transformação a partir do processo de redemocratização do país, na década de 80. Segundo Wolkmer (2012), o Direito passou por momento de crise nesse período, uma fase de esgotamento que revela fraturas, contradições internas e disfuncionalidade do modelo vigente. Diante desse cenário, os estudos sobre hermenêutica buscaram um novo lugar para se dirigir e para problematizar, quando então, “influenciados pelo “giro” linguístico da filosofia” (LIXA; SPAREMBERGER, 2021, p. 373).
Tendo em vista um novo cenário de transformações, observado na má apropriação de teorias hermenêuticas pelo Direito brasileiro e na presença de novos marcos teóricos críticos - como a teoria decolonial e o Direito Antidiscriminatório -, toma-se nesse artigo por hermenêutica jurídica uma posição de ruptura com suas concepções tradicionais e de compreensão de saberes comumente não convergentes para intepretação do problema real e não do Direito em si. Tal noção da hermenêutica suscita a tradução e a incorporação de linguagens e performances múltiplas, dentre as quais a jurídica, em que campos tradicionalmente opostos - público e privado, estado e sociedade, formal e substancial, científico e popular - se tocam para a compreensão da realidade de maneira plural e inclusiva (LIXA; SPAREMBERGER, 2021).
Dentro desse tema de estudo, a presente pesquisa busca suscitar outro desafio científico complementar: a investigação sobre a hermenêutica jurídica a partir da lógica do opressor. Entretanto, é feita a partir do pressuposto de que neutralidade e objetividade devem estar ligadas não só às perspectivas hermenêuticas ditas tradicionais, mas principalmente à branquitude. Assim, a relevância dos processos de opressão está para a hermenêutica do oprimido, como a neutralidade está para a hermenêutica jurídica branca.
Antes do processo de pesquisa e escrita em si, as reflexões partiram do contato com as críticas à noção de sujeito de direito da norma jurídica, quando autores e autoras identificam nessa categoria um ser universal, abstrato, descolado da realidade social dos diversos grupos sociais e relacionado à tradição liberal individualista. Entretanto, em meio à reflexão sobre a crítica acima, percebeu-se que esse sujeito de direito poderia não ser universal, abstrato e descolado da realidade social, mas sim a representação de um grupo social específico, o único grupo social que fala, atua e existe a partir de um “não lugar”: o homem, branco, cis, de classe média-alta/alta e sem deficiência. Diante dessa intuição, formulou-se uma pergunta: existe uma hermenêutica jurídica branca, masculina e heteronormativa?
Em meio a leituras e a debates sobre a questão acima, intuiu-se que grupos hegemônicos conseguem se apoiar coletivamente sem mencionar ou destacar a condição de pessoa branca ou de homem, por exemplo. Em contrapartida, grupos em situação de vulnerabilidade social, precisam destacar suas marcas identitárias para se fortalecerem coletivamente. Isso posto, formatou-se o tema deste artigo, que é a hermenêutica jurídica na perspectiva do opressor a partir do recorte temático da branquitude. Em função do exposto, o problema de pesquisa se constitui em uma pergunta objetiva: como a hermenêutica jurídica tradicional incorpora elementos da branquitude no Brasil? Formulou-se, em face da questão, uma hipótese inaugural submetida a testes de confirmação e refutação: acredita-se que é possível caracterizar comissões e omissões próprias da branquitude durante a prática jurídica dos tribunais brasileiros.
De maneira pragmática, o objetivo geral da pesquisa é analisar a categoria da branquitude, enquanto expressão que designa um sistema político, e sua reverberação na hermenêutica jurídica brasileira a partir de discursos comissivos e omissivos. Enquanto objetivos específicos, elencam-se: a) analisar a literatura sobre branquitude a fim de caracterizar a categoria conceitual e as suas manifestações sociais; b) conceituar e caracterizar as manifestações da da branquitude na hermenêutica jurídica a partir de elementos comuns identificados em julgados; c) analisar a prática dos tribunais brasileiros e realizar a dialética com os conceitos estabelecidos.
Em função desses objetivos, a primeira seção deste artigo dedica-se à branquitude enquanto fenômeno social dotado de características identificáveis e palpáveis, por meio da literatura científica que se debruça sobre o tema diretamente e lateralmente. Assim, foi apresentado o conceito de branquitude relacional e histórica, que designa um sistema de opressão social edificado pelo colonialismo e que se perpetua na atualidade a partir da negação desse grupo social enquanto grupo com traços específicos, dentre os quais se destaca o acesso privilegiado a recursos materiais e simbólicos; a imposição forçada de padrões estéticos e culturais que buscam se fincar na realidade social como regra universal ideal; a construção de uma identidade individual que prescinde da categorização, tal qual outros grupos sociais, para existir plenamente.
Em suma, designa um sistema que privilegia um grupo social específico, pessoas brancas, corrompendo a realidade social de tal forma que permite que esse grupo e seus indivíduos existam, falem e atuem a partir de um não lugar, um não ser, que por ser isento de características definidas (estereótipos), quer se fazer universal e merecedor das vantagens estruturais que usufrui.
A segunda seção versa sobre o tema da hermenêutica jurídica branca, que foi dividido em duas categorias principais e quatro subcategorias, são elas: Hermenêutica Jurídica Branca por Omissão, que designa duas posturas interpretativas, na primeira o racismo não é tomado como um elemento relevante para a interpretação do Direito, enquanto que, na segunda, quando o debate racial é inevitável, a branquitude é apagada, a fim de tornar as demandas raciais um problema dos negros; Hermenêutica Jurídica Branca por Comissão, que diz respeito à postura interpretativa que, quando o debate racial é inevitável, minimiza os efeitos do racismo ou os desloca para a má distribuição de recursos materiais, já a segunda ocorre quando empregam-se técnicas jurídicas imbuídas de critérios objetivos ou neutros para interpretar demandas estruturadas por desigualdades raciais.
Em conclusão, identificou-se que as categorias hermenêuticas jurídicas da Branquitude por Comissão e por Omissão são instrumentos eficazes para fins de identificação dos discursos da branquitude no judiciário brasileiro, marcado pelo pacto narcísico que conserva, sempre em nova moda, vantagens materiais e simbólicas. Além disso, apontou-se a necessidade de diferenciar a hermenêutica desatenta à realidade social da postura interpretativa própria da branquitude.
2. Branquitude: conceito e características
Como ponto de partida, apresenta-se a acertada constatação de Fernandes e Cruz (2022, p. 154) quando afirmam que a produção científica/acadêmica sobre as desigualdades no Brasil dedica esforços à investigação das pessoas e dos grupos vulnerabilizados, a fim de quantificar e de qualificar as opressões sofridas nos diversos campos sociais e intersubjetivos. Entretanto, parafraseando os autores, o foco tem estado excessivamente voltado ao diagnóstico das exclusões vividas por pobres, negro(a)s, mulheres, população LGBTQIAP+, pessoas com deficiência e afins, sem alcançar o seu alicerce fundamental: o sistema de vantagens vividas por branco(a)s, héteros, de classe média-alta/alta e sem deficiência.
No mesmo sentido, Cardoso (2010, p. 610) afirma: “a teoria anti-racista, de maneira geral, tem restringido em pesquisar o oprimido, deixando de lado o opressor. Desta forma, é sugerido que a opressão é somente um “problema do oprimido” [...]. Nesse contexto, um dado relevante pode ser extraído de pesquisadores pertencentes a grupos privilegiados, mas que estão interessados na emancipação social: esses têm produzido uma epistemologia sobre os demais grupos sociais, ignorando aqueles em que se encontram inseridos. Pensando essa realidade dentro do contexto da pesquisa sobre desigualdade racial, Cardoso (2014, p. 70) explica que: “[...] a objetividade da racionalidade dual racial é a epistemologia sobre o negro. Portanto, o ato de produzir teoria racial significa invisibilizar o branco e pensar somente a respeito do negro de forma geral”. A exemplo disso, tem-se o ensino jurídico brasileiro, que, quando trata de temas relacionados a desigualdades raciais, costuma recortar o tema à violência sofrida pela população negra, ignorando as vantagens materiais e simbólicas que essa mesma violência produz em prol da branquitude. Assim, buscando contribuir para uma análise integral sobre os processos de discriminação social, é preciso responder: o que se entende por branquitude?
Visando fomentar esse debate, recorre-se inicialmente à advertência de Almeida (2019, p. 47), quando afirma que não há uma essência branca natural no interior dos sujeitos brancos. Logo, o conceito de branquitude não possui um conteúdo atemporal e independente da territorialidade. Diante desse pressuposto, podemos definir a branquitude primeiramente como uma contradição: “[…] só se é “branco” na medida em que se nega a própria identidade enquanto branco, que se nega ser portador de uma raça. Ser branco é atribuir identidade racial aos outros e não ter uma. É uma raça que não tem raça” (ALMEIDA, 2019, p. 49). Avançando, Schucman (2015, p. 60) afirma que branquitude é: “[…] uma posição em que sujeitos que ocupam esta posição foram sistematicamente privilegiados no que diz respeito ao acesso a recursos materiais e simbólicos, gerados inicialmente pelo colonialismo [...]”. A mesma autora, em uma outra delimitação conceitual, acrescenta:
A leitura dos estudos críticos sobre branquitude apontou que se há algo comum nesse processo de construção da identidade racial é que ele é construído nas sociedades contemporâneas como lugar de privilégios materiais e simbólicos em que sujeitos considerados brancos trafegam soberanos em sociedades estruturadas pelo racismo, delimitando assim fronteiras hierarquizadas entre brancos e outras construções racializadas (SCHUCMAN, 2015, p. 197).
Outro elemento que ajuda a compor a conceituação sobre branquitude é traçado por Mbembe (2018, p. 88), quando nos convida a pensar a construção da categoria racial branca a partir das emergências entre o Direito e os regimes de extorsão da força de trabalho dos não brancos. Destacamos ainda a noção de que: “[…] a branquitude é território do silêncio, da negação, da interdição, da neutralidade, do medo, do privilégio” (BENTO, 2002, p. 167). Tal enfoque também é percebido nos estudos de Carone (2016, p. 26), quando a autora aduz: “[…] um branco é apenas e tão somente o representante de si mesmo, um indivíduo no sentido pleno da palavra. Cor e raça não fazem parte dessa individualidade”.
Ademais, não necessariamente em contraponto às ideias centrais até então apresentadas, há autores que não localizam o grupo social branco ou a branquitude enquanto uma identidade racial. Assim, Moreira (2020, p. 491) diz que a branquitude “[…] não designa uma identidade racial, mas sim um lugar dentro das hierarquias de poder [...] a branquitude não é uma mera identidade racial, é um padrão cultural que se torna invisível porque adquire um status de normalidade ou referência universal”. Com base nessa percepção, Moreira (2020, p. 489) ainda argumenta que: “[…] ser branco significa estar em uma posição na qual não há necessidade de construção de uma consciência racial”. Tal afirmação decorre da percepção de que, em se tratando do grupo social majoritário, este possui o capital material e simbólico para impor seus traços culturais e interesses como regras universais.
A fim de sintetizar as ideias apresentadas pelos autores(as) estudados(as), esta pesquisa compreende como a branquitude como um conceito relacional e histórico que designa um sistema de opressão social edificado pelo colonialismo e que se perpetua na atualidade a partir da negação desse grupo social enquanto grupo com traços específicos, dentre os quais se destaca o acesso privilegiado a recursos materiais e simbólicos; a imposição forçada de padrões estéticos e culturais que buscam se fincar na realidade social como regra universal ideal; a construção de uma identidade individual que prescinde da categorização, tal qual outros grupos sociais, para existir plenamente.
Em suma, designa um sistema que privilegia um grupo social específico, pessoas brancas, corrompendo a realidade social de tal forma que permite que esse grupo e seus indivíduos existam, falem e atuem a partir de um não lugar, um não ser, que, por ser isento de características definidas (estereótipos), quer se fazer universal e merecedor das vantagens estruturais que usufrui.
2.1. Características da branquitude
A presente subseção busca trazer à tona algumas características marcantes da branquitude, segundo a bibliografia levantada durante a pesquisa. Por características, entenda-se: as formas e manifestações desse segmento social enquanto grupo com traços comuns.
Nesse contexto, a primeira característica marcante da branquitude é a formação de consensos ideológicos setoriais trajados de interesse público, vontade do povo ou qualquer manifestação que pretenda se impor como imaginário coletivo monolítico (ALMEIDA, 2019, p. 48). Assim, a título de exemplo, a percepção de que comentários racistas, homotransfóbicos, capacitistas e machistas são meras piadas, carentes da intenção de ofender e com o único fim de entreter, são, a um só tempo, uma espécie de falso consenso e também um mecanismo para preservação de estereótipos negativos que fulminam oportunidades materiais e culturais de grupos vulnerabilizados, mas também alargam e legitimam as oportunidades materiais e simbólicas que privilegiam homens brancos, héteros e sem deficiência (MOREIRA, 2019, p. 95).
Em complementaridade, a segunda característica da branquitude a ser destacada diz respeito ao componente narcísico e de autopreservação. Há um acordo/pacto tácito entre brancos, especialmente entre homens brancos, que tem como objetivo isentar esse grupo da responsabilidade social decorrente dos regimes de exploração e de desigualdade estrutural no Brasil:
Pudemos demonstrar, ao longo do trabalho, a presença de trechos de depoimentos nos quais alguns entrevistados reconhecem a discriminação racial, relatam casos que presenciam, defendem a adoção de medidas especificamente dirigidas aos negros com vistas à mudança no quadro das desigualdades raciais. No entanto, a maioria dos entrevistados de ambas as prefeituras atuam como que sob a influência de um acordo tácito indiscutível […] A preocupação em preservar, isentar, proteger os interesses do grupo branco, convive nos discursos com uma culpabilização e desvalorização dos negros, e por vezes, com uma indiferença em relação à violação de seus direitos (BENTO, 2002. p. 155).
A manifestação desse pacto narcísico da branquitude pode ser observada a partir das seguintes características (BENTO, 2002, p. 155-158): a) não relacionar desigualdade social e discriminação racial; b) não inserir o sujeito branco no debate racial; c) atribuir a desigualdade social às questões de classe; d) esquecimento parcial do passado escravocrata, evocando a figura do negro escravizado, mas esquecendo a imagem do branco escravizador; e) desconforto com pessoas negras que ascendem socialmente; f) associação dos grupos sociais não brancos à pobreza, carência cultural, ausência de beleza e intelectualidade, preguiça e afins; g) percepção da desigualdade como algo natural, uma constatação, e não um estado de coisas fruto de um sistema estruturado para conferir privilégios a homens brancos; h) políticas afirmativas são vistas como assistencialistas.
Nesse sentido, como bem sintetiza Bento (2016, p. 169), há uma cegueira e/ou negação do preconceito e da discriminação, uma isenção do branco e a culpabilização de todo os demais grupos sociais, especialmente das pessoas negras. “A maioria, principalmente os brancos, nega inicialmente qualquer preconceito pessoal, reconhecendo o impacto do racismo sobre a vida de outras pessoas, mas evitando reconhecer o impacto sobre as suas próprias vidas” (BENTO, 2016, p. 177). Dessa forma, um traço fundamental da branquitude é a isenção, não raramente travestida de neutralidade. Logo, mesmo quando se reconhecem desigualdades, não se reconhecem os privilégios.
Isso posto, a terceira característica marcante é o que chamamos de transparência ou invisibilidade branca: ocorre que a branquitude se apresenta como um grupo sem marcas, é tudo e nada concomitantemente. O grupo social de pessoas brancas, ricas e heterossexuais formou, historicamente, o padrão cultural das sociedades ocidentais, especialmente em países colonizados como o Brasil. Assim, ao se tornar a norma, a identidade branca segue transparente/invisível. Dessa forma: “Enquanto outros grupos raciais e outras identidades culturais são socialmente marcadas, a branquitude é uma categoria que expressa o universal, tornando-se então invisível.” (MOREIRA, 2020, p. 492). Um dos grandes problemas dessa constatação é que a branquitude, como já apontado, se constitui como sistema de opressão social. Logo, a universalização do ser branco põe em cheque todos os corpos ou grupos divergentes (os outros), constituindo e renovando um processo de escassez e de abundância material, política e cultural com cartas marcadas.
Por fim, como última característica, é preciso advertir que a branquitude não é um grupo social uniforme e sem fraturas internas. Assim: “[...] essa identidade racial tem fronteiras e distinções internas que hierarquizam os brancos através de outros marcadores sociais, como classe social, gênero, origem, regionalidade e fenótipo” (SCHUCMAN, 2015, p. 197). Essa última advertência é de fundamental importância, especialmente para o restante deste trabalho, visto que a identidade branca não é a única que se faz hegemônica nas intersecções de nossa forma de sociabilização. Portanto, além da branquitude, misturam-se também os privilégios e as violências decorrentes do machismo e da heteronormatividade1, que, apesar de marcadas por suas particularidades, necessitam ser igualmente exploradas e pesquisadas, pois, como foi advertido até então, a opressão é também um problema do e sobre o opressor.
3. Hermenêutica jurídica branca
Tendo como base as considerações anteriores, retoma-se a ideia de que a branquitude é território do silêncio, da neutralidade, do não ser que quer se fazer universal. Ao sobrepor tal afirmação ao ordenamento jurídico brasileiro, existe uma categoria conceitual que se destaca em função da semelhança: o sujeito de direito. Há uma série de trabalhos que tecem críticas à noção de sujeito de direito da norma jurídica, pois identificam nessa categoria um ser universal, abstrato, descolado da realidade social dos diversos grupos sociais e relacionado à tradição liberal individualista.
Entretanto, ao se debruçar sobre as normas antidiscriminatórias que compõem o ordenamento jurídico brasileiro, passa-se a perceber que esse sujeito de direito poderia não ser universal, abstrato e descolado da realidade social. Em verdade, ele representa um grupo social específico, o único grupo social que fala, atua e existe a partir de um não lugar: o homem, branco, cis, de classe média-alta/alta e sem deficiência. Especialmente, nesta pesquisa, a branquitude.
Nesse cenário, trabalhos científicos reforçam a ideia de sujeito de direito como categoria universalizante:
Para entender o paradigma da igualdade formal, toma-se o ser humano como unidade de racionalidade, da qual deriva, de forma coletiva, a organização de uma comunidade política. Dentro dessa comunidade, a identidade comum partilhada repousa na cidadania, é dizer, naquela qualidade subjetiva reconhecida para alguns indivíduos, alocados na categoria de sujeitos de direito, abstratamente considerados, descritos não por aquilo que os distancia dos outros, mas por aquilo que os aproxima deles (ALMEIDA; CORRÊA, 2020, p. 249).
Em consonância com o exposto, explora-se a ideia de que igualdade se confunde com identidade. Logo, em um cenário em que todas as pessoas possuem experiências sociais comuns, normas jurídicas abstratas pautadas no princípio da igualdade formal são suficientes para regular a realidade social de modo legítimo, com aceitação da comunidade política.
Tem-se, então, uma das consequências controversas das democracias liberais: a tentativa de integração de todas as pessoas em um único grupo, o sujeito de direito, ignorando as identidades coletivas. Dessa forma: “Surgia então como grande empecilho para a realização de uma forma de cidadania que deveria incluir também a proteção contra mecanismos de exclusão que possuem um caráter estrutural” (DELGADO; STEFANCIC, 2021, p. 18).
As categorias jurídicas ‘igualdade formal’ e ‘sujeito de direito’ podem ser lidas, então, como institutos que incorporam a branquitude porque a insistência no igual tratamento formal como remédio para atos discriminatórios arbitrários traduz-se em instrumento para maquiar a realidade de que o racismo é a regra e não a exceção de sociedades como a brasileira.
Assim, não haveria de se falar em privilégio branco, posto que a lei não permite desequiparações negativas em função da raça-etnia. Tal percepção é reforçada pela partícula sujeito de direito, visto que, a partir dela, tem-se a percepção de que todos os indivíduos são detentores de iguais direitos e obrigações sociais, razão pela qual as diferenças entre coletividades numa mesma comunidade política não possuem amparo jurídico.
Além disso, a articulação entre essas categorias permite a edificação de um sistema de direitos majoritariamente processual (todos os sujeitos de direito possuem a garantia ao contraditório, ao devido processo legal e são iguais perante a lei), em detrimento de um sistema substantivo (todos os sujeitos de direito devem ter a oportunidade de se alimentar adequadamente, possuir moradia digna e ter acesso à educação de qualidade).
É evidente que o sistema jurídico articulado pela categoria sujeito de direito privilegia um único grupo social, aquele que não carece de tratamento diferencial em relação às oportunidades, ao capital material e simbólico e que se beneficia com uma noção de igualdade meramente procedimental. Nesse sentido: “A representação do homem como sujeito de direito designa uma entidade genérica e indiferenciada: [...] não pretende descrever sujeitos empíricos, mesmo porque pressupõe a ideia de uma dignidade universal” (MOREIRA, 2020, p. 91).
Antes de finalmente adentrar nas considerações sobre as hermenêuticas jurídicas brancas por Comissão e Omissão, apresenta-se a tabela comparativa, a seguir:

A tabela, acima, tem o objetivo de problematizar o tema e inaugurar o debate, pois, a partir das similitudes expostas, começa-se a vislumbrar de forma pragmática o modo pelo qual elementos da branquitude são incorporados pelo sistema jurídico.
3.1. Hermenêutica omissiva e comissiva: incorporação da branquitude
Inicialmente, destaca-se que o presente artigo não pretende diferenciar hermenêutica e interpretação. Assim, ambos os termos serão tomados como sinônimos e designarão o meio pelo qual juristas interpretam o ordenamento jurídico e a realidade social, as técnicas interpretativas, os valores e os propósitos imbuídos nesse pensar. Isso posto, o conceito Hermenêutica Jurídica Branca por Omissão expressa a interpretação jurídica que busca apagar a branquitude do debate racial, disfarçando, tanto quanto possível, a ausência de ganho material e simbólico da branquitude e empurrando a desigualdade racial como um problema a ser enfrentado somente pela população negra.
Assim, a Hermenêutica Jurídica Branca por Omissão pode se dar de duas formas: a) o racismo não é tomado como um elemento relevante para a interpretação do Direito; b) quando o debate racial é inevitável, a branquitude é apagada, a fim de tornar as demandas raciais um problema dos negros.
Em complemento, a categoria conceitual Hermenêutica Jurídica Branca por Comissão designa o empreendimento para valorização de critérios objetivos e neutros no tratamento dado a demandas que envolvem desigualdades estruturais atravessadas pelo racismo. Logo, sob o pressuposto de se atentar para a técnica científica jurídica, abraça-se critérios abstratos e procedimentais. Assim, a Hermenêutica Jurídica Branca por Comissão pode se dar de duas formas: a) quando o debate racial é inevitável, os efeitos do racismo são minimizados ou deslocados para a má distribuição de recursos materiais; b) empregam-se técnicas jurídicas imbuídas de critérios objetivos ou neutros para interpretar demandas estruturadas por desigualdades raciais.
Em função do exposto, inaugura-se a investigação dessas afirmações a partir da seguinte contribuição:
A figura do jurista branco que descrevo neste livro designa uma postura hermenêutica calcada na suposta neutralidade e objetividade do processo interpretativo, no liberalismo individualista, no universalismo de direitos, na desconsideração de contextos históricos, na compreensão procedimental da igualdade, na celebração da assimilação cultural e na neutralidade racial como parâmetros de interpretação de normas jurídicas (MOREIRA, 2019, p. 30).
Apesar de relevante, a caracterização supramencionada da hermenêutica branca pode ser mais explorada. Para tanto, é preciso conhecer suas características e realizar a seguinte advertência: ao falar de juristas brancos ou hermenêutica branca, não se está defendendo uma concepção essencialista ou mesmo afirmando que a hermenêutica branca é naturalmente praticada por todos os juristas brancos. Nesse sentido: “A figura do jurista branco que descrevo neste artigo designa uma postura hermenêutica calcada nas premissas do individualismo, da suposta objetividade do processo interpretativo e do universalismo como parâmetros de análise dos direitos” (MOREIRA, 2017, p. 395).
Frisa-se que tais categorias não se manifestam isoladamente. Logo, percebem-se elementos de ambas as posturas hermenêuticas em uma mesma decisão ou petição. De igual modo, é possível que coexista as hermenêuticas jurídicas brancas por Omissão e por Comissão no mesmo texto. A divisão é adotada para fins didáticos, de modo que a identificação da branquitude no discurso jurídico possa ser capturada com mais facilidade.
3.1.1. Hermenêutica Jurídica Branca por Omissão
Tal qual já frisado, a Hermenêutica Jurídica Branca por Omissão foi agrupada em duas vertentes principais: a) o racismo não é tomado como um elemento relevante para a interpretação do Direito2; b) quando o debate racial é inevitável, a branquitude é apagada, a fim de tornar as demandas raciais um problema dos negros3. Durante a revisão bibliográfica, Moreira (2017) foi bastante proveitoso, posto que nele é possível encontrar uma série de julgados que confirmam as categorias aqui apresentadas4. Entretanto, há um dado relevante a ser considerado: tais decisões datam do período de 2003 a 2009. Assim, considerando que, atualmente, o debate racial ganhou envergadura singular, faz-se necessária uma leitura de decisões atuais que versem sobre o tema, a fim de testar novamente as categorias conceituais colacionadas.
Tais decisões desnudam os elementos da branquitude incorporados no fazer jurídico. Entretanto, como bem destacou Moreira (2017, p. 413): “O racismo é uma ideologia e uma prática de caráter permanente. Isso significa que ele sempre assumirá novas formas para que o poder do grupo racial dominante seja mantido”.
Assim, ainda que a luta antidiscriminatória tenha avançado significativamente nos últimos anos, “[...] cada nova conquista de direitos foi acompanhada pela rearticulação de uma nova ideologia que tinha o propósito de manter privilégios raciais”. Em similar sentido, Castro e Alburquerquei (2021, p. 186) afirmam: “Por ser conteúdo, o racismo está sempre se materializando, se reproduzindo e se atualizando de diversas formas e roupagens”. Isso posto, a partir de pesquisa jurisprudencial recortada aos últimos cinco anos, foram selecionadas decisões que articulam a mesma Hermenêutica Jurídica Branca por Omissão, mas a partir de uma nova roupagem.
Nesse sentido, ao tratarmos da primeira categoria, quando o racismo não é tomado como um elemento relevante para a interpretação do Direito, têm-se os seguintes julgados:
a) BRASIL. TJ-RJ, HABEAS CORPUS 0067026-78.2021.8.19.0000, Relator(a): DES. PAULO SERGIO RANGEL DO NASCIMENTO, Publicado em: 10/01/2022 (Em demanda envolvendo a liberdade religiosa e o crime de racismo, a argumentação jurídica dedicou-se, exclusivamente, ao direito à liberdade religiosa, deixando de tecer qualquer argumento acerca do racismo);
b) BRASIL. ADPF 347 MC, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 09/09/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-031, Publicado em: 19/02/2016 (Reconheceu-se o Estado de Coisas Inconstitucional do Sistema Penitenciário Nacional em função da violação massiva e persistente de direitos fundamentais da população carcerária. Entretanto, ainda que o direito penal seja um dos mais relevantes mecanismos de perpetuação do racismo no Brasil, não há considerações substantivas ou mesmo vagas sobre o tema);
c) BRASIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA 0000790-37.2020.5.10.0015; Autor: DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO; Réu: MAGAZINE LUIZA S/A, 2021 (Argumentou-se em desfavor de política de discriminação positiva adotada pela empresa sob o argumento de violação ao princípio da igualdade, crime de racismo, discriminação negativa e ofensa à Constituição Federal. Entretanto, há um apagamento durante toda a petição inicial acerca das vantagens não escritas que a população branca possui no mercado de trabalho, especialmente a branca, masculina e heterossexual. Assim, o racismo não é tomado como um elemento relevante na interpretação jurídica, limitando-se, tal qual em outras categorias, à articulação de critérios objetivos e desgarrados da realidade social).
Quanto à segunda categoria, quando o debate racial é inevitável, a branquitude é apagada, a fim de tornar as demandas raciais um problema dos negros, têm-se os seguintes julgados:
a) BRASIL. TJSP; Apelação Criminal 0004694-12.2014.8.26.0005; Relator (a): Gilda Alves Barbosa Diodatti; Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Criminal; Foro Central Criminal Barra Funda - 10ª Vara Criminal; Data do Julgamento: 05/03/2020; Data de Registro: 06/03/2020 (Condenação pelo crime de injúria racial. O ponto a ser observado aqui versa sobre o apagamento da raça do(a) agressor(a), situação comum em julgamentos sobre esse tipo penal, quando destaca-se o pertencimento racial da vítima e ignora-se o do(a) acusado(a));
b) BRASIL. TJ-RS; Apelação Crime, Nº 70080674468, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sylvio Baptista Neto, Julgado em: 24-04-2019 (Diferente do julgado acima, nessa ocasião a agressora trata-se de uma pessoa negra, oportunidade então em que tal elemento foi devidamente explorado como uma das justificativas para absolver a acusada);
c) BRASIL. TJSP; Apelação Criminal 0004683-24.2018.8.26.0625; Relator (a): Marcos Correa; Órgão Julgador: 6ª Câmara de Direito Criminal; Foro de Taubaté - 1ª Vara Criminal; Data do Julgamento: 06/05/2020; Data de Registro: 06/05/2020 (O réu argumentou em apelo que a ofensa foi mera brincadeira de mau gosto, razão pela qual a culpa poderia ser atribuída ao ofendido “[...] que se sentiu vitimizado por injúria racial; por ser negro, (...) pode ser que tenha se sentido ofendido por isso, mas, então, é auto julgamento, o preconceito, nesse caso está nele próprio e não pode ser atribuído ao apelante”).
Dos casos acima relacionados, é possível perceber um traço fundamental da Hermenêutica Jurídica Branca por Omissão, que é a tentativa de apagamento do racismo, tanto de seus efeitos nefastos, quanto dos ganhos que esta estrutura gera. Interpreta-se então o ordenamento jurídico a partir de abstrações, desconsiderando a realidade concreta. Não só, essas posições apresentam um problema central: a afirmação da inocência branca (MOREIRA, 2017, p. 409).
Nesse sentido, as decisões listadas exemplificam a tentativa de não inserir o sujeito branco no debate racial, de promover o esquecimento parcial do passado escravocrata, evocando a figura da negritude violentada, mas esquecendo a imagem da branquitude que violenta e, por último, de fixar o racismo enquanto um problema do negro (ALMEIDA, 2019, p. 50).
Esses fins assemelham-se a algumas das características da branquitude indicadas por Bento (2002, p. 155-158), razão pela qual é possível afirmar que o Direito incorpora elementos da branquitude em sua prática. A partir do exposto, é possível reforçar tal hipótese por meio do trabalho de Alburquerquei e Castro (2021, p. 191-193), quando duas sentenças são confrontadas. A primeira afirma que o réu seguramente é integrante de grupo criminoso em função da sua raça, enquanto a segunda afirma que o réu não possui o estereótipo de bandido, visto que possui pele, olhos e cabelos claros.
No mesmo sentido, um jurista que interpreta o Direito pela ótica da branquitude pode argumentar que medidas de inclusão racial são inconstitucionais, ilegais e configuram espécie de discriminação negativa, afinal: “[...] o jurista branco, convencido de que a igualdade protege indivíduos e não grupos sociais, declara então a ilegalidade da medida” (MOREIRA, 2019, p. 112). Assim, políticas afirmativas são vistas como assistencialistas ou mesmo discriminatórias. Esse mesmo jurista pode analisar um caso concreto em que se debate claramente o tema do racismo sem tecer qualquer consideração relevante sobre o fenômeno social, posto que, não raramente, as desigualdades da sociedade brasileira são desconectadas das dimensões de classe, de gênero e de raça.
Em síntese, a Hermenêutica Jurídica Branca por Omissão busca, tanto quanto possível, manter a branquitude enquanto um dado invisível da realidade social e, portanto, não passível de consideração dentro dos tribunais brasileiros, assim como tenta negar, por meio do silêncio, as consequências do racismo para a população negra. Afinal, embrenhada de uma perspectiva de justiça individualista, não tem o objetivo de inserir a branquitude enquanto fenômeno social que tem violado, sistematicamente, o ideal de igualdade e de emancipação social presente na Constituição Federal.
Isso posto, é possível afirmar que a principal característica dessa postura hermenêutica é a promoção do apagamento do debate racial, visto que o gozo de direitos e de privilégios pela branquitude é diretamente proporcional ao esforço empreendido para apagar os efeitos de práticas racistas institucionalizadas.
3.1.2. Hermenêutica Jurídica Branca por Comissão
Assim, como na seção anterior, frisa-se que a Hermenêutica Jurídica Branca por Comissão foi agrupada em duas vertentes principais: a) quando o debate racial é inevitável, os efeitos do racismo são minimizados ou deslocados para a má distribuição de recursos materiais5; b) empregam-se técnicas jurídicas imbuídas de critérios objetivos ou neutros para interpretar demandas estruturadas por desigualdades raciais6. Isso posto, tal qual na seção anterior, a partir de pesquisa jurisprudencial limitada aos últimos cinco anos, foram selecionadas decisões que articulam a mesma Hermenêutica Jurídica Branca por Comissão, contudo, a partir de uma nova roupagem.
Nesse sentido, ao tratarmos da primeira categoria, quando o debate racial é inevitável, os efeitos do racismo são minimizados ou deslocados para a má distribuição de recursos materiais, têm-se os seguintes julgados:
a) BRASIL. TRF-5, PROCESSO: 08123598720184058100, APELAÇÃO CRIMINAL, DES. FEDERAL ELIO WANDERLEY DE SIQUEIRA FILHO, 1ª TURMA, JULGAMENTO: 18/02/2021 (Argumentou-se que piadas integram o cotidiano, razão pela qual não podem ser objeto de censura, independente de se dirigirem a grupos majoritários ou minoritários);
b) BRASIL. TJ-RJ, HABEAS CORPUS 0067026-78.2021.8.19.0000, Relator(a): DES. PAULO SERGIO RANGEL DO NASCIMENTO, Publicado em: 10/01/2022 (Argumentou-se que a vontade livre e consciente da paciente era pregar a crença evangélica. Assim, não há de se falar em racismo. Ainda que a paciente tenha dito a uma coletividade de fiéis, durante um culto, que: “É um absurdo pessoas cristãs levantando bandeiras políticas, bandeiras de pessoas pretas, bandeiras de LGBTQIAP+, sei lá quantos símbolos tem isso aí. É uma vergonha.”);
c) BRASIL. Projeto de Lei nº 4125/2021. Altera a Lei 12.711, de 2012, a fim de dispor que as cotas para ingresso nas universidades públicas federais serão destinadas exclusivamente aos estudantes de baixa renda (Argumentou-se que a pobreza não possui cor, razão pela qual ações afirmativas devem ter como critério somente a renda, sob pena de serem inconstitucionais)7.
Quanto à segunda categoria, quando se empregam técnicas jurídicas imbuídas de critérios objetivos ou neutros para interpretar demandas estruturadas por desigualdades raciais, têm-se os seguintes julgados:
a) BRASIL. TJMG. Recurso em Sentido Estrito nº 00966109001. Relator: Guilherme de Azeredo Passos, Belo Horizonte, 04/03/2022 (Argumentou que, ainda que o acusado tenha proferido discurso homofóbico em face das vítimas, não ficou demonstrada a intenção de ofender toda a comunidade LGBTQIAP+, razão pela qual a denúncia por racismo deve ser rejeitada8);
b) BRASIL. TRF-5, PROCESSO: 08123598720184058100, APELAÇÃO CRIMINAL, DES. FEDERAL ELIO WANDERLEY DE SIQUEIRA FILHO, 1ª TURMA, JULGAMENTO: 18/02/2021 (Argumentou que comentários como “Bando de poc que escorre DST pelo suor, sem contar a pobreza da festa dos participantes, parece um monte de rato aglomerado no meio dá merda Bando de trombadinha disfarçados de miliantes, cadê a PM para sentar o cacete neles?” não configuram crime de racismo, posto que “nenhuma das mensagens apontadas invoca a raça ou a cor dos participantes do evento como sendo o motivo da reprovação”);
c) BRASIL. TRF 3ª Região, QUINTA TURMA, Ap. - APELAÇÃO CRIMINAL - 75549 - 0012137-46.2010.4.03.6110, Rel. DES. FEDERAL MAURICIO KATO, julgado em 18/02/2019, e-DJF3 Judicial 1 DATA: 12/03/2019 (Argumentou que a divulgação dos panfletos possuía conteúdo racialista9 e não racista. Assim, diante da ausência do dolo específico, representam atos que não configuram a ação de praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça).
De pronto, retomo a contribuição de Moreira (2017, p. 394) que busca destacar como raça e classe costumam causar confusões estratégias para a branquitude: “Muito inconformado com o pedido, comecei a falar das minhas experiências de subordinação, mas um professor contrário a ações afirmativas alegou que meu relato não poderia ser verídico por causa da minha titulação” (MOREIRA, 2017, p. 394). Tem-se, tal qual em proposta legislativa destacada, a falsa argumentação de que a classe não informa a raça e a raça não informa a classe. Entretanto, conforme preceitua Davis (2016, p. 12): “É preciso compreender que classe informa a raça. Mas raça, também, informa a classe. E gênero informa a classe. Raça é a maneira como a classe é vivida”. Assim, diferentemente da Hermenêutica Jurídica por Omissão, a por Comissão tem o evidente objetivo de atacar a construção social e teórica acerca do racismo.
Em função desse fim, Moreira (2017, p. 408) explica que:
Outros argumentam que eventuais manifestações racistas não expressam um problema estrutural, mas apenas preconceito de classe, o que não compromete a afirmação de que temos uma cultura pública baseada na harmonia racial. Alguns admitem que o racismo existe na nossa sociedade e que é praticado em alguma escala, mas também se recusam a reconhecer que ele possui uma dimensão coletiva e sistêmica. A compreensão do racismo de muitos juristas brancos se limita ao problema do preconceito, o que pode ser eliminado com a afirmação de uma cultura pública da igualdade.
Assim, em razão da dialética rasa entre raça e classe, percebe-se uma postura interpretativa que minimiza os efeitos do racismo e ainda afirma que a raça não pode ser utilizada como um critério jurídico relevante. Em vista do exposto, a Hermenêutica Jurídica Branca por Comissão é capaz de afirmar que a ausência da expressão “raça” em uma fala imbuída de ódio é um dado relevante para descaracterizar a conduta racista ou que a fala dirigida a um indivíduo não é direcionada à coletividade de pessoas a que este pertence, assim não há o animus de ofender uma comunidade sistematicamente marginalizada.
Como já destacado, tais categorias não se articulam isoladamente. Logo, soma-se ao já exposto a tentativa de situar as desigualdades raciais como um elemento não objetivo. O principal caminho para defender tal postura é interpretar o princípio da igualdade a partir de experiências individuais e não coletivas.
Em função disso, práticas racistas são também vistas de modo individualista: a raça só é um elemento relevante na intepretação de casos de discriminação direta10, sendo raramente considerada enquanto um dado estrutural, e, portanto, pensada em demandas que versam sobre o acesso ao mercado de trabalho, a políticas educacionais ou a distribuição de terras.
Nesse sentido: “A solução para os problemas que negros enfrentam requer apenas a neutralização das práticas que impedem que essas pessoas, vistas como indivíduos e não como grupos, possam ter acesso a direitos” (MOREIRA, 2017, p. 398). Destarte, é possível inferir que a Hermenêutica Jurídica Branca por Comissão, sob o aspecto da objetividade, instrumentaliza institutos como o da igualdade formal e de justiça simétrica para promover a perpetuação de desigualdades/privilégios. Dessa forma, “[...] o direito nesse caso, é meio e não fim; o direito é uma tecnologia de controle social utilizada para a consecução de objetivos políticos e para a correção do funcionamento institucional” (ALMEIDA, 2019, p. 75).
O jurista branco deposita na lógica interna do ordenamento jurídico a fé para a resolução de demandas complexas e estruturais, ao mesmo tempo renega a interdisciplinaridade do direito, afinal, o sistema é capaz, por si só, de regular os conflitos do mundo, pensados a partir de indivíduos abstratos (homens, brancos e ricos) e coletividades não relevantes juridicamente.
Outrossim, salienta-se que a Hermenêutica Jurídica por Comissão tem sua gênese em um processo de colonização predominantemente violento e ativo, de modo que a branquitude, além de ser condescendente com essa prática hermenêutica, atua em prol da sua renovação: quer-se dizer com isso que a branquitude tem a sua potência de ação direcionada à manutenção do racismo.
4. Considerações finais
De imediato, é fundamental destacar que a pesquisa jurisprudencial também identificou evidências de que as lutas social, cultural e jurídica antidiscriminatórias têm gerado frutos no interior do sistema de justiça. Exemplo disso são os julgados que reconhecem a inexistência de animus jocandi em falas de cunho racista11, a inexistência do dito racismo reverso e a caracterização de conduta pautada na ideologia da supremacia branca12, a percepção de que normas em tese neutras têm potencial para produzir efeitos práticos sistematicamente prejudiciais a grupos marginalizados, o que viola o princípio da igualdade em sua vertente material13, o fenômeno do racismo estrutural e os benefícios materiais e simbólicos que a população branca usufrui em função do mesmo14.
Ademais, a pesquisa articulou teoria e prática jurídica para demonstrar um campo do Direito Antidiscriminatório a ser questionado: a hermenêutica jurídica da branquitude. Tentou-se trabalhar a categoria conceitual de tal forma que seus horizontes pudessem ser expandidos, razão pela qual foi separada para fins didáticos em hermenêuticas jurídicas da Branquitude por Comissão e por Omissão. Sustenta-se que esse modo de pensar o fenômeno é capaz de promover a identificação de discursos da branquitude no judiciário brasileiro, que são marcados pelo pacto narcísico que conserva, sempre em nova moda, vantagens materiais e simbólicas.
Nesse sentido, um dos principais embates travados neste artigo diz respeito à substituição da imagem do processo hermenêutico propositalmente desatento à realidade social, para a postura interpretativa da branquitude. Assim, neutralidade e objetividade não são características de uma interpretação alheia, mas sim de uma hermenêutica ativamente branca. Retirar a branquitude de seus esconderijos teóricos é tarefa fundamental para a efetividade das instituições do sistema de justiça na inclusão de grupos deliberadamente marginalizados e supressão de privilégios injustificáveis sob a ótica constitucional.
Referências bibliográficas
ALBURQUERQUEI, Fabiane Creistina; CASTRO, Viviane Vidigal. Quem julga aqueles que julgam: o pacto narcísico do judiciário brasileiro e a manutenção dos privilégios da branquitude. Revista Direito. UnB, v. 5, n. 2, mai./ago., p. 183-210, 2021.
ALMEIDA, Gabrielle Oliveira; CORRÊA, Gustavo Hermont. Entre o ébano e o marfim: igualdade como reconhecimento e a heteroidentificação complementar. Revista Joaçaba, v. 1, n. 1, p. 217-244, jan./jun. 2020.
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Polén, 2019.
BENTO, Maria Aparecida Silva. Pactos Narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. São Paulo, Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, 2002.
__________________________. Branquitude - o lado oculto do discurso sobre o negro. Psicologia Social do Racismo. Org. Iray Carone; Maria Aparecida Silva Bento. Petrópolis: Vozes, 2016.
CARDOSO, Lourenço. Branquitude acrítica e crítica: a supremacia racial e o branco anti-racista. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Mazinales, p. 607-630, 2010.
___________________. O branco ante a rebeldia do desejo: um estudo sobre a branquitude no Brasil. Tese de Doutorado. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Araraquara, 2014.
CARONE, Iray. Breve histórico de uma pesquisa psicossocial sobre a questão racial brasileira. Psicologia Social do Racismo. Org. Iray Carone; Maria Aparecida Silva Bento. Petrópolis: Vozes, 2016.
DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. Tradução: Heci Regina Candiani. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2016.
DELGADO, Richard; STEFANCIC, Jean. Teoria Crítica da Raça: uma introdução. 3ª ed. São Paulo: Contracorrente, 2021.
DORANTES, Arturo Guillermo Gonzáles. Hacia uma intepretación analógico-icónica del hombre. Revista Analogia Filosófica, nº 16, México, 2005.
FERNANDES, Luciana Costa; CRUZ, Flavia Machado. Azedo Judicial: discursos e práticas “antirracistas” que aparelham a branquitude. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 13, n.01, p. 142-169, 2022.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II - Complementos e Índice. Tradução: Enio Paulo Giachini. São Paulo: Vozes, 2004.
LANZ, Letícia. O Corpo da Roupa: a pessoa transgênera entre a transgressão e a conformidade com as normas de gênero. Orientadora: Miriam Adelman. Dissertação (Mestrado) - Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Pará, 2014. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/36800. Acesso em: 17 jan. 2023.
LIXA, Ivone Fernandes Morcilo; SPAREMBERGER; Raquel Fabiana. Crítica decolonial e ressignificação hermenêutica desde o constitucionalismo contemporâneo. Revista Culturas Jurídicas, v. 08, n. 20, mai./ago., 2021. Disponível em: https://periodicos.uff.br/culturasjuridicas/article/view/52374/30477. Acesso em: 02 jan. 2023.
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. São Paulo: N-1, 2018.
MOREIRA, José Adilson. Pensando como um Negro: ensaio de hermenêutica jurídica. Revista de Direito Brasileira. São Paulo, v. 18, n. 07, p. 393-421, set./dez., 2017.
___________________. Racismo Recreativo. São Paulo: Sueli Carneiro; Polén, 2019.
___________________. Pensando como um Negro: ensaio de hermenêutica jurídica. São Paulo: Contracorrente, 2019.
____________________. Tratado de Direito Antidiscriminatório. São Paulo: Contracorrente, 2020.
PEREIRA, Paulo Fernando Soares; VIANA, Thiago Gomes; SEREJO, Jorge Alberto Mendes. Negro de alma branca? A guinada hermenêutica acerca da injúria racial no STJ e STF. Revista Direito. UnB, v. 5, n. 3, set./dez., p. 153-190, 2021.
RIOS, Roger Raupp. Tramas e interconexões no Supremo Tribunal Federal: antidiscriminação, gênero e sexualidade. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, vol. 11, n. 2, p. 1332-157, 2020. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/50276. Acesso em: 12 set. 2022.
SOUZA, Antônio Carlos Rocha. Racialismo e antirracismo no pensamento social brasileiro. Uma proposta de análise. Sinais - Revista Eletrônica. n. 13, Junho, 2013.
SCHUCMAN, Lia Vainer. Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. São Paulo: Annablume, 2015.
WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
Notes