Artigos inéditos

A produção discursiva da identidade e da diferença: contribuições pós-estruturalistas para pensar o direito

The discursive production of identity and difference: post-structuralist contributions to thinking about law

Dailor Sartori
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Brasil
Fernanda Frizzo Bragato
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Brasil

A produção discursiva da identidade e da diferença: contribuições pós-estruturalistas para pensar o direito

Revista Direito e Práxis, vol. 15, no. 4, e73873, 2024

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Received: 02 March 2023

Accepted: 25 August 2023

Resumo: O artigo revisita a trajetória teórica e epistemológica do pós-estruturalismo e movimentos decorrentes sobre a produção discursiva da identidade e da diferença, com o objetivo de oferecer outras ferramentas de análise das demandas concretas de sujeitos e grupos por reconhecimento e direitos na atualidade. Ao focar na práxis e nas estratégias discursivas dos sujeitos racializados, generificados e hifenizados, percebe-se que tal abordagem contribui para identificar e problematizar opressões muitas vezes alheias à gramática tradicional do direito oficial.

Palavras-chave: Identidade, Diferença, Discurso, Pós-estruturalismo.

Abstract: The article revisits the theoretical and epistemological trajectory of post-structuralism and resulting movements on the discursive production of identity and difference, with the aim of offering other tools for analyzing the concrete demands of subjects and groups for recognition and rights today. By focusing on the praxis and discursive strategies of racialized, gendered and hyphenated subjects, it is clear that such an approach contributes to identifying and problematizing oppressions that are often unfamiliar to the traditional grammar of official law.

Keywords: Identity, Difference, Discurse, Post structuralism, Recognition.

Introdução

Sociedades contemporâneas são marcadas pela diferença que se expressa nos fenômenos da pluralidade, diversidade cultural, minorias, multiculturalismo e outros termos. Nesse contexto, sujeitos e grupos demandam o reconhecimento do direito de viver de acordo com suas preferências, visões de mundo e condição pessoal, sem discriminação. Não se trata de reivindicar o direito de ser igual, mas o de ser respeitado nas suas diferenças.

As demandas por diferença não têm apenas crescido e obtido reconhecimento, mas têm se articulado em termos de direitos humanos e apelado a diferentes concepções de dignidade humana que dão ensejo à necessidade de respeito e consideração. Porém, esse movimento não encontra respaldo teórico suficiente no arcabouço jusfilosófico da euromodernidade que tem inspirado a criação e a aplicação do Direito oficial.

O Direito liberal, ao prometer o mesmo tratamento a todos, consolidou um projeto político de assimilação a um modelo único por meio do qual sujeitos e grupos desconformes ao padrão hegemônico sofrem um duplo efeito: ou permanecem sistematicamente subordinados e discriminados, ou necessitam equiparar-se aos grupos dominantes para fins de obtenção da proteção jurídica. Por outro lado, há extensa contribuição teórica e epistemológica em outros campos, os quais podem contribuir para a mudança de perspectiva do direito ao lidar com demandas atuais de reconhecimento.

Neste sentido, séculos de afirmação do sujeito racional e autoconsciente da Modernidade, que observa, controla e explora o mundo a sua volta, embora tenha definido as bases do Estado e as categorias do direito ocidental moderno, incluindo os direitos humanos de matriz liberal, não foram suficientes para isentá-lo de uma crítica filosófica e epistêmica profunda iniciada ainda no século XX, a partir da virada linguística, que influenciou a perspectiva estruturalista e, principalmente, a pós-estruturalista.

Partindo da teoria linguística de Saussure e Jakobs, da filosofia de Nietzsche e da psicanálise do inconsciente de Freud, o pós-estruturalismo permitiu questionar a postura liberal e estática da diversidade e teorizar sobre a produção discursiva da identidade e da diferença como relações sociais sujeitas a vetores de força e a relações de poder, além do contexto sócio-histórico em que enunciadas. Por sua vez, tomando este arcabouço teórico e epistêmico e aplicando-o a movimentos sociais e demandas concretas do mundo atual, o feminismo negro, os estudos queer, a teoria pós-colonial e o pensamento descolonial são exemplos de esforços teóricos e politicamente comprometidos de compreender as dinâmicas da produção discursiva da identidade e da diferença e lidar com suas consequências concretas.

A partir desse contexto, o artigo busca revisitar a trajetória teórica e epistemológica do pós-estruturalismo e da produção discursiva da identidade e da diferença, afastando-se de uma perspectiva que as toma como essências ou dados da realidade, com o objetivo de oferecer outras ferramentas de análise das demandas concretas de sujeitos e grupos por reconhecimento na atualidade.

De início, o artigo apresenta a perspectiva pós-estruturalista e sua crítica ao sujeito moderno autoconsciente. Após, parte para uma análise do funcionamento do discurso que produz, classifica e hierarquiza identidades, mas que também permite subverter e resistir ao jogo das identidades hegemônicas normalizadas. Por fim, apresenta e problematiza algumas dinâmicas discursivas de que se valem estrategicamente os próprios sujeitos e grupos na busca por reconhecimento e garantia de direitos.

1. As novas questões pós-estruturalistas na crítica ao sujeito moderno autoconsciente

O estruturalismo e, principalmente, o seu pós, enquanto movimentos constituídos a partir da virada linguística, movimentaram as ciências sociais e outros campos da investigação científica de modo bastante relevante para a compreensão dos fenômenos da identidade e da diferença. Tomando os próprios conceitos de identidade e de diferença como sistemas de significação produzidos pelo discurso, e não mais como dados da realidade previamente existentes, possibilitaram uma série de questionamentos e novas compreensões sobre temas como discriminação, relações de poder, gênero, corpo, raça e nacionalidade, especialmente relevantes para a teoria e a prática dos direitos humanos na atualidade (PETERS, 2000).

Justamente por terem origem na linguística estrutural da virada do século XIX para o XX que ambos os movimentos produziram uma crítica ferrenha do sujeito moderno da tradição humanista liberal. Isso porque nada existe a priori no mundo para ser capturado pela razão de um sujeito livre e consciente, mas, antes, tudo é produzido pelo discurso, inclusive o próprio sujeito moderno eurocentrado, cuja identidade é tomada como o normal e nunca problematizada.

Mas qual a contribuição da virada linguística? O linguista suíço Ferdinand de Saussure compreendia a linguagem como um sistema de significação. Sua obra Cours de Linguistique Générale, de 1916, considerada base do desenvolvimento do estruturalismo, procurou distinguir uma abordagem científica, formal e sincrônica da língua (la langue), de uma abordagem histórica e diacrônica da fala real (la parole) (SAUSSURE, 2006, p. 17).

A partir daí, Saussure vai dizer que a palavra é um signo arbitrário, e não causal, em relação ao que pretende significar. Portanto, ela funciona apenas no próprio sistema de que faz parte. Os signos de uma língua, ou seja, os sinais ou fonemas não dizem nada por si sós, não são essências, eles só adquirem sentido em uma cadeia de outras marcas gráficas ou fonéticas diferentes que funcionam como referência do que aquela palavra não é (SAUSSURE, 2006).

Roman Jakobson, o primeiro a utilizar o termo “estruturalismo”, em 1929, propôs uma abordagem estruturo-funcional da investigação científica dos fenômenos, revelando as relações e leis internas de um sistema e não apenas os estímulos externos. Assim, a concepção mecânica dos processos dá lugar à pergunta sobre suas funções, e esta perspectiva passa a ser a base da ciência na época (PETERS, 2000, p. 20).

Posteriormente, o encontro com Jakobson, nos anos 40, permitiu a Claude Lévi-Strauss aliar linguística estrutural com etnologia, elaborando a noção de estrutura inconsciente. Sua ideia era extrair princípios válidos a outros costumes e instituições a partir do estudo etnográfico de uma comunidade. Mais tarde, Lévi-Strauss vai dizer que a antropologia é um ramo da semiologia, porque termos como os de parentesco são elementos de significação e só são porque integrados em sistemas “[...] elaborados pelo espírito no estágio do pensamento inconsciente” (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 13).

A noção de estrutura inconsciente serviria de base para sua obra “Antropologia estrutural”, de 1958, impulsionando o estruturalismo francês da década de 60, com contribuições de Michel Foucault, Jean Piaget, Louis Althusser, Roland Barthes, Jacques Lacan e outros. As contribuições destes autores foram bastante diversas entre si, ao ponto de Foucault não se ver como estruturalista, embora seu principal interesse, o problema do sujeito e sua reformulação, fosse um ponto em comum da crítica estruturalista ao sujeito moderno (FOUCAULT, 2005, p. 323). Porém, tomar a estrutura como sistema de relações com leis internas e autorregulação levou a um excesso de cientificismo, transformando o estruturalismo em um megaparadigma que seria, neste ponto, a base da crítica do pós-estruturalismo ao seu movimento antecessor.

O pós-estruturalismo, portanto, pode ser entendido como uma forma de pensamento que se constitui como contraponto à rigidez e à pretensa totalidade do estruturalismo. Ou seja: ele questiona o racionalismo científico do estruturalismo e sua herança do positivismo de progresso e de formação de leis universais sobre culturas. Mesmo assim, também carrega a crítica ao humanismo do pensamento liberal europeu, que colocava o sujeito no centro da análise e da teoria, vendo-o como a origem e a fonte do pensamento e da ação, e também é inseparável da tradição da linguística de Saussure e de Jakobson, mas sem afirmar que os sujeitos são meros portadores de estruturas (PETERS, 2000, p. 36).

Provavelmente, sua maior influência tenha sido a recepção francesa da vontade de potência e da vontade de saber de Nietzsche, e as leituras de Derrida, Deleuze, Foucault e Heidegger sobre o filósofo. Ao romper com a filosofia da consciência, Nietzsche critica a ideia de verdade e ressalta a pluralidade de interpretação, posição epistemológica que recusa ver o conhecimento como representação precisa da realidade e se nega a conceber a verdade em termos de uma correspondência exata com a realidade. Isto porque, antes de estar preso a estruturas:

[...] o sujeito do pós-estruturalismo é visto, em termos concretos, como corporificado e generificado, um ser temporal que chega, fisiologicamente falando, à vida e enfrenta a morte e extinção como corpo, mas que é, entretanto, infinitamente maleável e flexível, estando submetido às práticas e às estratégias de normalização e individualização que caracterizam as instituições modernas. [...] seguindo a crítica da filosofia liberal feita por Nietzsche, eles descrevem o sujeito em toda sua complexidade histórica e cultural - um sujeito ‘descentrado’ e dependente do sistema linguístico, um sujeito discursivamente constituído e posicionado na intersecção entre as forças libidinais e as práticas socioculturais. (PETERS, 2000, p. 32-33).

Assim, não há sujeito autônomo, mas em constante assujeitamento por parte das forças externas e sócio-históricas que constrangem e governam o comportamento1. A partir disso, são pensadas novas formas de análise nas ciências sociais, como a genealogia, a semioanálise, a desconstrução e a arqueologia, frequentemente utilizadas para criticar instituições modernas específicas (família, Estado, prisão, clínica, escola, fábrica).

As narrativas genealógicas substituem a ontologia, ou seja, a verificação dos elementos essenciais e intrínsecos de algo, ou, ainda mais preciso, as questões de ontologia se tornam historicizadas. Deste modo, outra contribuição do pós-estruturalismo é que essa crítica situada e engajada dos valores iluministas, e também da gramática liberal dos direitos humanos, representa um aprofundamento da noção de democracia, pois busca desconstruir a produção discursiva das oposições binárias que marcam a identidade política nas democracias liberais modernas (nós/eles, cidadão/não cidadão, legítimo/ilegítimo) e que tem como efeito produzir hierarquias e excluir sujeitos e grupos do acesso igualitário a direitos.

Estas hierarquias são resultado de relações de poder que movimentam os discursos, produzindo o que é considerado normal e o que é anormal. Assim, juntamente com as filosofias da diferença, é marcante também a contribuição da analítica do poder feita por Michel Foucault, a partir do diagnóstico das estruturas de saber-poder e da denúncia das tecnologias de dominação que operam para além do aparato repressivo estatal ou mesmo da intencionalidade dos agentes (FOUCAULT, 2010).

Com as democracias parlamentares do século XVIII e com os processos da sociedade capitalista industrial, tomam-se tempo e trabalho mais do que bens e riquezas das pessoas, ou seja, o poder é inscrito sobre os corpos. Se a teoria moderna da soberania toma como foco a existência física do soberano, o poder para Foucault passou para sistemas contínuos e permanentes de vigilância sobre a vida, essenciais ao capitalismo industrial (FOUCAULT, 2010, p. 32).

O poder que se manifestava pela força do direito de decidir sobre a vida e a morte passa a um tipo de poder que se manifesta por meio de medidas de gestão da vida, chamado biopoder, que irá se manifestar de duas formas: como poder disciplinar, sobre o corpo do indivíduo, tomado como o objeto de intervenção; e pela biopolítica, que toma o corpo como espécie, transpassado pela mecânica da vida e suporte de processos biológicos, como o nascimento, a procriação, a morte, a doença e a longevidade (FONSECA, 2012, p. 75). A mudança de perspectiva proposta por Foucault perpassa algumas precauções de método: tomar o poder onde ele se torna capilar e não nas suas formas regulamentadas; não analisar o poder no nível da intenção, ou de quem o detém, mas como as coisas acontecem na sujeição, estudando os corpos periféricos dos “súditos”; não tomar o poder como de um sobre o outro, mas como algo que funciona em cadeia, que transita pelos indivíduos; e compreender que há todo um saber que fundamenta o poder em seus mecanismos finos (FOUCAULT, 2010). Esta forma de conceituar e problematizar o poder, para além da centralidade do Estado e da repressão oficial, abre uma série de possibilidades de investigação sobre opressões e violências simbólicas baseadas na diferença.

Em síntese, é importante ressaltar que os efeitos teóricos do trabalho da primeira geração pós-estruturalista, com Foucault, Derrida, Deleuze e Lyotard, são evidentes em uma série de disciplinas, incluindo a filosofia, a sociologia, a política e os estudos culturais. A partir da terceira geração, o pós-estruturalismo deixa de ser apenas francês, e influencia teorias e movimentos mundo afora, ainda mais situados e concretos, como o feminismo negro, o pós-colonialismo, o pensamento descolonial, os estudos queer, dentre outros. Por isso, também podem ser compreendidas como teorias pós-críticas (SILVA, 2016).

A partir de problematizações interdisciplinares, aliadas a uma práxis do sujeito concreto, estes movimentos vão possibilitar compreender a produção discursiva da identidade e da diferença baseada em marcadores como raça, gênero e sexualidade, e a denunciar como arbitrárias as hierarquias produzidas entre estes sujeitos, cujo resultado são opressões diversas e difíceis de serem enfrentadas pelo aparato teórico e jurídico de que dispomos.

2. Nomear, classificar e normalizar: as dinâmicas discursivas da produção da identidade e da diferença

A identidade como algo fixo, ligada à ideia de não mudar, prevaleceu no pensamento filosófico sobre a diferença, pois tudo que existe deve ter um atributo de reconhecimento pela razão humana. A diferença total se transforma em uma oposição, portanto é preferível um mundo estável em relação às coisas e às pessoas. Ou seja: a preferência pela identidade é postura pragmática e conveniente diante da complexidade do mundo.

Nas discussões contemporâneas, identidade e diferença têm sido acionadas para representar os problemas do mundo atual, e entraram no debate político a partir da ideia de multiculturalismo (SILVA, 2000, p. 73). Em geral, o termo multiculturalismo diz respeito a um vago e benevolente apelo à tolerância e ao respeito para com a diversidade e às diferenças previamente existentes no mundo. No início dos anos 2000, na efervescência dos debates sobre universalismo, Seyla Benhabib denominava essa abordagem de “sociologia reducionista da cultura” e afirmava que o debate da época na filosofia política e jurídica - que ainda persiste em grande medida - estava dominado por essa falsa epistemologia, gerando graves consequências político-normativas sobre opressões e reparações (BENHABIB, 2006, p. 28).

Mas será que as questões da identidade e da diferença se esgotam nessa posição estática e liberal? Segundo sugere Tomaz Tadeu da Silva, a melhor ótica é focarmos na sua produção:

Ver a identidade e a diferença como uma questão de produção significa tratar as relações entre as diferentes culturas não como uma questão de consenso, de diálogo ou de comunicação, mas como uma questão que envolve, fundamentalmente, relações de poder. (SILVA, 2000, p. 96).

Já sabemos que a perspectiva pós-estruturalista é justamente uma das que permitiu questionar a postura liberal e estática da diversidade e teorizar sobre a produção da identidade e da diferença como relações sociais sujeitas a vetores de força, a relações de poder e ao contexto sócio-histórico em que enunciadas.

A socióloga Avtar Brah vai no mesmo sentido. Para ela, a identidade pode ser entendida como o processo pelo qual a multiplicidade, a contradição e a instabilidade da subjetividade é significada como tendo certa coerência e estabilidade, ou seja, como tendo um núcleo instável, mas que a qualquer momento é enunciado como o “eu”. Porém, identidades são marcadas pela multiplicidade de posições de sujeito que as constituem, logo não são fixas nem singulares:

[...] se a identidade é um processo, então é problemático falar de uma identidade existente como se ela estivesse sempre já constituída. É mais apropriado falar de discursos, matrizes de significado e memórias históricas que, uma vez em circulação, podem formar a base de identificação num dado contexto econômico, cultural e político. (BRAH, 2006, p. 372).

A identidade também pode ser coletiva, quando experiências comuns em torno de eixos específicos de diferenciação - raça, classe, religião, por exemplo - são investidas de significados particulares e também estabilizados. Ocorre que sempre existe uma supressão parcial das diferenças internas de um grupo que se constitui enquanto tal, o que em certa medida é aceito por conta das vantagens políticas alcançadas.

O conceito de diferença, então, refere-se à variedade de maneiras como discursos específicos da diferença são constituídos, contestados, reproduzidos e ressignificados: algumas dessas construções, como o racismo, tratam de fronteiras fixas e imutáveis entre grupos tidos como inerentemente diferentes. Outras construções apresentam a diferença como relacional, contingente e variável. Em outras palavras, a diferença não é sempre um marcador de hierarquia e opressão. Portanto, “[...] é uma questão contextualmente contingente saber se a diferença resulta em desigualdade, exploração e opressão ou em igualitarismo, diversidade e formas democráticas de agência política” (BRAH, 2006, p. 374). Mas, antes de tratar de dinâmicas políticas da identidade e da diferença, vale partir ainda mais do início de tais operações discursivas.

Pelo senso comum, a identidade e a diferença são vistas como naturalmente determinadas, autorreferenciadas e simplesmente existentes, ou seja, como dados ou fatos da vida aos quais devemos tomar posição. Além disso, tomamos a diferença como produto da identidade, que é vista como a norma pela qual descrevemos, classificamos e avaliamos aquilo que não somos (SILVA, 2000, p. 73).

Porém, é possível compreender esta relação de outra forma, na qual ambas são criadas por atos de linguagem que ativamente as produzem como tais. Neste ponto de vista, é a diferença que vem primeiro. Isto porque elas estão sujeitas a certas propriedades gerais da linguagem, que é entendida por Saussure como um sistema de diferenças. Assim, ser algo significa não ser outra coisa, e assim sucessivamente em uma cadeia de diferenciação linguística (SAUSSURE, 2006).

Por exemplo: afirmar-se como latino-americano esconde na mesma sentença uma série de diferenciações que necessariamente compõem o que se entende como essa identidade. Ser latino-americano significa, antes, que não se é europeu nem estadunidense, e assim por diante. Não há uma identidade prévia e natural: ela é produzida por uma operação linguística a partir do encontro ou do estabelecimento das diferenças.

Aqui, a ideia de diferença aparece não como o resultado da identidade, mas com processo básico de funcionamento da língua e, por extensão, de instituições culturais e sociais. Sendo assim, a “[...] identidade e a diferença não podem ser compreendidas, pois, fora dos sistemas de significação nos quais adquirem sentido” (SILVA, 2000, p. 78).

A famosa passagem em que Franz Fanon narra sua autodescoberta como homem negro na obra “Pele negra, máscaras brancas” (2008), quando o menino francês se refere a ele como preto e em seguida sente medo, é bastante ilustrativa desse processo. É o contato com o Outro colonial e seu discurso que desperta a afirmação posterior de uma identidade, mesmo que imposta pelo preconceito: “Desde que era impossível livrar-me de um complexo inato, decidi me afirmar como Negro. Uma vez que o outro hesitava em me reconhecer, só havia uma solução: fazer-me conhecer” (FANON, 2008, p. 108).

Porém, os sistemas discursivos e simbólicos não determinam identidades e diferenças de maneira definitiva, pois a linguagem é uma estrutura instável que constantemente vacila. Jacques Derrida alertou para isso: o signo é uma marca, um traço que está no lugar de outra coisa, que pode ser um objeto concreto, um conceito ligado a esse objeto ou um conceito abstrato. Porém, o signo não é presença, não é a coisa ou o próprio conceito, é apenas um signo dentro de um sistema de referências.

Entretanto, tendemos a sempre enxergar a presença do referente no signo, justamente para que ele funcione. Mas essa presença é apenas uma promessa indefinidamente adiada, nunca é plena, o que obriga o constante processo de diferenciação do signo. Esta dinâmica linguística é chamada por Derrida de metafísica da presença. Isto é, a compreensão de que o signo tem o traço do que ele substitui, mas também tem o traço do que ele não é, ou seja, da diferença. Assim, Derrida vai sintetizar no conceito de différance os conceitos de diferimento (adiamento da presença) e de diferença (relativamente a outros signos) (DERRIDA, 2001).

Isto é particularmente relevante para as identidades e diferenças culturais, pois, como possuem parte da sua formação no processo básico da linguagem, pode-se dizer que toda identidade contém em si o traço do Outro. Em outras palavras, a mesmidade porta sempre consigo o traço da outridade (SILVA, 2000, p. 79).

Voltemos à cena de Fanon: o que se segue daquele encontro é a percepção de Fanon sobre a imagem negativa carregada pelo negro na França e sua náusea existencial, cuja “acusação” do menino é apenas a expressão impulsiva de discursos prévios do branco sobre o negro, exercendo o poder de defini-lo e, assim, hierarquizá-lo:

Enquanto o negro estiver em casa não precisará, salvo por ocasião de pequenas lutas intestinas, confirmar seu ser diante de um outro. [...] Pois o negro não tem mais de ser negro, mas sê-lo diante do branco. Alguns meterão na cabeça que devem nos lembrar que a situação tem um duplo sentido. Respondemos que não é verdade. Aos olhos do branco, o negro não tem resistência ontológica. De um dia para o outro, os pretos tiveram de se situar diante de dois sistemas de referência. Sua metafísica ou, menos pretensiosamente, seus costumes e instâncias de referência foram abolidos porque estavam em contradição com uma civilização que não conheciam e que lhes foi imposta. (FANON, 2008, p. 103-105).

Isto se deve ao fato de que a identidade e a diferença são relações sociais e, portanto, marcadas por relações de poder. Assim, onde existe diferenciação, existe o poder em disputa, pois além de produzir identidade/diferença, a diferenciação carrega consigo outros processos, tais como incluir/excluir, demarcar fronteiras, classificar e normalizar. Com explica Silva:

A afirmação da identidade e a enunciação da diferença traduzem o desejo dos diferentes grupos sociais, assimetricamente situados, de garantir o acesso privilegiado aos bens sociais. A identidade e a diferença estão, pois, em estreita conexão com relações de poder. O poder de definir a identidade e de marcar a diferença não pode ser separado das relações mais amplas de poder. A identidade e a diferença não são, nunca, inocentes. (SILVA, 2000, p. 81).

Na cena narrada por Fanon, a relação de poder que permite a enunciação do negro como diferente da norma e dotado de características negativas é o racismo inerente às experiências coloniais. Mas a classificação, que nada mais é do que a divisão do mundo social entre “nós” e “eles”, é processo anterior e mais sutil do que a relação de administração metrópole/colônia.

A classificação é sempre feita do ponto de vista da identidade, portanto, os agrupamentos resultantes não são simétricos. Assim, a classificação também significa hierarquizar, ou seja, “[...] deter o privilégio de classificar significa também deter o privilégio de atribuir diferentes valores aos grupos assim classificados” (SILVA, 2000, p. 82).

A forma mais comum de classificar grupos e pessoas e estabelecer hierarquias é através de oposições binárias, nas quais um dos termos é privilegiado de forma arbitrária, recebendo um valor positivo, enquanto o outro recebe uma carga negativa. São exemplos conhecidos da vida social as oposições masculino/feminino, branco/negro, heterossexual/homossexual, nacional/estrangeiro e cidadão/não cidadão (SILVA, 2000, p. 82).

Longe de reportar a realidade, a primeira identidade de cada binômio é produzida como normal, natural e desejável, ao ponto que sequer é vista como uma identidade, mas como “a” identidade que serve como parâmetro em relação ao qual as outras são marcadas como diferentes. Este processo sutil de tornar uma identidade como o padrão pode ser chamado de normalização (SILVA, 2000, p. 83).

Neste sentido, por não enxergarmos ou questionarmos a identidade normalizada, Tomaz Tadeu da Silva afirma que “[a] força homogeneizadora da identidade normal é diretamente proporcional a sua invisibilidade” (SILVA, 2000, p 83). Vejamos o exemplo de duas conhecidas oposições binárias, heterossexual/homossexual e branco/negro: como o heterossexual é a norma tornada invisível, a preocupação, a crítica e o escrutínio públicos são dirigidos apenas às outras formas de expressão da sexualidade, e sempre de forma negativa. É apenas o homossexual, dentre outras identidades tidas como anormais, que tem sua sexualidade vigiada e problematizada, embora isto seja completamente arbitrário.

Da mesma forma, o branco não é tomado como raça (no sentido social), apenas o negro e os outros sujeitos que se afastam da norma, o que mantém privilégios das mais diversas ordens: desde preferências estéticas até a tranquilidade de andar pelas ruas sem medo da violência policial. Ou seja: quanto mais afastadas da norma, mais as outras identidades são marcadas como desviantes, ou como o diferente estigmatizado que possibilita a identidade hegemônica ser tomada como positiva.

A presença do Outro na identidade hegemônica invisibilizada como tal e sua normalização foi bastante trabalhada pelos estudos pós-coloniais2. Com a obra seminal “Orientalismo”, de 1978, Edward Said procurou demonstrar como o Ocidente fabricou ao longo do tempo uma visão estereotipada do Oriente, tanto através de uma disciplina literal de especialistas, o orientalismo acadêmico, como pela construção de imaginários, sonhos e vocabulários essencialistas, o orientalismo imaginário, que fundamentaram um sistema de dominação político, sociológico, militar e ideológico do Oriente pelo Ocidente (SAID, 2007).

O orientalismo, portanto, seria um modo de abordar o Oriente que possui como fundamento o lugar especial que o Oriente ocupa na experiência ocidental europeia. Neste lugar, as coisas orientais são colocadas na aula, no tribunal, na prisão e no manual, para escrutínio, estudo, julgamento, disciplina e consequente dominação (SAID, 2007, p. 74). Porém, mesmo com os movimentos de descolonização formal do século XX, o orientalismo permaneceu enquanto disciplina, bem como pelos imaginários reproduzidos na literatura, no cinema e nos meios acadêmicos do Ocidente (SAID, 2007, p. 162-163).

Já Albert Memmi, tunisiano que viveu durante a dominação colonial francesa, procurou descrever, na obra “Retrato do colonizado, precedida do retrato do colonizador”, de 1957, os dois protagonistas do fracasso do fato colonial e as relações estabelecidas entre ambos para a formação destas identidades interdependentes. Memmi questionou os estereótipos construídos sobre o colonizado e demonstrou como a diferença é constitutiva da identidade hegemônica do colonizador:

Assim como a burguesia propõe uma imagem do proletário, a existência do colonizador demanda e impõe uma imagem do colonizado. Álibis sem os quais o comportamento do colonizador e do burguês, suas próprias existências, pareceriam escandalosos. Mas expomos a mistificação porque lhes convém bastante bem. (MEMMI, 2007 p. 117).

Para além das dinâmicas coloniais, a tendência da linguagem é a de fixar a identidade, mesmo que esse processo esteja sempre escapando, como vimos no adiamento da presença do significado no signo pelo conceito de différance de Derrida (DERRIDA, 2001). Neste sentido, há várias dinâmicas de fixação e de não fixação que operam sobre a identidade e a diferença, que em geral refletem essencialismos culturais.

Por exemplo, o argumento biológico opera fortemente sobre a identidade de gênero, fixando o masculino, cisgênero e heterossexual como norma, mas não possui a mesma influência sobre a identidade nacional. Nestas, é o processo de criação de mitos fundadores, de laços imaginários que ligam pessoas entre si que operam para a produção de identidades nacionais. É o que Benedict Anderson chamou de “comunidades imaginárias” (ANDERSON, 2008). Como são interpretações que tendem a fixar a identidade, os mitos são exemplos de essencialismos culturais.

Este processo é visível também nos países de passado colonial. A estruturação das sociedades latino-americanas, após as independências, manteve elites criollas reproduzindo a dominação colonial internamente, numa espécie de colonialismo interno (GONZÁLEZ CASANOVA, 2006), e impedindo a inclusão da população negra e indígena escravizada, a não ser pela assimilação e pela fixação de símbolos culturais essencializados. Em países latino-americanos, incluindo o Brasil, o sentimento de nação e a criação de um imaginário coletivo nacionalista pós-independência ficou restrito às classes privilegiadas, cujas narrativas sobre a nação, inclusive literárias, não consideraram os indígenas, os negros e coletividades nativas locais como sujeitos coletivos que constroem e disputam os significados e os limites da nacionalidade (HASHIZUME, 2013).

Porém, onde há poder, há resistência (FOUCAULT, 2010). Isto é, se a tendência da linguagem é a fixação da identidade, também operam processos de subversão e de desestabilização dessas identidades hegemônicas normalizadas por relações de poder, a partir das histórias de desenraizamento e de reterritorializações vivenciadas por sujeitos e grupos concretos, como se passa a abordar no tópico seguinte.

3. Subvertendo e desestabilizando o jogo das identidades hegemônicas

O contato direto com as experiências de fronteira de sujeitos hifenizados, ambivalentes e híbridos, vai possibilitar à teoria cultural de base pós-estruturalista desenvolver conceitos para lidar com o movimento, com a viagem e com o deslocamento, tais como hibridez, diáspora, nomadismo e mestiçagem (SILVA, 2000, p. 86). A hibridez, por exemplo, confunde a suposta pureza das identidades nacionais e busca compreender de forma mais adequada os fenômenos culturais contemporâneos, a partir do deslocamento da discussão sobre diversidade cultural, marcadamente estática e liberal, para a diferença cultural, que denota a introdução de um espaço cultural híbrido e fluido (SILVA, 2000, p. 87).

O crítico indo-britânico Homi Bhabha, ele próprio um intelectual diaspórico que viveu o trânsito entre culturas, trabalhou com o hibridismo na sua obra “O local da cultura”, de 1994, dentro da perspectiva dos estudos pós-coloniais. Bhabha procurou superar os binarismos e as identidades essencialistas, dizendo que a cultura está justamente no entre-lugar que surge das experiências concretas dos sujeitos (BHABHA, 2018).

Influenciado pela teoria semiótica, Bhabha também vai utilizar o conceito de terceiro espaço. A produção de sentido de um ato comunicativo nunca se realiza na relação simples de um eu com um você, mas supõe, ao contrário, a presença implícita de um terceiro espaço, que representa as condições gerais da linguagem e uma estratégia performativa. Assim, o terceiro espaço não é mera síntese do eu e do outro, mas um local produtivo e diferente em que tais sujeitos são forjados (BHABHA, 2018).

A representação da identidade é um processo que depende do lócus de enunciação de quem fala, que, aliás, nunca é hermético e homogêneo, mas composto por ideologias e valores socioculturais heterogêneos e instáveis. É por este motivo que não se trata de um processo simétrico: reflete relações de poder e identidades assimetricamente situadas, ou seja, a hibridização é forçada por experiências de dominação. Apesar disso, como alerta Tomaz Tadeu da Silva, “[o] ‘terceiro espaço’ (Bhabha, 1996) que resulta da hibridização não é determinado, nunca, unilateralmente pela identidade hegemônica: ele introduz uma diferença que constitui a possibilidade de seu questionamento” (SILVA, 2000, p. 87).

Mas os movimentos demográficos do hibridismo podem ser literais ou metafóricos. Assim, “cruzar fronteiras”, estar nelas ou sequer tê-las também pode significar mover-se entre os territórios simbólicos de diferentes identidades fixadas, tanto nas suas subversões quanto nas suas contradições. É o caso das identidades trans, por exemplo, que desestabilizam as certezas culturais sobre o gênero e o sexo, colocando em xeque a falsa necessidade de correlação entre o sexo, o gênero e a sexualidade (inteligibilidade), e trazendo luz para o fato de que estes elementos também são construções produzidas no e pelo discurso (BUTLER, 2010). Ao fazê-lo, contudo, não operam “fora” das normas binária, cisgênera e heterossexual, mas em relação a elas, podendo, inclusive, reforçá-las em alguma medida. O fato de pessoas trans geralmente se identificarem, em pontos de chegada, como homens ou mulheres, neste sentido, pode ser lido como um reforço aos binarismos de gênero, ao mesmo tempo em que desestabilizam o que se compreende por ser homem ou mulher (RESADORI, 2021)3.

Salienta-se, ainda, que a não conformação às normas de gênero pode se dar em gradientes diversos, gerando maior ou menor exclusão das sujeitas. Neste sentido, as pessoas trans que se submeteram a cirurgias de transgenitalização circulam mais perto da norma de inteligibilidade do que as que não se operaram, e essas estão mais próximas da norma do que as travestis. Muitas vezes, a aproximação a essas normas se dá de forma estratégica, de modo a permitir acionar direitos ou mesmo circular numa quase-invisibilidade, que lhes garante a inclusão na vida social (RESADORI, 2021).

Outra desestabilização se refere ao conceito de representação utilizado pela teoria cultural e não no sentido clássico da filosofia ocidental, uma vez que, já sabemos, identidade e diferença estão ligadas a sistemas de significação que atribuem sentido a elas; não são essências aguardando descrição. Se deixadas de lado as concepções internas da consciência, mantendo-se apenas a representação como significante externo - texto, filme, pintura, etc. - e se incorporadas as características de indeterminação, ambiguidade e instabilidade atribuídas à linguagem, é possível um conceito pós-estruturalista de representação:

Aqui, a representação não aloja a presença do “real” ou do significado. A representação não é simplesmente um meio transparente de expressão de algum suposto referente. Em vez disso, a representação é, como qualquer sistema de significação, uma forma de atribuição de sentido. Como tal, a representação é um sistema lingüístico e cultural: arbitrário, indeterminado e estreitamente ligado a relações de poder. (SILVA, 2000, p. 91).

Deste modo, é a partir da representação que identidade e diferença adquirem sentido e passam a existir. Representar significa dizer “essa é a identidade”, “a identidade é isso”, o que nos leva de volta às relações de poder que permitem alguns sujeitos e grupos deter o privilégio de definir a identidade, normalizá-la e marcar a diferença como desviante. A desestabilização ocorre quando questionamos os sistemas de representação que dão suporte e sustentação às identidades e diferenças, como a crítica a termos discriminatórios ou essencialistas baseados na raça e no gênero, por exemplo.

O problema da noção de representação é confundirmos a produção da identidade e da diferença como atos de simples fixação e descrição. A representação, ao contrário, é produtiva daquilo que pretende apenas nomear e descrever. Assim, o conceito de performatividade de Austin, também trabalhado pela filósofa Judith Butler, vai deslocar a ênfase da identidade como descrição para a ideia de tornar-se, ou seja, a identidade como movimento e transformação.

Segundo J. A. Austin, a linguagem não possui apenas proposições constatativas ou descritivas de uma ação, situação ou estado de coisas, como a frase “o livro está sobre a mesa” (AUSTIN, 1990, p. 23). Há, também, proposições que, ao serem pronunciadas, fazem com que algo se efetive ou se realize no próprio ato da fala, as quais o autor chama de performativas. São exemplos os enunciados “eu vos declaro marido e mulher” (fazer a declaração), “declaro iniciado este evento” (iniciar o evento), “me comprometo a pagar o aluguel amanhã” (fazer a promessa) (AUSTIN, 1990, p. 24-25).

Ocorre que, mesmo as proposições aparentemente descritivas, quando incessantemente repetidas, podem acabar produzindo o “fato” que em um primeiro momento buscavam apenas descrever, funcionando, na prática, como performativas. É o caso de proposições identitárias que buscam caracterizar sujeitos e grupos a partir de adjetivações, mesmo que aparentemente inofensivas, como a proposição “o brasileiro é malandro” ou, ainda melhor, a utilização da palavra “negão” para se referir a um homem negro. Embora pareça uma mera descrição da cor da pele e um “apelido” inofensivo, é uma expressão racista que reforça o caráter negativo da identidade negra por estar inserida em um sistema linguístico prévio e mais amplo de opiniões.

Por conta deste sentido ampliado é que Butler irá analisar a produção da identidade como uma questão de performatividade, sobretudo em relação aos enunciados sobre o gênero. Quando pensamos apenas descrever um grupo cultural, em verdade estamos fazendo parte de uma rede anterior e mais ampla de atos linguísticos que, em seu conjunto, contribui para definir ou reforçar aquela identidade. Segundo Butler, “[...] a performatividade deve ser compreendida não como um ‘ato’ singular ou deliberado, mas, em vez disso, como a prática reiterativa e citacional pela qual o discurso produz os efeitos que ele nomeia.” (BUTLER, 2010, p. 154).

Dois aspectos na frase de Butler são importantes para a compreensão da performatividade: ela é uma prática reiterada e, também, citacional. Por reiterada, a autora quer dizer que a eficácia produtiva dos enunciados performativos sobre a identidade depende da sua repetição constante4. Já citacional, a autora em verdade está tomando emprestado o conceito de citacionalidade de Derrida, elaborado a partir da teoria semiótica.

Nesse sentido, todo signo precisa ser identificável com a ideia que ele traz de maneira relativamente estável, de modo que seja repetível e não precise ser sempre reinventado. Derrida, então, vai estender esta compreensão para a linguagem, dizendo que, para funcionar, ela deve poder ser dissociada de quem a emitiu, do destinatário da fala e até mesmo de supostas intenções que a pessoa que pronunciou pudesse ter tido. Nesses termos, o que distingue a linguagem é sua capacidade de poder ser sempre retirada de um determinado contexto e inserida em um contexto diferente (DERRIDA, 2001).

Além disso, segundo Butler, “[a] performatividade é sempre uma reiteração de uma norma ou conjunto de normas. E na medida em que adquire o status de ato no presente, ela oculta ou dissimula as convenções das quais ela é uma repetição” (BUTLER, 2010, p. 167). Por isto que meros apelidos e supostas características de grupos culturais soam como inofensivos, mas, em verdade, são colagens de contextos discriminatórios anteriores que operam para reforçar a negatividade daquela identidade. Vale transcrever o que diz Tomaz Tadeu da Silva sobre o exemplo anterior:

Quando utilizo a expressão “negrão” para me referir a um homem negro, não estou simplesmente manifestando uma opinião que tem origem plena e exclusiva em minha intenção, em minha consciência ou minha mente. Ela não é a simples expressão singular e única de minha soberana e livre opinião. Em um certo sentido, estou efetuando uma operação de “recorte e colagem”. Recorte: retiro a expressão do contexto social mais amplo em que ela foi tantas vezes enunciada. Colagem: insiro-a no novo contexto, no contexto em que ela reaparece sob o disfarce de minha exclusiva opinião, como o resultado de minha exclusiva operação mental. Na verdade, estou apenas “citando”. É essa citação que recoloca em ação o enunciado performativo que reforça o aspecto negativo atribuído à identidade negra de nosso exemplo. Minha frase é apenas mais uma ocorrência de uma citação que tem sua origem em um sistema mais amplo de operações de citação, de performatividade e, finalmente, de definição, produção e reforço da identidade cultural. (SILVA, 2000, p. 95).

Porém, a repetibilidade não apenas reforça as identidades existentes de forma negativa, ela também pode ser questionada, contestada e apropriada para desconstruir as identidades hegemônicas e interromper ou reconstruir o processo de recorte e colagem. Essas diferentes estratégias discursivas e políticas são acionadas em determinados contextos sócio-históricos e, até mesmo, de forma concomitante, quando se identifica que a fragmentação das lutas enfraquece os grupos diferentes contra uma mesma fonte de opressão.

4. Estratégias discursivas e acesso a direitos

Como campo discursivo e performativo, o direito também (re)produz identidades e diferenças e se torna um espaço de disputas e conformação a normas como estratégia de atendimento a demandas políticas de indivíduos e grupos.

Interessantes processos discursivos sobre identidade/diferença ocorrem em relação à categoria indígena no Brasil, ao menos no que diz respeito à “dimensão política das relações interétnicas” e ao “contexto nacional envolvente” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1993, p. 27)5. A atitude do colonizador europeu de aplicar indiscriminadamente a toda população aborígene do continente Americano a categoria de “índios” não ocorreu por um mero erro geográfico, mas para estabelecer uma identidade genérica por contraste a si próprio e marcar o colonizado como inferior, facilitando a dominação. Por isso, como diz Bonfil Batalla, o índio é uma categoria forjada pela situação colonial (BONFIL BATALLA, 1972, p. 112).

Séculos adiante, a luta contra as violências sistemáticas e por direitos específicos impulsionou a politização dos povos indígenas, que passaram, eles próprios, a reivindicar essa denominação. É como explica Gersem Luciano, professor indígena do povo Baniwa:

Com o surgimento do movimento indígena organizado a partir da década de 1970, os povos indígenas do Brasil chegaram à conclusão de que era importante manter, aceitar e promover a denominação genérica de índio ou indígena, como uma identidade que une, articula, visibiliza e fortalece todos os povos originários do atual território brasileiro [...]. (LUCIANO, 2006, p. 30).

Esta atitude procurou ser a resposta ao projeto de desenvolvimento nacional da ditadura militar que, em relação aos povos indígenas, buscava classificar para emancipá-los e, com isso, retirar a responsabilidade tutelar do Estado sobre os indígenas que teriam se “aculturado”. A estratégia, aqui, não era despir toda uma população da sua humanidade, mas de garantir direitos específicos somente a uma pequena parcela dessa população, excluindo todo o restante que não correspondesse à identidade ideal.

Ou seja, quando reivindicada pelos próprios povos organizados6, de baixo para cima, e já sob outro paradigma jurídico e epistêmico, a categoria “indígena” se torna uma categoria de luta e de resistência, e convive com outros processos discursivos e identitários em todas as suas potencialidades e contradições, como a afirmação das diferenças pelos mais de 300 povos indígenas no Brasil7.

A trajetória analisada por Avtar Brah do termo “negro” de genérico para categoria de resistência também demonstra essa dinâmica. Ao descrever as disputas da identidade do movimento negro na Grã-Bretanha a partir do pós-guerra, mas sobretudo nos anos 70, Brah afirma que muitos termos foram testados e problematizados, com o propósito de incluir e excluir determinados sujeitos (BRAH, 2006, p. 333).

Se o movimento Black Power estadunidense conseguiu emplacar mais rápido uma identidade afirmativa de grupo, sem o componente pejorativo de discursos racializados, na Grã-Bretanha o movimento foi mais disputado, pois influenciado pelas lutas anticoloniais do século XX e pelas diásporas e movimentos migratórios que acolheu. Assim, o termo “negro” foi criticado por refletir uma herança essencializada da África que o caracterizava nos EUA (pelo menos na visão desses críticos), além de ocultar as necessidades culturais de outros grupos que não aqueles de origem africano-caribenha (BRAH, 2006, p. 337).

A centralidade das lutas políticas na Grã-Bretanha era a unidade contra o racismo, sem ignorar as diferenças culturais. Mas a reivindicação de grupos levou ao que Brah chamou de etnicismo, ou seja, tomar a “[...] ‘diferença étnica’ como modalidade principal em torno da qual a vida social é constituída e experimentada” (BRAH, 2006, p. 337). Ocorre que nem no interior dos grupos identificados como culturalmente diversos há homogeneidade: as necessidades de moradia de dois asiáticos em condições econômicas e geográficas diversas não são as mesmas apenas porque eles são da mesma cultura originária. Deste modo, nota-se que não há um passado homogêneo e compartilhado que dê conta de um termo regional ou cultural para designar tantos grupos diferentes entre si. Dentre os vários termos testados, Brah conclui:

[...] o uso de “negro”, “indiano” ou “asiático” é determinado não tanto pela natureza de seu referente como por sua função semiótica dentro de diferentes discursos. Esses vários significados assinalam diferentes estratégias e resultados políticos. Mobilizam diferentes conjuntos de identidades culturais ou políticas, e colocam limites ao estabelecimento de fronteiras da “comunidade”. (BRAH, 2006, p. 340).

Ocorre que, pensando na forma política como sujeitos e grupos mobilizam os conceitos de identidade e diferença, sempre haverá o perigo da “trincheira do oprimido” gerando novas opressões: “Em sua necessidade de criar novas identidades políticas, grupos dominados muitas vezes apelarão para laços de experiência cultural comum a fim de mobilizar seu público. Ao fazê-lo, podem afirmar uma diferença aparentemente essencial” (BRAH, 2006, p. 375). Neste sentido, Gayatri Spivak (2010) argumentou sobre a mobilização pelo oprimido de um “essencialismo estratégico” em determinados contextos, dentro do que podemos chamar de uma “política identitária”. Porém, mesmo que atinja certos ganhos políticos, tal postura de conformação à norma, “[...] revelou-se tanto meio de aceder a conquistas quanto a novas formas de controle social, quer pelo Estado quer pelo mercado” (MISKOLCI, 2011, p. 50). Ou seja: simplesmente aderir às identidades socialmente atribuídas não impede que novas opressões sejam criadas externa e internamente a esses grupos8.

Por conta de tais armadilhas da identidade (HAIDER, 2019), o ativismo “pós-identitário”, que marca os estudos queer, cumpre um papel importante na subversão e na desestabilização do jogo das identidades hegemônicas e pode ser acatado inclusive pelo campo jurídico. No campo político, sua resistência se deu com a apropriação do termo queer, ressignificando-o e destituindo-o do sentido pejorativo de carregava, e com a crítica à criação de novas identidades e sujeitos de direito do ativismo tradicional. Mas, principalmente, também se deu pelo posterior avanço teórico de combater as normas produtoras de identidades hegemônicas e desviantes e de rejeitar a própria necessidade de encaixe em modelos pré-existentes, à exemplo da ausência de correlação entre sexo, gênero e sexualidade e da fluidez de gênero que marca esse campo de estudos (LOURO, 2001).

Mas não são apenas os sujeitos e grupos que estratégica e conscientemente deliberam pela via da conformação à norma para acessar direitos: o direito, como campo discursivo e performativo, “[...] não só enuncia a ‘verdade jurídica’, mas a cria o tempo todo, encobrindo seus processos de criação. Da mesma forma, constitui o sujeito de direitos - e, nesta operação, cria também o sujeito que não tem direitos” (RESADORI, 2021, p. 241).

Neste sentido, em pesquisa sobre discursos das cortes constitucionais da América Latina no reconhecimento de direitos de travestis, Resadori (2021) apresenta um exemplo de como a perspectiva teórica e epistemológica da produção discursiva das identidades opera no e pelo campo jurídico para o reconhecimento ou bloqueio de direitos. Ao analisar 50 decisões judiciais de 12 cortes constitucionais, construiu o material empírico que a possibilitou criar categorias analíticas das formações discursivas identificadas, nomeando-as de “conservadorismo repressivo”, “inclusão conservadora” e “reconhecimento afirmativo” (RESADORI, 2021, p. 140).

Segundo a autora, as duas primeiras estão relacionadas a perspectivas essencialistas de sexo, gênero e sexualidade, e se constituem por enunciados que colocam em funcionamento discursos e estratégias binárias, biologizantes, patologizantes e abjetificantes sobre os sujeitos. Ao compreender o sexo como elemento central dos sujeitos, tomando-o como um fato da natureza, vinculam-se a uma abordagem médica e científica-moderna, que produzem efeitos de verdade em outros campos, como no direito. Porém, enquanto a primeira formação discursiva reprime expressões de gênero fora das normas binárias de sexo, gênero e sexualidade, bloqueando direitos, a segunda, a “inclusão conservadora”, utiliza esses mesmos enunciados, avançando no reconhecimento de direitos, mas de forma assimilacionista, conservadora e, muitas vezes, patologizante (RESADORI, 2021, p. 140-141).

A ADPF n. 527, sobre os parâmetros para o acolhimento da população LGBT em estabelecimentos prisionais, é um exemplo de decisão que se utilizou da formação discursiva da “inclusão conservadora”. Ao julgar a medida cautelar, o Ministro Luís Roberto Barroso deu parcial provimento, para atender ao pedido de que pessoas trans sejam recolhidas em presídios femininos, mas não decidiu sobre o pedido de que as travestis pudessem optar por estabelecimentos masculinos ou femininos, pesando compreensões binárias e essencialistas sobre sua identidade (RESADORI, 2021, p. 182).

Por sua vez, a formação discursiva do “reconhecimento afirmativo” é constituída por “[...] enunciados e estratégias que afirmam a autonomia das travestis para desenvolverem livremente suas personalidades, o que implica, muitas vezes, no desafio às normas binárias de gênero” (RESADORI, 2021, p. 142). Como consequência, as decisões judiciais com essa formação discursiva reconhecem que cabe aos sujeitos dizerem como se identificam e como constituem suas existências, e não à medicina, à ciência ou ao Judiciário. Uma das decisões que reflete a formação discursiva do “reconhecimento afirmativo” é a ADI 4.275-DF, que garantiu o direito às pessoas trans e às travestis o direito à retificação do gênero e do nome no registro civil, independente da realização de cirurgia de transgenitalização e de quaisquer outros tratamentos hormonais ou patologizantes - como era exigido anos atrás -, bastando a autodeclaração (RESADORI, 2021, p. 207).

As decisões judiciais, portanto, vão impactar a vida das pessoas envolvidas nos casos concretos, reconhecendo ou não seus direitos, mas também vão “[...] produzir efeitos de verdade que ultrapassam os limites processuais e que, junto com outros campos, com outros atos de fala, com outras práticas, vão produzindo essas sujeitas.” (RESADORI, 2021, p. 241). Mas, se há sempre resistência quando há poder, também se resiste no direito. Trazer ao campo jurídico a perspectiva teórica e epistemológica pós-estrutural, além da produção discursiva das identidades e diferenças, pode ser um caminho para lidar com as demandas atuais por reconhecimento de direitos.

Conclusão

O artigo buscou apresentar a produção discursiva da identidade e da diferença, abordagem possibilitada pela virada linguística e apoiada nas contribuições teóricas e epistemológicas do pós-estruturalismo e movimentos decorrentes. Espera-se, com isso, que o olhar pós-estruturalista possa complexificar e contribuir para uma mudança de perspectiva do direito ao lidar com demandas atuais por diferença e reconhecimento, uma vez que a própria garantia de direitos pode significar, por um lado, normalização de identidades e exclusão de sujeitos não conformes a essa norma.

Ao questionar as concepções estáticas de liberdade e diferença, supostamente baseadas em uma essência apreendida pelo sujeito moderno autoconsciente, e ao lançar olhar sobre as relações de poder e vetores de força que movimentam essas posições de ser e estar no mundo, a complexidade dos sujeitos hifenizados, racializados e generificados, das suas lutas concretas e estratégias de resistência vêm à tona, desafiando as certezas das categorias modernas e estáticas que até mesmo os direitos humanos dispõem para combater opressões atuais.

Neste sentido, a fim de privilegiar o caráter teórico e exploratório do artigo, foram apresentados apenas alguns exemplos de subversão e de desestabilização do jogo das identidades hegemônicas. O fato é que toda essa compreensão das operações linguísticas que produzem identidade e diferença adquire ainda mais relevância quando são percebidas e problematizadas no contexto da práxis dos sujeitos e dos seus movimentos, mesmo que, muitas vezes, isso aconteça a partir de discursos e categorias aparentemente essencialistas, como ocorre com a política identitária de gênero problematizada pelos estudos queer.

Ao menos, tais debates desvelam que os discursos estão em constante disputa pelos próprios sujeitos envolvidos, a partir de sua agência e do seu agir estratégico e, por isso, operam com resultados políticos e jurídicos bastante diversos.

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Notes

1 As críticas sobre um suposto determinismo do ambiente sobre o sujeito, retirando-lhe agência e resistência, foram respondidas por teóricas e teóricos feministas e pós-estruturalistas que revisitaram a psicanálise de Freud, sobretudo por Lacan, dizendo que a vontade ou o desejo nunca são puramente sensações corporais, mas constituídos dentro do espaço cultural. Desta forma, desejo, emoções e sentimentos passam a ter uma posição na constituição do sujeito e não podem ser compreendidos apenas pelas instituições sociais, porque o mundo interior do inconsciente possui efeitos imprevisíveis sobre o pensamento e sobre outros aspectos da subjetividade. Portanto, nem refém do discurso e do ambiente, nem racional e autoconsciente, mas subjetivado pela articulação dos mundos cultural e psíquico (BRAH, 2006, p. 368).
2 O pós-colonialismo é um movimento intelectual que surgiu das lutas anticoloniais e das críticas ao colonialismo feitas por intelectuais como Franz Fanon, Albert Memmi e Aimé de Césaire a partir dos anos 50, quando a descolonização da África e da Ásia era pauta internacional. Suas ideias influenciaram pensadores anglófonos e diaspóricos do Oriente Médio e do sul asiático, notadamente o palestino Edward Said e os indianos Homi Bhabha, Ranajit Guha, Avtar Brah e Gayatri Spivak, e de outras partes do mundo, como o jamaicano Stuart Hall. Teve como foco discussões referentes a estes mesmos locais e seus contextos coloniais dos séculos XIX e XX, ou seja, da “segunda modernidade”, fruto sobretudo do colonialismo inglês e francês. Como já destacado por Peters (2000), o pós-colonialismo também possui grande influência da virada linguística e da crítica do sujeito moderno liberal, o que faz não por uma matriz teórica única, mas por contribuições diversas que têm em comum o método da desconstrução dos essencialismos. Por isso também se insere em uma perspectiva pós-estruturalista.
3 Sobre o tema, sugere-se a leitura da tese de Alice Hertzog Resadori, intitulada “Dando close nas cortes: discursos sobre travestis nos Tribunais Constitucionais da América Latina” (2021), em que a autora discute a produção das sujeitas travestis pelos discursos das cortes constitucionais latinoamericanas, e identifica que há um gradiente de normalização que implica na maior ou menor possibilidade de acesso a direitos pelas sujeitas travestis e trans.
4 O discurso colonial teorizado por Homi Bhabha, no livro “O local da cultura”, também trabalha com essas características da linguagem performativa. A repetição ansiosa do estereótipo do sujeito colonial (negro, árabe, indígena, etc.), que não precisa ser coerente nem lógico, não descreve um sujeito anterior, já que ele sequer existe desta forma antes do ato de fala: em verdade, ela gera o efeito de verdade sobre aquela identidade, produzindo-a (BHABHA, 2018).
5 Não se ignora, obviamente, que os enunciados de indianidade são performativos e não “constativos”, e que a indianidade designa um devir e um movimento incessante de diferenciação, não propriamente uma identidade (VIVEIROS DE CASTRO, 2006, p. 3).
6 Um exemplo é a criação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), em 2005, e sua sólida atuação em âmbito nacional e internacional como principal organização indígena brasileira.
7 Esta postura afirmativa da indianidade, aliada aos avanços dos direitos e outras razões de ordem demográfica, impulsionou um aumento drástico da população autodeclarada indígena. O percentual de indígenas em relação à população total brasileira saltou de 0,2% em 1991 para 0,4% em 2000, um aumento anual de 10,8%. Em parte, o aumento nessa época deveu-se ao fenômeno da etnogênese, isto é, da constituição de novos grupos étnicos, ou o ‘aparecimento’ ou ‘ressurgimento’ de povos que já se consideravam extintos (AZEVEDO, 2011). No censo de 2022, o IBGE identificou que a população indígena brasileira saltou para quase 1,7 milhão de pessoas, um aumento de 88,82% em 12 anos, considerando o censo anterior, de 2010 (IBGE, 2023).
8 Outra questão que pode ser levantada em relação à “política identitária” e à criação de novas identidades para garantia de direitos é quando o próprio Estado, ou instituições de modo geral, atuam para classificar e traçar critérios de heteroidentificação de grupos e sujeitos. A “identidade formal” (CLARKE, 2015) pode ser adotada tanto para classificar e hierarquizar, como para potencializar direitos e políticas públicas específicas, desde que, nesse caso, não abdique da autodeterminação e da autoidentificação como princípios basilares.
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