Artigos inéditos
De volta ao ritornelo: nómos e música em Deleuze e Guattari
Back to the refrain: nomos and music in Deleuze and Guattari
De volta ao ritornelo: nómos e música em Deleuze e Guattari
Revista Direito e Práxis, vol. 15, no. 4, e74452, 2024
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Received: 27 March 2023
Accepted: 04 February 2024
Resumo: Este ensaio explora o conceito de nómos nas obras de Deleuze e Guattari. Para tanto, revisa a literatura que se ocupou do conceito em duas direções: por um lado, autores que mobilizam Deleuze e Guattari como intérpretes do nómos Ocidental; por outro, Deleuze e Guattari como inventores de um conceito próprio de nómos. Ambas as direções, porém, são lacunares quanto a dois campos de problematização que se iluminam reciprocamente: a interpretação do nómos em sentido musical, retomada no platô sobre o ritornelo, e o advento das sociedades de controle, que transformam as moldagens hilemórficas das disciplinas nas modulações contínuas da informação e dos controles. Com o ritornelo, Deleuze e Guattari descobrem o perigo e o potencial de sideração dos limites relativos que circunscrevem o nómos da informação e das sociedades de controle. Mais do que partilhar a terra ou distribuir os seres, o sentido musical do nómos desenvolve o enigma político, ontológico e jurídico de modular materiais incompossíveis e dar consistência a multiplicidades díspares.
Palavras-chave: Ritornelo, Nómos, Música, Deleuze, Guattari.
Abstract: This essay explores the concept of nomos within the œuvres of Deleuze and Guattari. To do so, it reviews the literature that has dealt with that concept in two directions: on the one hand, authors who mobilize Deleuze and Guattari as interpreters of the Western nomos; on the other, Deleuze and Guattari as inventors of a creative take of nomos. Both directions, however, are lacking in terms of two fields of problematization that illuminate each other: the interpretation of the nomos in a musical sense, resumed on the plateau on the refrain, and the emergence of societies of control, which transform the hylomorphic moldings of disciplines into continuous modulations of information and controls. With the refrain, Deleuze and Guattari discover the danger and potential sideration of the relative limits that circumscribe the nomos of information and control societies. More than sharing the earth or distributing beings, the musical sense of the nomos develops the political, ontological and legal enigma of modulating incompossible materials and giving consistency to disparate multiplicities.
Keywords: Refrain, Nomos, Music, Deleuze, Guattari.
Introdução
Este ensaio explora o conceito de nómos em Deleuze e Guattari por meio de um exercício específico e situado. De início, revisamos a literatura secundária a fim de estabelecer o estado da arte sobre o conceito. O corpus literário abrangeu tanto obras do campo da filosofia do direito, quanto obras oriundas de áreas interdisciplinares que exploraram o nómos deleuzo-guattariano em sentidos político e musical.
A revisão dessa literatura revelou duas direções predominantes de usos e leituras que mobilizam o conceito de nómos em Deleuze e Guattari. A primeira compreende Deleuze e Guattari como intérpretes da ideia polissêmica de nómos do Ocidente; a segunda, apresenta-os como criadores de um conceito revolucionário e opositivo ao nómos da tradição, enfatizando seus desdobramentos políticos. Embora essas direções não sejam estanques ou reciprocamente exclusivas, um dos achados deste primeiro nível de elaboração é que o sentido musical do nómos - que Deleuze e Guattari explicitaram no platô sobre o ritornelo - jamais se cruzou com as representações do nómos jurídico ou político. Tudo se passa como se o nómos musical não desempenhasse aí qualquer papel de maior importância.
Esse achado, lacunar e primeiro, nos leva a investigar uma terceira camada da literatura secundária que, dos anos 2000 para cá, ocupou-se do tema da música em Deleuze e Guattari. Nela, o tratamento dado à música padecia de uma lacunaridade oposta e simétrica àquela que descobríamos nas metades jurídica e política do corpus. Se as obras de filosofia do direito ou de filosofia política mobilizavam o nómos deleuzo-guattariano sem passar pela música, as obras de filosofia ou teoria da música jamais problematizavam simultaneamente as dimensões dos nómoi jurídico e político. Isso reforçava a lacuna jurídico-política, e nos convencia de que a relação entre o nómos em sentido musical e seus desdobramentos políticos e jurídicos permanecia, senão lacunar, ao menos subproblematizada. Eis o que procuramos desenvolver no item 1.
Esta mesma lacuna teórica sugeriria uma hipótese intrigante: o sentido musical do nómos em Deleuze e Guattari poderia elucidar o enigma ontológico, jurídico e político que nasce em Diferença e repetição (1968) e se prolonga até o Post-scriptum sobre as sociedades de controle (1990). Os problemas que esse arco textual propõe receberão aportes de diversos intercessores (sobretudo, Félix Guattari), e se desdobrarão também em textos solo de Deleuze que orbitam o tema da música.
Isso nos anima a examinar de maneira ensaística os dualismos mutantes (logos/antilogos, lei/nómos) que Deleuze e Guattari mobilizam para avançar no sentido musical do nómos, que culminaria no conceito de ritornelo. No item 2, reconstruímos o laço que vai do nómos pastoral e homérico de Diferença e repetição, passa pelo antilogos proustiano, e posiciona a crise da noção hilemórfica de lei na transição das sociedades disciplinares ao regime dos controlatos.
O item 3, por sua vez, desdobra esses achados. Na medida em que Deleuze e Guattari não acreditavam em qualquer filosofia política que não estivesse implicada na crítica e na evolução do capitalismo, questionamos o nómos da informação e dos controles como última e atual fronteira da acumulação capitalista. Avaliamos as novas formações jurídicas que ele infunde, e especulamos como uma noção musical do nómos contribuiria à liberação molecular e das matérias de expressão contidas na informação.
Por fim, o item 4 tematiza o ritornelo como conceito que reatualiza o problema ontológico, político e nômico que os controles propõem. Na medida em que a música é uma política, ou uma máquina de guerra, nela veremos se processarem os potenciais modais e moleculares para reverter agenciamentos. Elementar e molecular, cósmica e ecúmena, a música que o ritornelo contém é inclassificável, inumana, e não cessa de seguir os fluxos das matérias de expressão que decorrem das coisas mesmas. Não cessa de revelar suas pontas de desterritorialização - como as componentes etológica e minoritária dos agenciamentos intoleráveis que as lutas se esforçam por reverter e desagregar.
Este ensaio não procura reparar um esquecimento. Nem restabelecer um parentesco etimológico curioso e arcaico. Ele procura mobilizar Deleuze e Guattari na reabertura do material molecular e intenso de que é feito o nómos que nos constitui, circunscreve e impregna: informação, palavras de ordem, agenciamentos materiais, sociais e jurídicos. Ao mesmo tempo, ele afirma a potência modal e política da música para tornar audíveis, liberar e modular suas forças inaudíveis. Uma potência que, como veremos, não é desprovida nem de perigos, nem de chances. O nómos musical sinaliza a importância da relação entre as ecologias do sensível e as lutas do presente, com seus múltiplos impasses e êxodos por inventar.
1 Direito, política, música: usos e leituras do nómos deleuzo-guattariano
A literatura filosófica e jurídica dos anos 2010 em diante1 mobilizou o nómos deleuzo-guattariano em duas direções. Na primeira delas, Deleuze e Guattari aparecem como intérpretes de certa acepção do nómos do Ocidente. Eles teriam recepcionado e usado especulativamente um dos veios dos debates etimológicos sobre a genealogia de um nómos que os precede e ultrapassa - o nómos pastoral e homérico. Numa segunda direção, Deleuze e Guattari figuram como autores de um nómos particular e divergente de sua vulgata cívico-legal, a qual o representa como um conjunto de regras costumeiras, legislativamente informes. Aí, eles se tornam os conceituadores de um nómos nômade, função de uma máquina de guerra que atua em espaços lisos por oposição de jure ao aparelho de captura estatal e ao estriamento segmentar que caracterizaria o nómos sedentário - mas também, a pólis e o logos platônicos.
Essas duas direções de leituras não são, porém, equilibradas ou estanques. Elas se misturam continuamente, e em proporções variáveis, em textos muito distintos que, no entanto, mantêm o nómos deleuzo-guattariano entre suas ferramentas teóricas. É o caso, e.g., de Cowan (1996), Sellars (2007), Culp (2016) ou Marneros (2021), cujos usos e leituras do conceito veem-se mobilizados por temas tão plurais quanto os de uma ecologia holista da civilização, o cosmopolitismo, uma justiça espacial, a precedência do Fora ou uma jurisprudência anárquica. A despeito da variedade de usos que essa literatura testemunha, argumentamos que a tensão entre aquelas duas direções descreve em linhas muito gerais como o conceito foi recepcionado por literaturas afins ao tema.
Essa tensão é particularmente sensível em The birth of nomos, de Thanos Zartaloudis (2019). Nele, que dedica um capítulo aos usos musicais do nómos no período pós-homérico2, a leitura deleuzo-guattariana torna-se instrumental ao seu problema. A pergunta que The birth of nomos se propõe a explorar em sua complexidade sêmica e multiplicidade pragmática (Idem, xiii) é socrática: O que é, para nós, o nómos?
O nómos de Deleuze e Guattari interessa a Zartaloudis de modo específico e situado. Ao explorar a multiplicidade dos usos e das formas de vida deles inseparáveis - segundo a genealogia agambeniana a que adere -, Zartaloudis posiciona o Deleuze de Diferença e repetição como um intérprete do nómos pastoral derivado da leitura de E. Laroche (1949). Em uma nota de rodapé ao problema da univocidade e da diferença, Deleuze teria mobilizado a interpretação larochiana do nómos homérico para afirmar, de modo especulativamente interessado, idealizado e historicamente impreciso, que o sentido e o uso pastorais de nómos-némein precedem seus sentidos legal e jurídico.
Assim, Deleuze sugerirá o tema do nômade na órbita de um nómos que já não designa a lei ou o logos, mas um modo de distribuição dos seres em um espaço aberto e ilimitado; uma dispersão organizada que não implica partilha, divisão ou cercamento. Isso permitiria diferenciar alocação e distribuição (Zartaloudis, 2019, p. 141) e, de consequência, tratar o nómos como um tipo especial de distribuição sem partilha ou divisão.
É porque o nómos aglutina uma “terra indivisa” (como um pasto ilimitado) e “uma ordenação contingente” (Idem, p. 143), que ele coincide com um modo de distribuição que é nômico sem ser legal; ao mesmo tempo, ele implica um espaço liso, definido não por cercas, mas por traços ou linhas de dispersão definidoras do modo de viver e habitar (ethos) do pastor nômade e seu rebanho. Essas são as premissas para um ulterior nómos deleuzo-guattariano. Em Mil Platôs, veremos o nómos assumir o tom especulativo de uma dispersão-distribuição “criativa” e "revolucionária” (Idem, p. 141), e se desenvolver nos dualismos de jure (não de facto) entre máquina de guerra nômade e aparelho de captura de Estado, espaços liso e estriado etc.
Este não é, todavia, o sentido primordial em que Zartaloudis faz uso do nómos deleuzo-guattariano. Antes, Zartaloudis afirma que a especulação que empreendem, com apoio em Laroche, reforça o poder e a potência de uma prática nômica que se desenvolve entre o pastor e seu rebanho. Isto é, um uso do nómos inseparável de um ethos (modo de vida), “‘uma distribuição ou governo’ que não pode ser separado da sua experiência de vida, e vice-versa” (Idem, p. 144).
Trata-se de uma apropriação coerente e tautológica3, que testemunha que o tom dominante de sua leitura transforma Deleuze e Guattari em comentadores de uma particularidade de um termo cujos usos e sentidos são mais plurais e, sobretudo, os precedem e ultrapassam. Para Zartaloudis, o nómos deleuzo-guattariano não faz mais do que prolongar especulativamente o nómos larochiano. Isto é, reafirmar a precedência do uso pastoral do nómos homérico sobre o legal ou jurídico, a fim de dar asas a uma especulação específica - embora idealizada e imprecisa - sobre o nomadismo.
A tensão entre os usos e leituras do nómos de Deleuze e Guattari comporta, porém, soluções divergentes. Se Zartaloudis (2019) exemplifica o uso histórico-interpretativo do conceito, Guillaume Sibertin-Blanc (2013) encampa o seu uso criativo, revolucionário e político. Essa translação se dá ao adotar o nómos como um conceito autoportante, ligado ao nomadismo e à construção da máquina de guerra, em relação ao qual o texto de Laroche não é senão um leitmotiv para uma especulação mais vasta.
Em Politique et état chez Deleuze et Guattari, o nómos é “um tipo de produção ou invenção de espaços lisos” (Sibertin-Blanc, 2013, p. 83) ligado ao nomadismo e à nomadologia. Distanciamo-nos das pretensões históricas e genealógicas: nem o nomadismo é um conceito etno-antropológico, nem o nómos se restringe à conceptualização jurídico-política derivada da territorialização do Estado. O núcleo da argumentação de Sibertin-Blanc está em apresentar a noção de máquina de guerra nômade como uma hipótese que serve de “contraponto à forma-Estado” (Idem, p. 71) e ao seu conceito de político - o que abre brechas para que o nómos possa relacionar-se ao alisamento característico do “princípio territorial nomádico” (Idem, p. 83).
Sibertin-Blanc nutre duas visões paralelas que convergem no nómos. Por um lado, Deleuze e Guattari teriam construído filosoficamente um conceito de nomadismo não-antropológico do qual o nómos retira o seu sentido. Assim, a noção de máquina de guerra nômade - que não se opõe ao sedentarismo, e nem conduz propriamente a guerra, mas se opõe ao Estado e produz espaços lisos - é a resposta a “um problema político imediato” (Idem, p. 74-75) que Deleuze e Guattari enfrentam no pós-maio de 1968: como organizar forças revolucionárias irredutíveis aos aparelhos de Estado os quais, não raro, elas paradoxalmente internalizam e prefiguram?
Não é fortuito, portanto, que a leitura que Sibertin-Blanc faz da máquina de guerra nômade envolva o nómos como o produto territorial de uma “forma de exterioridade do Estado” (Idem, p. 83), a produção de um espaço liso a partir de uma “instância de ilimitação” (Idem, p. 93) - tal como se encontra no modelo marítimo4. E que, para tanto, Deleuze e Guattari precisem ser afastados - com toda justiça - do modelo nômico schmittiano que, por sua vez, promove - através da tomada de terra (Landnahme) - uma instância de delimitação terrestre de caráter fundacional. Então, se por um lado, Deleuze e Guattari teriam sido influenciados pela concretude do nómos schmittiano, por outro, sua traição alegre consistiria em fazer do nómos algo exterior ao Estado e à sua lei de moldagens hilemórficas. Aí, o nómos se transforma “num processo que desfaz as partilhas e as distribuições de ordem espacial existente, e que [...] as colapsa [effonde]” (Idem, p. 88).
Não sugerimos que essas duas direções de usos e leituras se enganem. Tanto Zartaloudis quanto Sibertin-Blanc exemplificam tendências de usos conceitualmente irreparáveis que, todavia, sofrem o empuxo dos argumentos que singularizam seus projetos. No caso de Zartaloudis, a arqueo-genealogia polívoca de nómos/nomós; no caso de Sibertin-Blanc, a proposta de um materialismo histórico-maquínico como eixo de leitura que Deleuze e Guattari fizeram da política e do Estado. Apesar disso, o nómos é um termo de rara ocorrência entre os filósofos que se ocuparam do direito em Deleuze e Guattari, e mesmo sua aparição em textos políticos apresentam-o como ideia que permanece desligada de seu sentido musical.
Por outro lado, essa relação tampouco está presente ou claramente situada na literatura que se ocupou da música em Deleuze e Guattari dos anos 2000 para cá. Em Bogue (2003), Buchanan e Swiboda (2004), Hulse e Nesbitt (2010), Campbell (2013) e Weiss (2021), ou o nómos musical nem sequer é debatido, ou ele se encontra tibiamente relacionado ao político - e quase nunca (senão breve e circunstancialmente) ao direito.
Neste recorte textual, a única exceção é o teórico musical Ildar Khannanov, que num dos capítulos de Sounding the virtual apresenta o nómos musical e político ao lado do nómos musical e jurídico. Sem, no entanto, jamais correlacionar um nómos ao outro, Khannanov descreve a música dos nômades basquírios5 como territorial e, ao mesmo tempo, exceptiva à estrutura e às leis musicais tradicionais ocidentais. A conexão mais sensível do nómos musical basquírio seria, então, com o político, pelo fato de sua melodia mesclar o “escalar acima e o galopar abaixo as colinas, o suspiro materno, o trinado crescente dos rouxinóis, e a doçura da vida na terra-natal” (Khannanov, 2010, p. 253). Eis o que faz a música destes nômades “inseparável da política” (Idem, p. 255); sua melodia exige uma exceção às leis musicais. Seu nómos musical é político porque exceptivo.
Isso faz com que Khannanov volte ao nómos schmittiano para distinguir o estatal do político, e interpretar a dualidade jurídico-musical do nómos a partir da etimologia compartilhada entre o grego e a língua basquir. O nómos aqui não se opõe ao logos, ou à pólis, mas à taxis - isto é, as leis do cálculo, da medida e da racionalização que loteiam terras, línguas e povos e, no Ocidente, organizam o sistema musical. Por oposição, o nómos se refere a processos informais e ressonâncias: “puro poder de unificação rítmica” (Idem, p. 257). Eis o que faz do nómos musical dos nômades basquírios uma política - sua exceção à taxis; sua melodia mista, territorial, multidimensional e inclassificável. Sua música, então, é algo “parecido a uma máquina de guerra” (Idem, p. 250).
O poderoso argumento de Khannanov, porém, faz o político perigosamente refém do exceptivo schmittiano. E faz o nómos jurídico refém da medida e da taxis da lei. As duas linhas do nómos musical - a política e a jurídica - não se cruzam, mas se afastam e divergem. É como se encontrássemos em seu argumento o negativo fotográfico do nómos schmittiano. Se Schmitt (2014) se preocupa com os sentidos político e jurídico do nómos, e trata o nómos musical como um tema irrisório e fora de órbita, em Khannanov é a sua relação com o direito que é excluída, e se dissimula na taxis grega e nas leis de composição musical do Ocidente, em relação à qual a melodia nômade conduz uma linha errante não-euclidiana.
Isso deixa ver com clareza ainda maior a lacuna por explorar, e que refoge tanto à literatura jurídico-política, quanto à político-musical, que se ocupou do nómos deleuzo-guattariano. Ela consiste em religar o sentido musical de nómos a seus desdobramentos jurídico-políticos6. Isso pressupõe a relação entre o ritornelo, a terra (o desterritorializado) e os territórios, ao mesmo tempo que permite estimar as relações de força e reversibilidade que se agenciam no nómos da informação e dos controles. Afinal, é na emergência das sociedades de controle, e no processo de sua reconfiguração nômica, que Deleuze (2008) entrevê a crise dos meios disciplinares como expressão da crise do próprio direito. A relação entre nómos e música constitui, assim, a terceira direção para prolongar o nómos em Deleuze e Guattari, e ela comporta consequências políticas e jurídicas.
2 Cada dualismo individua um embate: o logos e a lei; o antilogos e o nómos
A tensão ontológica entre univocidade e diferença percorre as páginas iniciais de Diferença e repetição. Em meio a ela, Deleuze introduz a oposição entre logos e nómos como palavras que remetem a problemas de distribuição, com acepções diferentes e “sem conciliação possível” (Deleuze, 2006a, p. 67). O problema a que esta oposição remete não se restringe à etimologia do vocábulo nómos ou do radical grego “-nem”.7 Ele está ligado a duas formas de distribuir a diferença na univocidade do ser e, portanto, a duas (ou mais) políticas da ontologia. O logos, que vai de Parmênides a Heidegger, passando por Platão e que, em Schmitt, se concretiza em Hybris; e o nómos, que encontra em Duns Scotus, Espinosa e Nietzsche a profaníssima trindade.8
A dualidade logos/nómos9, no entanto, importa menos do que o problema a que ela se refere: como tratar materiais múltiplos como se fossem unos? Pergunta que só o logos pode se fazer, e que só o logos poderia responder adequadamente. Só se pode tratar multiplicidades como unidades ao preço de numerá-las, submetendo-as a uma distribuição harmônica - cuja premissa é a da unidade profunda, compartilhada por cada uma das suas menores diferenças.
Sua ontologia é precedida por uma política. O logos implica a partilha prévia da diferença na univocidade do ser, erigindo um princípio, uma distinção hierarquizante, um modelo judicioso, uma razão de tipo analógico que governa e distribui a univocidade do ser na forma de diferenças exclusivas, delimitadas, proprietárias. Um tipo de distribuição que “procede por determinações fixas e proporcionais, assimiláveis a ‘propriedades’ ou territórios limitados na representação” (Deleuze, 2006a, p. 67). Ela exige a precedência de uma razão organizadora. Mobiliza uma primeira medida, um metron originário, uma hierarquia das diferenças. Porém, no fundo, tudo é como o Todo, Uno e igual entre si. Bastaria reencontrar seu princípio estanque, reconhecê-lo, recordá-lo, deixar a razão girar na redundância do logos, que faz também a lei. Nómos sedentário.
Por oposição, há um outro nómos que Deleuze chamará nômade ou nomádico, e que implica uma distribuição inteiramente outra: “sem propriedade, sem cerca e sem medida. Aí, já não há partilha de um distribuído, mas […] repartição daqueles que se distribuem num espaço aberto ilimitado, ou, pelo menos, sem limites precisos” (Idem, loc. cit.). Não se trata de partilhar a terra, o espaço ou a univocidade do ser entre diferenças; trata-se, sim, de errar e delirar sobre a terra, o espaço, o ser como univocidade que só se diz da diferença. Isto é, distribuir-se no ser já como diferença sem totalização, ocupar o ser sem produzir sínteses, senão parciais - apenas fragmentos que falam por si mesmos e que não emanam de uma totalidade prévia.
Nómos da ocupação nomádica contra o sedentarismo da propriedade: sem cercas ou muros, a diferença se espalha e individua em uma polirritmia anárquica pela terra indivisa do ser; expande seus limites, amplia-se em diagonais loucas (não em círculos) como efeito do desenvolvimento da sua potência no tempo. Não há medida original, princípio ou hierarquia. A unidade e a totalização já não respondem ao “problema da multiplicidade” e da sua dispersão10 - como na República. A dispersão tornou-se, agora, o estilo da consistência adquirida pela distribuição da diferença no plano unívoco do Ser. Plano de imanência. “Planômeno” (Deleuze; Guattari, 2007b, p. 51) ou nómos planar.
No corpus “de um Ser unívoco e não-partilhado” (Deleuze, 2006a, p. 68), a distribuição anárquica e desmedida de todas as diferenças sobre um mesmo plano assinala a sua univocidade e impõe “a igualdade do ser”. Inseparável do que ela pode, a diferença é primeira e a igualdade no ser é segunda: univocidade da diferença. O círculo se rompe em espiral; a espiral instala uma comunicação transversal. Diagonais e linhas de fuga. Assim, a multiplicidade já não faz problema; ela se torna um tensor da consistência, que já não passa pela unidade, pela síntese ou pela totalização.
Entre os juristas, coube a Laurent de Sutter (2019) polemizar com os intérpretes anglófonos da filosofia do direito de Deleuze sobre a distinção necessária - e, em língua inglesa, difícil de apreender - entre lei (lex) e direito (jus). Uma distinção que reencena na filosofia do direito de Deleuze o embate entre Atenas e Roma; i.e., o modelo jurídico grego, baseado nas leis, no Bem e no logos, e o romano, baseado na casuística e na singularidade de problemas concretos. Platão contra Nietzsche. Mas este embate não é o único.
Na segunda parte de Proust e os signos (1976), Deleuze enunciou ainda um outro, que Proust conduziu em seus próprios termos. O embate entre Atenas e Jerusalém; entre o logos grego e o antilogos judaico - que remete à violência pática e afetiva do encontro fortuito com os signos. A tensão entre um nómos platônico, presidido pelo logos como inteligência prévia e organizadora (Deleuze, 2006b, p. 100), e um nómos proustiano-espinosano, é a que permite descobrir a linha de fuga que faz variar a ideia de lei.
A história da noção de lei no Ocidente é a da sua progressiva privação de logos. Bem o mostra que, de Platão a Kant, tudo mude. Enquanto as leis platônicas se fundam na ideia de Bem, derivam sua potência do logos, e promovem uma distribuição harmônica das partes totalizando-as por ressonância na unidade de um “melhor relativo” (Deleuze, 2009, p. 82), com Kant as leis regem “um mundo de fragmentos não totalizáveis e não totalizados” (Deleuze, 2006b, p. 124). A verdadeira revolução copernicana é a da tomada de “consciência moderna do antilogos” (Idem, loc. cit.), porque passamos do modelo “das leis” e do “melhor”, lastreado na ideia de Bem, ao modelo de uma lei que tem por exclusiva fonte de autoridade sua própria forma, desprovida de qualquer conteúdo determinado: “ela não diz mais o que é bom, mas é bom o que diz a lei” (Idem, loc. cit.). Em Kant, a lei rege um mundo privado de logos, mudando de potência e de figura.
O embate entre Atenas e Jerusalém tem dois capítulos. O primeiro é Kafka, que encarnará a consciência mais aguda e depressiva da virada kantiana do modelo da lei. Ele é quem melhor interpretará o seu fantástico paradoxo: sua incognoscibilidade (não sabemos o que a Lei quer de nós) e sua culpabilidade a priori (é por não sabê-lo que só podemos obedecer à Lei como já culpados) (Deleuze; Guattari, 1975). Mas “a posição depressiva serve apenas para encobrir uma posição esquizoide mais profunda”, dizem Deleuze e Guattari (2010, p. 63). O segundo capítulo desse embate é Proust, que encarnará a consciência esquizoide da lei. Nela, a culpabilidade - não mais vivida como culpa moral, mas social - “oculta uma realidade fragmentária mais profunda, […] à qual nos levam os fragmentos separados” (Deleuze, 2006b, p. 125).
É a transversal das Jerusaléns montadas pelas máquinas literárias de Kafka e de Proust que combate a vertical da lei platônica, do familiarismo edipiano e da forma incognoscível e já culpada da lei kantiana. Essa transversal opera uma dupla descoberta. Por meio de uma desmontagem ativa dos seus agenciamentos, Kafka descobre a justiça como polivocidade do desejo capaz de explicar, no limite, toda repressão autoinfligida (Deleuze; Guattari, 1975, p. 93-94). Mesmo a lei edipiana era, já, política e investimento libidinal. Édipo não exprime outra coisa senão a relação entre produção social e produção desejante (Deleuze; Guattari, 2010, p. 135).
Por outro lado, Proust encarna a consciência esquizoide e desejante da lei que é o nómos de um mundo privado de logos: “a lei nada reúne no Todo […]; ao contrário, mede e distribui os desvios, as dispersões, as explosões daquilo que extrai da loucura sua inocência” (Deleuze; Guattari, 2010, p. 63). É a multiplicidade - “empregada como substantivo, superando tanto o múltiplo quanto o Uno” (Idem, p. 62) - o tensor que faz fugir o nómos ao modelo do Uno e das leis, da pólis e da sua totalização redundante antecipada no logos. O nómos nômade se confunde com a lei-esquize, molecular e polimorfa, que se desprendeu da lei helênica e da molaridade edipiana. Antilogos, ou melhor, desejo, nos põe diante de uma lei-esquize que absolve os universos fragmentados, sem unificar ou totalizar as partes. Nómos que rege um mundo privado de logos.
3 Nómos da informação e dos controles: fluxos moleculares e palavras de ordem
Quando as sociedades disciplinares começam a dar lugar às sociedades de controle, a transformação da ideia de lei coalesce com a reconfiguração nomológica do campo social. Não por acaso, Deleuze encontra Kafka instalado no coração dessa passagem, marcada por “uma crise de todos os meios de confinamento” (Deleuze, 2008, p. 220). Essa crise é também a do hilemorfismo e das moldagens legais. A lei já não é forma ativa que molda materiais amorfos e passivos; sua dinâmica hilemórfica se arruína e dá lugar a modulações ultra-rápidas que agora ocorrem em espaços abertos e ilimitados. Se “o regime significante torna possível [...] um regime pós-significante, que rebate o sujeito de enunciação sobre os enunciados dominantes, e que produz uma outra forma de controle” (Montebello, 2008, p. 141), então passamos da transcendência do par matéria-forma ao plano de consistência do par conteúdo-expressão. Isto é, a um campo de individuações.
É Kafka quem descreve os modos de vida jurídicos muito diferentes entre os quais nossas sociedades hesitam. De um lado, a lógica hilemórfica de poder que corresponde à moldagem descontínua dos confinamentos e da quitação aparente, que disciplinam indivíduos e os posicionam em massas. De outro, o regime de variação contínua dos controlatos digitais que se distribuem em espaços abertos, e se exercem como um adiamento infinito da dívida sobre divíduos (probabilidades moleculares) e bancos de amostras e dados (nuvens estatísticas). Estes formariam “um sistema de geometria variável cuja linguagem é numérica [digital]” (Idem, p. 221).
Alguém poderia inventariar as relações de vizinhança entre os controlatos, sua lógica, e a concepção de nómos nômade. O capitalismo, dispersivo e de sobreprodução, promoveria distribuições livres em um espaço virtualmente aberto, indiviso, ilimitado. Faria vigorar um regime de modulações em variação contínua. Circularia valor segundo um sistema de trocas flutuantes, garantido por um governo ondulatório globalizado que emergiria da vitória técnica e maquínica da computação universal. Este mesmo alguém poderia, então, afirmar que um mundo sem logos não passa do elogio “das novas forças que se enunciam” (Idem, p. 220), arrastadas por “uma mutação do capitalismo” (Idem, p. 223). A consciência esquizoide da lei, o nómos como configuração nômade de um mundo sem logos, poderiam soar como confirmação e chancela da nova configuração nomológica do capital. Sua geometria ecumenista seria construída à base de Big Techs, extrativismo digital, governamentalidade algorítmica e capitalismo de vigilância.
De fato, o capitalismo tem uma lei, e os controles extrativos que emergem com as redes de comunicação instantâneas não escapam a ela: “O que ele [o capital] descodifica com uma das mãos, axiomatiza com a outra” (Deleuze; Guattari, 2010, p. 326). O efeito mágico do capital é o de abstrair e vampirizar o trabalho vivo, estocando-o na forma do trabalho morto, enquanto se apresenta como a “causa metafísica” da produção. Mas este efeito mágico deriva da tendência universal do capitalismo de descodificar e liberar sempre mais os fluxos produtivos de seus limites e territórios a fim de axiomatizá-los mais à frente. A lei e o nómos do capital, que lhe permitem controlar os fluxos que percorrem um bloco de espaço-tempo, não é a lei-esquize, mas a lei da desterritorialização de fluxos velozmente compensada por cortes sucessivos. A lei do capital é a lei da imposição de limites relativos aos processos de desterritorialização.
O capitalismo é o limite social o mais informatizado, financeiro, abstrato e dispersivo. Mesmo assim, ele não deixa de ser um vetorialismo (Wark, 2015). Um nómos ecumênico que só desterritorializa ao preço de reterritorializar. Não mais tomada da terra, mas tomada de fluxos moleculares livres, ligação de materiais complexos e intensos a um território preparado sob um logos que é o do capital. As sociedades de controle não passam de uma variação lógica do nómos capitalista, “limite de toda sociedade” (Deleuze; Guattari, 2010, p. 326). O antilogos, ou a esquizofrenia, por outro lado, referenciam o limite absoluto, o estado máximo de desterritorialização dos fluxos e sua distribuição anárquica sobre um espaço aberto, livre, virtualmente ilimitado. Ele é o nómos em sua anárquica desmedida. Tomada de fuga dos fluxos. Máquina, não logos.
Quando parecemos nos distanciar ao máximo do nómos de Diferença e repetição, ou daquele de Proust e os signos, é que nos encontramos mais próximos deles. A transição aos controles recoloca a multiplicidade como problema político; isto é, reformula em condições infomacionais inéditas o problema da positividade dos fragmentos, e do nómos que deve reger “as partes sem todo”. Afinal, o nómos dos controles é o das comunicações regulares entre fragmentos não-comunicantes. Designa um mundo em que a assinatura do indivíduo dá lugar à linguagem numérica do controle: cifras, senhas “que marcam o acesso à informação, ou a rejeição” (Deleuze, 2008, p. 222).
A potência dos controles está na capacidade de fazer os fragmentos se comunicarem numa modulação suave, em variação contínua, de geometrias não-euclidianas vagas e regularidades imperceptíveis. Interfaces, plataformas, Apps, user experience design, stacks, cloud-computing. Tudo, inclusive a sua crítica (Bratton, 2015; Lovink, 2019), é conduzido por um cérebro antropo-logocêntrico, geométrico, espacial, e mobiliza um agenciamento atento olho-mão-corpo-em-repouso-viajando sem sair do lugar - como um nômade preso a uma paisagem que não pára de se alterar. Os controles mobilizam e mantêm ligados os afetos nômades ao nómos dos controles, e o capitalismo os brande para produzir novas desterritorializações seguidas de axiomatizações ulteriores. Como ocorre com a esquizofrenia, o capital não toca o nomadismo como limite absoluto, mas o mobiliza como limite relativo.
De volta ao problema político da ontologia: como fazer comunicar, então, as partes não-totais, os fragmentos fechados ou os vasos não-comunicantes? Com a instalação ordenada de vínculos regulares compartilhados entre os fragmentos. Tudo o que aí se faz comunicar, transmitir, propagar, são informações. E informações são conjuntos de palavras de ordem. Palavras de ordem que nos fazem acreditar no que comunicam. Ou, se não o fazem, pelo menos exigem “que nos comportemos como se acreditássemos” (Deleuze, 2016, p. 340).
Enquanto as disciplinas constituíam corpos dóceis e úteis por confinamento, os controles informacionais são nomológicos e nomádicos. Comunicam e distribuem potenciais de individuação e informação por todo o socius em um regime múltiplo, vago e molecular de modulação soft do qual aprenderam a tirar a utilidade e a docilidade como efeitos de conjunto. Os controles são dispersões concentracionárias, centrípetas, que mantêm ligadas ao socius, aqui e ali, as dispersões nômades, centrífugas - as linhas de fuga que definem um campo social (Deleuze, 2016, p. 131).
A informação é, para Deleuze, “o sistema controlado das palavras de ordem que têm curso numa dada sociedade” (Deleuze, 2016, p. 341). É o nómos redundante do socius que os controles vetorializam. Sua função é repor o privilégio de um logos no cerne de um mundo que parecia privado dele. Ele é, também, o tensor de invenções e imitações, de desejos e crenças micropolíticas que organizam as partes dividuais não-totais, e favorecem uma composição regular entre fragmentos fechados, a comunicação entre vasos não-comunicantes.
Há duas razões pelas quais Deleuze define a informação como o conjunto das palavras de ordem que a comunicação transmite e faz circular em uma sociedade. Primeira, a informação - como a palavra de ordem de que depende - é um sistema de redundância. Ela remete apenas a outras informações e palavras de ordem. Um sistema de redundância é uma ordem circular antes de ser palavra (Deleuze; Guattari, 1995b); comunicação antes de ser informação. Por isso, a pólis platônica só se ampliava em círculo: porque as leis e a mousiké eram como caixas acústicas, aparelhos de ressonância, sintetizadores de redundância do logos.
Segunda, o nómos que relaciona informações e palavras de ordem não pode instanciar-se em si mesmo; remete a pressupostos implícitos, não-informacionais e não-linguísticos. Eles consistem em blocos de agenciamentos que Deleuze e Guattari (1995b) chamarão “concretos”, “materiais”, “sociais” e “jurídicos”. São eles que garantem que toda modulação incorporal, imaterial e de sentido seja inscrita nos corpos humanos e não-humanos, produza efeitos reais, circunscreva um território determinado. Não há as palavras, por um lado, e os corpos e as coisas por outro, mas um só plano de conteúdo-expressão.
A informação comunica o nómos que organiza uma sociedade, uma ecologia vária de termos e corpos heterogêneos, humanos e não-humanos, bem como os agenciamentos que a instanciam. Sua comunicação mesma é uma ordem; isto é, pressupõe um sistema de redundância. Ela reitera um logos, um sentido unívoco de forças de composição que tentam arrastar as multiplicidades, os divíduos, os fragmentos e as partes não-totais. O que emite são sentenças, informações que emanam de agenciamentos materiais, sociais, jurídicos, sensíveis - corpóreos e incorporais.
A informação é uma percussão. Uma batida. Um signo rítmico. O elemento mínimo que produz a pulsação primeira de um nómos. Ela funciona como arché e vetor organizador. Como um efeito pulsado de seu logos, em seguida, esquadrinha-se um território, organizam-se sistemas de controles e ecos, exigem-se e distribuem-se os corpos - exatamente como a onda acústica requer e mobiliza um meio material para se propagar.
4 De volta ao ritornelo: um nomo musical
O ritornelo nos reconduz ao centro do problema propriamente político dos controles, da comunicação e da informação como sistema de palavras de ordem, abrindo-lhes ao potencial modal e político da intensidade musical. Ele reinstaura um tempo não-pulsado e um território por constituir. Toma como ponto de partida a potência modal interna aos agenciamentos para a fuga, para a autoreversibilidade. Afinal, todo o problema reside nisso: como ultrapassar os agenciamentos presentes se não há um “fora”? Como fazer fugirem os próprios agenciamentos sem recusá-los, e sem nos evadir ou perder o contato com eles? Como romper o círculo da comunicação; atravessar a redundância da informação; liberar as forças e o material intenso que as palavras de ordem contêm?
Apenas ao captar a intensidade musical do nómos, podemos avançar numa política que exceda a medida e os agenciamentos dos controles a ponto de causar sua reversão. A potência modal da música e sua política residem em fazer desprender um tempo não pulsado de um tempo pulsado (Deleuze, 2016, p. 162). Libertar moléculas sonoras ali onde se acreditava modular notas ou tons puros segundo um código cromático.11 É que a música e o ritornelo maquinam “A desordem assustadora” (Deleuze, 2006b, p. 158).
O nomádico qualifica, agora, um nómos antilógico e simondiano que ultrapassa o nómos da informação e dos controles. Se Simondon (2020) denuncia a insuficiência técnica do modelo hilemórfico matéria-forma, é por duas razões: primeiro, porque “a ideia de lei [...] garante uma coerência a esse modelo, já que são as leis que submetem uma matéria a tal ou qual forma, e que, inversamente, realizam na matéria tal propriedade essencial deduzida da forma” (Deleuze e Guattari, 1997b, p. 90). Segundo, porque o modelo hilemórfico abstrai as singularidades e as hecceidades, tensionamentos, torções e traços de expressão que já estão na matéria em potencial - como as propriedades coloidais da argila, “carregada de formas potenciais” (Simondon, 2020, p. 40). Na operação de tomada de forma, é tanto uma força intrínseca e material que produz um tijolo quanto o seu molde pré-montado. Isto é, o modelo hilemórfico simplifica e abstrai no modelo matéria-forma, e no ato de moldagem, “uma materialidade que possui um nómos” (Deleuze e Guattari, 1997a, p. 90); isto é, está carregada de singularidades que não são nem formais nem materiais, mas desdobram-se ao longo de um phylum-maquínico: “a matéria em movimento, em fluxo, em variação” (Idem, p. 91).
Embora Deleuze e Guattari dêem o exemplo do artesão que segue a matéria-fluxo e as matérias de expressão que se prenunciam na madeira - as linhas, os veios e os nós que conduzem a intuição em ato da marcenaria -, e depois o exemplo da metalurgia, é no modo da intensidade musical desterritorializada que o nómos liga-se outra vez àquilo que ele pode.
A lenta mutação da máquina musical é atravessada por desterritorializações e territorializações: a precedência da voz e dos pássaros; a reterritorialização e a ressexualização binária e molar da voz em Verdi e Wagner; a instrumentação orquestral como nova maquinação da voz; a liberação de uma criança e uma mulher moleculares etc., “torna audível essa verdade de que todos os devires são moleculares. [...] [e] o molecular tem a capacidade de fazer comunicar o elementar e o cósmico” (Idem, p. 112). Na medida que a maquinação musical varia - como um sintetizador molecular instalado num espaço liso -, ela desprende dissoluções formais e liberações moleculares, mas também secreta reformalizações e calcificações molares. Nessa tensão dinâmica, ela arrisca ora reiterar, ora ultrapassar o limite do nomadismo codificado pelos controles e pelo capital.
Explicitamente, é no platô sobre o ritornelo que Deleuze e Guattari (1997a, p. 118) retomam o sentido musical de nómos: “Um ‘nomo’ musical é uma musiquinha, uma forma melódica que se propõe ao reconhecimento, e permanecerá como base ou solo da polifonia […]”. Isto é, o ritornelo é a matéria ondulatória e sonora que exprime a consistência musical de um rumor, de um vozerio, de uma gritaria. Ele é, portanto, a fórmula melódica em que multiplicidades privadas de logos - vozes, rumores, phoné - se afrontam, tensionam, decompõem e ganham nova consistência e velocidade.
O ritornelo é uma solução muito diferente da mousiké platônica. Ele não remete à música organizada, sistematizada, taxonomizada e dividida em gêneros estanques mantidos pela ciência vigilante de uma pequena elite de chefes perfeitos. O ritornelo não está sujeito ao sistema redundante do juízo logocêntrico que ordena a pólis em um círculo (Uno-Todo); tampouco precisa guardar fidelidade psicopolítica máxima às Leis da pólis e ao Eidos de Bem que elas inspiram.
O ritornelo extrai do caos um cosmos, mas mantém o caos como um milieu pré-individual prenhe de direções vetoriais, de matérias de expressão e de forças em estado livre. Caosmo. Se nele pode constituir-se uma redundância, esta não é forçosamente centrípeta e circular, e nem se amplia na obediência surda ao privilégio do logos ou ao ecumenismo do capital. As redundâncias se constituem precariamente, como efeito rítmico e expressivo que produz territorializações e derivas. Ele é um nómos muito diferente da lei e da pólis: um tipo de consistência duracional que se mantém unida à potência de saltar sobre o seu próprio território ou limite - e é assim, de maneira segunda, que sua consistência envolve um espaço - produzindo um bloco mutante, uma máquina de guerra que dura.
Se o ritornelo desempenha uma função territorial, já não será imaginando o território como o meio que uma lei afônica loteia e distribui, mas como “[…] produto de uma territorialização dos meios e dos ritmos” (Deleuze; Guattari, 1997a, p. 120). O ritornelo é o organizador do agenciamento e o fator de desterritorialização, de passagem ou de fuga do agenciamento dado.
O ritornelo contém uma dimensão a mais do que o nómos do controle e do capital - exatamente a que torna possível transpor o nomadismo dos controles e do capital como limite relativo. No caso do ritornelo, não se trata apenas de um agente de composição e de organização (isto é, um agente de tomada de fluxos e de componentes), mas de um fator de fuga do próprio agenciamento - em relação ao qual o território é segundo.12
Assim, um ritornelo pode ser a canção de uma criança no escuro, a seleção circular do ethos ou da morada, ou a improvisação que, ao romper o círculo e seu centro calmo, o acelera em uma linha de errância. Mas a linha de errância que um ritornelo exprime é sempre primeira. Como uma política que vem antes do ser, é a linha de errância do ritornelo que rompe a redundância, ou então se envolve na forma de um centro calmo, traça um círculo habitável, seja ele um ethos ou uma pólis.
Por isso, não deveria espantar que os textos em que Deleuze mais se contrapõe à comunicação e à informação sejam, principalmente, textos sobre música. Parecemos avançar vagamente em direção a um curioso “privilégio da orelha” (Deleuze; Guattari, 1997a, p. 165). É que a música recorda que a comunicação e a informação nada têm a ver com o visível. A rigor, nem com o enunciável. A música não é nada que se veja, nem que se possa contar. Dizer uma música a alguém é pôr-se imediatamente a cantarolar como uma criança ou uma mulher; pôr-se a assobiar como um pássaro. É um salto imediato em um material expressivo, molecular e intenso que não começou com uma notação inteligente e partitural, nem com uma divisão rítmica. Assim como a linguagem pode ser agramatical, a música pode ser atonal.
Tampouco é à toa que as mais belas páginas que Deleuze escreveu sobre a pintura tenham como tema o grito, e que ele seja invocado como a expressão gutural e sonora de tudo o que se afigura intolerável. Só se grita para exprimir o intolerável. Este estado que, entretanto, não existe como tal. O intolerável é algo que se torna. Um círculo de estorvos mínimos, de sujeições microfísicas. Uma matéria percebida infinitesimal que afeta e se acumula no sensível até não poder mais. E daí o grito. Dimensão antilogos da phoné que interrompe a redundância em que se forjou uma sensibilidade especial para o intolerável.
O grito é imaterial, como a impressão de uma frase musical (Deleuze, 2006b). E assim como a política nada tem de pessoal, um grito não é individual, mas princípio de individuação. Um grito pode reunir multidões ao seu redor ou despedaçar corpos políticos íntegros. Enquanto a informação pode sequestrar crenças, e a palavra de ordem pode extorquir comportamentos, só as canções arrastam os corpos, falam-lhes por si mesmas - embora nunca como logos. Seu regime de intensidades é inteiramente outro. Não mais o da unidade ontológica, nem o da totalidade orgânica, tampouco o da distribuição harmônica.
A intensidade musical do nómos também tem um regime. A desordem assustadora de Proust; a anarquia coroada de Artaud. Nenhuma delas “preocupada com o todo nem com a harmonia” (Deleuze, 2006b, p. 158). Mais do que a pintura ou a literatura, a música - não como disciplina estética organizada, mas como regime de intensidades, qualidade sonora e paisagem sônica - “produz movimentos forçados”, é “produção em estado puro” (Idem, p. 159).
Como ela pode colocar “em presença […] uma multiplicidade de durações heterócronas, qualitativas, não coincidentes, não comunicativas” (Deleuze, 2016, p. 164)? Como ela pode articular um tempo não pulsado, liberado da medida, sem lançar mão da consciência de um sujeito transcendental, portador da síntese do próprio espaço-tempo? É que a música incorpora antes de todas as artes, e antes mesmo da filosofia, a solução para o problema das multiplicidades. Uma solução que não passa pela unificação, pela totalização, pelo organismo. Ao lado da descoberta de moléculas sonoras, capazes de atravessar diferentes camadas rítmicas, a música inventa um tipo de individuação sem sujeito e sem identidade (Deleuze, 2016, p. 315) que já não combina uma forma com uma matéria. Há apenas seres musicais que não cessam de se individuar.
Ao invés de o som remeter a uma paisagem, a música se torna a portadora de uma paisagem sônica, carregada de moléculas sonoras heterócronas, de índices de individuação multivetoriais e de velocidades de desenvolvimento melódico, díspares e atonais. Sua consistência deriva do acoplamento livre, sem medidas cronométricas (Deleuze, 2016, p. 314), de um material sonoro ao conjunto de forças não sonoras, inaudíveis. É assim que reencontramos, na música, o ritornelo como operador maquínico. Ele funciona como fator de consistência para polifonias de vozes minoritárias, para gritos de populações moleculares, para o rumor dividual “do Um-Multidão” (Deleuze; Guattari, 1997a, p. 158). Ou então, funciona como um “sincronizador molecular” (Deleuze; Guattari, 1997a, p. 141) que articula as diferenças, elabora um material sempre mais rico, permite identificar a variação contínua, a passagem de uma ordem a outra, e o “diferente como tal” (Deleuze, 2016, p. 316).
Mas se “A música é uma política” (Deleuze, 1988, p. 26), também é porque há dois perigos potenciais na música. O ruído e o fascismo. O ruído ameaça a discernibilidade das diferenças e a consistência de um agenciamento. O ruído é uma síntese de disparates, uma multiplicação excessiva de linhas que apaga a discernibilidade entre os heterogêneos. O ruído os torna vagos e confusos, fazendo-os perder consistência. Rasurado pelo ruído, um ritornelo arrisca tornar-se uma redundância do território “assombrado por uma voz solitária” (Deleuze; Guattari, 1997a, p. 155). Operação que, a pretexto de abrir um emaranhado de sons, os apaga. White noise. Linha de proliferação tornada linha de abolição sonora (Deleuze, 2005, p. 321). De outro lado, o fascismo potencial da música. Ele reside na sua relação muito essencial e ambígua com o corpo. Mesmo imaterial, “o som nos invade, nos empurra, nos arrasta, nos atravessa. […] Ele nos dá vontade de morrer” (Deleuze; Guattari, 1997a, p. 166). Se as palavras de ordem podem emitir sentenças de morte, a música pode ser atravessada por uma pulsação assassina: “Não se faz um povo se mexer com cores. As bandeiras nada podem sem as trombetas” (Idem, loc. cit.).
A música produz corpos musicais, faz com que eles tomem forma, instaura ecologias no sensível. Não dizemos que a música é corporal apenas por sua capacidade de mobilizar os corpos, de atravessá-los fisicamente na qualidade de onda sonora; mas porque ela mesma faz um corpo musical, molecular, imaterial, e é capaz de padecer dos encontros com outros corpos, da súbita variação de velocidades, da montagem de blocos materiais que ora a isolam, ora a deixam difratar por uma fresta.
Como um corpo qualquer, os corpos musicais se definem por sua consistência sônica; isto é, por suas capacidades de afetar e de serem afetados, por sua maior ou menor inclinação em participar de variações. É nesse sentido que os corpos musicais encarnam, eles próprios, ecologias do sensível: gérmens de variações moleculares mais ou menos tensas, mais ou menos livres, potencialmente perigosas. A ambiguidade da música é precisamente esta. Ela vai do imaterial aos corpos, do gérmen ao soma. E então, os exige, os penetra, os recruta, mobiliza os corpos e os faz vibrar. A música pode produzir corpos sonoros harmonicamente fechados em círculos assassinos. Isso não ameaça a consistência, mas a petrifica como um cristal privado de diferença consigo.
Os dois perigos que cercam a música - o ruído, o fascismo potencial - são perigos de redundância. O primeiro, por perda de consistência e discernibilidade; o segundo, por cristalização e homogênese assassina. Ambos lançam o ritornelo em um círculo fechado - seja por vagueza e confusão, seja por mobilização assassina dos corpos. Um ritornelo sempre pode comunicar palavras de ordem, fazer ressoar buracos negros, converter-se em um refrão fascista ou em um estribilho viscoso. Sempre arriscamos retroceder à unidade ou ao fechamento circular.
O fato de que o ruído e o fascismo também sejam potenciais da informação e da comunicação deveria bastar para avançar o sentido musical do nómos. Ele se desenvolve na ambiguidade de pensar o nómos dos controles e da informação como música, e a música como uma política que precede o ser e prolonga o antilogos. Um materialismo radical povoado de moléculas insondáveis e de populações moleculares. Talvez elas preparem mais do que vacúolos de não-comunicação, interruptores de redundâncias ou condições de sobriedade contra o ruído. Quem sabe maquinem um rumor nos corpos, um vozerio inumano, um grito dividual contra o intolerável. Gérmen musical do corpóreo. Co-presença de um outro nómos.
5 Três considerações finais...
Como num refrão que espirala, este ensaio volta ao ritornelo para explorar as consequências jurídicas e políticas do nómos musical em Deleuze e Guattari. Não porque ele seja um riff ou um refrão-chiclete, mas porque o nómos musical deixa pensar outros nómoi do direito - distantes da psicopolítica musical logocêntrica que conforma a pólis clássica (Sócrates, Platão, Aristóteles), mas também da violência da hybris da tomada de terra schmittiana e sua política exceptiva.
Ser nômade é criar um espaço liso, ocupá-lo e recusar-se a abandoná-lo. Uma espécie de vagabundagem ou itinerância que acontece nas franjas adjacentes à pólis. O barulho da cidade não deixa ouvir nenhum trinado das flautas pastorais. É que o nómos musical é um composto de transversais errantes e não-euclidianas - para além da lei e da sua exceção - que intercepta os nómoi jurídico e político nas suas pontas de desterritorialização. Aí, ele arrisca produzir liberações moleculares e de materiais de expressão cujas direções imanentes, aceleradas em sentido absoluto, poderíamos seguir. Ao mesmo tempo, ele redescobre a heterogeneidade dos materiais agenciáveis que esses nómoi organizam.
Um nómos agencia sempre muito mais do que pessoas, coisas e palavras; muito mais do que espaços, territórios, arquiteturas ou paisagens. Cada um desses termos já são agenciamentos inteiramente formados. Quando Deleuze e Guattari dizem que um ritornelo sempre carrega consigo um pedaço de terra, não significa que as canções sejam territoriais, mas que os territórios são musicais, e que o ritornelo é primeiro. Como os nômades basquírios compreenderam bem, um relevo varia subindo e descendo numa polirritmia; a vida se move por toda parte numa dissonância melódica universal que, no entanto, consiste; um território é um composto de afectos sônicos que se propagam no ar, na água, na terra, e circulam entre os corpos. O caosmos é feito de danças moleculares agitadas num nómos musical.
O problema não está na lacuna ou na subproblematização que vimos impedir o nómos musical de se desenvolver nos enigmas jurídico, político e ontológico. O problema é que a ausência da sua transversal musical fecha os nómoi jurídico e político sobre si mesmos. Impede a liberação dos materiais intensos, expressivos, imanentes, que eles organizam e encerram, e esmaga suas pontas de desterritorialização. O problema não é estético sem ser materialista.
Voltar ao ritornelo arrisca liberar um sem-número de elementos moleculares que podem operar reconversões subjetivas na medida que colocam a subjetividade em contato com novas e intensas matérias de expressão. Em primeiro lugar, o ritornelo reposiciona o enigma ontológico do múltiplo e do Uno nos termos de um problema político, de composição e de relações ontologicamente constitutivas dos seus termos.
A solução do ritornelo é antiplatônica e contra-aristotélica. Não passa pela ideia clássica de lei ou por seu hilemorfismo. Descerra, ao contrário, a partir do nómos musical, o potencial de liberação molecular de matérias expressivas (singularidades, hecceidades) que podem ser, então, seguidas, prolongadas, como fluxos vetoriais de reversão e desterritorialização de um agenciamento dado. O nómos musical coalesce com o ato de criar e ocupar um espaço liso, nomádico, que embora contíguo ao estriado e sedentário, moleculariza e minoriza pontas das estratificações molares a fim de maquinar suas fugas. Tudo que é sólido se desmancha no som. Mas não basta partir, fugir, evadir-se, evolar-se. É preciso dar consistência a essa nova configuração.
Em segundo lugar, voltar ao ritornelo e ao nómos musical nos deixa captar como a lei e o direito se transformam e divergem na passagem das sociedades disciplinares às sociedades de controle. Isso não contribui apenas para iluminar aquilo que o nómos jurídico estaria se tornando, mas fornece uma nova compreensão do nómos da informação e dos controles. Ao mesmo tempo que relaciona seus perigos (o ruído, o fascismo), essa abordagem mostra como ele se organiza a partir da mais recente desterritorialização capitalista.
Porém, ao invés de nos lançar aos determinismos técnico-econômicos, ou ao beco politicamente sem saída da reiteração infinita que o regime de governo da informação supostamente nos prepara, o ritornelo é uma repetição geradora da diferença - como uma espiral, não como um círculo. Ele é sensível às geometrias vagas - itinerantes, vagabundas -, e assinala que mesmo nas dimensões mais molares de um agenciamento dado podemos espreitar reversões e fugas.
Em terceiro lugar, numa direção que não pudemos explorar, há consequências poderosas em afirmar que um nomo musical não é, por definição, nem etnológico, nem humano. A música aparece como uma comunicação diagonal e possível entre elementos moleculares, cósmicos e não-humanos. O ritornelo testemunha a dimensão ao mesmo tempo etológica (a melodia cântica dos pássaros, a orquestração polisônica dos insetos), minoritária (os devires-criança, -mulher, -animal na música, mas também a homossexualidade vegetal e molecular que secunda o refrão proustiano) e composicional de um cosmos. Isto é, uma política de composição de multiplicidades que retorna ao problema da univocidade e da diferença sem passar pelo Uno, pela totalização, pela síntese ou pelas figuras do idêntico.
Não é o nómos musical que nos permitiria pensar assim ou de outra maneira. Mas ele torna audíveis forças inaudíveis em cuja presença já estamos. Ressoa com as pontas desterritorializadas de uma materia percipiendi. Compõe com matérias expressivas que o logos ou a hybris só poderiam tocar negativamente e por esmagamento. Sua função não é nos dar um nómos novo, idílico e pacificado, mas alterar as ecologias do sensível. Fazer entreouvir os possíveis que decorrem do potencial molecular e modulador do nómos musical. Nunca uma música - boa ou ruim - mudou coisa alguma. Nossa aposta é a de que a menor frase musical pode fazer sensíveis as porções reais dos agenciamentos em curso onde as lutas mudam.
Referências
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Notes