Artigos inéditos

Direito ao luto: a construção internacional do direito ao luto dos familiares de vítimas de desaparecimento forçado

The right to mourn: the international construction of the right to mourn of relatives of victims of enforced disappearance

Andrea Schettini
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil
Maria Izabel Varella
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil

Direito ao luto: a construção internacional do direito ao luto dos familiares de vítimas de desaparecimento forçado

Revista Direito e Práxis, vol. 15, no. 4, e74783, 2024

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Received: 06 April 2023

Accepted: 21 January 2024

Resumo: Este trabalho busca mapear, a partir de um diálogo entre organismos internacionais de direitos humanos, alguns dos contornos jurídicos do direito ao luto dos familiares de vítimas de desaparecimento forçado. Pretende-se refletir sobre as potencialidades, as tensões e os limites que derivam da emergente construção jurídica internacional do direito ao luto, levando em consideração a experiência da justiça de transição brasileira. Sustenta-se que o direito ao luto carrega em si uma problemática central: por um lado, é certa a necessidade de se criar respostas jurídicas capazes de efetivamente amparar a condição específica dos familiares de pessoas desaparecidas, mas, por outro lado, são muitos os limites do direito diante de um processo tão singular e complexo quanto o luto. Em outros termos, pode-se afirmar que a emergência do direito ao luto no plano internacional, ainda que importante (como ferramenta de reparação e de combate à violência de Estado), precisa, a todo tempo, enfrentar os limites do direito frente ao singular processo de luto das famílias.

Palavras-chave: Desaparecimento forçado, Direito ao luto, Direitos Humanos, Justiça de transição.

Abstract: This paper seeks to map, through a dialogue between international human rights organizations, some of the legal contours of the right to mourn of relatives of victims of enforced disappearance. This paper seeks to reflect on the potentialities, tensions and limits that emerge from the international legal construction of the right to mourn, considering the Brazilian transitional justice experience. It is argued that the right to mourn carries a central problem: on the one hand, there is a clear need to create legal responses capable of effectively supporting the specific condition of the relatives of missing persons, but, on the other hand, there are many limits of the law when dealing with a process as singular and complex as mourning. Throughout the development of this study, we sought to demonstrate that the emergence of the right to mourn at the international level, although important (as a tool to combat state violence) must, permanently, deal with the limits of the law in the face of the families' unique mourning process.

Keywords: Enforced disappearance, Right to Mourn, Human Rights, Transitional Justice.

Introdução1

O que significa falar em um direito ao luto? Como pensar os seus possíveis contornos jurídicos? Quais os limites, as tensões e as potencialidades do direito frente ao singular processo de luto dos familiares de vítimas de graves violações de direitos humanos (em especial, de desaparecimento forçado)? São essas as questões que estruturam o presente trabalho, guiando-nos no estudo da relação entre o direito, o luto e a memória. Mais precisamente, buscamos mapear, a partir de um diálogo entre organismos internacionais de direitos humanos e de direito humanitário2, alguns dos contornos já existentes do que poderíamos chamar de um direito humano ao luto, do qual decorrem tanto direitos dos familiares das vítimas de graves violações de direitos humanos, quanto deveres impostos aos Estados. Sem desconsiderar a natureza multidisciplinar desse tema - trabalhado pela psicanálise, medicina-forense, antropologia, filosofia, dentre outros campos do saber --, centramos nossa pesquisa nos contornos jurídicos do direito ao luto, bem como nas principais tensões que emergem da relação entre a natureza normativa do direito e o singular processo de luto dos familiares de pessoas desaparecidas.

Partindo de tais questões, sustentamos a hipótese de que o direito ao luto é uma construção emergente no plano internacional e que revela uma problemática central: por um lado, é certa a necessidade de se criar respostas jurídicas capazes de efetivamente amparar a condição específica dos familiares de pessoas desaparecidas e, por outro lado, são muitos os limites do direito diante de um processo tão singular e complexo quanto o luto. Apesar de não estar expressamente estabelecido no âmbito normativo do Direito Internacional dos Direitos Humanos e do Direito Internacional Humanitário, a atuação de organismos internacionais -- sobretudo aqueles protagonistas em matéria de prevenção e repressão ao desaparecimento forçado de pessoas -- apontam para alguns dos possíveis contornos jurídicos desse direito. A expressão “direito ao luto” tem sido utilizada em documentos produzidos por tais organismos, como se verá ao longo deste artigo, e parece aglutinar sob essa nomenclatura uma série de medidas de memória, verdade, justiça e reparação já previstas de maneira mais ou menos esparsa no plano internacional.

Sendo assim, o artigo divide-se em quatro partes. A primeira apresenta algumas considerações sobre o conceito jurídico de desaparecimento forçado de pessoas. A segunda trata das especificidades do processo de luto dos familiares de pessoas desaparecidas. A terceira mapeia e sistematiza alguns dos principais contornos já existentes do direito ao luto, desenvolvidos no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (pela Corte e pela Comissão Interamericana), de mecanismos de direitos humanos da Organização das Nações Unidas (como o Comitê de Direitos Humanos, o Comitê sobre Desaparecimento Forçado, o Grupo de Trabalho sobre Desaparecimentos Forçados ou Involuntários e o Relator Especial das Nações Unidas para Execuções Sumárias, Arbitrárias e Extrajudiciais) e do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV). A quarta e última parte apresenta algumas reflexões sobre as potencialidades, as tensões e os limites que emergem da construção jurídica de um direito ao luto, levando em consideração a experiência da justiça de transição3 brasileira.

De um ponto de vista metodológico, este trabalho desenvolveu um diálogo construtivo entre diferentes organismos internacionais de Direitos Humanos, visando iluminar os contornos do direito ao luto dos familiares de pessoas desaparecidas. A escolha dos acima referidos organismos justifica-se tanto pela relevância do trabalho que desempenham em matéria de busca de pessoas desaparecidas e de proteção dos direitos dos familiares, quanto pelo debate que têm desenvolvido em torno dos deveres dos Estados diante de situações de morte violenta e de cuidado com os corpos das vítimas. Como fontes centrais da pesquisa, utilizamos documentos normativos e jurisprudenciais4 produzidos pelos organismos internacionais versando sobre os direitos dos familiares de pessoas desaparecidas e o respeito a seus processos de luto. Por sua vez, a experiência da justiça de transição brasileira foi abordada à luz dos relatórios finais de duas comissões da verdade que investigaram o desaparecimento forçado de pessoas no Brasil, trazendo em seu texto alguns dos testemunhos dos familiares das vítimas: a Comissão Nacional da Verdade (2012-2014) e a Subcomissão da Verdade na Democracia Mães de Acari (2015-2018) 5.

Por fim, é preciso esclarecer que se aqui optamos por iluminar os contornos jurídicos do direito ao luto, não foi para enaltecer acriticamente o discurso jurídico ou para priorizar as análises de organismos internacionais frente à atuação de instituições locais ou movimentos sociais. É certo que o combate ao desaparecimento forçado de pessoas em nosso país - seja de longa data ou recente - tem sido, desde sempre, protagonizado pelas famílias e, em especial, pelas mães6 das vítimas da violência de Estado. Este trabalho não se presta, portanto, a tentar concluir ou encerrar os debates aqui trazidos. Muito pelo contrário, o recorte escolhido, ao mapear e sistematizar contornos jurídicos internacionais do direito ao luto, pretende contribuir pontualmente, com sua análise, para a construção de possíveis ferramentas de reparação e de combate à violência de Estado, em especial ao desaparecimento forçado de pessoas.

1. Fazer desaparecer corpos: notas sobre o conceito de desaparecimento forçado de pessoas

A prática do desaparecimento forçado de pessoas marcou a história recente dos países do Cone Sul Americano, tendo sido implementada, sobretudo a partir dos anos 1970, como política de Estado pelas ditaduras militares que assolaram a região (BAUER, 2011; TAVARES, 2011). Após detidos, torturados e executados, milhares de militantes políticos, que lutavam contra os governos autoritários, tiveram seus corpos ocultados em cemitérios e valas coletivas, incinerados em centros clandestinos ou despejados no mar e em rios. Vimos surgir à época uma nova configuração de poder - o "poder desaparecedor" (CALVEIRO, 2013) -, cujo objetivo central consistiu em calar os corpos, silenciar as memórias e disseminar o terror de Estado.

No Brasil, à época da ditadura militar (1964-1985), ao menos 243 pessoas foram vítimas de desaparecimento forçado, totalizando mais da metade das vítimas fatais da ditadura7, segundo consta no relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV) (BRASIL, 2014, v.3, p.826). Vale lembrar que, em setembro de 1990, foi localizada em São Paulo a vala clandestina de Perus, construída no período ditatorial no Cemitério Dom Bosco, a fim de ocultar corpos de vítimas da repressão (TELES, 2018). Nela, foram encontrados 1.049 sacos com remanescentes ósseos - de pessoas enterradas como indigentes, vítimas da atuação de esquadrões da morte, crianças vitimadas pelo surto de meningite, censurado nos anos 70, e de perseguidos políticos assassinados pelo governo ditatorial (Ibidem, p. 313) - , que ainda aguardam identificação. Em 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) responsabilizou o Brasil pelo desaparecimento de pelo menos 64 camponeses e militantes da Guerrilha do Araguaia entre os anos de 1972 e 1974, mas muito pouco foi feito, até o momento, para se garantir a busca e a entrega dos restos mortais às famílias. O delito de desaparecimento forçado ainda não foi tipificado em nosso país e centenas de familiares de desaparecidos no contexto ditatorial permanecem, até hoje, sem informações sobre a sorte ou o paradeiro de seus entes queridos, ocultados pelo Estado brasileiro.

O "ato de fazer desaparecer" é, contudo, uma prática anterior à ditadura militar e persiste na sociedade brasileira mesmo após a transição democrática8. Como bem apontam Florentino e Silva, o desaparecimento forçado de pessoas tem sido utilizado, na história brasileira, "como um dispositivo de terror de Estado que atravessa distintas formações sociais” desde o processo de colonização (2023). Mas se, no regime militar, "o desaparecimento forçado foi uma política de Estado para fins de repressão política", Fábio Araújo esclarece que, atualmente, ele se tornou uma "prática da linguagem da violência urbana" (2016, p.47):

A região metropolitana do Rio de Janeiro permanece repleta de cemitérios clandestinos. Uma mãe cujo filho estava desaparecido, disse-me certa vez que, “caso se queira pesquisar os casos de desaparecimento, pode-se começar drenando todos os rios da cidade”. A violência policial, a ação de milícias e os conflitos armados envolvendo facções que atuam no comércio de drogas ilícitas territorializado nas “bocas” têm gerado um alto número de mortes, principalmente de jovens, do sexo masculino, negros e moradores de favelas e bairros pobres. Parte dessas mortes, produzidas pela violência policial, têm sido classificadas como autos de resistência (Farias, 2014; Zaccone, 2015). Além disso, uma hipótese a ser problematizada é se uma fração de homicídios, praticada com a participação de agentes estatais, vem sendo ocultada através do recurso ao desaparecimento. Não dispomos de dados suficientes, porque eles não são disponibilizados pelo poder público, para estabelecer uma relação entre números de autos de resistência e de desaparecimentos forçados. No entanto, há indícios de que isso ocorre repetidamente, como registros de ocorrência, relatos de familiares, reportagens jornalísticas, informações registradas através das linhas telefônicas do Disque-Denúncia, depoimentos de autoridades públicas (ARAÚJO, 2016, p.47).

De acordo com o relatório final da Subcomissão da Verdade na Democracia "Mães de Acari", o desaparecimento forçado deve ser atualmente encarado no Brasil como uma prática seletiva, sistemática e sistêmica. Seletiva porque atinge prioritariamente um grupo populacional específico, também vitimado pelos "autos de resistência" (homicídio por intervenção policial): moradores de favela, negros e jovens. A enorme maioria dos casos trabalhados no relatório descreve situações similares: "as pessoas foram vistas sendo abordadas por policiais, colocadas em um carro e depois nunca mais foram vistas". Sistemática porque, apesar da transição democrática, tanto a tortura quanto a execução sumária e o desaparecimento forçado tornaram-se práticas institucionalizadas e ainda mais recorrentes. E sistêmica porque não envolve somente o agente público, mas "um conjunto de instituições estatais incapazes de responder adequadamente às fases investigatórias e processuais que poderiam levar à responsabilização dos culpados" (RIO DE JANEIRO, 2018a, p.7).

Nos diferentes contextos - e sem que isso implique ignorar as muitas especificidades históricas e políticas (em especial os recortes de raça, gênero, classe e território, imprescindível para a compreensão dessa prática em nosso país9) -, o desaparecimento forçado chama atenção sobretudo por sua dupla negação da humanidade da vítima: perante o Estado que a violenta e some com seu corpo, e perante sua própria família, que permanece incapaz de narrar sua história. É precisamente a ausência do corpo que faz com que a violência de Estado atinja seu potencial mais radical, determinando quais vidas podem ser aniquiladas sem que a morte constitua sequer um fato passível de luto e de reconhecimento. A vítima do desaparecimento forçado literalmente desaparece, se desvanece sem que fiquem registros de sua morte: no limite mais perverso dessa prática, prevalece a lógica de que se não há corpo, não há violência visível a ser condenada.

A gravidade da conduta estimulou a consolidação normativa do conceito de “desaparecimento forçado” no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, sobretudo a partir do final da década de 1980: um conjunto de condutas praticadas por agentes do Estado (ou particulares que atuam com a autorização, apoio ou conivência estatal) envolvendo a privação da liberdade de uma ou mais pessoas, seja de que forma for, seguida da execução, da ocultação de cadáver e da falta de informação ou recusa do Estado de reconhecer a privação da liberdade ou de informar sobre o paradeiro da pessoa. Disto decorre não somente a incerteza sobre o paradeiro da vítima como também a impossibilidade de se fazer uso dos recursos legais e das garantias processuais pertinentes para se buscar e identificar a vítima10.

De acordo com a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, trata-se de uma violação múltipla, autônoma e permanente. Múltipla porque afeta uma série de direitos, como os direitos à vida, à liberdade, à integridade física, à personalidade, ao acesso à justiça. Autônoma porque constitui uma categoria própria que não se confunde com outros delitos, como o sequestro e a ocultação de cadáver. Continuada porque só cessa depois de conhecido o paradeiro da vítima e identificados seus restos mortais (CORTE IDH, 1998, 2009, 2010, 2013). A proibição do desaparecimento forçado encontra-se atualmente estabelecida em tratados e convenções tanto de Direitos Humanos como do Direito Internacional Humanitário (quando no contexto de conflitos armados)11 e do Direito Internacional Penal12, tendo alcançado o status de norma de jus cogens (CORTE IDH, 2006a, para.84) - proibição inderrogável compartilhada pela comunidade internacional.

Fortemente associado a execuções arbitrárias e ilegais, o desaparecimento forçado é, na maioria dos casos, o resultado de uma morte violenta e da posterior ocultação do cadáver da vítima pelo Estado, como meio de se encobrir provas e garantir a impunidade dos perpetradores. Conforme destaca a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), as execuções extrajudiciais são uma forma de consumação dos desaparecimentos forçados e, por isso, a prevenção do desaparecimento engloba necessariamente o respeito a uma série de parâmetros voltados para os cuidados com os corpos de vítimas da violência de Estado: identificação, coleta de provas, perícia, armazenamento e registro (CIDH, 2019, p. 351).

Nota-se que a categoria de desaparecimento forçado, em razão da própria natureza da conduta, é constituída por um elemento aparentemente contraditório: ao mesmo tempo em que é provável, e por vezes quase certo, que tenha ocorrido uma morte violenta, a ausência do corpo demanda, pelo menos de início, que a busca seja conduzida sob a pressuposição de que a vítima está viva (ONU. COMITÊ SOBRE DESAPARECIMENTO FORÇADO, 2019). É certo que a depender do contexto - desaparecimentos de longa data (como na ditadura militar brasileira), desaparecimentos produzidos em conflitos armados, massacres ou contextos de graves violações de direitos humanos; desaparecimentos frutos da violência urbana e policial; desaparecimentos em contextos migratórios - tal contradição se faz mais ou menos presente. Mas do ponto de vista do sofrimento das famílias, essa é provavelmente uma das questões centrais a serem levadas em consideração. Estar diante de uma provável "morte sem corpo" faz com que cada família vivencie esse processo de maneira singular: algumas consideram que seus entes queridos foram assassinados, enquanto outras mantêm a esperança de encontrá-los com vida.

Com efeito, desde o início da consolidação do conceito de desaparecimento forçado no plano internacional, o sofrimento das famílias tem sido uma preocupação central. Já no final da década de 1970, a Comissão Interamericana qualificou o desaparecimento como uma "verdadeira forma de tortura" para os familiares e amigos das vítimas em razão da incerteza sobre o paradeiro do ente querido e da impossibilidade de lhe conferir assistência legal, moral e material (CIDH, 1977). Posteriormente, em 1980, no Relatório sobre a situação dos direitos humanos na Argentina, o órgão chamou atenção para o sofrimento e os transtornos psicológicos que a privação de contato com as vítimas causava aos familiares (CIDH, 1980). A jurisprudência interamericana deu ainda outro passo importante ao consolidar o entendimento de que os familiares das vítimas de desaparecimento forçado são também considerados, eles próprios, vítimas diretas de tal conduta. Isso porque, considera-se que a privação da verdade sobre o paradeiro da vítima - diante da falta de informações e da abstenção das autoridades estatais de buscar, investigar e reparar o crime - acarreta sofrimento físico e psicológico às famílias, equiparável a uma forma de tratamento cruel e degradante13.

A proteção dos direitos dos familiares de pessoas desaparecidas encontra-se consolidada no âmbito internacional, seja na jurisprudência da Corte IDH, nos relatórios da CIDH, nos trabalhos dos mecanismos de direitos humanos da ONU ou na atuação do CICV. A título de exemplo, podemos mencionar alguns dos mais importantes parâmetros já estabelecidos, como: o direito dos familiares de conhecer o destino da vítima e saber a verdade dos fatos14; o direito de se ter acesso aos restos mortais da pessoa desaparecida15; o direito dos familiares de participarem do processo de busca16; o direito dos familiares de realizarem cerimônias fúnebres, de acordo com as suas tradições culturais e religiosas17; o direito de acesso à justiça18; o direito de reparação dos familiares (reabilitação, compensação, não-repetição)19.

Sendo assim, ainda que não haja um reconhecimento expresso normativo de um direito humano ao luto no plano internacional, alguns contornos jurídicos já vem sendo desenhados20. A constatação de tal lacuna não faz desaparecer o problema: por um lado, a necessidade de se criar respostas jurídicas capazes de efetivamente amparar a condição específica dos familiares de pessoas desaparecidas e, por outro lado, os limites do direito diante de um processo tão singular quanto o luto.

2. Uma morte sem corpo e sem sepultura: as especificidades do processo de luto dos familiares de pessoas desaparecidas

O processo de luto pode ser compreendido como a “elaboração de uma perda”, ou melhor, “um período de dor e sofrimento afetivo devido à perda de um objeto amado (que pode ser a morte de um ser querido, a perda de um objeto significativo, trabalhos, ideias, valores ou um modo de vida)” (PORTILLO; GUILIS, 2007, p. 251). É através do trabalho de luto que a pessoa consegue, de forma progressiva, lidar com a perda e, consequentemente, desapegar-se do objeto amado, incorporando-o à memória. Em outras palavras, trata-se de um processo de enfrentamento da perda e de reorganização da vida, que resulta na transformação da relação com a pessoa morta e na possibilidade de se continuar vivendo sem ela (FRANCO; TINOCO; MAZORRA, 2017, p 139). Este é, com efeito, um processo “normal e necessário”, ainda que extremamente doloroso e singular, o que traz desafios quase intransponíveis para o campo do direito com suas tendências normatizantes e universais. As noções de morte, de perda, de luto e de sofrimento, bem como as práticas a elas relacionadas, são sempre atravessadas pelas culturas e pelos diferentes sistemas de referenciais valorativos, políticos, históricos e religiosos dos sujeitos (PORTILLO; GUILIS, 2007, p.252).

Para além de uma dimensão subjetiva, o processo de luto possui necessariamente uma dimensão política. Ele ultrapassa a esfera privada e insere-se no seio da política, produzindo importantes implicações de cunho ético (BUTLER, 2004, p.22-23). A questão política reside precisamente na constatação de que algumas vidas são mais passíveis de luto do que outras, reiteradamente negadas e excluídas da esfera do real (Ibidem, p.30-33). Sem o reconhecimento da morte, pelo Estado e pela sociedade, não há luto público, individual ou familiar possível. O processo de luto diz respeito ainda à construção da história, pois o modo como é realizado (ou não) permite que conheçamos as maneiras pelas quais uma determinada sociedade elabora e narra o seu próprio passado. Isso fica ainda mais evidente em contextos de graves violações de direitos humanos, como aqueles percebidos em casos de ditaduras, massacres, conflitos armados e sistemáticas violências de Estado, quando as vítimas e seus familiares têm seu processo de luto dificultado, ou mesmo impedido, em razão do não reconhecimento, na esfera pública e política, da violência sofrida. Trata-se de uma consequência direta da ausência de justiça e de reparação, bem como da adoção de políticas oficiais negacionistas.

No caso dos familiares de pessoas desaparecidas, o processo do luto ganha contornos ainda mais específicos. A impossibilidade de conhecer o destino de um familiar desaparecido impõe, em geral, uma complexa condição de sofrimento às famílias, na medida em que passam a conviver, por um lado, com o fato da ausência e, por outro, com a incerteza da morte e a consequente esperança de retorno do ente querido. O desconhecimento do destino da pessoa desaparecida tende a dificultar ou mesmo a impedir que se tenha início o processo de luto dos familiares, na medida em que o luto supõe a certeza de que o objeto amado foi perdido e não voltará.

Como explica Fabiana Rousseaux, enquanto a morte é um buraco no real, o luto é um buraco no simbólico e a sua elaboração é precisamente uma tentativa de contornar esse buraco (ROUSSEAUX, 2000). O desaparecimento forçado contraria, nesse sentido, os próprios princípios da existência humana, na medida em que impede tanto a morte quanto o luto: "ele se instala no espaço que vai desde a incerteza até a construção de uma morte" - trata-se de um fato não inscrito (pela própria desaparição do corpo) que permanece à espera de sua nomeação, reparação e sanção (Idem). Segundo Catela, estamos diante de uma "morte inconclusa" (CATELA, 2014, p. 123), na qual os familiares de vítimas desaparecidas, ao invés de enfrentarem a morte através da concentração do espaço-tempo, acabam por esperar, buscar e abrir espaços indefinidamente:

esperam a volta do ser querido vivo, buscam pistas, informações precisas sobre o lugar, o modo e a data da morte, esperam o reconhecimento dos corpos, exigem respostas do Estado, desejam punições pelos desaparecimento. (Idem)

Nesse sentido, a ausência do corpo, a impossibilidade de realização de ritos funerários e as incertezas sobre as circunstâncias da morte do ente querido constituem verdadeiros obstáculos para a elaboração do luto (CATELA, 2017, p. 50). Como explicam Portillo e Guilis, é extremamente difícil iniciar um processo de luto quando não se tem a certeza da perda do objeto (diante da ausência do corpo), posto que aceitar a morte de um familiar desaparecido torna-se subjetivamente equivalente a matá-lo, o que traz profundos sentimentos de culpa (PORTILLO; GUILIS, 2007, p. 252). Em testemunho, prestado em 2018 à Subcomissão da Verdade na Democracia Mães de Acari, Izildete dos Santos, mãe de Fábio Eduardo de Sousa - jovem, negro, morador de Queimados, na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, que desapareceu em 2003, após ser abordado por homens dos quais, pelo menos um, há forte suspeita de ser policial militar - recusa-se a falar do filho no passado, mesmo após 15 anos do desaparecimento:

Não, Fábio ainda não morreu. Eu ainda não tive resposta. (...) Pra mim, ele ainda tá por aí. O Estado ainda não me deu uma decisão (RIO DE JANEIRO, 2018a, p.17).

O desaparecimento forçado inaugura, assim, uma situação de vulnerabilidade específica às vítimas e aos seus familiares, o que impõe responsabilidades também específicas para os Estados, a serem implementadas durante os procedimentos relacionados ao desaparecimento, desde a obrigação de iniciar buscas efetivas até a realização de ritos funerários culturalmente adequados, caso haja indícios suficientes de morte. Como ressalta Beristain, os processos de busca, exumação, identificação e entrega dos restos mortais produzem impactos psicossociais importantes para as famílias, posto que permitem a construção e a atribuição de valores simbólicos àquela perda (BERISTAIN, 2010, p.323). É o que se percebe no testemunho de Gertrud Mayr, mencionado no relatório final da CNV. À época do regime militar brasileiro, seu filho, Frederico Eduardo Mayr, foi preso, torturado, morto e enterrado no Cemitério Dom Bosco, em Perus, São Paulo, permanecendo como um desaparecido até 13 de julho de 1992, quando sua ossada foi identificada e a família pôde sepultá-lo. Foi somente nesse momento que Gertrud sentiu-se reparada:

Senti-me gratificada e só agora, com a identificação, com o traslado e o sepultamento, é que a coisa foi consumada. Antes era uma coisa só para dentro, não que eu não quisesse tirar de dentro de mim, mas eu não conseguia, não saía. Agora é o normal, acontece com qualquer pessoa: morrer e ser enterrada. Eu comecei a viver (essa normalidade) só agora (BRASIL, 2014, vol.1, p.505).

Ainda que em diferentes contextos, a prática do desaparecimento forçado nos coloca, portanto, diante de uma espécie de "morte sem corpo e sem sepultura" e expõe uma forma de violência capaz de negar a si própria, como se tal conduta, tal dor e tal trauma nunca tivessem ocorrido no passado. Apaga as marcas, os corpos e as memórias, definindo quais vidas são passíveis de luto. Aos desaparecidos, atribui-se um espaço de indeterminação em que não são qualificados nem como vivos nem como mortos, e uma temporalidade própria, em que passado e presente não são passíveis de distinção. A eles é negado o ritual simbólico do sepultamento, cuja principal função consiste, não apenas em honrar a memória do morto, como também em marcar a ruptura com o passado e a abertura para o presente. Sem o corpo, sem o rito e sem o luto, os desaparecidos transformam-se em uma ausência permanente.21

3. Os contornos jurídicos do direito ao luto

Ainda que não haja previsão normativa expressa de um direito humano ao luto, fato é que tal expressão vem sendo utilizada por organismos internacionais de Direitos Humanos e de Direito Humanitário e parece aglutinar sob essa nomenclatura uma série de medidas de memória, verdade, justiça e reparação já previstas de maneira mais ou menos esparsa no plano internacional. Mapeamos, a seguir, algumas das principais contribuições do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, do Sistema ONU e do Comitê Internacional da Cruz Vermelha.

3.1. Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH)

O Sistema Interamericano tem desenvolvido importantes parâmetros para a proteção dos familiares de vítimas de desaparecimento forçado. Um de seus principais pilares foi a construção jurisprudencial de um direito à verdade, que inclui o direito dos familiares de saberem a verdade sobre o que ocorreu com seus entes queridos, de tomarem conhecimento do paradeiro das vítimas e de terem acesso aos seus restos mortais, bem como o direito de investigar e sancionar os responsáveis (CIDH, 2014, p.33). Acresce-se, ainda, o já mencionado reconhecimento pelos órgãos do SIDH do sofrimento dos familiares, considerados vítimas diretas do desaparecimento forçado, em razão da violação de sua integridade física e psíquica (CORTE IDH, 2021, para. 90).

Tanto a Comissão quanto a Corte Interamericana sustentaram expressamente o dever dos Estados de respeitarem o processo de luto dos familiares de vítimas de graves violações de direitos humanos e, em especial, de desaparecimento forçado. Mesmo sem aprofundarem o tema, tanto a Corte IDH quanto a CIDH sustentam que a incerteza sobre o paradeiro das vítimas impede a possibilidade de luto dos seus familiares. Nesse sentido, defendem que: (i) a entrega dos restos mortais das vítimas permite que os familiares iniciem o processo de luto e a reconstrução de suas vidas (CIDH, 2014, p.30; CORTE IDH, 2012b, para.331); (ii) é direito dos familiares, no processo de elaboração do luto, realizar as cerimônias fúnebres de acordo com as suas tradições culturais e religiosas (CIDH, 2018a, p.313; CORTE IDH, 2017, p.154); (iii) os pedidos de perdão são uma importante medida de restauração da dignidade das vítimas e parte essencial do processo de luto (CIDH, 2018b, p.69); (iv) é dever do Estado garantir assistência psicológica à família durante e após todo o processo de busca e identificação do corpo (CORTE IDH, 2009, para. 203).

Foi, contudo, no contexto da pandemia da COVID-19 que o conceito de luto ganhou relevância e passou a ser expressamente associado à garantia de direitos no Sistema Interamericano, abrindo caminho para a afirmação expressa de um direito humano ao luto. Em 1 de maio de 2020, a CIDH emitiu um comunicado de imprensa sobre "O respeito ao luto das famílias de pessoas falecidas na pandemia de COVID-19" (CIDH, 2020a). Nele, a CIDH chamou atenção para o processo de luto das famílias e demandou dos Estados a garantia dos direitos à verdade, à justiça e à reparação dos familiares das vítimas, por meio da adoção de medidas que permitam a identificação das pessoas mortas, a rastreabilidade dos corpos e a investigação das mortes potencialmente ilícitas. Segundo a CIDH, o desconhecimento do paradeiro da vítima, bem como a impossibilidade de realização de rituais funerários, em conformidade com as diferentes crenças e culturas, impactam diretamente o direito à integridade pessoal dos familiares. Essas são etapas consideradas fundamentais para que se possa encerrar o processo de luto, contribuindo-se para mitigar as sequelas do trauma, do luto e da dor.

Posteriormente, em 27 de julho de 2020, a CIDH adotou a Resolução 4/2020, sobre os direitos humanos das pessoas com COVID-19, na qual considerou que a falta de conhecimento por parte das famílias sobre o destino ou paradeiro das pessoas falecidas por COVID-19 ocasiona angústia e um maior sofrimento. Reconheceu ainda que a ausência de cultos ou rituais fúnebres representa um obstáculo à vivência do processo de luto, o que impacta os direitos dos familiares à integridade pessoal e à saúde mental.

Em importante documento sobre o tema, intitulado “Cuáles son los estándares para garantizar el respecto del duelo, los ritos funerarios y homenajes a las personas fallecidas durante la pandemia de COVID-19?” (CIDH, 2020b), a CIDH apresentou ainda uma série de recomendações e considerações visando orientar a ação dos Estados nos processos de registro, exumação e identificação dos restos mortais das vítimas, bem como nos ritos funerários e em rituais de homenagens. O órgão elencou, ainda, quais direitos humanos encontram-se associados ao processo de luto das famílias, destacando: o direito à integridade pessoal e à saúde, o direito à liberdade religiosa e de culto, o direito a participar na vida cultural, o direito à vida privada e familiar, e o direito à verdade. A CIDH ressaltou, por fim, que o luto é um processo de conexão social e que cada pessoa, comunidade e cultura tem seus próprios rituais para lidar com a dor causada pela morte de um ente querido (Idem).

Como destacam Bernardi e Osmo, ainda que esses novos contornos de um direito ao luto tenham sido pensados no contexto pandêmico, eles podem vir a criar um "novo patamar de exigibilidade de direitos, possivelmente fomentando a construção de reivindicações e demandas por parte de organizações não governamentais, familiares de vítimas de desaparecimentos" (BERNARDI; OSMO, 2021, p.20). No âmbito do SIDH, o emergente direito humano ao luto encontra-se, portanto, diretamente associado à garantia de um conjunto de direitos já existentes, como o direito à verdade, à liberdade religiosa e de culto, à vida privada e familiar e à integridade física e psíquica dos familiares.

3.2. Mecanismos de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas

No âmbito das Nações Unidas, o Comitê de Desaparecimento Forçado, o Comitê de Direitos Humanos, o Grupo de Trabalho sobre Desaparecimentos Forçados ou Involuntários e o Relator Especial para Execuções Sumárias, Arbitrárias e Extrajudiciais já estabeleceram importantes parâmetros de defesa dos familiares de pessoas desaparecidas, como: (i) o direito dos familiares de saberem a verdade sobre o paradeiro das vítimas, as circunstâncias dos fatos e a identidade dos perpetradores (ONU, GRUPO DE TRABALHO SOBRE DESAPARECIMENTOS FORÇADOS OU INVOLUNTÁRIOS, 2010); (ii) o direito dos familiares de receberem os restos mortais da vítima, com dignidade e respeito, em conformidade com seus costumes, crenças e culturas (ONU. COMITÊ CONTRA DESAPARECIMENTO FORÇADO, 2019); (iii) o direito dos familiares a serem consultados previamente à realização de procedimentos de autópsia ( ONU. ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA DIREITOS HUMANOS, 2017, para.37); (iv) o direito dos familiares de realizarem o rito funerário de acordo com suas crenças, costumes, religiões e culturas (ONU. RELATOR ESPECIAL PARA EXECUÇÕES EXTRAJUDICIAIS, SUMÁRIAS OU ARBITRÁRIAS, 2017, para.75); (v) o direito dos familiares à reparação integral (ONU. COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS, 2018; ONU. GRUPO DE TRABALHO SOBRE DESAPARECIMENTOS FORÇADOS OU INVOLUNTÁRIOS, 1997, para.68-75 e 2011, para. 108-109).

Há, contudo, que se destacar uma contribuição central e recente do Sistema ONU para a construção de um direito ao luto dos familiares: o reconhecimento de um "direito humano aos ritos finais". De acordo com o Relator Especial das Nações Unidas para Execuções Sumárias, Arbitrárias e Extrajudiciais, existe uma dimensão do direito à vida que é normalmente ignorada: aquela relacionada precisamente ao momento da morte. As obrigações em matéria de direitos humanos se estendem necessariamente para além da vida, de onde decorre, por um lado, o dever dos Estados de tratarem os restos mortais das vítimas com respeito e, de outro, o direito dos familiares de viverem o luto dignamente. Com efeito, "o último direito humano inclui os direitos aos 'últimos ritos'" (ONU. RELATOR ESPECIAL PARA EXECUÇÕES EXTRAJUDICIAIS, SUMÁRIAS OU ARBITRÁRIAS, 2020; 2021).

Contudo, reconhece o Relator Especial, o tratamento dado aos mortos, assim como ocorre em vida, pode ser radicalmente desigual. Aqueles sujeitos marginalizados ao longo da vida - os mais pobres, perseguidos, discriminados - são precisamente os que têm maiores riscos de sofrerem uma morte violenta, de não serem identificados, de não terem seus restos mortais entregues às suas famílias e de, consequentemente, não terem acesso à justiça. A violação dos direitos aos ritos finais inclui, nesse sentido, a supressão ou aniquilação da identidade subjetiva, cultural ou religiosa da vítima, devendo-se dar especial destaque ao tratamento conferido ao corpo durante e após a morte, ou seja, à maneira pela qual os restos mortais foram manejados ou eventualmente escondidos (ONU. RELATOR ESPECIAL PARA EXECUÇÕES EXTRAJUDICIAIS, SUMÁRIAS OU ARBITRÁRIAS, 2020).

Ao abordar a temática das valas comuns ou coletivas ("mass graves"22), o Relator Especial destaca que os "direitos humanos finais" encontram-se imbricados ao tratamento digno dos corpos após a morte, aos direitos dos familiares e à garantia de direitos civis, culturais e religiosos (ONU. RELATOR ESPECIAL PARA EXECUÇÕES EXTRAJUDICIAIS, SUMÁRIAS OU ARBITRÁRIAS, 2020, p.6). Relacionam-se, ainda, aos seguintes direitos das famílias e da sociedade: (a) direito à investigação; (b) direito à reparação; (c) direito a um tratamento humano; (d) direito à liberdade de religião e de crença; (e) direito à liberdade de associação e de expressão; (f) direito de participação na vida cultural. Juntos, alguns desses direitos compõem, também, o direito à verdade, ou seja, o direito inalienável de se conhecer a verdade sobre os eventos passados e o dever de preservação da memória (Ibidem, p.15).

Mesmo que não se confundam, o direito humano ao luto e o direito humano aos ritos finais estão fortemente relacionados. Enquanto o primeiro volta-se sobretudo para a figura dos familiares e para os deveres dos Estado de respeitarem os singulares processos de luto das famílias, o segundo chama atenção sobretudo para os deveres estatais de cuidado e respeito com os corpos das vítimas, abarcando um direito tanto dos mortos quanto de seus familiares de realizarem cerimônias fúnebres. Ambos os conceitos são construções recentes no plano internacional e que ainda merecem maiores aprofundamentos pelos organismos internacionais.

3.3. Comitê Internacional da Cruz Vermelha

O compromisso com o respeito pelo processo de luto dos familiares de pessoas desaparecidas chama especialmente atenção no âmbito do trabalho do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV). Ainda que outros organismos internacionais compartilhem a perspectiva de que os familiares são vítimas de violações de direitos humanos e que, desse modo, os Estados têm a obrigação internacional de protegê-los e de apoiá-los, o CICV contribui com diretrizes mais detalhadas para que efetivamente se promova um tratamento adequado aos familiares (CICV, 2006, p.17). Tal característica reflete a própria natureza do Comitê, sua atuação mais próxima aos familiares e a dedicação ao treinamento de profissionais que lidam diretamente com as famílias.

De acordo com o CICV, o respeito às necessidades das famílias acompanha e orienta todas as fases do processo de buscas da pessoa desaparecida, até, eventualmente, a exumação e a entrega dos restos mortais, a fim de evitar que sejam expostas a situações de (re)vitimização (CICV, 2003a, p.7; 2013, p.37; 2002a, p.12). Essas medidas especiais se explicam, no mínimo, pelo fato de que a incerteza sobre o paradeiro da pessoa compromete a capacidade de os familiares reconstruírem os laços com a própria vida e com a comunidade à qual pertencem (CICV, 2003a, p.16-17). Como esse sofrimento convive normalmente com a esperança de retorno do desaparecido, é comum que se inaugure para as famílias a experiência de um tempo “que nunca passa”, isto é, uma espera permanente. Para além da ausência do ser querido, a falta de informações e da garantia de que as autoridades estão efetivamente empenhadas nas buscas dificultam ou mesmo impedem que os familiares passem pelo processo natural de luto e que possam então religar-se à vida.

O CICV, nesse contexto, reconhece como básicas a todos os familiares de pessoas desaparecidas as necessidades de saber informações sobre o paradeiro do ente querido; de realizar rituais funerários e de recordação; de receber apoio econômico, psicológico e social; e a necessidade de contar com um reconhecimento institucional por parte do Estado a respeito do desaparecimento (CICV, 2015, p.8). São ainda afirmados pelo CICV os direitos das famílias de participarem nas buscas, na localização e na recuperação dos corpos, no caso de morte comprovada (CICV, 2019a, p.17), devendo os Estados manterem aberto o diálogo com os familiares para conhecer outras de suas necessidades específicas (CICV, 2002a, p.95).

Além disso, o respeito ao processo de luto dos familiares envolve, segundo o CICV, medidas administrativas voltadas para garantir a efetividade dos seus direitos. O CICV recomenda, por exemplo, que os Estados incluam na legislação interna instrumentos capazes de certificar o status das pessoas desaparecidas, sem que os familiares precisem requisitar uma certidão de óbito para lidar com questões como a guarda dos filhos, os direitos de propriedade e casamentos (CICV, 2015, p.11). A existência de instrumentos desse tipo pode evitar o profundo desgaste emocional que, em geral, envolve a requisição da certidão de óbito, diante da incerteza sobre a morte (CICV, 2013, p.20; 2009, p.57; 2003b, p.16). Outra dimensão importante da previsão interna de instrumentos capazes de atestar o desaparecimento (e não necessariamente o óbito) diz respeito à responsabilidade dos Estados de não declarar morta uma pessoa sem evidência suficiente para que se tenha certeza desse fato (CICV, 2013, pp.31-32).

Outra importante medida devida pelos Estados aos familiares é, segundo o CICV, a disponibilização de serviços de apoio psicológico, a serem planejados de maneira sistemática, supervisionados por profissionais qualificados e adequados culturalmente às necessidades das famílias (CICV, 2002a, p.14). A criação de uma rede nacional de atenção à saúde das pessoas nessa condição de vulnerabilidade é apreciada pelo Comitê, que recomenda que essas medidas sejam promovidas em coordenação nacional com os serviços públicos e as ONGs especializadas já existentes e atuantes (CICV, 2021, p.124). Outros serviços básicos devem igualmente ser postos à disposição dos familiares, tais como auxílios para moradia, oportunidades de emprego, assistência à saúde, educação dos filhos e assessoria jurídica (CICV, 2009, p.60; 2002a, p.14; 2013, p.21). Fica evidente que se trata, sobretudo, de criar políticas públicas voltadas para a situação dos familiares dos desaparecidos, de maneira integrada e de acordo com suas necessidades.

O CICV ressalta ainda o papel fundamental que os ritos e as cerimônias funerárias culturalmente adequados possuem para que os familiares possam iniciar o processo de luto (CICV, 2002a, pp. 16-18). Por isso, encoraja as autoridades a promoverem apoio material para a realização das cerimônias (Idem). Ainda que os funerais coletivos possam ser realizados em determinados casos, o Comitê ressalta que as famílias tendem a preferir cerimônias individuais e culturalmente adequadas (CICV, 2002b, p.22).

No âmbito do CICV, portanto, as principais contribuições para a construção de um direito humano ao luto implicam a centralidade de escuta e do cuidado com os familiares ao longo dos processos de buscas, o apoio sociopsicológico e a possibilidade do exercício de rituais e cerimônias fúnebres segundo as crenças, costumes e religiões das famílias das vítimas.

4. Direito ao luto: potências, limites e tensões à luz da justiça de transição brasileira

As referências a um direito humano ao luto, encontradas no âmbito internacional, parecem sustentar-se na necessidade de se atribuir centralidade aos familiares de pessoas desaparecidas, considerando que o desaparecimento inaugura uma situação de especial vulnerabilidade em suas vidas. Trata-se, no entanto, de um direito ainda em construção e que é atravessado, a todo tempo, por uma série de tensões. Abordamos, a seguir, algumas dessas tensões, buscando refletir sobre os limites e as potencialidades da construção do direito ao luto à luz da experiência da justiça de transição brasileira.

Uma primeira tensão aparece pela necessidade de que não se confunda o direito ao luto com um abandono dos esforços de busca da pessoa desaparecida, diferença que já vem sendo afirmada pelos órgãos internacionais aqui trabalhados. Não se trata de afirmar a morte de uma pessoa desaparecida e, com isso, dar por encerrado o processo de luto das famílias. Se a condição dos familiares é marcada por um sofrimento específico, causado pela incerteza do retorno ou da morte da pessoa amada, essa complexidade não será resolvida, por exemplo, pela emissão apressada de uma certidão de óbito. Ao contrário, o direito ao luto implicaria, nesse caso, a garantia de que as buscas ocorram de forma efetiva e coordenada, com a participação das famílias.

No contexto brasileiro, essa tensão torna-se central diante da natureza tardia e inconclusa de nossa justiça de transição. A constatação da morte das vítimas desaparecidas no período da ditadura militar não permite que o Estado brasileiro, ao reconhecer tais mortes, cesse com as buscas dos corpos. Afirmar o direito ao luto das famílias demanda necessariamente a implementação de políticas de busca, identificação e entrega dos restos mortais das vítimas desaparecidas23. Nesse sentido, a Comissão Nacional da Verdade, ao longo de seus trabalhos, empreendeu um importante debate sobre os critérios que deveriam ser levados em conta para que uma pessoa fosse ou deixasse de ser considerada um desaparecido forçado. Entendeu que não bastava a emissão de certidão de óbito, uma declaração oficial reconhecendo a morte da vítima, uma foto do corpo ou a localização da sepultura onde o corpo fora supostamente enterrado, sendo necessária a plena identificação da vítima (MELLO; SCHETTINI, 2018, p.355). Seu relatório final recomendou o prosseguimento e a intensificação "das atividades voltadas à localização, identificação e entrega aos familiares ou pessoas legitimadas, para sepultamento digno, dos restos mortais dos desaparecidos políticos" (BRASIL, 2014, v. 1, p. 974).

Essa tensão também precisa ser pensada à luz do conjunto de falhas sistemáticas das instituições democráticas que, ainda hoje, tornam praticamente impossível que vítimas desaparecidas, no contexto da violência de Estado, sejam encontradas ainda com vida e que seus familiares não sejam alvo de novas violências. Trata-se, segundo a Subcomissão da Verdade na Democracia Mães de Acari, de uma "burocracia do esquecimento", processo por meio do qual o Estado brasileiro até hoje "esconde" os mortos - em sua maioria jovens, negros e pobres, vítimas de violência de Estado no contexto democrático - em labirintos burocráticos sem fim (cemitérios clandestinos, delegacias, ausência de diálogo com os familiares). Como narra Izildete dos Santos - mãe de Fábio Eduardo de Sousa, jovem, negro, morador de Queimados, na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, desaparecido desde 2003 - em seu testemunho à Subcomissão:

Aí eu fiquei pra lá e pra cá, igual uma louca, indo em tudo quanto é lugar procurando e ninguém sabia. Aí vim aqui embaixo, fui na reportagem, fui a um jornal - acho que era o Última hora que tinha ali no Grajaú - e eles me ajudaram muito com o sumiço dele. Fui na 55 (DP) de novo e o delegado falava que eu tinha que esperar que ele devia ter ido pra fora, que ele tinha ido pro Mato Grosso; aí eu disse: "ele foi fazer o que em Mato Grosso?", "ah, ele deve ter ido com mulher pro Mato Grosso". Aí daqui a pouco eu voltei e ele: "ahh dona, o Estado levou ele pra Minas. Aí, foi aquela coisa né. Ia no Batalhão e era a mesma coisa. (RIO DE JANEIRO, 2018b, p.47)

Nesse sentido, o reconhecimento ou a presunção da morte da vítima por parte do Estado não é suficiente, sendo imprescindível a implementação de políticas públicas efetivas que garantam a participação das famílias, a busca imediata das vítimas desaparecidas, bem como a identificação e entrega dos restos mortais das vítimas aos seus familiares.

Uma segunda tensão refere-se à singularidade da experiência do luto, que o direito não pode e não deve regular. Cada familiar viverá à sua maneira a elaboração da ausência da pessoa desaparecida, com todas as dificuldades impostas pela incerteza de seu destino. Ao Estado permanece o dever de buscar, investigar os fatos, encontrar os restos mortais, identificá-los, garantir o acesso à justiça, dentre outros deveres decorrentes do desaparecimento. Nesse sentido, garantir o direito ao luto impõe aos Estados respeitar o caráter subjetivo, cultural e aberto dessa experiência, prevendo mecanismos para que as singularidades de cada contexto e a situação de cada família sejam respeitadas. Garantir o direito ao luto implica, assim, criar canais efetivos de diálogo e de participação das famílias, bem como prestar informações aos familiares em todas as etapas, além de tomar todas as medidas possíveis para garantir a entrega dos restos mortais às famílias, em caso de morte comprovada, e promover ou não obstaculizar a realização de ritos funerários culturalmente adequados.

A tensão entre o caráter normalizador do direito e a singularidade do luto é um ponto importante a ser pensado no âmbito da justiça de transição brasileira. A linguagem jurídica, constituída por conceitos universais e abstratos e por formas objetivas de reparação das vítimas, pode tornar certas formas de violência e de sofrimento ininteligíveis e, consequentemente, inviabilizar seus processos de luto. Não custa lembrar que, no Brasil, os sujeitos historicamente marginalizados da justiça de transição e de suas políticas oficiais de memória, verdade, justiça e reparação - a população negra e pobre, moradora de favelas, os povos indígenas e os camponeses - são precisamente os mesmos submetidos, no presente, ao contexto de sistemáticas violações de direitos humanos (SCHETTINI, 2022). Tais lacunas transicionais fazem parte de um processo histórico mais amplo, de apagamento de certas formas de violência, de luto e de resistência da história, dita oficial, do Brasil. Por isso, refletir sobre o direito ao luto, no Brasil, demanda necessariamente que pensemos os contornos de gênero, raciais e de classe que, desde sempre, assumiu a violência de Estado em nosso país (PIRES, 2018).

Em seu relatório final, a Subcomissão da Verdade na Democracia Mães de Acari jogou luz sobre tal aspecto. Ao abordar o caso que lhe deu nome, a Chacina de Acari24, o órgão evidenciou, através dos testemunhos das mães das vítimas de desaparecimento forçado, como as discriminações de gênero, raça e classe atravessam o direito ao luto no Brasil:

Essa morosidade com relação ao caso é porque não temos nada para dar a não ser uma vontade enorme de encontrar nossos filhos. Somos 11 que estamos aí procurando os nossos, mas há outras mães que por medo não se manifestaram. A gente tem que continuar lutando porque alguém tem que fazer alguma coisa (Jornal Informativo do Ceap, sem data - caderno de recortes de Tereza). (Marilene Lima e Souza, mãe de Rosana) (RIO DE JANEIRO, 2018b, p.39)

Quando fomos depor, o delegado Heraldo Gomes disse que não falava com mãe chorando, só com deputados. Se nossos filhos fossem ricos e não negros, pobres e favelados, os culpados já teriam aparecido e nós teríamos sido tratadas de outra maneira. (Jornal Informativo do Ceap, sem data - caderno de recortes de Tereza). (Vera Lúcia Flores, mãe de Cristiane). (RIO DE JANEIRO, 2018b, p. 39)

A luta das mães deu origem ao movimento de mães e familiares de vítimas da violência de Estado, intitulado “Mães de Acari”, mas a maioria morreu sem tomar conhecimento do paradeiro de seus filhos. Nesse cenário, importa ter em mente que a atuação dos familiares tem sido desde sempre um dos pilares centrais no combate ao desaparecimento forçado no Brasil, numa luta que implica necessariamente a afirmação da memória das vítimas, em sua maioria jovens negros executados pelo Estado brasileiro e criminalizados pela polícia e pela mídia (RIO DE JANEIRO, 2018a, p. 38). O direito ao luto demanda, nessas circunstâncias, não apenas o acesso à verdade em inquéritos policiais e procedimentos judiciais, mas também a proteção da saúde física e mental dos familiares no âmbito do necessário processo de reconstrução pública e privada da memória dos mortos (CORREIA; SILVA; NERI, 2018, p.84).

Finalmente, uma terceira tensão diz respeito à imbricação entre o direito ao luto e a necessidade de reconstrução (subjetiva, psicológica e material) da vida dos familiares de pessoas desaparecidas - "um caminho de reconstrução dos mundos fragmentados e desgastados frente aos corpos que não mais se fazem presentes" (CATELA; FRANCO, 2017, p. 5). A potência da afirmação de um direito ao luto não se resume a permitir a elaboração da perda e do sofrimento pelas famílias, mas encontra-se justamente em sua relação intrínseca com o dever específico dos Estados de garantirem condições de reconstrução da vida dos familiares, elaborando medidas coordenadas de apoio material, administrativo, jurídico e psicossocial, que facilitem o exercício dos direitos das famílias.

Nesse contexto, e diante da ausência de respostas efetivas por parte do Estado, os familiares muitas vezes passam a ocupar-se por si mesmos das buscas, acumulando os ônus que essa atividade implica: físicos, emocionais e materiais. Não raro, tendem a se sentirem isolados e, até mesmo estigmatizados, diante da falta de reconhecimento institucional do desaparecimento, da ausência de respostas e de procedimentos adequados para o tratamento da situação. A perda de interesse pela vida e o desligamento progressivo de seus laços afetivos com a comunidade são também consequências comuns, que convivem com o acúmulo das responsabilidades familiares. Têm, portanto, suas vidas totalmente modificadas pelo fato do desaparecimento forçado e pela atuação inadequada das autoridades estatais.

No Brasil, os testemunhos das mães que perderam seus filhos para a violência de Estado, no contexto ditatorial e democrático, evidenciam o forte impacto do desaparecimento forçado sobre o projeto de vida dos familiares. Carmem Navarro, mãe de Hélio Luiz Navarro de Magalhães, desaparecido na Guerrilha do Araguaia em 19 de março de 1974, narra:

[...] Para mim é muito difícil, é uma dor imensa. A vida da minha família modificou-se por causa dessa tragédia. [...] Houve uma dissolução da família. Realmente, é uma dor imensa que custo muito a me refazer. Eu tentei escrever alguma coisa sobre o meu filho, do meu sentimento, mas eu choro muito. Não tenho a menor condição de escrever sobre o meu filho. O sofrimento é maior do que eu possa escrever ou processar mentalmente. Então, eu procuro, até hoje, através de advogados, pessoas amigas, obter algum relato sobre ele, o que eu acho que é um direito meu como cidadã brasileira. Mas isso, parece, ninguém respeita. Os processos se iniciam e a resposta é “nada consta”. Enfim, eu estou vivendo no completo desconhecimento sobre o meu filho. Desconhecimento significa o seguinte: a tela está em branco. Se a tela está em branco você pode pregar nessa tela o que você quiser. Então, ele está morto? Está vivo? É um morto-vivo? É um vivo morto? (TELES, 2010).

Em testemunho, concedido ao projeto "Pesquisa e ação sobre as políticas de reparação à violência de Estado no Brasil - ontem e hoje", desenvolvido pela ONG ISER, uma mãe cujo filho foi vítima da violência de Estado, no contexto democrático, destaca:

A maioria das pessoas que perdem seus filhos não tem condição financeira, a maioria das pessoas adoecem, não podem comprar remédio, ir ao médico. O Estado deve reparar esse dano que ele causou. A reparação econômica é a única forma de dar condições das famílias terem acesso à saúde, e muitas pessoas não querem morar mais naquele lugar onde aconteceu, porque morar onde aconteceu é reviver todos os dias aquela situação. Não é indenizar, não tem preço o filho da gente não tem preço. Tem sim como diminuir os danos que ele causou. Tentar buscar pelos meios legais e através das lutas pelos movimentos, essa diminuição de danos (PEDRETTI; ALBERGARIA; SANTOS; 2018, p.46).

Compreender o direito ao luto como um elemento necessário à reconstrução da vida implica, assim, considerar que a possibilidade de vivenciar a elaboração da perda de um ente querido desaparecido relaciona-se diretamente com a capacidade (material, subjetiva, econômica, psicológica) dos familiares de se religarem à vida. Pela situação de vulnerabilidade especial em que se encontram, isso depende que lhes sejam garantidas as condições mínimas para elaborar, à sua maneira, aquela perda. Assim, se o direito deve responder a essa situação, é justamente por conta da situação de vulnerabilidade instaurada pelo Estado, em razão do desaparecimento forçado de uma pessoa, seguida da impossibilidade de seus familiares de terem acesso a seus direitos básicos.

Reconhecendo que estas três tensões não possuem soluções acabadas e não exaurem o debate, surge delas, ao menos, uma questão central: seria importante consolidar a construção de um direito humano ao luto no plano internacional? Sustenta-se, neste trabalho, que a consolidação de tal direito pode ser importante, pelo menos, por dois motivos.

Em primeiro lugar, porque, ainda que os órgãos de diferentes sistemas internacionais reconheçam o direito à reparação de familiares de pessoas desaparecidas -- seja em casos de desaparecimento forçado, seja como resultado de práticas estatais que, por aprofundarem seu sofrimento, acabam por violar sua integridade psíquica --, essa proteção tem sido exercida de maneira esparsa e, em geral, em termos de reparação, ou seja, de direitos já violados. A elaboração de contornos mais explícitos do direito ao luto envolveria uma elaboração também mais sistemática das práticas e dos parâmetros considerados obrigatórios para os Estados frente a esses familiares, sobretudo no que se refere aos deveres de cuidados com os corpos das vítimas de violência e a consequente proteção do direito à memória, à verdade e à justiça.

É preciso esclarecer, contudo, que não há qualquer ilusão de que a mera construção de um direito, no plano internacional, seja capaz de autonomamente transformar as ações dos Estados - ainda mais se considerarmos um dos paradoxos centrais dos direitos humanos: ao mesmo Estado que viola direitos e some com corpos, atribuímos o dever de proteger os direitos das vítimas e de seus familiares. Entretanto, entende-se que a afirmação expressa, normativa e institucional do direito ao luto pode contribuir, como instrumento jurídico e político, para as lutas por memória, verdade, justiça, reparação e democracia no presente25.

Em segundo lugar, porque a construção do direito ao luto pode servir como importante ferramenta para o combate a políticas oficiais negacionistas, que têm por objetivo tanto a interdição do luto coletivo, individual e familiar, quanto a deslegitimação das lutas por justiça. O desaparecimento forçado busca garantir tanto a ocultação das provas de uma conduta criminosa e a consequente impunidade dos agentes de Estado, quanto perpetuar a negação da humanidade da vítima e, em última instância, o apagamento de fatos históricos. O direito ao luto pode ser, nesse sentido, uma forma de se garantir não somente o reconhecimento da vítima da violência de Estado, como a necessária construção da memória da violência, em uma dimensão tanto individual e familiar quanto coletiva.

Considerações finais

Ao longo deste trabalho, nos lançamos ao estudo da relação entre direito, luto e memória. Por um lado, buscamos mapear, a partir de um diálogo entre organismos internacionais, alguns dos principais contornos jurídicos já existentes de um direito humano ao luto. Por outro lado, pretendemos problematizar, a partir das especificidades do processo de luto dos familiares de pessoas forçosamente desaparecidas e à luz da justiça de transição brasileira, algumas das tensões, limites e potencialidades relativas à construção jurídica deste direito.

Ainda que não se possa falar na existência de um direito humano ao luto, expressamente estabelecido no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, entendemos que essa é uma construção emergente no plano internacional e que parece ganhar cada vez mais força, sobretudo no contexto da pandemia da Covid-19. Fato é que o cenário pandêmico, seja em razão do número massivo de mortes, seja em razão de gestões estatais consideradas omissivas ou mesmo desumanas (VENTURA, 2021), representou um grande obstáculo para a garantia e o exercício dos direitos humanos. A pandemia impôs não somente especificidades para a prevenção e o combate do desaparecimento de pessoas, como evidenciou a necessidade urgente de serem estabelecidos parâmetros internacionais claros a respeito do manejo e dos cuidados com os corpos, bem como do respeito ao processo de luto das famílias. Por certo, ainda é cedo para quaisquer análises conclusivas acerca do impacto da pandemia na construção de um direito humano ao luto. Mas a gravidade da situação e a gestão desumana da pandemia, empreendida por alguns Estados, jogam luz sobre a urgência de abertura para este debate no plano internacional.

A partir do diálogo entre os organismos internacionais aqui investigados e do cruzamento dos diferentes fundamentos jurídicos por eles desenvolvidos, entendemos que a construção do direito ao luto encontra-se associado à garantia de uma pluralidade de direitos e deveres, já previstos no plano internacional, como o (i) direito de acesso à verdade e à informação; (ii) direito de participação dos familiares durante todo o processo de busca, investigação e julgamento; (iii) direito dos familiares de não sofrerem processos de revitimização, tendo suas integridades física e psíquica preservadas; (iv) direito dos familiares de receberem apoio material e psicológico durante os processos de busca, identificação e investigação; (v) direito dos familiares de receberem os restos mortais de seus entes queridos; (vi) direito dos familiares de realizarem cerimônias fúnebres em consonância com suas especificidades culturais, religiosas e políticas; (vii) direito à memória dos familiares no âmbito do processo de luto e de reelaboração da relação estabelecida com o ente querido desaparecido; (viii) direito à vida dos familiares, em sua dimensão positiva, incluindo o acesso aos meios materiais para a reconstrução de suas vidas, devendo-se levar em consideração situações específica de vulnerabilidade.

Tal construção, contudo, é atravessada por uma série de tensões: a primeira delas diz respeito à necessidade de não se associar o direito ao luto ao fim da obrigação do Estado de buscar pelo corpo da pessoa desaparecida; a segunda delas revela os limites do direito, com seu caráter normativo e universal, frente à singularidade dos processos de luto das famílias; e a terceira delas expõe a relação intrínseca entre o direito ao luto e o direito à vida dos familiares. Dessa forma, pensar nos contornos de um direito ao luto não implica afirmar que caberia ao direito normalizar, a partir de padrões universais, os singulares processos de luto das famílias. Não cabe ao Estado o poder de permitir ou não a vivência do luto, ou de determinar como este deverá ser vivenciado de maneira genérica pelas famílias. Trata-se, antes, de se estabelecer obrigações e deveres aos Estados que garantam a efetiva proteção do processo de luto - em suas dimensões psicológica, material, subjetiva, econômica, cultural e política - dos familiares de vítimas de desaparecimento forçado.

Por fim, é preciso reafirmar que este trabalho não teve a pretensão de estabelecer, de forma conclusiva, quais seriam os contornos de um emergente direito humano ao luto. Esse é um debate em aberto no plano internacional e que precisa ser aprofundado a partir de diferentes atores, territórios, olhares e campos de conhecimento. A sistematização aqui apresentada evidencia, por um lado, a necessidade de um diálogo permanente e complementar entre os organismos internacionais de direitos humanos e de direito humanitário e, por outro lado, a necessidade de participação e centralidade dos familiares de vítimas de desaparecimento forçado no processo de construção de um direito humano ao luto.

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Notes

1 Este artigo apresenta reflexões, construídas pelas autoras, a partir de dois projetos de pesquisa coletivos mais amplos. O primeiro deles, intitulado "Memória, Verdade e Justiça em tempos de Pandemia: Monitoramentos das Políticas de Justiça de Transição no Brasil", foi desenvolvido pelo Núcleo de Direitos Humanos da PUC-Rio (do qual fazem parte as autoras) em parceria com o Ibahri (International Bar Association's Human Rights Institute) e com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, no âmbito de sua Rede Acadêmica Especializada de Cooperação Técnica. O segundo projeto, intitulado "Memória, violência e negação: (re)pensando os direitos humanos em interface com a psicanálise e a literatura", coordenado pelas autoras e integrado por alunos de graduação em Direito da PUC-Rio, vem sendo desenvolvido no âmbito do NDH/PUC-Rio com apoio institucional da FAPERJ e da PUC-Rio através de duas bolsas PIBIC.
2 Vale dizer que o conceito de desaparecimento forçado é uma construção jurídica historicamente situada na convergência entre os campos do Direito Internacional dos Direitos Humanos e do Direito Internacional Humanitário, o que justifica a escolha plural dos órgãos aqui analisados, ainda que nosso foco central de análise seja sobretudo o primeiro campo (ver: MELO, 2012)
3 Por justiça de transição compreende-se um campo teórico e prático destinado, por um lado, a investigar como as sociedades lidam com seus legados de graves violação de direitos humanos e, por outro, a delinear possíveis respostas de justiça em contextos de pacificação, transição política e reconstrução democrática (BICKFOR, 2004). Esse conceito vem sendo historicamente associado a cinco pilares: (i) a busca pela verdade, através sobretudo da criação de comissões de verdade; (ii) a realização da justiça (a “accountability”), com a investigação e punição dos responsáveis por crimes pretéritos; (iii) a reparação das vítimas; (iv) a realização de reformas institucionais ("rule of law”) (ONU. CONSELHO DE SEGURANÇA, 2004, p.4); e (v) a construção da memória através de processos de memorialização (ONU. RELATOR ESPECIAL PARA A PROMOÇÃO DA VERDADE, JUSTIÇA, REPARAÇÃO E GARANTIAS DE NÃO-REPETIÇÃO, 2022).
4 Selecionamos, como fontes da pesquisa, documentos que versavam mais especificamente sobre o desaparecimento forçado de pessoas e, de forma mais geral, sobre os direitos das vítimas e dos familiares de graves violações de direitos humanos. Neles estão incluídas tanto normativas internacionais - como tratados, princípios e protocolos - bem como jurisprudência e outros documentos de soft law. No âmbito do SIDH, destacam-se: informes temáticos e de países publicados pela CIDH, resoluções e comunicados de imprensa emitidos pela CIDH; e sentenças da Corte Interamericana. No âmbito da ONU, destacam-se: general comments, concluding observations, annual reports, individual communication, guiding principles, annual reports, thematic reports do Comitê de Direitos Humanos, do Comitê sobre Desaparecimento Forçado, do Grupo de Trabalho sobre Desaparecimentos Forçados ou Involuntários e do Relator Especial das Nações Unidas para Execuções Sumárias, Arbitrárias e Extrajudiciais. No âmbito do CICV, destacam-se estudos de especialistas, workshops, manuais de boas práticas produzidos no corpo de dois projetos centrais do comitê: "The Missing" (desenvolvido entre 2002-2003) e "Missing Persons Global Response" (desenvolvido a partir de 2018 e 2022).
5 A justiça de transição brasileira é aqui abordada a partir de uma dimensão transtemporal que abrange as violências de Estado do período da ditadura militar (1964-1985), bem como suas reconfigurações, rupturas e continuidades com o presente democrático. É por isso que utilizamos como fonte, nesta pesquisa, o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (2012-2014), responsável por investigar as graves violações de direitos humanos perpetradas no contexto ditatorial, e o relatório final da Subcomissão da Verdade na Democracia - Mães de Acari (2015-2018), criada no âmbito do Poder Legislativo do Estado do Rio de Janeiro e competente por investigar e revelar a verdade sobre violências de Estado perpetradas no contexto democrático (1988-2018). Ambas as comissões da verdade são órgãos temporários, oficialmente autorizados e apoiados pelo Estado brasileiro, responsáveis por investigar graves violações de direitos humanos e cujos relatórios finais constituem registros públicos e oficiais de nossa história. Tanto a CNV quanto a Subcomissão da Verdade na Democracia - Mães de Acari tomam o conceito de desaparecimento forçado como central em suas análises.
6 Os movimentos de mães e de familiares de vítimas da violência de Estado surgem no contexto de redemocratização, em contraposição à ausência de respostas dos órgãos oficiais pelas mortes e desaparecimentos dos seus filhos, majoritariamente jovens negros, e assumem historicamente um papel protagonista na luta por memória, verdade, justiça e reparação na democracia (ARAUJO; SOUZA; SILVA, 2021, p. 1330). Como apontam Farias, Lago e Efrem Filho, os movimentos de mães assumiram uma "posição nodal nos conflitos pelos limites de nossa democracia", ressignificando a linguagem dos direitos e opondo-se a atores conservadores "a partir de lugares morais privilegiados, ainda que móveis e contraditórios, como os da maternidade e da própria família." (2020, pp. 149 e 164).
7 Importante dizer que esses números não incluem as vítimas indígenas ou camponesas do regime militar, sendo esse um ponto do trabalho da Comissão Nacional da Verdade que já vem sendo objeto de importantes críticas (ver, por exemplo: PEDRETTI, 2017).
8 Vale destacar que, em setembro de 2021, o Comitê sobre Desaparecimento Forçado da ONU publicou suas Observações Finais sobre o relatório enviado pelo Estado brasileiro no âmbito do mecanismo de monitoramento estabelecido pela Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado. No documento, o Comitê refuta o argumento do Estado brasileiro de que não haveria desaparecimento forçado na democracia brasileira e diz estar preocupado "com as denúncias recebidas sobre desaparecimentos forçados alegadamente perpetrados nos últimos tempos, principalmente contra pessoas afrodescendentes e moradores de favelas ou periferias de grandes cidades. Também se preocupa com as denúncias de que o andamento da investigação dos casos de desaparecimento forçado é limitado, o que contribui para a impunidade de tais crimes. O Comitê também está preocupado com relatos de desaparecimentos forçados que alegadamente começaram antes da entrada em vigor da Convenção no Estado Parte em dezembro de 2010, em particular entre 1964 e 1985, e que estão ainda em andamento porque as pessoas desaparecidas não foram localizadas." (ONU. COMITÊ SOBRE DESAPARECIMENTO FORÇADO. 2021b)
10 Ver: Declaração da ONU sobre a Proteção de todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forçados ou Involuntários (1992); Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, aprovada pela OEA em 1994, Convenção Internacional para a Proteção de todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forçados, aprovada em 2006 e que entrou em vigor em 2010.
11 Ver: Convenções de Genebra de 1949 e seus Protocolos I e II. Vale dizer que, no Direito Internacional Humanitário, é comum o uso do conceito "pessoas desaparecidas" ("missing person"), mais amplo do que o desaparecimento forçado. De acordo com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, pessoas desaparecidas são “todos aqueles cujo paradeiro é desconhecido por suas famílias ou, com base em informações confiáveis, em decorrência de um conflito armado - internacional ou não internacional - ou de uma situação de violência ou distúrbios internos, catástrofes naturais ou qualquer outra situação que possa requerer a intervenção de um órgão neutro e independente" (CICV, 2013).
12 Ver: Estatuto de Roma, art. 6º
13 A jurisprudência da Corte Interamericana, desde o caso Blake v. Guatemala (CORTE IDH, 1998), adota reiteradamente tal entendimento (CORTE IDH, 2006b, para.125; 2010, para.235). Assim também entende a Comissão Interamericana (CIDH, 2018a, p. 345.)
14 Ver: CORTE IDH, 2004b, para. 258; 2004a, para. 80. ONU. GRUPO DE TRABALHO SOBRE DESAPARECIMENTOS FORÇADOS OU INVOLUNTÁRIOS. 2010, para. 39.
15 Ver: CORTE IDH, 2017, para. 154. CIDH, 2013, p. 40-41. ONU. COMITÊ SOBRE DESAPARECIMENTO FORÇADO, 2019; ONU. COMITÊ SOBRE DESAPARECIMENTO FORÇADO, 2021a, 2016. ONU. RELATOR ESPECIAL PARA EXECUÇÕES EXTRAJUDICIAIS, SUMÁRIAS OU ARBITRÁRIAS, 2020.
16 Ver: CORTE IDH. 2012a, par. 193. CICV, 2019b, p. 9; 2019a, p.17
17 Ver: CIDH. 2018a, p. 313.
18 Ver: CIDH, 2019, para. 106.
19 Ver: ONU. COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS. 2018. ONU. GRUPO DE TRABALHO SOBRE DESAPARECIMENTOS FORÇADOS OU INVOLUNTÁRIOS, 2011, para. 108 e 109.
20 Bernardi e Osmo, em artigo intitulado "Direito ao luto e prevenção do desaparecimento de pessoas no contexto da pandemia: parâmetros da Comissão Interamericana de Direitos Humanos", destacam a recente atuação da CIDH em matéria de construção de um direito ao luto no contexto da pandemia da COVID-19. Segundo os autores, "Embora a CIDH não mencione expressamente a existência de um direito humano ao luto, o argumento deste capítulo é o de que as suas respostas e orientações mais recentes sobre como os Estados devem se posicionar frente à pandemia têm contribuído para a emergência de um direito com esse objeto. Isso tem se dado por meio da recuperação da jurisprudência do Sistema Interamericano referente a casos de violência de Estado, a qual ganha agora novos contornos e elementos, por meio do aprofundamento e da ampliação de entendimentos anteriores." (BERNARDI; OSMO, 2021, p.13).
21 O projeto do fotógrafo Gustavo Germano é uma demonstração visível de tal constatação. O artista reproduziu, lado a lado, fotos antigas e fotos novas de 25 famílias, contendo a mesma composição e tiradas nos mesmos lugares, mas sem os parentes assassinados ou desaparecidos durante os regimes ditatoriais do Cone-Sul. Em seus lugares, emerge o vazio de uma parede em branco, de uma cadeira vazia ou de um abraço inexistente, rastros da violência do passado inscritos no presente. Para mais informações, ver: http://www.gustavogermano.com/#ausencias-2
22 Ainda que existentes em uma pluralidade de contextos e locais, não há uma definição jurídica internacional para o conceito de "vala comum". O Relator Especial, contudo, define tal expressão (em inglês: mass graves) como: "um local de sepultamento onde as circunstâncias que cercam a morte e/ou o método de eliminação do corpo justificam uma investigação quanto à sua legalidade" (ONU. RELATOR ESPECIAL PARA EXECUÇÕES EXTRAJUDICIAIS, SUMÁRIAS OU ARBITRÁRIAS, 2020, p.6.)
23 Importante ressaltar que a busca de vítimas desaparecidas durante a ditadura militar foi, desde sempre, empreendida por seus próprios familiares, com o apoio de organizações de direitos humanos. Resultado da pressão das famílias, o Estado brasileiro implementou algumas poucas iniciativas de busca, sobretudo no âmbito da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, criada pela Lei 9.140 de 1995 e que tem como uma de suas principais competências “envidar esforços para a localização dos corpos de pessoas desaparecidas no caso de existência de indícios quanto ao local em que possam estar depositados”. Em dezembro de 2022, no âmbito do processo de desmantelamento das políticas de memória e verdade e justiça, o governo de Jair Bolsonaro (2019 -2022 ) deu por encerrados os trabalhos da CEMDP, ainda que muitos corpos de militantes políticos permaneçam desaparecidos. Posteriormente, em julho de 2024, o governo de Luís Inácio da Silva reinstalou a CEMDP.
24 Diz respeito ao desaparecimento forçado, ocorrido em 26 de julho de 1990, de onze pessoas das quais sete eram menores de idade. Como explica a Anistia Internacional, as vítimas foram retiradas de um sítio localizado no município de Magé, no Rio de Janeiro, por um grupo de homens identificados como policiais do 9º Batalhão da Polícia Militar em Rocha Miranda e da 39ª Delegacia de Polícia da Pavuna. As investigações indicaram que os policiais militares envolvidos vinham extorquindo algumas das vítimas e faziam parte de grupos de extermínio. Até hoje o paradeiro das vítimas não foi descoberto e os responsáveis não foram punidos. (ANISTIA INTERNACIONAL, 2015, p.40) Em 2022 o caso foi apresentado, pela Comissão Interamericana, perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Caso Cristiane Leite de Souza e outros) e, no momento da escrita deste artigo, sua sentença ainda estava pendente. Além de abordar o desaparecimento forçado de dez pessoas, algumas vítimas de violência sexual, o caso também incorpora a falta de diligência, investigação e punição do assassinato de Edméa da Silva Euzébio e Shleia da Conceição, familiares de uma das vítimas, assassinadas após terem testemunhado sobre o envolvimento de policiais nos desaparecimentos. (CORTE IDH. Información del caso Silva y otros vs. Brasil, 2022)
25 Vale mencionar, por exemplo, a iniciativa da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro que, em 2022, publicou a cartilha "Direito ao Luto: guia de sepultamento", visando publicizar" orientações às famílias enlutadas para que passem por esse momento de forma menos dolorosa e com mais respeito à memória de quem foi e ao pesar de quem permanece." (RIO DE JANEIRO. DEFENSORIA PÚBLICA, 2022)
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