Artigos inéditos

Racismo recreativo, liberdade de expressão e fraternidade: algumas aproximações

Recreational racism, freedom of expression and fraternity: some approaches

Augusto César Leite de Resende
Universidade Tiradentes, Brasil

Racismo recreativo, liberdade de expressão e fraternidade: algumas aproximações

Revista Direito e Práxis, vol. 15, no. 4, e75012, 2024

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Received: 14 April 2023

Accepted: 13 April 2024

Resumo: O humor é uma parte fundamental da interação humana e capaz de produzir benefícios e prejuízos sociais e psicológicos. A comicidade reproduz o preconceito racial existente na sociedade e é um poderoso instrumento por meio do qual se pode expressar e difundir ideias, opiniões e informações disfarçadas em tom de brincadeiras, de modo que o discurso jocoso passou a ser utilizado para reconduzir os negros a uma condição de inferioridade e submissão. É o que se chama de racismo recreativo. Por essa razão, o presente artigo científico tem por objetivo analisar, a partir de uma pesquisa dedutiva, bibliográfica e legislativa, se as piadas e brincadeiras baseadas em estereótipos raciais negativos estão protegidas pelo direito humano e fundamental à liberdade de expressão, se o princípio jurídico-constitucional da fraternidade, para além de limitar o exercício da liberdade de expressão, impõe uma prática judicial fraterna pelos magistrados brasileiros de modo a impedir o designadamente racismo recreativo. Concluindo-se, ao final, que a fraternidade, enquanto categoria jurídico-constitucional, afasta o humor racista do âmbito de proteção da liberdade de expressão e obriga a realização de uma prática judicial fraterna por parte dos membros do Poder Judiciário brasileiro.

Palavras-chave: Humor, Racismo recreativo, liberdade de expressão, fraternidade, prática judicial fraterna..

Abstract: Humor is a fundamental part of human interaction and capable of producing social and psychological benefits and harm. Comical reproduces the racial prejudice existing in society and is a powerful instrument through which ideas, opinions and information can be expressed and disseminated disguised in a joking tone, so that joking speech began to be used to bring blacks back to a condition of inferiority and submission. This is what is called recreational racism. For this reason, this scientific article aims to analyze, based on a deductive, bibliographical and legislative research, whether jokes and jokes based on negative racial stereotypes are protected by the human and fundamental right to freedom of expression, whether the legal principle -constitutional fraternity, in addition to limiting the exercise of freedom of expression, imposes a fraternal judicial practice by Brazilian magistrates in order to prevent specifically recreational racism. Concluding, in the end, that fraternity, as a legal-constitutional category, removes racist humor from the scope of protection of freedom of expression and obliges members of the Brazilian Judiciary to carry out a fraternal judicial practice.

Keywords: Humor, Recreational racism, Freedom of expression, Fraternity, Fraternal judicial practice..

Introdução

O tema da presente pesquisa inspirou-se no livro “Racismo recreativo” de autoria do Prof. Dr. Adilson Moreira (2019b), que investigou o conceito de racismo recreativo e a postura racista que o Poder Judiciário brasileiro adota quando decide que produções culturais que reproduzem estereótipos raciais não são discriminatórias porque promovem a descontração das pessoas (RIBEIRO, 2019, pos. 82-86).

A partir das lições de Adilson Moreira (2019b), extrai-se que os humoristas alegam em sua defesa a ausência de intenção racista, de ofender a honra ou de discriminar o negro em razão da sua cor e, com isso, sustentam que a jocosidade, ainda que cause constrangimentos à população negra, é protegido pelo direito à liberdade de expressão.

Nesse contexto, o objetivo principal do artigo é analisar a possibilidade de se afastar do âmbito de proteção do direito à liberdade de expressão o discurso racista recreativo, exercido nos diversos espaços sociais, tais como escolas, meios de comunicação, redes sociais, nas artes ou até mesmo no ambiente de trabalho, a partir da incidência do princípio constitucional da fraternidade, revelando-se, este, verdadeiro instrumento de proteção da comunidade negra contra o denominado “racismo recreativo” e impulsionador do desempenho de uma prática judicial fraterna.

A importância e a atualidade do tema pesquisado residem no fato de que o uso de estereótipos negativos relativos a pessoas negras em piadas e brincadeiras está amplamente presente na atividade artística desenvolvida por comediantes brasileiros, no ambiente de trabalho e no cotidiano das pessoas negras no país.

Assim, surgem as seguintes situações-problema: o princípio jurídico-constitucional da fraternidade limita o âmbito de proteção da liberdade de expressão de modo a impedir o “racismo recreativo”? O princípio da fraternidade obriga os membros do Poder Judiciário brasileiro a adotarem julgamento com perspectiva racial nos casos envolvendo injúria racial em contexto de racismo recreativo? Nesse estudo, sustenta-se que a resposta aos questionamentos retro formulados é positiva.

Como objetivos específicos estabeleceu-se: a) analisar o racismo recreativo no Brasil; b) propor que o princípio constitucional da fraternidade condiciona o exercício do direito à liberdade de expressão, impedindo o “racismo recreativo”; e c) propor que a fraternidade obriga os magistrados a julgarem ações penais envolvendo humor racista a partir de uma perspectiva racial.

O presente trabalho faz uma abordagem dogmática, através de um método dedutivo, que parte de argumentos gerais para argumentos particulares. Primeiramente, são apresentados os argumentos que se consideram verdadeiros para, em seguida, chegar a conclusões formais, já que essas conclusões ficam restritas única e exclusivamente à lógica das premissas estabelecidas. O método de procedimento empregado foi o monográfico e o método de interpretação jurídica o sistemático.

A tipologia de pesquisa foi a bibliográfica e documental, mediante análise de textos normativos nacionais e internacionais. A pesquisa bibliográfica é elaborada com base em material já publicado e inclui material impresso, como livros, revistas, jornais, teses, dissertações e anais de eventos científicos, bem como material disponibilizado pela internet cuja fonte seja acadêmica e cientificamente relevante e confiável. Essa técnica de pesquisa foi utilizada para delinear o campo de estudo do direito internacional dos direitos humanos e do direito constitucional.

1 O racismo no Brasil: o uso do humor como prática racista

Os seres humanos vivem em grupos, compostos por pessoas que compartilham um sentimento comum de pertencimento, que pode ser definido a partir da raça, da língua, do território, da cultura ou de outros elementos identitários e são usados para fixar as fronteiras da coletividade, bem como para identificar os outsiders, isto é, os estranhos ao grupo, que podem ou não ser percebidos como ameaças e vítimas de hostilidade (RATTANSI, 2007, p. 3).

A noção de raça pode ser construída a partir de dois critérios que se interconectam e se complementam, quais sejam, o biológico, segundo o qual a identidade racial é atribuída por alguma característica física do indivíduo, como a cor da pele, e o étnico-cultural, em que a identidade racial é conferida a partir da origem geográfica, da religião, da língua, da cultura ou dos costumes de uma pessoa ou grupo de pessoas(ALMEIDA, 2019, pos. 221).

A ideia de raça é desprovida de valor científico (DAHIA, 2008, p. 699). A antropologia e a biologia, especialmente a genética, demonstraram, ao longo do século XX, que os seres humanos não possuem diferenças naturais ou culturais que justifiquem a discriminação ou a superioridade de um grupo de indivíduos em relação a outro, razão pela qual a raça se tornou um conceito essencialmente político, utilizado para naturalizar desigualdades e legitimar o discurso de hierarquia, a discriminação e o genocídio de grupos sociologicamente minoritários (ALMEIDA, 2019, pos. 232-237). Sobre esse aspecto, Kabengele Munanga (2020, p. 15) ensina que “cientificamente a realidade da raça é contestada, política e ideologicamente esse conceito é muito significativo, pois funciona como uma categoria de dominação e exclusão nas sociedades multirraciais”.

As atrocidades perpetradas pelo Terceiro Reich durante o período de 1933 a 1945 demonstram claramente a utilização política do conceito de “raça”. O Estado Nazista criou, por meio da Lei de Cidadania do Reich, de 1935, a “raça judaica”, passando a identificar uma pessoa como Judeu não pela religião, mas pela genealogia familiar (UNITED STATES HOLOCAUST MEMORIAL MUSEUM, 2020).

A ideia de racismo está estreitamente relacionada com o conceito de raça (RATTANSI, 2007, p. 7). Por esse motivo, o racismo pode ser definido como uma postura de hostilidade a determinado grupo identitário, baseado num sentimento de superioridade de uma coletividade em relação a outra (NUNES, 2010, p. 41), não se restringindo ao antagonismo entre brancos e negros1, englobando, por exemplo, a islamofobia e a aporofobia (RATTANSI, 2007, p. 8). A propósito,

O racismo é compreendido como um processo de hierarquização, exclusão e discriminação contra um indivíduo, ou toda uma categoria social, que é definido como diferente com base em alguma marca física externa, ressignificada em termos de uma marca cultural interna que define padrões de comportamento (ARAÚJO, 2016, p. 19).

Para Sílvio Luiz de Almeida (2019, pos. 237-243), “o racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo social ao qual pertençam”. O racismo se fundamenta na ideia de existência de superioridade entre grupos humanos, de uma suposta relação de hierarquia entre coletividades, em que determinadas raças são superiores e outras inferiores (MUNANGA, 2020, p. 15).

O preconceito, a discriminação e a violência racial são produzidos quando se transformam diferenças físicas, culturais ou sociais em estereótipos de inferioridade (SCHWARCZ, 2019, p. 174). É o que acontece com indivíduos, que são vítimas do racismo e da violência, inclusive a estatal, pelo simples fato de pertencerem à comunidade negra, sem negar, evidentemente, que tais pessoas são também vítimas de opressões em razão do gênero, classe social, orientação sexual e condição física, que se interseccionam e geram novas formas de violência (RIBEIRO, 2019a, p. 69-71), que são experimentadas simultaneamente (AKOTIRENE, 2019, p. 28).

A discriminação pode ser direta, conceituada como o “repúdio ostensivo a indivíduos ou grupos, motivado pela condição racial” (ALMEIDA, 2019, pos. 248), e indireta, que é “marcada pela ausência de intencionalidade explícita de discriminar pessoas” (MOREIRA, 2017, p. 102). O racismo pode ainda ser sutil, ou seja, disfarçado, simbólico e abstrato (NUNES, 2014, p. 107), como o anúncio de emprego destinado a candidatos de “boa aparência” ou impedir mulheres negras de utilizar a entrada social de um determinado edifício da zona sul do Rio de Janeiro com o argumento de que empregadas domésticas devem usar a entrada de serviços, concluindo-se, portanto, as mulheres, por serem negras, eram domésticas (OLIVEIRA, 2004, p. 82).

Comportamentos racistas, notadamente os indiretos, estão tão enraizados na sociedade brasileira que muitas vezes passam desapercebidos (RIBEIRO, 2019b, p. 38) e são interpretados como um “mal entendido”, isto é, não intencional (OLIVEIRA, 2004, p. 105). É o que ocorre com o humor racista, que é geralmente praticado de forma disfarçada e quase sempre relativizada pelo público branco e pelo Poder Judiciário nacional (MOREIRA, 2019b), que o interpreta como uma má compreensão do fato pela vítima, equívoco ou ausência de intenção de ofender a honra do alvo. Nesse aspecto, deve-se pontuar que o racismo tem uma característica sistêmica, não se revelando apenas como um comportamento discriminatório isolado, mas como um processo em que as hierarquias, os privilégios e as discriminações se reproduzem na política, na economia, no direito, nas estruturas do Estado e nas artes (ALMEIDA, 2019, pos. 270).

Sílvio Luiz de Almeida (2019, pos. 281) sustenta que existem três concepções de racismo: o individualista, o institucional e o estrutural, identificadas a partir da relação entre o racismo e a subjetividade, o Estado e a economia, respectivamente. O racismo estrutural se caracteriza por ser um sistema de opressão presente e manifestada nas relações sociais e, por isso mesmo, entranhada na configuração da própria sociedade (BERSANI, 2017, p. 381). As instituições sociais funcionam, de forma interdependente, para promover a perpetuação das hierarquias, a exclusão das minorias raciais e a manutenção dos postos de prestígios socioeconômico e político sob o controle dos grupos identitários majoritários (MOREIRA, 2020, p. 466).

O racismo individualista não admite sociedades ou instituições racistas, mas apenas seres humanos racistas, que adotam, isoladamente ou em grupos, condutas discriminatórias, apresentando-se, portanto, como um fenômeno ético ou psicológico individual ou coletivo, ligado diretamente ao comportamento, à educação e à consciência humana sobre as consequências das práticas racistas sobre as vítimas, que é combatido essencialmente com a responsabilização criminal e civil do infrator (ALMEIDA, 2019, pos. 290-300).

O racismo não se resume a condutas humanas individuais, apresentando-se também no funcionamento das instituições, que desenvolvem suas atividades de modo a conferir, ainda que indiretamente, privilégios a uns e desvantagens a outros em razão da cor da pele (ALMEIDA, 2019, pos. 304-309). O racismo institucional se refere, nas precisas palavras de Márcia Campos Eurico (2013, p. 299), às operações anônimas de discriminação racial em instituições ou profissões sem que se possa atribui-lo a um indivíduo isoladamente, expressando-se, por exemplo, no acesso à educação, ao mercado de trabalho e na concepção e execução de políticas públicas que desconsideram as peculiaridades e dificuldades raciais.

É importante ressaltar que os antagonismos e contradições existentes na sociedade são absorvidos pelas instituições e, por esse motivo, os conflitos raciais se tornam parte das instituições (ALMEIDA, 2019, pos. 322-328). Assim, o racismo institucional

[…] não se expressa em atos manifestos, explícitos ou declarados de discriminação (como poderiam ser as manifestações individuais e conscientes que marcam o racismo e a discriminação racial, tal qual reconhecidas e punidas pela Constituição brasileira). Ao contrário, atua de forma difusa no funcionamento cotidiano de instituições e organizações, que operam de forma diferenciada na distribuição de serviços, benefícios e oportunidades aos diferentes segmentos da população do ponto de vista racial. Ele extrapola as relações interpessoais e instaura-se no cotidiano institucional, inclusive na implementação efetiva de políticas públicas, gerando, de forma ampla, desigualdades e iniquidades (LOPEZ, 2012, p. 127).

A forma institucionalizada do racismo difere, como ensinam Kwame Ture e Charles V. Hamilton (1992, p. 3-4), do individual porque neste as pessoas brancas agem, na maior parte das vezes, ostensivamente contra comunidades e indivíduos negros, causando-lhes morte, lesão corporal, a destruição da propriedade e outras ofensas, ao passo que o racismo institucional é menos aparente, mais sutil e, por isso, difícil de ser percebido pela sociedade, capturado pelas lentes das câmaras de televisão e imputado especificamente um indivíduo, mas não menos destrutivo e perverso para a vida humana.

A sociedade brasileira é racista, de modo que tal característica se projeta no funcionamento das instituições (ALMEIDA, 2019, pos. 419), inclusive o Poder Judiciário.

2. O racismo recreativo: a violência no sorriso racista

As formas de expressão do preconceito são influenciadas pelas normas sociais vigentes num determinado contexto de espaço e tempo, razão pela qual o racismo era ostensivo e aberto durante o período de exploração do trabalho escravo, eis que refletia as normas sociais daquela época (VALA; LIMA, 2004, p. 402-403).

A abolição da escravidão no Brasil baseou-se no discurso da igualdade entre os indivíduos independentemente da cor da pele, porém o sentimento de superioridade dos brancos em relação aos negros e a hostilidade aos africanos e seus descendentes ainda permaneciam enraizados na sociedade brasileira, de modo que, como, do ponto de vista jurídico, não era mais possível estabelecer tratamento social desigual com fundamento na raça, foi necessário criar mecanismos de manutenção do antigo regime e, com isso, garantir a perpetuação das pessoas brancas nos espaços de prestígio social e de poder (DAHIA, 2008, p. 702).

O racismo ganhou novas formas de manifestação. Os indivíduos passaram a expressar seu preconceito de modo encoberto, sutil e velado (VALA; LIMA, 2004, p. 403), mas que preserva, por outro lado, o mesmo objetivo do racismo direto e explícito, qual seja, a manutenção de privilégios, “o que depende da circulação contínua de estereótipos que representam minorias raciais como pessoas incapazes de atuar de forma competente na esfera pública” (MOREIRA, 2019b, p. 32). Por esse motivo, o racismo passa a ser exteriorizado por meio do humor.

O racismo recreativo deve ser analisado a partir daquilo que pode ser alvo de piadas ou brincadeiras, qual seja, o indivíduo preto. Assim, é fundamental esclarecer que somente o proveniente do humano pode ser objeto do riso, é dizer, “não há cômico fora do que é propriamente humano” (BERGSON, 2018, p. 38) e, portanto, “o cômico sempre, direta ou indiretamente, está ligada ao homem” (PROPP, 1992, p. 38), de modo que a natureza e as coisas não podem ser, de per si, alvos do humor porque não são ridicularizáveis (PROPP, 1992, p. 37), embora se reconheça que elementos não humanos possam ser feios, lindos ou estranhos, mas nunca serão isoladamente risíveis, salvo apenas e tão somente quando enxergamos neles uma conduta ou expressão humana (BERGSON, 2018, p. 38).

O humor é uma parte fundamental da interação humana e capaz de produzir benefícios e prejuízos sociais e psicológicos (VIVONA, 2014, p. 1-2). Porém, o homem ri do quê? As causas do riso são várias, mas a mais comum é o ridículo (PROPP, 1992, p. 41), razão pela qual a construção do humor pode ser explicada por diversas teorias, dentre as quais se destaca a da superioridade, que se utiliza do escárnio, da depreciação ou da hostilidade para a formulação da anedota ou da brincadeira, isto é, há o uso de anormalidades, deficiências ou estereótipos negativos para a ridicularização e, consequentemente, a produção do sorriso e do prazer (TABACARU, 2015, p. 116-117).

Não se desconhece que o humor e o riso podem ser produzidos de outras formas, por outros motivos e sem a finalidade de depreciar ou discriminar, mas não se deve negar que o humor pode ter um caráter hostil e ser fundado em preconceitos. Pela teoria da superioridade, o “humor é visto como uma comparação entre um falante e um ouvinte” (TABACARU, 2015, p. 117), onde as piadas retratam situações de inferioridade envolvendo pessoas, geralmente integrantes de minorias sociais (MOREIRA, 2019b, p. 70), que produzem o prazer e a risada naqueles indivíduos que se sentem superiores à vítima do humor (TABACARU, 2015, p. 117).

O humor hostil ou agressivo, como é o racismo recreativo, encontra suas bases na teoria da superioridade porque toma como alvo alguém a partir de um sentimento de hierarquia (TABACARU, 2015, p. 117). Adilson Moreira (2019b, p. 70-71) aduz que “o prazer decorre do fato de que a piada hostil permite afirmar a noção de que o indivíduo tem valor maior do que um membro de outro grupo, pessoa que é julgada a partir de estereótipos negativos ou a partir de infortúnios pelos quais ela passa”.

O humor é um “produto do contexto cultural no qual as pessoas vivem” (MOREIRA, 2019b, p. 29), não se pode compreender o humorismo e o riso dissociados do seu ambiente natural que é a sociedade porque as piadas e as brincadeiras refletem, muitas das vezes, os costumes, as tradições e a cultura de uma determinada comunidade (BERGSON, 2018, p. 39-40). Nesse contexto, Sandra Leal de Melo Dahia (2008, p. 703) explica que no período escravocrata praticamente não existiam piadas e brincadeiras derrogatórias e ofensivas dirigidas a negros, eis que os cativos eram destituídos de humanidade na esfera social e, portanto, tratados apenas como coisa e propriedade. Com o fim da escravidão, os brasileiros encontraram no humor uma via intermediária para exteriorizar seu preconceito racial (ARAÚJO, 2016, p. 46), na medida em que as piadas são reproduções socioculturais, que revelam costumes, crenças e preconceitos da sociedade (DAHIA, 2008, p. 704-705).

O discurso jocoso passou a ser amplamente utilizado para reconduzir os negros a uma condição de inferioridade e submissão (DAHIA, 2008, p. 703), especialmente porque algumas pessoas quando riem de uma piada ou brincadeira veem o objeto de cima e, por algum padrão, julgam o outro inferior (MATRACA; WIMMER; ARAÚJO-JORGE, 2011, p. 4130).

Luvell Anderson (2015, p. 506) afirma que nem todo humor racial, que se utiliza de estereótipos raciais, é racista. Para o referido filósofo, o humor é racista “if either (i) it wrongly harms the target in virtue of that person’s membership in a particular racial group or (ii) the speaker is motivated by a malevolent attitude or one of disregard”2.

As piadas e as brincadeiras podem ser, por obviedade, inofensivas, mas também podem ser utilizadas para depreciar e discriminar, quando, tendo como objeto derrisório uma pessoa ou grupos vulnerabilizados e socialmente minoritários, utilizam-se de estereótipos derrogatórios que expressam rechaço ou desprezo àqueles que são direcionadas (SANTOS, 2019, p. 21).

A comicidade também está associada ao avistamento de defeitos presentes ou imaginados no objeto ou na pessoa que suscita o riso (PROPP, 1992, p. 171), de modo que o humorista atribui defeitos falsos, que são os estereótipos negativos, aos negros para reprová-los do ponto de vista social e moral. Desse modo, o humor racial passa a ser nocivo porque difundem imagens preconceituosas de grupos racialmente minoritários, causando-lhes danos psicológicos e sociais, que se sentem social e moralmente degradadas (MOREIRA, 2019b, p. 78). As brincadeiras racistas são formas de expressão do racismo porque humilham e ofendem a honra e dignidade da vítima, ainda que não exteriorizadas de forma direta (NUNES, 2014, p. 107-108). É o que se chama de racismo recreativo, que, nas palavras de Adilson Moreira (2019b, p. 31), “designa um tipo específico de opressão racial: a circulação de imagens derrogatórias que expressam desprezo por minorias raciais na forma de humor, fator que compromete o status cultural e o status material dos membros desses grupos”.

O preconceito racial se manifesta, dentre outras formas, pela via do humor e de piadas, onde o ato de rir de alguém pressupõe, nessa hipótese, a existência de certo distanciamento identitário entre aquele que ri e o objeto do riso (ARAÚJO, 2016, p. 50) porque as pessoas “não costumam, por regra, rir dos seus próprios estigmas” (SANTOS, 2019, p. 25), de modo que “é preciso se distanciar afetivamente da característica que torna alguém objeto de chacota” (SANTOS, 2019, p. 25). No racismo recreativo, há efetivamente o distanciamento retromencionado onde brancos se utilizam de anedotas ou brincadeiras para inferiorizar o negro, objeto do humor, e, com isso, alcançar seu prazer narcísico.

Uma piada é racista não somente quando tem a intenção de causar dano a grupos racialmente minoritários, propagam estereótipos negativos sobre negros ou implicam numa atitude de hostilidade ou de desconsideração de minorias raciais, mas também quando, apesar de não visar ou causar danos a indivíduos específicos, propaga o ódio à comunidade negra, acarretando consequências negativas aos seus membros (MOREIRA, 2019b, p. 79-80).

O racismo recreativo provoca um riso maldoso porque ligado a estereótipos derrogatórios e, portanto, a defeitos falsos ou inexistentes, que são inventados, reproduzidos e aumentados pelo humorista para alimentar a maledicência e os sentimentos ruins presentes naquele que faz a piada ou a brincadeira e naquele que rir (PROPP, 1992, p. 158-159), é dizer, o humor racista promove a satisfação psicológica das pessoas brancas (MOREIRA, 2019b, p. 78) e alimenta o sentimento racista de superioridade sobre os negros, razão pela qual é construído a partir da subjugação do alvo e da exploração das diferenças raciais, enfatizando-se aspectos negativos e pejorativos do objeto do discurso humorístico para a produção do prazer (SALIBA, 2017, p. 14).

Os negros se tornam alvos do humor para entreter os membros do grupo racial hegemônico, cujo divertimento é alcançado por meio da ridicularização e do uso de estereótipos derrogatórios, revelando-se, assim, o racismo recreativo como um triunfo sobre os indivíduos negros, na medida em que rir de alguém significa vencê-lo (TABACARU, 2015, p. 117).

Ademais disso, o racismo recreativo não visa apenas a diversão das pessoas brancas. Ele tem ainda a função estratégica de manutenção da estrutura social fundada em privilégios raciais, sendo usada pelos indivíduos brancos para defender o local social que ocupam, o que exige a circulação de estigmas sobre negros na sociedade, que, por permanecerem no senso comum imaginário das pessoas brancas, aprofundam as desigualdades socioeconômicas e de oportunidades materiais, que são, então, asseguradas aos brancos (MOREIRA, 2019b, p. 85). Apresenta-se, assim, muitas das vezes, como uma forma de violência simbólica, isto é, sutil e, em algumas ocasiões, imperceptíveis até para as próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias simbólicas da comunicação (BOURDIEU, 2019, p. 12), permitindo-se, com isso, a dominação da classe branca sobre o grupo negro (BOURDIEU, 2012, p. 11), na medida em que “dificulta a criação de um sentimento de pertencimento social entre negros” (MOREIRA, 2019b, p. 152) e faz com que “estereótipos negativos sobre minorias raciais circulem de forma incessante, o que contribui para que os estigmas afetem todos os aspectos da vida dos indivíduos” (MOREIRA, 2019b, p. 83).

A existência de anedotas racistas nos dias atuais é uma clara demonstração de que as hierarquias e as discriminações raciais do período escravocrata brasileiro perduram no tempo, eis que, quando um negro é objeto do riso, ele é alvo de inferiorização e desprezo, o que lhe retira a subjetividade e a dignidade, na medida em que se torna um meio utilizado para alcançar uma finalidade, qual seja, o prazer das pessoas brancas (CARDÃO, 2020, p. 134-135) ou promover a exclusão racial (SANTOS, 2019, p. 26).

O racismo recreativo não tem nada de cordial, educado, generoso ou bondoso porque se trata de mais um mecanismo de difusão de hostilidade racial e de afirmação da identidade branca como expressão da superioridade moral (MOREIRA, 2019b, p. 90). É por meio do racismo recreativo que “rebaixa-se, humilha-se, vira-se a ética de ponta a cabeça, mas libera-se o ódio represado” (DAHIA, 2010, p. 386), o que implica na discriminação e na exclusão das pessoas negras (VALA; LIMA, 2004, p. 407). Enfim, “rir de alguém significa rebaixá-lo, significa remover a aura de seriedade que equilibra as relações sociais de igualdade” (DAHIA, 2010, p. 386), na medida em que “os estereótipos raciais negativos presentes em piadas e brincadeiras racistas são os mesmos que motivam práticas discriminatórias contra minorias raciais em outros contextos” (MOREIRA, 2019b, p. 29).

Adilson Moreira (2019b, p. 80) explica que há quem sustente que o humor racial depreciativo não seria racista porque o humorista, ao contar a piada ou realizar a brincadeira, não teria a intenção de ofender o alvo e que a motivação da anedota seria a ridicularização da situação em que um negro se encontraria, o que poderia ocorrer com os brancos. Quando criticados, os humoristas reagem negativamente às críticas feitas por setores da sociedade ao conteúdo preconceituoso do trabalho, desvalorizando-as sob o argumento de se tratar de imposição do uso da linguagem do “politicamente correto” ou de uma perspectiva moral do humor e que este deve ser, por essência, baseado no “politicamente incorreto” e na ridicularização de estereótipos raciais ainda que isso possa discriminar um grupo social (CARDÃO, 2020, p. 135-136).

Porém, o racismo recreativo, ao se basear na ideia de inferioridade moral da pessoa negra, humilha, ofende e coisifica, ainda que não intencionalmente, o objeto do discurso jocoso e contribui para, além da satisfação psicológica da comunidade branca, a discriminação e exclusão dos indivíduos, eis que impede a formação de uma consciência social sobre a respeitabilidade dos negros, perpetuando, desse modo, a falsa noção de que as pessoas brancas são as únicas capazes de atuarem como atores sociais, políticos e econômicos competentes (MOREIRA, 2019b, p. 148-150).

O humor racista, ao se basear em estereótipos derrogatórios raciais, não se revela apenas como um produto subjetivo ou psíquico do humorista (MOREIRA, 2019b, p. 81). As piadas racistas expressam, em certa medida, os preconceitos subjacentes na sociedade e, mais do que isso, somente “adquirem sentido dentro de uma situação marcada pela opressão e pela discriminação” (MOREIRA, 2019b, p. 81), o que quer dizer que os negros são objeto de anedotas e de brincadeiras pelo simples fato de pertencerem a um grupo racial minoritário, onde a avaliação do valor social e moral da comunidade negra é um elemento essencial do racismo recreativo (MOREIRA, 2019b, p. 81-82).

É importante ressaltar que não há piadas que ridicularizam o branco. Por quê? Porque o racismo reverso ou ao contrário, é dizer, um racismo das minorias dirigido contra às maiorias não existe (ALMEIDA, 2019, pos. 476) e, para além disso, as pessoas brancas não são ridicularizadas pelo simples fato de serem brancas porque a semelhança (no caso, a cor da pele) não é, em regra, cômica, salvo se um defeito oculto for repentinamente descoberto (PROPP, 1992, p. 55) e, nesse contexto, a branquitude não enxerga a sua cor como um defeito moral, estético, cultural ou social. A piada racista reproduz o preconceito racial do grupo social hegemônico, onde os brancos se sentem superiores aos negros, que seriam, na visão dos racistas, portadores de defeitos.

O racismo recreativo reproduz a negatividade historicamente construída em relação ao negro, a sua cultura e a sua religião, sendo reflexo, portanto, de um processo lento e gradual de violência racial, física e simbólica, tais como, por exemplo, a associação do negro ao mal, a associação das religiões de matriz africana à bruxaria e ao demônio e a crença na infantilização e na incapacidade intelectual dos negros (PROENÇA, 2019, p. 217), estigmas esses que sobrevivem desde os tempos do Brasil colonial e são usados para desqualificar o negro.

A narrativa de desvalorização do negro, construída sobre suas características físicas, morais e culturais, foi utilizada como justificativa para a escravidão e colonização (MUNANGA, 2020, p. 30) e, hodiernamente, é utilizada para expressar o preconceito racial na forma do humor, tanto que a maioria das manifestações de racismo recreativo está fundada “na noção de que negros são moral, intelectual, sexual e esteticamente inferiores a brancos” (MOREIRA, 2019b, p. 155).

Não há dúvidas que a “população de negros e afrodescendentes, historicamente estigmatizada, sofre ainda hoje a tentativa de aniquilamento de suas crenças e identidade cultural” (COELHO; OLIVEIRA; LIMA, 2016, p. 57). Por isso, os negros têm experiências distintas dos brancos por conta da cor da sua pele e, no âmbito do humor, eles compartilham experiências de hostilidade ou de ridicularização pelo fato de pertencerem ao grupo negro (RIBEIRO, 2019, p. 69), o que não ocorre com as pessoas brancas.

O humor racista tem sido denunciado e ações judiciais são promovidas pelas vítimas, com o objetivo de se alcançar a reparação dos danos, sem que tenham, no entanto, um desfecho favorável aos seus autores. Do mesmo modo, o Ministério Público propõe ações penais com o intuito de garantir a responsabilização criminal do ofensor pela prática do delito de injúria racial, porém sem sucesso, eis que os juízes e tribunais brasileiros entendem que as piadas e as brincadeiras racistas não são realizadas com o intuito de ofender a honra ou o decoro da vítima, mas com a intenção de divertir, ou seja, não haveria o animus injuriandi (MOREIRA, 2019b, p. 132).

Para além da discussão acerca do elemento subjetivo do humorista, há a necessidade de se refletir sobre o humor fundado em estereótipos derrogatórios dos negros à luz da liberdade de expressão e do princípio constitucional da fraternidade.

3. A fraternidade como limite à liberdade de expressão e impeditivo do racismo recreativo: construção de uma prática judicial fraterna

O direito à liberdade de expressão, consagrado na Constituição Federal e no Pacto de São José da Costa Rica, compreende, exemplificativamente: a) o direito de falar, que um dos pilares da liberdade de expressão, consistente na prerrogativa de o indivíduo manifestar oralmente suas ideias, opiniões, informações e pensamentos, utilizando-se, inclusive, do idioma de sua preferência; b) o direito de expressar-se de forma escrita, como, por exemplo, livros, panfletos, artigos científicos ou literários e charges; c) o direito à difusão do pensamento, verbal ou escrito, por qualquer meio da escolha do cidadão, a fim de possa fazê-lo chegar ao maior número de destinatários; d) o direito à expressão artística; e e) o direito de acesso à informação, privada ou pública (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2010, p. 7-9), a incluir, deste modo, a criação, a produção e a divulgação de obras de arte e demais formas de expressão artística (SILVA, 2009, p. 3195), como as piadas e as brincadeiras formuladas por artistas comediantes.

O humor, portanto, está abrangido pela liberdade de expressão, de modo que, a priori, pode ser construído a partir da utilização de “todas as figuras de pensamento, como a antítese, apóstrofe, paradoxo, gradação, eufemismo, hipérbole, ironia, prosopopeia e perífrase” (ALVES, 2015, p. 149) e pode se apoiar “nas figuras de palavra, como a comparação, metáfora, metonímia, sinédoque, catacrese, sinestesia, antonomásia e alegoria” (ALVES, 2015, p. 149). Alberga, assim, a idealização, a reprodução, a exploração econômica e a livre divulgação do humor (SILVA, 2015, p. 3195) não somente no campo específico das artes, mas também na vida cotidiana das pessoas.

Porém, o amplo âmbito de proteção da liberdade de expressão não significa o seu reconhecimento como um direito absoluto e imune a qualquer espécie de limitação estatal, de modo que o princípio da fraternidade surge como um importante elemento de contenção do abuso da liberdade de expressão, notadamente no contexto do humor racista, o que significa dizer que nem todas as formas de comicidade são juridicamente garantidas pelo texto constitucional.

A fraternidade, apesar de não ser prevista expressamente no texto formal da Constituição Federal de 1988 (salvo no preâmbulo), como aduz Carlos Augusto Alcântara Machado (2017, p. 219), está positivada no ordenamento jurídico brasileiro, apresentando-se como categoria jurídico-constitucional indispensável para o advento do constitucionalismo fraternal.

Segundo tal compreensão, a fraternidade é uma categoria jurídica positivada no ordenamento jurídico nacional e extraída do Preâmbulo da Constituição e da própria Carta Magna, quando enunciam valores estruturantes do Estado brasileiro e os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, dentre os quais, destaca-se, a construção de uma sociedade fraterna, pluralista, sem preconceitos, livre, justa e solidária (art. 3º, inciso I - Constituição Federal).

Refere Carlos Augusto Alcântara Machado (2017, p. 219), nas conclusões de sua obra específica sobre o tema, que, quando a Constituição brasileira de 1988, no enunciado preambular, destacou os assim identificados “valores supremos de uma sociedade fraterna” (direitos sociais e individuais, liberdade, segurança, bem-estar, desenvolvimento, igualdade e justiça), apresentou “um novo marco civilizatório, desta feita, a partir da fraternidade”. Não mais somente da liberdade ou da igualdade.

Nesse contexto, a fraternidade é, enquanto elemento inserido no mundo jurídico, prescritiva, donde se extrai deveres jurídicos de socorro impostos pela legislação ao particular, não se confundindo, portanto, com as formas voluntárias de ajuda ao próximo, como a filantropia (PIZZOLATO, 2008, p. 114). Assim, condutas não fraternas estão vedadas pela Constituição Federal de 1988 e a prática da fraternidade pode ser incentivada, direcionada ou fomentada pela legislação.

A fraternidade é um princípio jurídico-constitucional, que não significa impor às pessoas o dever de amar o próximo. Ela está intimamente relacionada com deveres de reconhecimento, solidariedade e responsabilização com o outro, “um outro que não sou eu nem meu grupo social, mas o ‘diferente’ diante do qual tenho deveres e responsabilidades, e não somente direitos a opor” (TOSI, 2009, p. 59).

A fraternidade permite “dar fundamento à ideia de uma comunidade universal, de uma unidade de diferentes, na qual os povos vivam em paz entre si, sem o jugo de um tirano, mas no respeito das próprias identidades” (BAGGIO, 2008, p. 53). Segundo Angel Puyol (2017, p. 10), a fraternidade tem duplo significado. Um emancipador e outro assistencial. Do ponto de vista emancipador, a fraternidade prega que os seres humanos devem estar livres de qualquer relação de subordinação ou de dependência social, civil e econômica entre si, no sentido de que a desigualdade não se pode converter em abuso de poder, isto é, em sujeição do mais fraco ao mais forte. Por outro lado, sob o aspecto assistencial, a fraternidade significa que as pessoas devem cooperar entre si, protegendo-se mutuamente, a fim de que todos possam ter acesso a direitos essenciais a uma vida com dignidade.

O princípio constitucional da fraternidade obriga as pessoas a desenvolverem uma atividade que promova o progresso material e espiritual da sociedade, de modo que todos deverão contribuir, de alguma forma, para o bem-estar do outro e da sociedade, na medida em que a fraternidade não significa apenas não prejudicar o próximo, mas, sobretudo, fazer o bem ao outro (PIZZOLATO, 2008, p. 119-120).

A fraternidade está ligada à ideia de dever, isto é, de reconhecer como irmão quem não é irmão de sangue, sobressaindo daí as obrigações de solidariedade, de respeito e de reciprocidade para com o outro (BARZOTTO, 2018), que é dotado de igual dignidade. Os indivíduos possuem um vínculo relacional entre si, que não é de consanguinidade, espiritual, étnico ou de gênero, na medida em que são membros de uma mesma comunidade, a comunidade humana (PUYOL, 2018, p. 92). Luís Fernando Barzotto (2018, p. 82) leciona que reconhecer a pessoa humana como irmão significa assumir a responsabilidade por ele, eis que numa comunidade todos são responsáveis pelo bem de todos, havendo, portanto, um dever de solidariedade para com os demais, vedando-se, por consequência, a indiferença e a omissão.

A linguagem “enquanto poder é capaz de deturpar as palavras e, com isso, mortificar, matar as coisas, o ser” (BAGGIO, 2009, p. 111). A partir disso, os discursos racistas, ainda que de conteúdo humorístico, são atentatórios à fraternidade e à dignidade do alvo, seja um indivíduo concreto ou um grupo social, como a negritude, especialmente porque negam a sua condição de sujeito (irmão) e não contribuem para o bem-estar do outro e, assim, caracterizam uma conduta não fraterna.

A fraternidade, em seu sentido emancipador, representa “la lucha contra las múltiples formas sociales de exclusión, sumisión, arbitrariedad, discriminación y humillación”3 (PUYOL, 2017, p. 11) e o racismo recreativo, na lição de Adilson José Moreira, Philippe Oliveira de Almeida e Wallace Corbo (2022, p. 131), além de reproduzir a discriminação, impede “que membros de minorias raciais possam ter o mesmo nível de respeitabilidade social que as pessoas brancas possuem”, revelando-se “uma política cultural responsável pela reprodução da ideia de que membros de minorias raciais não são aptos a desempenhar papéis de poder e prestígio na sociedade”. Nesse diapasão, o racismo recreativo é irremediavelmente incompatível com o princípio constitucional da fraternidade, que pressupõe a instauração de relações de respeito igualitário entre os indivíduos, é dizer, tratamento entre si como iguais (PUYOL, 2017, p. 11), eis que as piadas e as brincadeiras racistas não reconhecem os negros como humanos dotados de igual dignidade, consideração e respeito profundo.

O jurista Jónatas Machado (2002, p. 822-824) alerta que um dos problemas que se coloca no domínio da liberdade de expressão e suas restrições é a utilização da sátira e da caricatura, especialmente porque o humor é utilizado ao longo da história da humanidade como instrumento de crítica social. Por essa razão, o discurso humorístico de mau gosto ou ofensivo não é, só por esse motivo, excluído da proteção constitucional da liberdade expressão, mas somente quando atentar, comprovada e desproporcionalmente, a direitos constitucionalmente tutelados.

O humor é constitucionalmente protegido e tem seu âmbito de proteção alargado, de modo, inclusive, a abranger as suas formas mais agressivas, exageradas, chocantes ou irônicas, quando se trate de temas ou indivíduos de interesse público porque cumpre uma importante função social consistente no discurso público crítico, isto é, funciona como instrumento de controle social do Estado, dos agentes estaduais e das pessoas públicas (MACHADO, 2002, p. 828-829). Por outro lado, o humor pode representar uma ameaça à dignidade da pessoa humana e aos direitos humanos e fundamentais dos cidadãos ou de grupos sociais que são alvo/objeto do discurso, caso em que há a necessidade de se estabelecer limites à comunicação humorística (MACHADO, 2022, p. 825). Em resumo, alguns discursos humorísticos poderão ser ilícitos.

O racismo recreativo causa, conforme alerta Adílson Moreira (2019b, p. 172-173), danos psicológicos significativos de longa duração nos indivíduos, incluindo medos patológicos e retraimento social. Como já dito anteriormente, o racismo recreativo, se fundamenta na inferioridade moral da pessoa negra. Ele humilha, ofende e coisifica o preto e a negritude, alvo do discurso humorístico, contribuindo para a discriminação e exclusão dos indivíduos, ao impedir a formação de uma consciência social sobre a respeitabilidade dos negros (MOREIRA, 2019b, p. 148-150). E, sendo assim, o racismo recreativo não é protegido pelo direito à liberdade de expressão, não porque é inerentemente ofensivo e de mau gosto, mas porque afeta de modo desproporcional e desarrazoado a negritude, a dignidade do preto alvo do discurso e ao princípio da fraternidade, na medida em que transforma o ser humano preto, integrante de grupo racial minoritário, objeto do riso e do prazer da comunidade branca.

As piadas e as brincadeiras com uso de estereótipos derrogatórios não são, à primeira vista, instrumentos de discussão sobre assuntos de interesse social ou sobre agentes públicos. Elas não cumprem uma função social importante no contexto democrático, na medida em que não servem de mecanismos de diálogo entre cidadãos ou de controle social do Estado. Elas são “apenas” meios de opressão e violência contra a comunidade negra e seus integrantes, negando-lhes a sua dignidade e condição humana.

O racismo recreativo, para além de excludente e perversa, é derivada da desigualdade social e econômica existente entre brancos e pretos e cria desvantagens e carências aos negros, impedindo-os, inclusive, de ascenderem a postos de prestígio social, político e econômico ao perpetuar na sociedade estereótipos derrogatórios da negritude.

A superação do racismo recreativo depende, sobretudo, do reconhecimento de que o outro, o preto, é um igual, com o qual se tem um vínculo que precede a qualquer contrato social ou político (CORTINA, 2017, p. 126), ou seja, um vínculo de irmandade e de humanidade, para, a partir daí, haver responsabilização recíproca pelo bem-estar e progresso socioeconômico e espiritual do negro e, via de consequência, da negritude. Nesse contexto, a fraternidade se apresenta como um verdadeiro antídoto contra o racismo recreativo, na medida em que direciona, como ressaltado alhures, ao reconhecimento, o respeito e a responsabilidade recíproca em relação ao ser humano.

O respeito ao próximo e a responsabilidade pelo bem-estar dos indivíduos não podem ser deixados nas mãos da caridade, do amor e da beneficência (PUYOL, 2017, p. 108), de modo que a fraternidade, enquanto categoria jurídico-constitucional, tem papel fundamental para a satisfação das necessidades básicas das pessoas e para o seu progresso social e espiritual.

As piadas e as brincadeiras cujo alvo é o preto ou a negritude envolvem uma situação de ridicularização das pessoas consideradas inferiores e têm como escopo precípuo o prazer psicológico dos brancos, por meio da reprodução de estereótipos negativos que, falsamente, dão a ideia de que os indivíduos brancos são racialmente superiores e, com isso, demonstrar que os pretos não são atores sociais competentes (MOREIRA; ALMEIDA; CORBO, 2022, p. 132-133). Dito de outra forma, no racismo recreativo as pessoas brancas, autoras do discurso humorístico, para além de não reconhecerem o preto (o outro) como um igual a si em dignidade e humanidade, contribuem para a manutenção das desigualdades socioeconômicas a que estão sujeitas as minorias raciais e a perpetuação dos obstáculos que impedem a acensão dos negros a postos de prestígio social, político e econômico.

As piadas e brincadeiras racistas são, em suma, condutas não fraternas, mormente porque os indivíduos devem ser, reitere-se, corresponsáveis pelo bem-estar todos, incluídos os pretos, sendo que o humor racista causa danos diretos e indiretos aos membros das minorias raciais. A fraternidade não se confunde com a tolerância, ela é um estar com e cooperação ativa entre mulheres e homens (CUNHA, 2017, p. 136). Compreende uma ideia de responsabilidade com o bem-estar dos demais membros da comunidade, que não ficam abandonados e jogados à própria sorte, a fim de quem ninguém seja excluído dos bens básicos que necessitam para terem uma vida com dignidade (PUYOL, 2017, p. 111).

O princípio da fraternidade, na qualidade de categoria jurídico-constitucional, não permite o humor racista e exige do Estado e dos cidadãos o respeito ao preto, enquanto ser humano dotado de dignidade e, portanto, merecedor de igual consideração. A prática de piadas e brincadeiras com o uso de estereótipos negativos revela um comportamento não fraterno e, desse modo, atentatório à Constituição, merecendo censura jurídica. Apresenta-se a fraternidade, destarte, como um limite ao exercício da liberdade de expressão no contexto do humor racista e como princípio ativo, motor do comportamento, da ação dos indivíduos, que impõe, como diz Marco Aquini (2008, p. 133), deveres para com a comunidade e para com o outro.

Nessa linha, a Lei N.º 14.532, de 11 de janeiro de 2023, incluiu o artigo 2º-A e o art. 20-A na Lei 7.716/1989, tornando o racismo recreativo crime. Porém, a inovação legislativa não encerra (não resolve) a questão do racismo recreativo no Brasil. Não podemos esquecer que o racismo é, consciente ou inconscientemente, reproduzido pelas nossas instituições sociais e estatais, a exemplo do Poder Judiciário. O desafio agora é no que toca à interpretação e aplicação do tipo penal do crime de racismo recreativo e a valoração dos fatos e das provas pelos magistrados nos casos envolvendo o humor racial.

A raça tem relevância jurídica e, por isso, a hermenêutica jurídica não pode se limitar a mera subsunção da norma ao fato, sem levar em consideração as peculiaridades raciais do caso concreto e as desigualdades sociais e econômicas entre brancos e negros, eis que, do contrário, impedir-se-ia a concretização da justiça racial (MOREIRA, 2019a, p. 119).

Os estereótipos raciais impactam negativamente a vida de todos os membros de minorias raciais mediante a criação de desigualdades de status cultural, social e material entre brancos e pretos, de modo que a identidade racial e a inserção social das pessoas pretas devem ser compreendidas a partir do grupo racial a que elas pertencem (MOREIRA, 2019a, p. 88-89). Ocorre que, como alerta Adilson José Moreira (2019a, p. 92), os magistrados brancos não interpretam e aplicam a legislação a partir da posição do subordinado, o que permite, voluntária ou involuntariamente, a execução de uma prática judicial racista e impede a promoção da emancipação racial.

A afirmação, no bojo do processo judicial, de que piadas e brincadeiras com o uso de estereótipos raciais derrogatórios não causam dor, sofrimento ou dano social, moral e psicológico ao alvo, seja a um indivíduo concreto ou grupo social, revela-se uma prática jurisdicional não fraterna e, portanto, incompatível com a Constituição Federal. Os juristas e magistrados, especialmente os brancos, devem, nas lides envolvendo questões raciais, interpretar o direito e valorar os fatos e as provas numa perspectiva racial e fraterna, esforçando-se, ao máximo, para exercer a atividade hermenêutica e jurisdicional do ponto de vista da alteridade, é dizer, colocando-se no lugar do outro, para que, com essa postura, possam enxergar a questão sub judice a partir da perspectiva daquele que, por causa da cor da sua pele, é vítima da violência, da humilhação e da dor. Esta percepção deve guiar a forma como os membros do Poder Judiciário e os demais atores do sistema de justiça interpretam e aplicam o direito nos litígios raciais.

Os juristas e magistrados brancos são essencialmente formalistas, eis que partem da premissa equivocada de que as pessoas são sujeitos abstratos, genéricos e absolutamente iguais e acreditam que as normas jurídicas possuem todos os elementos necessários para a sua interpretação e aplicação, sem levar em consideração as realidades e especificidades do caso concreto, notadamente a raça, o sexo, a etnia, a classe social ou a origem das partes envolvidas no litígio, promovendo-se, com isso, a aplicação objetiva e mecânica dos textos normativos, não admitindo, por outro lado, variações de sentido das palavras constantes no enunciado (MOREIRA, 2019a, p. 122-124).

Os magistrados, enquanto intérpretes e aplicadores das normas jurídicas, falam a partir do seu lugar, em outras palavras, a partir do seu pertencimento racial (MOREIRA, 2019a, p. 261), o que possibilita construções hermenêuticas e, consequentemente, decisões judiciais reprodutoras ou perpetuadoras da hierarquia entre negros e brancos.

Os juízes e tribunais brasileiros devem reconhecer que a raça é extremamente relevante na vida das pessoas porque condiciona a forma como elas percebem e experienciam o mundo, produzindo consequências distintas para as mesmas a depender do seu pertencimento racial, vale dizer, a raça prescreve o lugar social dos indivíduos e define quem tem privilégios, os brancos, ou desvantagens, os negros (MOREIRA, 2019a, p. 164).

Desse modo, os membros do Poder Judiciário e os demais atores do sistema justiça devem “considerar a situação dos que estão em uma posição estruturalmente distinta da dele [...] refletir sobre o valor normativo das experiências daqueles que falam de um lugar distinto” (MOREIRA, 2019a, p. 262) para que possam dar plena efetividade à dignidade e aos direitos humanos e fundamentais das pessoas humanas negras e promover a eliminação de todas as formas de discriminação e formas de subordinação racial. O princípio da fraternidade implica num exercício da atividade jurisdicional vocacionada à eliminação de todas as formas de discriminação, inclusive a institucional, e à inclusão política, social, econômica e cultural das minorias raciais.

É mister uma prática judicial fraterna, considerada como aquela que reconhece a existência de hierarquias arbitrárias entre grupos humanos e que a raça, a orientação sexual, o gênero, a condição social, a saúde física e mental, a idade, a etnia e a origem têm papel fundamental na vida das pessoas e, a partir dessa perspectiva, os magistrados conduzem todo o processo judicial, a envolver a valoração dos fatos e das provas e a interpretação e aplicação das normas jurídicas, em direção à prestação de uma tutela jurisdicional transformadora e emancipadora dos grupos minoritários, proporcionando a respeitabilidade social das minorias e paridade de participação dos grupos sociais em postos de prestígio social, econômico e político. Com isso, assegura a igualdade de status socioeconômico, cultural e moral entre pessoas e grupos majoritários e minoritários, mediante a não reprodução de discriminação institucional, ainda que indireta, e não aceita que estereótipos negativos, a cor da pele, a capacidade física e intelectual, a orientação sexual ou a origem das pessoas afetem negativamente a condução e o resultado do processo.

Enfim, uma prática judicial fraterna, parafraseando Adilson José Moreira (2019a, p. 268-270), é aquela que, atenta à forma como a norma jurídica ou decisão jurisdicional afeta o status de um grupo social, visa impedir a perpetuação da condição de subalternos que as minorias sociais se encontram e proporcionar a elas o acesso a oportunidades socioeconômicas e políticas, mediante a não reprodução de preconceitos e estigmas e a eliminação de práticas sociais e jurídicas que causam danos sociais e psicológicos aos grupos minoritários, de modo que todos os sujeitos do processo e terceiros impactados pela decisão judicial possam, ao serem efetivamente reconhecidos e tratados com igual consideração e respeito profundo, se perceberem como pessoas capazes de atuar com competência na esfera pública.

Nas ações penais envolvendo o racismo recreativo, o Poder Judiciário brasileiro tem, por força do princípio constitucional da fraternidade, o dever de julgar com perspectiva racial, é dizer, a obrigação de não reproduzir, consciente ou inconscientemente, práticas discriminatórias, diretas ou indiretas, e de levar em consideração os danos sociais e psicológicos causados pela injúria racial não apenas à vítima individualmente considerada, mas, sobretudo, ao grupo racial, a fim de que, a partir dessa perspectiva, não se afaste o elemento subjetivo do ilícito penal sob o argumento racista de que tudo não passou de uma piada ou brincadeira (animus jocandi) ainda que de mau gosto.

A mera intenção de formular uma piada ou brincadeira com estereótipos derrogatórios é por si só injuriosa e, portanto, ofensiva. Essa é a única interpretação que uma prática judicial fraterna, desde uma perspectiva racial, pode chegar. Do contrário, estar-se-á diante de uma postura institucional, ainda que de forma inconsciente, não fraterna e discriminatória e, desse modo, incompatível com a Constituição Federal.

A discriminação indireta se manifesta quando a legislação, atos administrativos ou decisões judiciais geram efeitos negativos desproporcionais sobre grupos sociais minoritários, ainda que eles tenham sido aplicados ou executados sem a intenção de discriminar um indivíduo ou grupo de pessoas ou mesmo sem a utilização de formas ilegais de diferenciação, na medida em que os agentes públicos não levam em consideração, no exercício de suas atribuições legais e constitucionais, os impactos negativos que seus atos podem ter na vida das pessoas. (MOREIRA, 2020, p. 401). Ela se caracteriza quando a norma, a prática ou a decisão judicial, ainda que não tenha a intenção de prejudicar pretos ou favorecer brancos, gera um impacto negativo desproporcional sobre o grupo socialmente minoritário e vulnerável, intensificando a exclusão socioeconômica e marginalização da população negra (MOREIRA, 2020, p. 401).

Assim, o Poder Judiciário não pode dar o mesmo tratamento jurídico aos casos de discurso humorístico envolvendo vítimas brancas e pretas, ainda que não se tenha a intenção de prejudicar ou beneficiar um grupo específico, porque as consequências da brincadeira ou da piada serão absolutamente distintas para a negritude e para a branquitude. Os impactos do humor com estereótipos raciais negativos são amplamente desproporcionais sobre a negritude, na medida em que geram danos sociais e psicológicos ao ofendido e à coletividade a que ele pertence, dificultando a sua mobilidade socioeconômica, o que não ocorre com a população branca, eis que os brancos não deixam de ocupar espaços de prestígio político e econômico em razão unicamente da cor da sua pele.

Exemplificativamente, os magistrados não poderão, por força do princípio constitucional da fraternidade, negar a existência do elemento subjetivo do crime de racismo recreativo (animus injuriandi), previsto no art. 2o-A combinado com o art. 20-A, ambos da Lei N. 7.716/1989, sob o argumento de que a intenção do agressor seria a de apenas brincar ou de se divertir (animus jocandi), eis que, neste caso, estar-se-ia a interpretar os fatos e as normas jurídicas a partir da perspectiva do infrator e não da vítima, pessoa preta, que sente a dor e a humilhação em razão de seu pertencimento racial.

O exercício da jurisdição guiado pela fraternidade exige que os magistrados, nos casos envolvendo o racismo, especialmente o recreativo, levem em consideração a raça do ofendido e os efeitos, diretos e indiretos, que a injuria racial provoca em sua vida e no grupo social a que pertence, sob pena de, assim não procedendo, a tutela jurisdicional criminal se revelar igualmente preconceituosa.

Enfim, o princípio da fraternidade atribui ao Poder Judiciário uma função transformadora, que compromete as juízas e os magistrados brasileiros com a dimensão emancipadora da fraternidade, que deverão interpretar e aplicar as normas jurídicas e valorar os fatos e as provas de modo a libertar as pessoas e os grupos sociais de quaisquer relações de subordinação ou de dependência socioeconômica entre si, a impedir, na maior medida do possível, que as desigualdades socioeconômicas se transformem em abuso de poder e a eliminar as formas estruturais do racismo, do machismo, do sexismo, do capacitismo, etarismo, homofobia, transfobia e outras formas de preconceito.

Conclusões

O discurso humorístico é essencial numa sociedade democrática porque, para além da produção do prazer e do sorriso humano no espaço privado, serve de instrumento político de controle dos agentes públicos. Porém, o humor pode ser utilizado como estratégia para legitimar e perpetuar hierarquias raciais e promover a discriminação, geralmente com a aparência de algo inofensivo e lícito. Nesse contexto, o presente trabalho investigou o princípio constitucional da fraternidade como instrumento de proteção da comunidade negra contra o “racismo recreativo”.

A liberdade de expressão está consagrada na Constituição Federal brasileira de 1988 e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos e compreende a liberdade de expressar e fazer circular opiniões, ideias, informações e juízos de valor sobre fatos, albergando ainda o acesso à informação.

As piadas se servem de estereótipos para transmitir uma mensagem para a audiência (destinatários) e, com isso, cumprirem com seus objetivos, sejam políticos ou meramente psicológicos. Elas são, no geral, realizadas na arena pública, nos meios de comunicação, sobretudo nos meios de comunicação de massa tradicionais (rádio e televisão) e nas redes sociais, e no ambiente de trabalho. Quando elas utilizam estereótipos negativos que desqualificam o preto ou a negritude ou os comparam com animais ou objetos bizarros, o orador, além de demonstrar desprezo pelos integrantes das minorias raciais, impede os mesmos de gozarem a mesma respeitabilidade social das pessoas brancas. Nesse ponto, o humor se revela uma forma de racismo sutil e socialmente aceitável.

A problemática que se coloca é se o direito à liberdade de expressão protege o discurso humorístico com o uso, ainda que sutil, de estereótipos que inferiorizam ou ridicularizam os membros das minorias raciais. A resposta é alcançada a partir da premissa que os direitos humanos e fundamentais não são, como regra, absolutos4.

O racismo recreativo é exteriorizado por meio de piadas, brincadeiras, sátiras ou caricaturas, dentre outras formas, que têm como alvo o preto ou a negritude, que são ridicularizados, humilhados e coisificados. O discurso humorístico racista é hostil e causa danos diretos e indiretos aos negros e ao seu grupo racial, enquanto coletividade, eis que, além de provocar prejuízo psicológico ao alvo, as piadas e brincadeiras acarretam danos à reputação social das pessoas negras, impedindo-as de serem reconhecidas como iguais em dignidade e em direitos com as pessoas brancas, o que incentiva a discriminação e a violência e dificulta sua ascensão a postos de prestígio social, econômico e político.

O princípio da fraternidade afasta do âmbito de proteção da liberdade de expressão o racismo recreativo, por se tratar de uma conduta flagrantemente não fraterna. O racismo recreativo é incompatível com o princípio constitucional da fraternidade, que representa, em seu sentido emancipador, a luta contra a discriminação, a humilhação e a violência, sendo que o discurso humorístico racista não reconhece os negros como humanos dotados de igual dignidade, consideração e respeito. Além disso, as piadas e as brincadeiras racistas impedem as pessoas negras de terem o mesmo nível de reputação e respeito social que os indivíduos brancos possuem, impedindo-os de terem acesso a postos de prestígio e ainda perpetuam as hierarquias raciais presentes na sociedade brasileira.

O humor racista é a antítese da fraternidade. Não há no racismo recreativo reconhecimento, respeito nem responsabilidade para com as pessoas negras, uma vez que os indivíduos brancos, autores do discurso humorístico, para além de não enxergarem o negro como um igual a si em dignidade e humanidade, não assumem a responsabilidade pelo bem-estar dos membros da negritude na sua liberdade, mas, ao contrário, contribuem para a manutenção das desigualdades socioeconômicas a que estão sujeitas as minorias raciais.

Para além disso, o princípio da fraternidade obriga o Poder Judiciário a exercer a função jurisdicional comprometida com a dimensão emancipadora da fraternidade, no sentido que os juízes deverão interpretar e aplicar as normas jurídicas e valorar os fatos e as provas de modo a impulsionar a emancipação socioeconômica e política das minorias raciais.

Em suma, a fraternidade, enquanto categoria jurídico-constitucional, afasta o humor racista do âmbito de proteção da liberdade de expressão e obriga a realização de uma prática judicial fraterna aos membros do Poder Judiciário brasileiro.

Referências

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Notes

1 O presente trabalho de pesquisa tem como objeto o racismo contra negros.
2 “[...] se prejudicar injustamente o alvo em virtude da participação da pessoa em um determinado grupo racial ou o falante for motivado por atitudes malevolentes ou por indiferença” (tradução livre do autor).
3 “A luta contra as múltiplas formas sociais de exclusão, submissão, arbitrariedade, discriminação e humilhação” (tradução livre do autor)
4 Há alguns direitos que são, na visão do autor, absolutos, tais como a proibição da escravidão, a proibição da tortura e o direito da pessoa de escolher professar ou não determinada religião.
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