Artigos inéditos
Received: 12 May 2023
Accepted: 21 January 2024
DOI: https://doi.org/10.1590/2179-8966/2024/75948
Resumo: Este artigo é derivado de um projeto maior de pesquisa que problematizou as implicações das diversas abordagens ao antirracismo adotadas pelas instituições do estado, movimentos sociais de base e as universidades, considerando a análise de processos de produção de conhecimento sobre raça, racismo e antirracismo. Para este estudo analisamos discursos proferidos por sete entrevistados, - três estudantes do curso de Direito (negros/as), - duas mulheres e um homem e de quatro professoras do curso de Direito (uma negra e três brancas) de duas universidades localizadas na cidade do Rio de Janeiro, Brasil em 2018. Entre os tópicos abordados estão as culturas acadêmicas, curriculares e epistemológicas no que se refere à formação acadêmica em Direito, à luz dos estudos das relações étnico-raciais (raça, racismo e antirracismo), educação jurídica e dos Direitos Humanos. Nesta abordagem trabalhamos com as perspectivas teóricas de Achille Mbembe, Ana Flauzina, Pierre Bourdieu, Charles Hamilton, Frantz Fanon, Stokely Carmichael e Thula Pires. O método inclui entrevistas semiestruturadas, ancoradas pela análise crítica do discurso de Teun van Dijk. Esta abordagem revela que as expectativas e limitações para se estudar e almejar determinadas posições não dependem apenas do curso que o estudante frequentou, mas são determinadas pelo racismo institucional e diversas questões relacionadas ao capital racial, econômico, cultural, social.
Palavras-chave: Currículo, Racismo, Direito, Raça, Universidade.
Abstract: This article stems from a larger research project that problematized the implications of the different approaches to anti-racism adopted by state institutions, grassroots social movements, and universities, taking into account the analysis of knowledge production processes about race, racism, and anti-racism. For this study, we analyzed the speeches of seven interviewees - three black law students, two women and one man, and four law professors, one black and three white, from two universities in the city of Rio de Janeiro, Brazil, in 2018. Among the topics covered are academic, curricular and epistemological cultures in relation to academic training in law, taking into account studies on ethnic-racial relations (race, racism and anti-racism), legal education and human rights. In this approach, we work with the theoretical perspectives of Achille Mbembe, Ana Flauzina, Pierre Bourdieu, Charles Hamilton, Frantz Fanon, Stokely Carmichael, and Thula Pires. The method involves semi-structured interviews anchored in Teun van Dijk's critical discourse analysis. This approach reveals that the expectations and limitations of studying and aspiring to certain positions depend not only on the course attended by the student, but are also determined by institutional racism and various issues related to racial, economic, cultural and social capital.
Keywords: Curriculum, Racism, Law, Race, University.
1. Introdução
Este artigo propõe uma discussão acerca da produção de conhecimento sobre raça, racismo e antirracismo com foco no currículo universitário do curso de Direito, à luz dos estudos sobre raça e racismo (CARMICHAEL; HAMILTON, 1967; FANON, 2008; MBEMBE, 2018); Direitos Humanos (PIRES, 2018; FLAUZINA, 2006); Educação (GOMES,N.2017); Ciências Sociais (BOURDIEU, 2010; COSTA JUNIOR, 2021); Estudos sobre branquitude (BENTO, 2005); (anti)racismo e educação jurídica (PIRES, 2013; CONCEIÇÃO, 2009-2021; FREITAS, 2021).
As entrevistas realizadas com estudantes e professores do curso de Direito possibilitaram a análise de interpretações concorrentes de relações de poder e conhecimento (van DIJK, 2001) e mostram diversas questões relacionadas às desigualdades de capital econômico, cultural e social (HALL, 2006; WEST, 2000; SAVAGE et al., 2018). No entanto, outras nomenclaturas foram propostas para pensar como o racismo institucional ordena o “controle de acesso às posições socioprofissionais de status privilegiado”. Neste caso, o campo do Direito se configura como uma posição socioprofissional privilegiada, sendo, portanto, um âmbito relevante para a compreensão de como o racismo é naturalizado e utilizado na “subtração simbólica de valor” (COSTA JUNIOR, 2021, p. 9).
Neste sentido, este texto irá discutir os conceitos de capital existencial e racial como uma maneira de introduzir uma leitura crítica de Bourdieu, capaz de dar conta da discussão sobre racismo institucional (CARMICHAEL; HAMILTON, 1967; WERNECK, 2016; SILVA, 2017), já que a cor da pele é utilizada para gerar “concepções valorativas” sobre pessoas e grupos sociais (COSTA JUNIOR, 2021, p. 2).
Segundo Ture e Hamilton (1969 [1967], p. 20), o racismo institucional “tem origem no funcionamento de forças estabelecidas e respeitadas na sociedade e, por conseguinte, recebe muito menos condenação pública do que [o racismo individual]” e “descansa na ativa e pervasiva operação de atitudes e práticas anti-negras”. Para Coelho, et al., (2023):
O racismo institucional revela que não há desvio ou contradição entre os direitos consagrados na [Constituição brasileira] e a realidade do povo negro: a relação entre o Estado e o povo negro é definida como uma situação colonial que se perpetua rotineiramente através de políticas racistas, mas que não são reconhecidas nem nomeadas como tal (COELHO et al.,2023, p. 74, grifo dos autores).
Coelho et al., (2023, p. 21), questionam: “como é que o discurso e aparelhos legal e jurídico dos Direitos Humanos têm abordado o racismo institucional?” O debate proposto por Pires (2018) auxilia-nos à compreensão acerca “da centralização da categoria raça como lente analítica, política e normativa para pensar os Direitos humanos. A autora propõe “racializar a discussão sobre Direitos Humanos para politizá-la” (PIRES, 2018, p. 66).
Assim, enfatizamos neste artigo, a importância de problematizar as experiências e vivências de estudantes e professores do curso de Direito comprometidos com uma educação antirracista e com os “atravessamentos entre raça, classe, gênero e capacidade, como estruturais e estruturantes de relações intersubjetivas e institucionais” (PIRES, 2018, p. 66). Entendemos que no campo educacional, a educação antirracista visa a promoção de práticas pedagógicas e curriculares que valorizem a história e a cultura de afrodescendentes, afro-brasileiros e dos povos indígenas, combatendo o racismo institucional.
Os discursos captados por meio de entrevistas com estudantes e professores do curso de Direito revelam trajetórias marcadas por uma complexa relação entre necessidade e escolha. Contudo, estas trajetórias não são marcadas apenas por uma relação com variáveis como necessidade ou escassez. As experiências de pessoas negras nas universidades brasileiras, de um modo geral, e a análise do currículo devem passar por considerações também de cunho existencial e racial, por meio do questionamento do quanto universidades marcadas por uma história colonial podem oferecer recursos existenciais às pessoas negras. Neste sentido, enquanto o conceito de capital racial é mobilizado para entender a subtração de valor, o capital existencial se configura como uma possibilidade para se pensar como a experiência diaspórica constrói também recursos coletivos dentro das universidades que ultrapassam a lógica individual.
Silva e Pires (2015, p. 62) reforçam a importância de “colocar o critério raça como informador das reflexões sobre o Direito, não apenas no seu ordenamento normativo, mas também institucional, histórico, político e estrutural”. E frisam a urgência de “evidenciar aspectos negligenciados pela ‘convergência de interesses’ que o modelo de supremacia branca fomenta” (SILVA e PIRES, 2015, p. 62). Por outro viés, Bento (2005), ao trazer essa discussão para o cenário brasileiro, destaca que “em um contexto, onde os lugares de poder são hegemonicamente brancos, e a reprodução institucional destes privilégios é quase que automática, as mudanças exigem uma explicitação por parte dos excluídos” (BENTO, 2005, s.i) 1.
Ressaltamos a importância das políticas de ação afirmativa introduzidas no Brasil nos anos 2000, que se definem como “políticas públicas (e privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física” (GOMES, J., 2001, p. 132). Tais políticas derivadas de lutas intensas do Movimento Negro brasileiro visam o aumento da presença de populações racializadas, sub-representadas em esferas da vida social, além de promover a equidade racial e corrigir os efeitos presentes do racismo institucional (CARMICHAEL e HAMILTON, 1967; WERNECK, 2016; SILVA, 2017).
Entendemos que a vida acadêmica também espelha as dinâmicas de desigualdades e do racismo institucional que dão contorno à formação histórico-social brasileira. Portanto, devido à seletividade persistente do sistema educacional brasileiro, justifica-se a adoção e manutenção de políticas de ação afirmativa, principalmente no ensino superior brasileiro (Lei nº 14.723/2023) e no campo do trabalho (Lei nº 12.990/2014).
Enfatizamos ainda a importância de outras legislações que incluem no currículo oficial da rede de ensino no Brasil a obrigatoriedade da temática da história e cultura africana, afro-brasileira e dos povos indígenas (Leis nº 10.639/2003 e 11.645/2008). Estas leis são fundamentais para a construção de uma sociedade antirracista, especialmente nas universidades, e isto inclui os cursos de Direito (COSTA, COSTA; GARROTE, 2021). Assim de maneira crítica, propomos com este estudo, contribuir para os avanços no campo jurídico e para o rearranjo das estruturas de poder em universidades brasileiras. Algumas questões que levantamos são: como é que o discurso acadêmico do campo do Direito tem abordado em seu currículo os estudos das relações étnico-raciais? Como isso se manifesta no campo da produção de conhecimento sobre raça e (anti)racismo?
Com o propósito de fazer emergir a percepção de nossos entrevistados do curso de Direito, sobre o tema investigado, ilustramos nosso debate com relatos pontuais captados por meio de entrevistas semiestruturadas, realizadas na cidade do Rio de Janeiro (RJ), Brasil (BR), com sete entrevistados do ensino superior/pós-graduação em 2018. Na pesquisa, incluímos a categoria raça/cor (preto, pardo, branco, indígena e amarelo), de acordo como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A escolha dos participantes se deu por meio de um banco de dados baseado nas respostas de e-mails enviados aos entrevistados, onde sete convidados expressaram o desejo de contribuir com a pesquisa e correspondiam ao perfil desejado: estudantes, professores, curso de Direito (graduação e/ou pós-graduação, universidades públicas e/ou privadas, residentes na cidade do Rio de Janeiro. Assim, o corpus desta pesquisa foi constituído por sete participantes: duas alunas de graduação (Kieza e Nala/negras), um aluno de pósgraduação (Akin/negro) e quatro professoras (Yaa/negra; Lina, Alice, Sol/ brancas). Utilizamos nomes fictícios para preservar o anonimato dos entrevistados2. Além da anonimização das universidades dos participantes.
As entrevistas foram semiestruturadas (GASKELL, 2002), individuais e transcritas em forma de texto, e em seguida foram selecionados os trechos que constituíram o corpus. As questões foram centradas na tríade: presença negra, enfrentamento curricular e racismo institucional. As entrevistas foram analisadas sobre a perspectiva da análise crítica do discurso de van Dijk (2001), considerando “a maneira como o abuso e a desigualdade do poder social são representados, reproduzidos, legitimados e resistidos pelo texto e pela fala no contexto social e político” (van DIJK, 2001, p. 466). Lembrando que estudo é derivado de um projeto maior de pesquisa intitulado POLITICS|A política de antirracismo na Europa e na América Latina: produção de conhecimento, decisão política e lutas coletivas (2017-2023), que analisou as relações de poder que configuram o antirracismo em contextos latino-americanos e europeu. Em um dos eixos do projeto investigou-se sobre a produção de conhecimento sobre raça e (anti)racismo em universidades púbicas em quatro países (Portugal, Espanha, Peru e Brasil). No Brasil, nosso foco de atenção, foram realizadas 56 entrevistas no campo das Ciências Sociais e Humanas em Instituição de Ensino Superior (IES) pública localizada na cidade do Rio de
Janeiro. O Caderno de resultados do projeto intitulado O Antirracismo em Disputa: conceitos, debates públicos e projetos políticos - Caderno de debate do projeto POLITICS (2023), traz de maneira ilustrativa e informativa os principais resultados da pesquisa.
2. Antirracismo e o Debate Acadêmico em Cursos de Direito
As contribuições de Ana Flauzina, Ísis Conceição e Thula Pires nos auxiliam a compreender as questões do racismo no pensamento e na ordem jurídica brasileira. De acordo com Pires (2018) “entender as dinâmicas a partir das quais o racismo opera em cada contexto é fundamental para construção de respostas político-institucionais que confrontem seu modo de funcionamento de forma concreta” (PIRES, 2018, p. 70). E isto inclui, com raras exceções, as universidades brasileiras, onde a produção sobre o antirracismo, combate à discriminação e justiça racial, inclusive no direito, ainda é tímida. Segundo Conceição (2021, p.1760): “no Brasil, pode-se adjetivar como inexistente a produção de conteúdo jurídico sobre o tema Justiça Racial, destacadamente em face da invisibilidade da produção de autores como Joaquim Barbosa, Dora Bertúlio, Eunice Prudente e Hédio Silva Jr.” O relato da estudante de graduação em Direito, Kieza, negra, ilustra esta conjuntura:
No meu currículo o debate racial perpassou muito rapidamente. Em geral, eu observei um debate que incluía Marx, Weber e Durkheim, em Filosofia e Sociologia na lógica de passar bem rapidamente. Para além disto, não havia nenhum debate sobre racismo e antirracismo” (KIEZA, estudante. Entrevista realizada em 23. out.2018, RJ, BR).
As considerações de Kieza nos remetem ao crescente ingresso de pessoas negras nas universidades brasileiras, o que tem gerado tensão nos cursos de Direito (matriz curricular, epistemologias). “[…]. Nós falamos: ‘poxa professor’, é um absurdo, não ter um autor negro na sua ementa sobre teoria do direito” (KIEZA, estudante. Entrevista realizada em 23 out.2018, RJ, BR). O aumento de estudantes negros nas universidades brasileiras coloca em xeque um ambiente maioritariamente ocupado por brancos e que, historicamente, está constituído como um espaço de reprodução da branquidade (ARAÚJO; SILVA, 2022). Assim, ressaltamos a importância da ampliação do foco dos currículos universitários nos estudos das relações étnico-raciais, uma vez que “a relevância do estudo de temas decorrentes da história e cultura afro-brasileira e africana não se restringe à população negra, ao contrário, diz respeito a todos os brasileiros” (BRASIL, 2004)3. Compreendemos que estas Diretrizes, destinada aos sistemas de ensino, é também uma resposta às demandas por mais políticas de ações afirmativas e valorização da história e cultura dos movimentos sociais e culturais negros. Por isso, ressaltamos a importância dos coletivos negros e indígenas criados nas universidades, movimentos esses que têm desempenhado um papel fundamental na luta contra o racismo e em prol de uma educação antirracista na educação superior brasileira. Esses coletivos funcionam com instâncias de acolhimento e de propulsões de ações antirracistas, valorizando epistemologias afrocentradas e de povos indígenas nos currículos universitários, além de se envolverem no monitoramento das políticas de ingresso e permanência de estudantes racializados (negros e de povos indígenas) no ensino superior brasileiro (TRINTADE, 2021; SILVA; ARAÚJO, 2023).
O discurso da entrevistada Lina, professora, branca, confirma algumas dessas demandas:
Eu me lembro, especialmente, dos meus estudantes sem acessos a livros. Os livros de Direito são muito caros. Tem também a questão de acesso à moradia. As bolsas de permanência não garantem, numa cidade como o Rio de Janeiro, todas as demandas dos estudantes (LINA, professora, Entrevista realizada em 21.ago.2018, RJ, BR).
No Brasil, outros autores e autoras também têm se debruçado sobre a temática do ensino superior em Direito. Almeida (2016, p. 211), por exemplo, desenvolveu reflexões relacionadas aos estudos das relações étnico-raciais no curso de Direito, analisando trajetórias de universitários. Ele conclama que é necessário “proporcionar aos alunos do Curso de Direito a ampliação de seus conhecimentos envolvendo o Direito e a questão racial brasileira”. Costa, Costa e Garrote (2021) chamam a atenção sobre manifestações de intolerância, e principalmente, racismo em universidades, e atestam a urgência da implementação de um currículo “que amplie o Direito antidiscriminatório e abordagem de temáticas étnico-raciais[...]. É mais do que nunca fundamental a construção de universidades antirracistas” (COSTA, COSTA e GARROTE, 2021, s.i)4.
Canto (2022) reafirma a necessidade de que a formação jurídica no Brasil discuta a relação com o racismo, abordando a educação antirracista e a decolonialidade. Freitas (2019) ao discutir sobre juventude, em especial sobre a juventude negra, diz que o campo das Ciências Sociais nas últimas décadas tem sido palco de diversos debates sobre “juventude enquanto categoria social e sobre a emergência dos jovens e dos seus coletivos como atores políticos na luta por direitos […], no entanto, não foram acompanhados por investigações semelhantes no âmbito do direito” (FREITAS, 2019, p. 1337). Ferreira (2018. p. 264) reforça os diálogos anteriores e acentua à necessidade de uma “metodologia de ensino jurídico que valorize a diversidade racial do país, com especial ênfase nos aspectos ligados à negritude”.
Estes estudos articulam-se a perspectiva de nossa investigação que propõe pensar o campo do Direito e os estudos das relações étnico-raciais na educação superior brasileira, chamando a atenção para o debate sobre o antirracismo. Entendemos que o antirracismo engloba desde disposições legais para corrigir atos individuais de discriminação, até a implementação de políticas mais abrangentes de mudança estrutural, como políticas de ações afirmativas. “Antirracismo é […], uma luta coletiva de libertação que busca combater o racismo e desmantelar as estruturas de opressão racial e desumanização, além de confrontar o racismo institucionalizado” (COELHOE et al., p.68, 2023).
Em busca de aprofundar as questões anteriormente colocadas, na sequência nos debruçaremos sobre como a desumanização perpassa o currículo de formação em Direito e como isso se relaciona com as diferentes formas de capital propostas.
3. A Questão Racial, Capital Existencial e o Campo do Direito
Compreender o currículo da formação acadêmcia em Direito sobre a ótica do racismo institucional exige um foco não apenas na estratificação econômica, mas também uma compreensão de processos de mobilização, estruturação e apropriação de outras formas de capital. Há necessidade de se mobilizar conceitos que não estejam voltados apenas para a percepção da desigualdade econômica. A apresentação dos conceitos de capital racial e existencial proporciona uma possibilidade de entendimento da relação entre o social e o individual, considerando inclusive os afetos e emoções e como eles se articulam.
Capital existencial (WEST, 2000; NETTLETON, 2013; PERRY 2003) é um conceito que se refere ao conjunto de recursos que conectam o indivíduo ao social através de habilidades, conhecimentos, experiências, valores, afetos e relações interpessoais. Já o capital racial está associado ao poder simbólico do racismo, “transmutado e incorporado” ao senso comum e habitus. Este capital racial, se manifesta tanto no cotidiano como afeta o exercício do poder de maneira mais ampla, tendo sua “dimensão de violência” ignorada (COSTA JUNIOR, 2021, p. 7). Temos dois usos distintos associados à expressão capital existencial, que podem ser considerados contribuições paralelas ao desenvolvimento do conceito. Uma das análises seminais sobre o capital existencial foi conduzida por Cornel West, a outra por Sarah Nettleton.
Além de realizar uma síntese de ambas as correntes, buscamos neste texto reconhecer as contribuições de ambos os autores que podem ser aplicadas à compreensão do currículo dos cursos de Direito e à relação com o antirracismo. Ainda que West (2000) use o capital existencial para pensar a realidade de pessoas brancas, ele o faz de uma perspectiva crítica, que coloca a questão racial no centro, diferentemente de Nettleton (2013). Perry (2003), na análise do livro Screen Saviors: Hollywood Fictions of Whiteness, ao recorrer de West, pontua:
[...], os brancos são consistentemente representados como mais íntegros, empreendedores, corajosos, gentis, cultos e bonitos do que outros povos - em outras palavras, racialmente superiores. Mostrar-nos que as noções de superioridade racial branca, embora inconscientes, estão vivas e bem na cultura dos EUA é, na minha opinião, um dos aspectos mais importantes deste texto. Dentro da sociologia, a tendência de enfatizar o privilégio branco como se fosse apenas privilégio material negligencia o que Cornel West chama de ‘capital existencial’ que os brancos ganham de um autoconceito inerentemente elevado (PERRY, 2003, p. 1225).
Este trecho, escrito antes da ascensão de Trump ao poder nos Estados Unidos, com discurso calcado na superioridade branca, destaca uma necessidade de pensar como a branquitude gera benefícios que não são apenas materiais, ainda que estes recursos possam eventualmente se tornar capital econômico. A análise de Nettleton (2013) parte de uma compreensão crítica da sociologia de Bourdieu, mas foca em um grupo muito específico de pessoas (britânicos brancos acima de 55 anos). O mesmo podemos dizer de outros trabalhos utilizando o conceito de capital existencial (FREITAS; GAUDENZI, 2022).
Através da análise de praticantes de corrida em montanhas no Reino Unido, Sarah Nettleton percebeu que os desafios proporcionados pela corrida geram uma satisfação afetiva e corporificada que suscita recursos necessários para consolidar a socialidade existente entre os participantes. Estes recursos são denominados por Nettleton (2013) como capital existencial. O capital existencial é apresentado como um recurso que é afetivo e corporificado, capaz de conectar o individual e o social (NETLETON, 2013; FREITAS e GAUDENZI, 2022). O mesmo pode ser dito a respeito da noção de capital racial, uma vez que auxilia na compreensão de como uma característica individual, como a cor da pele, se torna um “paradigma subjetivo inscrito na dimensão objetiva da realidade do mundo social” (COSTA JUNIOR, 2021, p. 7).
Neste texto específico, os conceitos de capital existencial e racial permitem uma compreensão, a partir das falas de estudantes e professores de cursos de Direito, de como o racismo institucional afeta as expectativas e percepções de pessoas negras. No entanto, enquanto a noção de capital racial opera na explicação da subtração de valor operada através do racismo institucional, o capital existencial aponta para dinâmicas de criação de valor, que podem ser apropriadas, coletivizadas ou disputadas.
Esta reflexão pode auxiliar a compreensão do racismo institucional no sistema de justiça, uma vez que a atuação racista não se guia apenas por uma percepção de fungibilidade do corpo negro devido à falta de recursos materiais. O sistema de justiça opera a partir do pressuposto da falta de humanidade associada ao corpo negro (FLAUZINA, 2006). Dentro deste contexto, o sistema de justiça e políticas de policiamento racial não são orientadas apenas por uma realidade associada à falta de recursos materiais da população vítimas de violações, mas pela maneira como recursos existenciais da população negra são aviltados, desvalorizados ou apropriados. Estudantes entrevistados revelam não apenas conhecerem os efeitos da política de morte implementada nas favelas e comunidades brasileiras, mas sentem diretamente estas consequências. Neste sentido, o relato de Kieza, jovem negra, estudante de graduação em Direito, e ativista social voltada à questão do Direito à terra e moradia da população negra brasileira, ilustra este debate. A entrevista com Kieza ocorreu no local de estudos da entrevistada (universidade). Ela chegou atrasada à entrevista, o que gerou apreensão do pesquisador. Mas a situação foi compreendida pela justificativa de Kieza:
Eu moro na Vila Operária, que é uma favela que fica em Duque de Caxias, e os meios de locomoção para chegar até a universidade são deficitários, além de contratempos que podem ocorrer durante o trajeto” (KIEZA, estudante. Entrevista realizada em 23.out.2018, RJ, BR).
Kieza fez questão de enfatizar que era “favelada” e que não utilizava o termo “comunidade”, que para ela é uma forma de esconder a favela e seus atributos: “nós que somos favelados e moramos nas favelas, reivindicámos o lugar onde nós moramos”. Para ela, a favela é um lugar de muita expressividade e com muitas histórias que seus moradores querem reafirmar.
Esse relato nos remete a Alves (2011), quando o autor enfatiza que, “a redefinição territorial [das cidades], no pós-abolição empurrou a população negra para regiões precárias de infraestrutura urbana” (ALVES, 2011, p. 112, grifo dos autores). Para Cunha Júnior (2020, p.16) “o racismo antinegro é um problema estrutural da sociedade brasileira e se concretiza no espaço urbano e nos territórios de maioria de população negra”. O território se configura, portanto, como um elemento que mobiliza simultaneamente os capitais existencial e racial. A fala de Kieza revela como morar em Vila Operária reforça a manutenção de uma dada hierarquia social e racial, sendo elemento que aprofunda a dinâmica de desvalorização, desumanização e extração de valor associada ao capital racial. Por outro lado, a favela também é um lugar de “expressividade” e de “histórias”. A “expressividade” e “história” das favelas se configuram como formas de mobilizar um capital existencial, que muitas vezes é transformado em outras formas de capital e até apropriado por outras instituições, como a política institucional ou a imprensa.
Kieza fala de dois pontos de vista sobre o combate ao racismo e as desigualdades sociais: universitária e cidadã. A entrevistada visita favelas no Rio de Janeiro e conversa com moradores, sobre assuntos como Direitos Humanos, violência policial, segurança pública, saúde, habitação e educação. A preocupação de Kieza encontra voz e eco em Alves (2011), quando ele chama a atenção para entendermos este contexto:
[…], a violência estatal - em suas múltiplas faces - como uma categoria “necropolítica” […], pela qual o Estado exerce o seu poder de soberania. Todavia, entendo como violência estatal não apenas as já banalizadas práticas policiais de extermínio e massacre nas favelas, mas também a cumplicidade e a displicência estatal com a violência homicida, a violência cotidiana expressa na segregação espacial, a negação sistemática dos direitos de cidadania, as mortes evitáveis nas filas dos hospitais públicos (ALVES, 2010, p. 109-110).
Kieza reafirma a favela como um lugar periférico: “onde o Estado está ausente. Ou melhor, quando ele está presente na lógica da segurança pública, na lógica da necropolítica, onde os corpos pretos favelados, são os primeiros corpos que são abstraídos” (KIEZA, estudante. Entrevista realizada em 23.out.2018, RJ, BR). Conforme
Alves (2011), “[...]. A noção necropolítica desenvolvida por Mbembe[...], explicita os limites das tecnologias de governamentalidade neoliberal em lidar com as dinâmicas espaciais urbanas em sociedades estruturadas na dominação racial” (ALVES, 2011, p. 119).
A extração de valor traduzida através do conceito de capital racial se faz relevante para análise deste trecho da entrevista. Como existem ganhos a serem maximizados através da violência racial, que é, no entanto, negada, é evidente que a exploração do capital racial será vantajosa para a branquitude dentro de um campo como o jurídico. Desta forma, as entrevistas demonstram que a resistência à mudança ocorre em dois âmbitos: em primeiro lugar por meio da dificuldade que pessoas negras possuem para acessar o campo do Direito em posições de prestígio social. Em segundo lugar, o próprio campo jurídico estrutura o saber do Direito, que possui uma incidência necessária na produção das leis, que por sua vez estruturam a exploração do capital racial (COSTA JUNIOR, 2021).
Uma característica muito relevante das formas de capital alternativas aqui consideradas é o fato de que a lógica de acumulação não é guiada apenas pelo pressuposto da escassez. Por isso, o seu entendimento exige uma compreensão de fluxos, mediações, intensificações, apropriações, entre outros processos. No entanto, a conversão do capital existencial, muitas vezes através de processos de apropriação, em capital econômico, social ou cultural, é possível. Uma das hipóteses que pode ser levantada é a de que a exploração do capital racial resulta em capital existencial a ser explorado pela branquitude.
A distinção entre capital existencial e cultural se faz necessária, ainda que possa existir diversas pesquisas no sentido de complexificar a compreensão do capital cultural (SAVAGE et al., 2018). A elaboração deste conceito por Pierre Bourdieu está extremamente ligada à forma como a estratificação social era pensada na França ou em outros países europeus. Como verificado através da pesquisa empírica, as noções de capital existencial e racial não necessariamente indicam uma relação entre cultura e desigualdade social, diferentemente da noção de capital cultural, mas traduz a maneira através da qual uma pessoa ou povo são vistos como possuidores de humanidade, fungibilidade e o direito à suas próprias formas de ser no mundo. Ou seja, tanto o capital existencial como o capital racial não estão vinculados de maneira simples com a estratificação social pensada exclusivamente através da classe social. Esta afirmação é relevante, pois é possível discorrer que as noções de capital existencial e racial se ancoram em processos anteriores ao “advento da sociedade de classes” (COSTA JUNIOR, 2021, p. 5). Como coloca o autor:
Com o advento da sociedade de classes e a manutenção da hierarquia social colonial no Estado moderno, houve uma homogênea polarização da concentração racial nas distintas classes sociais. Fator que facilitou a associação, embora insciente e obtusa, das distinções de classes e seus respectivos condicionamentos às categorias raciais antagonicamente posicionadas, mantendo e reforçando o mito da superioridade racial, agora convertido e “ratificado” em ideologia do desempenho (COSTA JUNIOR, 2021, p. 5).
Em adição, entender como o racismo impacta na subtração e na criação de valor exige ferramentas conceituais que permitam uma compreensão de um processo de legitimação das desigualdades sociais ancorado na experiência colonial. O recurso à conceitos como capital existencial e racial é um exercício neste sentido.
4. Vozes e Ações contra o Racismo na Universidade
Werneck (2016) conceituou racismo institucional como sendo “a dimensão mais negligenciada do racismo” (WERNECK, 2016, p. 535). O racismo institucional opera através das estruturas, estando ligado às normas, instituições e práticas sociais que resultam em hierarquias e desigualdades (WERNECK, 2016); SILVA, 2017). Seu impacto na vida da população negra no Brasil pode ser percebido na sua relação direta com os serviços e as instituições que deveriam garantir seus direitos fundamentais. Assim, reconhecer a existência dessa dimensão da desigualdade que tão profundamente está estruturado na sociedade e no Estado brasileiro é essencial para enfrentá-la. É fundamental e urgente que o campo jurídico contribua para a dimensão política do combate ao racismo institucional, produzindo e disseminando conhecimento nos seus currículos acadêmicos que perpassam o Direito e as relações raciais.
Nesta seção detalhamos um pouco mais os discursos dos entrevistados acerca da discussão sobre culturas acadêmicas e curriculares. Por exemplo, o relato de Yaa, professora, negra, reforça este debate:
A gente vem de um histórico de criminalização de corpos não brancos, não é? Assim, o sistema de justiça penal é construído na criação daquele que foge da régua de uma unidade, que foge do padrão do humano, portanto, sujeito do Direito soberano” (YAA, professora. Entrevista em 22.out.2018, RJ, BR).
Esta discussão nos remete a Pires (2018, p. 65), quando a autora discute sobre Direitos Humanos e os “limites e possibilidades da criminalização do racismo no Brasil”. O encarceramento em massa da população negra no país é um exemplo. Para ela: “Racismo institucional, encarceramento em massa e a ineficácia histórica das normas penais antirracistas compõem o cenário que faz do sistema de justiça criminal uma cruel engrenagem de moer corpos negros” (PIRES, 2018, p .72).
O diálogo estabelecido na entrevista com Yaa nos mostra ainda que em vários momentos históricos, foi exatamente a mobilização do estado penal que criminalizou (e criminaliza), “corpos descartáveis […] e oferece a proteção para a zona do ser e deixa a gente na violência permanente, não é?” (YAA, professora. Entrevista realizada em 22.out.2018, RJ, BR). As palavras de Yaa nos remete a Fanon (2008), que destaca essa estratificação da humanidade a partir da concepção de ser e de não ser, de quem é humano e quem não é. Passos (2020, p. 76) acrescenta a este debate assinalando que “essa desumanização promove a coisificação do não ser, ou seja, animaliza, coisifica e objetifica, o que significa que pode ter sua existência exterminada. Podemos dizer que existem diferentes estratégias para promover o extermínio do não ser”. Pires (2018) reitera essa discussão e diz que “muitas são as expressões que denunciam o tratamento conferido aos que estão na zona do não ser pelo projeto moderno colonial escravista e por formas atualizadas de desrespeito e extermínio” (PIRES, 2018, p. 67). Quando focamos nosso olhar para esses corpos negros em movimento, “entre-lugares” e o papel das universidades, retomamos o diálogo com duas professoras universitárias (Alice e Lina) que mostram a importância da implementação das políticas de ação afirmativa no ensino superior no Brasil. Alice, professora, branca, quando aborda o tema das cotas raciais, relata um pouco mais de sua vivência e experiência enquanto docente:
Nós temos de compreender que questões como o debate sobre racismo na universidade vêm sendo provocadas, obviamente, a partir do momento em que os negros entram na universidade, porque, senão, nós ainda estaríamos a falar naquele “clãzinho branco”, na “torrezinha de marfim”, sem se preocupar nem um pouco com esse tipo de questionamento. Só que esses alunos [cotistas], hoje, questionam, e isso é incrível, porque nos dá a oportunidade de expandir os horizontes epistemológicos, inclusive, não é? (ALICE, professora. Entrevista realizada em 22.set.2018, RJ, BR).
Lina, professora branca, por outro lado, sublinha que no início de sua carreira como professora universitária havia raríssimos estudantes negros em suas aulas. Foi a partir da introdução do sistema de cotas na sua universidade, que la começou a observar em suas salas de aula um número maior de alunos negros, que sem as políticas de ações afirmativas não teriam ingressado no ensino superior: “São alunos que dão muito valor a estarem ali, e são muito interessados e têm muita consciência da importância daquele espaço da universidade pública” (LINA, professora. Entrevista realizada em 21.ago.2018, RJ, BR). A docente diz ainda que tem sido muito interessante observar em suas aulas todo o potencial destes alunos ingressantes de cotas raciais e que eles enriquecem, sem dúvidas, as suas aulas do curso de Direito. O relato de Lina é reiterado por Alice, professora, branca: “Aquele meu alunado que vinha da zona sul, que era ‘branquinho’, passou a ‘ser diferente’. Hoje a universidade tem uma maioria de estudantes que vem da Baixada Fluminense e favelas do Rio de Janeiro” (ALICE, professora. Entrevista realizada em 22.set.2018, RJ, BR).
As entrevistas demonstram também que ainda há demandas e barreiras a ultrapassar. Por exemplo, a estudante Kieza entrou na universidade via sistema de cotas (políticas de ação afirmativa). Porém, ela não conseguiu de imediato bolsa de permanência, por não terem recorte racial.” Eu fui me virando, tentando me ajustar aqui dentro [universidade], e fui fazendo as provas, que aqui tem, tanto de bolsas de permanência, quanto bolsas acadêmicas” (KIEZA, estudante. Entrevista realizada em 23.out.2018, RJ, BR).
Lina, professora, branca, chama a atenção para outras questões que envolvem a permanência de estudantes em universidades, e assinala que:
Muitas universidades brasileiras ainda não têm infraestruturas para atender algumas demandas. […]. É um drama na Instituição no que tange à “bandejão” [refeitório/alimentação], alojamento, não é? Outro exemplo se refere a estudantes com deficiência, por exemplo, a IES ficou com o elevador quebrado, durante muitos anos, até chegar um “cadeirante”, e só então a instituição iniciou os consertos” (LINA, professora universitária. Entrevista realizada em 21 ago.2018, RJ, BR).
Por um lado, entendemos que as políticas de ação afirmativas proporcionaram que corpos negros, principalmente da juventude negra, passassem a ocupar espaços que antes lhes eram negados. Jovens negros e negras passaram a se movimentar em espaços ocupados pelas elites e camadas médias brancas, dentre outros, a universidade pública. Em espaços com a presença de uma estética afrocentrada como um Direito, via ações políticas. Há, portanto, um movimento de reconhecimento e estruturação de uma forma de capital existencial voltado para a valorização da presença de pessoas negras na academia ou no campo do Direito como um todo. Cada vez é maior o número de estudantes negros e negras que entram nas universidades brasileiras, e eles próprios vão sentindo necessidade desses espaços, de coletivos para fazer luta política.
Por outro, como discutem Coelho et al., (2023), o racismo, até o presente, cria obstáculos para a livre circulação da população negra, principalmente os jovens negros no Brasil. “Estatísticas acerca da situação de negação do direito à vida da juventude negra […] têm mostrado a existência do estereótipo racial na construção do sujeito ‘suspeito’" (COELHO et al.,2023, p. 15). Pode-se observar que a inclusão da população negra nos espaços universitários, ainda que esteja produzindo grande impacto na produção de conhecimento, especialmente sobre raça, racismo e antirracismo nas instituições de educação superior, historicamente exclusivas a população branca, ainda não tem sido capaz de barrar a morte de jovens negros. Esses corpos negros vivem sob eterna vigilância que coloca o corpo negro em eterna vigilância, e a vigilância policial recai também sobre esses jovens supostamente “incluídos” (COELHO et al.,2023; GOMES; LABORNE, 2018; MUNIZ; COELHO, 2021).
Apesar de ocorrer na sociedade brasileira um movimento novo protagonizado por este grupo, ainda há o processo de regulação do corpo negro que se dá de “maneira tensa e dialética, com a luta por emancipação social empreendida pelo negro enquanto sujeito” (GOMES, N., 2017, p. 98). Como podemos observar através das entrevistas, a subtração de valor proporcionada pelo capital racial afeta inclusive os resultados das políticas de ação afirmativa: “Capital racial, portanto, não se restringe meramente à estética identitária “racializada”, mas, sobretudo, ao sentido construído social, histórica e politicamente em torno da noção de raça” (COSTA JUNIOR, 2021, p. 9).
Outro assunto importante está relacionado ao número reduzido de docentes negros/as nas universidades brasileiras, devido ao racismo e desigualdades sociais. Esta observação é mencionada por Nala, estudante do curso de Direito, negra, que diz:
É bastante reduzido o número de professores negros. Lá na faculdade nós temos uma professora negra. Eu acho que isso é um desafio que nós temos de enfrentar, para poder, efetivamente, democratizar a universidade” (NALA, estudante. Entrevista realizada em 15.set.2018, RJ, BR).
Alice, professora, branca, agrega a esta discussão e questiona:
Quantos docentes em Direito nós temos, que são negros? Então, essa é uma questão que eu tenho de problematizar, eu não posso falar de Direitos Humanos e não falar do absurdo que é, que é o meu campo, não é?” (ALICE, professora. Entrevista realizada em 22.set.2018, RJ, BR).
Tais relatos nos rementem a Fernandes et al., (2021, p. 3) que destacam que a inclusão de docentes negros em universidades públicas brasileiras “[…], dá-se de forma lenta. Nas universidades públicas os professores negros ainda são minoria”. Nesta direção, nossa entrevistada Yaa sublinha que “é importante que as universidades tenham uma agenda antirracista e mais concursos e contratações de docentes negros, assim como funcionários” (YAA, professora. Entrevista em 22.out.2018, RJ, BR).
5. O Enfrentamento do Currículo do Curso de Direito e o Debate Racial
Nas entrevistas realizadas buscamos conhecer um pouco mais sobre a produção de conhecimento acerca de raça, racismo e antirracismo nos currículos dos cursos de Direito no Brasil, onde se reivindica, principalmente pela comunidade negra, uma matriz curricular que promova uma ruptura da perspectiva eurocêntrica. Ao aprofundarmos nosso diálogo com a estudante Kieza, ela nos relata que:
Mesmo com estas reivindicações, há professores brancos que ainda não ‘aceitam’, [...] que acham que esse é um ‘debate absurdo’, e que o Direito não tem nada a ver com isso, e que ele está dando Direitos reais, ou seja, ele não está querendo debater sobre negritude” (KIEZA, estudante. Entrevista realizada em 23.out.2018, RJ, BR).
Nilma Gomes (2017, p. 40) enfatiza que “a percepção dessa ausência não acontece por acaso. Questioná-la poderá ser um caminho”. Isto é, para promover mudanças de culturas acadêmicas e curriculares no campo educacional brasileiro (MUNIZ; SILVA, 2022). Neste sentido, a professora Alice realça a importância da inclusão de fato. Para ela, o aluno que vem da periferia ou da favela, tem uma outra experiência de vida, diferente de um aluno filho de família de classe média que é branco, que mora na zona sul. “O aluno negro tem outros questionamentos. Ele exige do professor um questionamento que seja mais pragmático, não é?” (ALICE, professora. Entrevista realizada em 15 de set. 2018, RJ, BR). A professora Alice complementa:
O que é curioso, porque na Faculdade de Direito, especialmente, o “grosso” do alunado, quando a gente pergunta: "Porque é que você fez Direito?", e eles respondem: "para fazer concursos." Não é porque ele quer. Então, onde ficam os grandes questionamentos? Eu ministro muitas disciplinas eletivas, sabe? Então, eu trabalho por exemplo, disciplinas que envolvem teorias críticas. Então, o “grosso” dos meus alunos, nessas disciplinas eletivas são alunos que vêm da periferia, e a maior parte deles, negros. Na extensão a mesma coisa (ALICE, professora. Entrevista realizada em 15.set. 2018, RJ, BR).
Esta discussão que envolve o mercado de trabalho, e o neoliberalismo, nos remete a discussão de capital existencial. O conceito de capital existencial mostra-se fundamental, pois implica ganhos afetivos contextuais que podem ser analisados de um ponto de vista individual, mas que decorrem de uma atuação coletiva. Alice chama a atenção para uma questão coletiva que é percebida pela ausência de pessoas negras naquele espaço, as falas demonstram uma intensificação do capital existencial a partir da entrada de pessoas negras nas universidades, estimulando a luta política:
Eu enquanto estudante percebia a ausência de pessoas negras, na minha turma, no curso, na faculdade. Ou seja, havia uma questão racial ali. E, era muito chocante isso, para mim. Onde estavam os negros? Eles estavam na faxina, na cantina, eles estavam carregando livro na biblioteca, não é? Eles não estavam dentro da sala de aula, nem como professor, nem como aluno (ALICE, professora. Entrevista realizada em 15 de set. 2018, RJ, BR).
Alice sublinha que “o Brasil foi fundado sobre a escravidão e nós não podemos relegar isso a um segundo plano ou minimizar, ou relativizar. Nós temos de compreender, gerir e mudar, não é?” (ALICE, professora. Entrevista realizada em 15 de set.2018, RJ, BR). A docente se refere ao que discute Costa Junior (2021, p. 4), isto é, sobre o “contexto em que os povos - indígenas e africanos - foram submetidos a um processo sistemático de desvalorização da sua condição humana e suas matrizes existenciais. O que proporcionou a perda de poder desses dois grupos”.
Alice questiona:
A primeira questão: o Direito, em si, a lei [10.639/03] já existe, não é? Como é que eu, como professora de Direito, falando no meu lugar, [branca] penso que devo dar, posso dar ou estou ‘obrigada’ a contribuir?” Para Alice, é necessário a viabilização de temas que envolvem a população negra dentro da estrutura dos cursos de Direito. “O poder judiciário é racista? Ele é misógino? É preciso que isso seja questionado? Como que é a estrutura do poder judiciário, hoje, no Brasil? Quantos negros têm? Homens e mulheres? Quantos negros estão num tribunal?”, questiona ela (ALICE, professora. Entrevista realizada em 15 de set.2018, RJ, BR).
A educadora brasileira enfatiza a importância de que cursos de Direito possam falar mais sobre questões raciais e sobre o racismo envolvendo principalmente gênero, raça e classe. Segundo os relatos da entrevistada, não é possível discutir o racismo sem problematizar a manutenção de sistemas punitivos, como por exemplo o encarceramento de pessoas negras. Na prática, o que é preciso são lutas por emancipação, e o punitivismo dificilmente é emancipatório, uma vez que reforça o mesmo sistema que permite, entre outros processos, a limitação de processos geradores de capital existencial e sua conversão nos capitais econômico e social.
6. Trajetórias, Negritude e Currículo no Campo Jurídico
As diversas formas de capital não operam em um vácuo, e para entender como elas se interrelacionam é necessário aprofundar a compreensão da noção de campo. Como colocado por Bourdieu em “Os Usos Sociais da Ciência”, o conceito de campo propõe superar oposições como a existente entre aqueles que acreditam na autonomia do texto, chamados internalistas, e aqueles que enfatizam o contexto, externalistas. Como assinala Bourdieu, esta oposição aparece em diversos debates, da literatura ao Direito. Assim, os agentes e instituições estão inseridos dentro de campos, que são espaços “relativamente autônomos”, são microcosmos “dotados de suas leis próprias” (BOURDIEU, 2010, p. 20). Os campos não são nem completamente autônomos nem inteiramente dependentes de seu contexto. Contudo, o campo jurídico não se estrutura de maneira a reconhecer o capital racial ou o capital existencial nos termos discutidos acima. O capital racial, por exemplo, apesar de ser determinante para explicar a diferença de posições do campo jurídico, ele é ignorado. O mesmo pode ser dito a respeito do capital existencial quando utilizado para promover a presença negra em espaços brancos do universo do Direito.
Nessa seção enfatizamos, dentre outros relatos, o do participante Akin, homem negro, estudante de pós-graduação do curso de Direito. Akin é originário do estado da Bahia, e fez toda a sua trajetória educacional em instituições públicas. Mas até o ensino médio não teve acesso ao debate racial, mesmo sendo originário do interior do estado brasileiro da Bahia, onde há uma maior concentração de pessoas negras no Brasil. Akin sublinha: “a gente tinha acesso ao fenômeno do racismo. Mas ao debate na escola, não. Então, eu me percebi negro, mas sem as ferramentas para essa afirmação, ao chegar para estudar na capital Salvador” (AKIN, pós-graduando. Entrevista realizada em 17.out.2018, RJ, BR).
Ao ingressar na graduação do curso de Direito, vindo de um contexto de vulnerabilidade social, Akin contou com bolsa de permanência na universidade (moradia, programas se extensão, grupos de estudos), o que lhe possibilitou fazer uma imersão no debate racial (práticas pedagógicas em comunidades periféricas de Salvador). Akin foi construindo sua identidade negra na medida em que estudava. Como ele conta:
Esse processo, para mim, ele foi transformador, porque foi a partir da realização dessa imersão que eu me vi nesse lugar de homem negro, vivendo em Salvador, que é essa cidade negra, mas também muito desigual, onde os espaços de poder não pertencem à população negra” (AKIN, pós-graduando. Entrevista realizada em 17.out.2018, RJ, BR).
Em relação a esta questão, Sansone (2003) sublinha que “a negritude é inescapável, porque existe uma tensão intrínseca entre o que é ‘branco’ e o que é ‘negro’. Segundo esse esquema, a raça e a história das distinções raciais devem ser defendidas” (SANSONE, 2003, p. 18). Para Akin, o processo do reconhecimento como homem negro veio da questão estética, porque quando ele começou a deixar o seu cabelo crescer lembrou-se dos tempos de infância:
E eu sempre fui, desde criança, ensinado a ter o cabelo muito curto, o meu cabelo era quase raspado, o meu pai dizia que o cabelo tinha que ser daquele jeito, e era pequenino, a gente não sabe, eu não sabia como ele era” (AKIN, pós-graduando. Entrevista realizada em 17.out.2018, RJ, BR).
Nessa perspectiva o cabelo crespo é considerado não de maneira isolada, mas dentro do contexto das relações raciais construídas na sociedade brasileira (GOMES, N., 2017). Por um lado, Akin reafirma sua negritude, “eu assumo esse lugar, vou deixar o meu cabelo crescer e vestir roupas africanas para trabalhar” (AKIN, pós-graduando. Entrevista realizada em 17.out.2018, RJ, BR). Por outro lado, Akin observa que as pessoas começaram a olhá-lo diferente:
Com resistência, as pessoas me olham diferente, começam às vezes a elogiar a roupa, o cabelo, antes mesmo de falar sobre o meu trabalho. Isto é, muitas vezes, o corpo, a estética, chegam antes do profissional do Direito, é uma dimensão do ‘racismo benevolente’, como se fosse me agraciar, elogiar o cabelo, ao invés de falar sobre o trabalho que eu estou fazendo, ali” (AKIN, pós-graduando. Entrevista realizada em 17.out.2018, RJ, BR).
Para Nilma Gomes (2017), o corpo negro obtém visibilidade ao tensionar a relação entre adaptação, revolta e superação em relação ao racismo, “que o toma por […] exótico” (GOMES, N. 2017, p. 94). Ela ao discutir acerca da tensão regulação-emancipação do corpo negro, destaca que “o processo de regulação do corpo negro se deu (e ainda se dá) de maneira tensa e dialética com a luta pela emancipação social empreendida pelo negro enquanto sujeito” (GOMES, N. 2017, p. 98) dentro do campo jurídico.
Outra constatação por meio dos relatos de Akin, é que durante a graduação em Direito, ele não teve componentes curriculares que discutissem a temática racial na sociedade brasileira, “nem uma disciplina, e essa era uma grande crítica de quando eu entrei na universidade. Os textos e os autores que nós estuávamos eram de matriz europeia” (AKIN, pós-graduando. Entrevista realizada em 17.out.2018, RJ, BR). Para Yaa, professora negra, “em linhas muito gerais, é muito difícil ter uma abertura para a mobilização de uma bibliografia que não seja a hegemônica, não é assim?” (YAA, professora. Entrevista em 22.out.2018, RJ, BR). Alice complementa: “eu não me recordo de ter disciplinas obrigatória sobre questões raciais, somente eletivas. Eu me recordo de os meninos terem pedido essa disciplina” (ALICE, professora. Entrevista realizada em 22.set.2018, RJ BR). Por sua vez, Sol, professora, branca, acrescenta: “no Programa de pós-graduação que faço parte, não temos disciplinas obrigatórias sobre relações raciais no curso de Direito, mas há uma demanda por parte dos estudantes” (SOL, professora. Entrevista realizada em 19 de out.2018, RJ, BR).
Entendemos que é fundamental e urgente a criação de disciplinas obrigatórias que discutam raça e (anti)racismo no campo do Direito, para além de disciplinas eletivas. E que a demanda por estudos das relações étnico-raciais não fique somente pelo interesse dos alunos, como frisou Akin:
Desde a graduação, a busca de conhecimento sobre raça e racismo são as minhas escolhas, não são as instituições que me oferecem isso, porque como eu te disse, eu não tive esta discussão na graduação, não tive no mestrado e não tive no doutorado. Eu era o único estudante negro nos cursos (AKIN, estudante de pós-graduação. Entrevista realizada em 17.out.2018, RJ, BR).
O tema da “escolha” aparece associado ao estudo do tema do racismo. É importante a reflexão de Akin no sentido de ampliar o debate sobre racismo e antirracismo para além das reflexões desconectadas dos contextos históricos. É crucial focar nas tensões que atravessam a relação entre academia e movimentos antirracistas com o intuito de gerar novos debates que desafiem as narrativas e lógicas raciais que estruturam as políticas públicas, as normativas e legislações antidiscriminação, a produção do conhecimento e as lutas políticas. Akin finaliza sua entrevista conversando um pouco sobre sua pesquisa. O entrevistado acredita que é necessário construir ferramentas para o enfrentamento das desigualdades, das iniquidades, das violências que as sociedades vivem, principalmente a brasileira. Como ele declarou: “não há modo possível de analisar a sociedade brasileira sem levar em consideração a questão racial, o diálogo com as questões de classe social e de gênero” (AKIN, pós-graduando. Entrevista realizada em 17.out.2018, RJ, BR).
Por meio do relato de Akin entendemos que o capital existencial aparece a partir da participação no movimento, na procura por recursos para trafegar por um sistema excludente e branco. Neste sentido, cabe a reflexão do capital existencial como recursos utilizados na contraposição à exploração do capital racial, através principalmente da criação de comunidades afetivas e movimentos sociais, como, por exemplo, os coletivos negros nas universidades.
7. Considerações Finais
As entrevistas analisadas acima indicam a predominância de referências brancas e europeias entre os principais autores estudados na academia, e a quase inexistência de debates sobre o racismo. Os entrevistados negros demonstraram reconhecer o campo jurídico, assim como a produção científica sobre Direito, como sendo um contexto branco. Estes estudantes e profissionais entendem que as regras produzidas por este campo relativamente autônomo serão, portanto, protetoras da branquitude. Assim, as pessoas negras que ingressam no campo jurídico percebem a necessidade de combater a extração de valor promovida pelo capital racial e também se mobilizam para criar espaços mobilizadores de capital existencial. Contudo, o campo jurídico permanece estruturado pela negação do racismo e da necessidade de ampliar o debate para incluir mudanças curriculares, novas metodologias e uma maior diversidade em termos bibliográficos.
As entrevistas analisadas refletem em muitos momentos o que Hall (2006) chamou de sensibilidade descolonizada. A presença na universidade como professor ou como estudante negro é discutida nas entrevistas com uma constante tensão entre necessidade e escolha. A experiência de ser negro em uma universidade no Brasil é atravessada por questionamentos sobre a autonomia possível de ser exercida neste espaço. Contudo, esta discussão também está associada às estruturas econômicas e expectativas sociais. Quais são as trajetórias esperadas de um estudante negro e a de um estudante branco que almejam se inserir dentro do campo jurídico? A resposta para essa pergunta não pode ser dada de maneira completamente objetiva, mas deixa um questionamento que pode ser abordado e aprofundado por outras análises que não partam exclusivamente de uma compreensão das ferramentas que o aluno branco pode obter através de recursos materiais. A resposta para a pergunta acima parte da compreensão de expectativas, que estão relacionadas tanto ao indivíduo quanto às estruturas sociais e estas impactam diretamente a definição do que é “possível”, dependendo de como este indivíduo está posicionado socialmente e racialmente.
As entrevistas revelam que as expectativas e limitações para se estudar e almejar determinadas posições não dependem apenas do curso que a pessoa frequentou ou da classe social à qual a pessoa pertence, mas são sim afetadas pelo racismo institucional (WERNECK, 2016; SILVA, 2017). Entretanto, é importante entender os mecanismos que continuamente estruturam o racismo. Quando desenvolvido por Bourdieu (2010), o termo capital cultural tinha uma forte ligação com símbolos de alto status e as habilidades necessárias para apreciar a arte, a gastronomia e acessar formas específicas de conhecimento. Contudo, de acordo com Stuart Hall (2006), a própria definição de cultura mudou. Dessa maneira, os conceitos de capital existencial e racial ganham grande relevância para a compreensão de questões que emergiram ao longo das entrevistas realizadas com membros do corpo docente e discente de universidades de Direito no Brasil.
A análise das entrevistas através dos conceitos de capital existencial e racial nos fornecem pistas para a compreensão de como o racismo institucional atua de maneira relacionada a marcadores de classe, muitos dos quais associados aos capitais econômico e social, mas não exclusivamente. No entanto, dentre as formas de capitais consagradas, o capital cultural possui limitações associadas a uma construção excessivamente atrelada a noções de alta e baixa cultura e a uma realidade eurocêntrica. No que concerne ao capital econômico ou social, diversas análises já foram realizadas sobre limitações materiais que afetam o acesso à universidade através das cotas. É crucial analisar o racismo evitando uma “compreensão unidimensional” (CONCEIÇÃO, 2021, p. 1745), uma vez que para a promoção da igualdade e o combate ao racismo são necessárias políticas públicas em diversas áreas, incluindo o letramento racial e outras atividades voltadas para integrantes do sistema de justiça e polícias. No entanto, como apontado ao longo do texto, a naturalização da desigualdade através da exploração do capital racial é um recurso explorado pelo capitalismo que dificilmente será resolvido através de atividades de conscientização.
Considerando que as universidades são instituições capazes de alterar as regras que regem o campo jurídico, a mudança do currículo e a inserção de mais pessoas pardas, pretas e indígenas pode impactar numa equalização da relação exploração do capital racial quando comparado com a valorização do capital existencial. Todavia, se faz necessário observar que a inserção destas pessoas no mercado de trabalho é outro desafio a ser enfrentado e muitas entrevistas apontaram que dentro do campo jurídico há uma hierarquia racial e de classe entre as diversas posições possíveis. Isto indica a necessidade de ampliação de políticas de permanência, de inserção profissional e mudanças de culturas acadêmicas, curriculares e epistemológicas, comtemplando as histórias e culturas africana, afro-brasileira e dos povos indígenas no currículo acadêmico. Não obstante, as expectativas colocadas sobre estudantes negros quando comparadas com estudantes brancos, assim como, a compreensão que estes estudantes possuem de suas potencialidades ou capacidade de escolha afetam esta trajetória. Expectativas e potencialidades que são constantemente produzidas ou sabotadas pelo racismo institucional e pela extração de valor proporcionada pelo capital racial.
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Notes
Latina: produção de conhecimento, decisão política e lutas coletivas, financiado pela European Research Council (Projeto: 725402 -POLITICS -ERC-2016-COG) e sediado pelo Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra. A pesquisa foi qualitativa e se balizou por princípios éticos postulados da Plataforma Brasil Número do CAAE: 02024318.5.0000.5582. Número do Parecer: 3412173.