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Crise, crítica e insurreição
Crisis, criticism and insurrection
Revista Direito e Práxis, vol. 15, no. 4, e76669, 2024
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Artigos inéditos


Received: 30 May 2023

Accepted: 10 March 2024

DOI: https://doi.org/10.1590/2179-8966/2024/76669

Resumo: O presente artigo apresenta a relação entre guerra, crise e capitalismo, como constitutiva de uma forma de produção econômica, política e subjetiva, que desanima a perspectiva comum de constituição social. Nesse ponto, se faz necessário construir a crítica, como crítica a um determinado modelo de produção de subjetividades, e a um projeto democrático específico, qual seja, o das democracias liberais securitárias. No entanto, se o capitalismo se apresenta como guerra e como crise, e institui um modo de produção de subjetividades esvaziado de potência, é pela sua composição contemporânea que se torna possível constituir tecnologias políticas do comum, e formas e práticas de insurreição contra o capitalismo cibernético-colonial. Isto posto, o que se propõe no presente trabalho, é construir o capitalismo enquanto guerra e crise, que produz um tipo de sujeito e um paradigma democrático, para, em um segundo momento propor uma democracia possível a partir de novos arranjos tecnopolíticos que se dão em comum, e que ao mesmo tempo constituem o comum, apresentando o comum como um destino político-democrático necessário. Para tanto, utiliza-se como referencial metodológico, teórico-analítico o materialismo histórico no viés de Antonio Negri, em que o método considera o antagonismo entre uma subjetividade criativa e uma subjetividade constituída pelo capital. É neste sentido que se estabelecem as novas categorias de análise que permitem dar conta de novos sujeitos sociais (a multidão/o comum) e compreender as formas de manifestação do comum a partir dessas categorias em antagonismo às categorias “imperiais”.

Palavras-chave: Capitalismo, Comum, Democracia, Insurreição, Tecnologias políticas.

Abstract: This article presents the relationship between war, crisis and capitalism, as constitutive of a form of economic, political and subjective production, which discourages the common perspective of social constitution. At this point, it is necessary to build critique, as a critique of a particular model of production of subjectivities, and of a specific democratic project, namely, the liberal security democracies. However, if capitalism presents itself as war and crisis, and institutes a mode of production of subjectivities emptied of power, it is because of its contemporary composition that it becomes possible to constitute political technologies of the common, and forms and practices of insurrection against capitalism cybernetic-colonial. That said, what is proposed in this paper is to build capitalism as war and crisis, which produces a type of subject and a democratic paradigm, to, in a second moment, propose a possible democracy based on new technopolitical arrangements that take place in common, and which at the same time constitute the common, presenting the common as a necessary political-democratic destiny. For that, it uses the historical materialism as a methodological, theoretical-analytical referential in the bias of Antonio Negri, in which the method considers the antagonism between a creative subjectivity and a subjectivity constituted by capital. It is in this sense that new categories of analysis are established that allow us to account for new social subjects (the crowd/the common) and understand the forms of manifestation of the common from these categories in antagonism to the “imperial” categories.

Keywords: Capitalism, Common, Democracy, Insurrection, Political technologies.

Introdução1

O capitalismo que se transmuta e chega a atualidade como capitalismo cibernético-colonial-“imperial”, irrompe e se movimenta sempre a partir de um processo aberto de crises cíclicas que o constituem e o fazem em constante transformação. No entanto, para além da crise, o capitalismo sempre operou por meio da guerra, por meio de uma conflituosidade latente generificada, racializada e classista, que impõe há alguns o signo da perda, da precariedade e da morte, e há outros o da vida “segura”, e das condições para viver. Na atualidade, esse funcionamento se transforma em um estado de guerra global que aloca a guerra no seio da população e deflagra uma verdadeira guerra civil posta pelos mecanismos, técnicas e aparatos do capital contra os indesejados que precisam ser capturados ou exterminados, nas malhas da subjetividade produzida no contexto capitalístico cibernético-colonial“imperial” (Parte 1).

Porquanto, se o capitalismo transita entre crise e guerra e habita as ruínas do mundo, esse mundo é habitável e importa uma determinada produção de subjetividade, um determinado sujeito que nele viva dentro da “normalidade” proposta pelo capitalismo cibernético-colonial. Nesse contexto, a crítica que se faz é à produção de subjetividade e à forma político-democrática que ela constitui, pois, a captura pelo capital se dá a partir dessas subjetividades vazias e alienadas que são produzidas pelo mesmo, e que se adaptam a uma democracia securitária que produz exclusão e extermínio como ação normalizada e democrática (Parte 2).

Assim, o ponto de ruptura que se coloca para com o paradigma construído é a possibilidade de constituir o comum como campo de resistência e insurreição contra o capitalismo cibernético-colonial-“imperial” que o expropria. Ou seja, constituir o comum é constituir a insurreição contra as formas de expropriação, exclusão e extermínio postas em prática pelo capital, e essa insurreição se dá a partir de “novas” tecnologias políticas comuns, de “novas” manifestações do comum que para além de apontar outras perspectivas, em verdade constituem outros mundos possíveis de habitar, imaginar e existir lutando, resistindo e insurgindo-se (Parte 3).

Assim, questiona-se se a partir da constituição comum e de novas tecnologias políticas comuns e de formas de manifestação do comum é possível informar a luta e resistência como insurreição e constituir um novo projeto democrático comum em que a vida seja destino e não meio. Para responder a esse questionamento, utiliza-se como referencial metodológico e teórico-analítico o materialismo histórico no viés de Antonio Negri2. Aqui, certamente, cabem algumas explicações: a construção teórica de Antonio Negri se desenvolve no terreno do marxismo. No entanto, a corrente do pensamento marxista representada por Negri busca uma atualização do marxismo no sentido de situá-lo frente às dinâmicas contemporâneas, mas sem se afastar dos conceitos fundamentais do materialismo histórico marxista, que são: a) a tendência histórica, b) a abstração real, c) o antagonismo e d) a constituição da subjetividade. Conforme Antônio Negri e Michael Hardt declaram, para seguir a trilha do método de Marx, hoje, deve-se ir para além, ou afastar-se das teorias de Marx. Neste sentido, o método de Negri considera o antagonismo entre uma subjetividade criativa e uma subjetividade constituída pelo capital. É neste sentido que se estabelecem as novas categorias de análise que permitem dar conta de novos sujeitos sociais (a multidão/o comum), compreendendo o comum sob a chave ontológica da multidão em antagonismo às subjetividades “imperiais”, e como condição de possibilidade para constituir a insurreição.

1 O capitalismo entre crise e guerra: Caminhando nas ruínas do mundo

O capitalismo a partir do que o constitui enquanto sistema de produção, bem como, paradigma político, ou, ainda, como modo de produção de subjetividade, se conforma e movimenta enquanto crise, uma crise insuperável, e, ao mesmo tempo contornável, pois, a partir do próprio capitalismo como se em um processo antropofágico que o devora e reconstitui cada vez mais voraz e implacável.

Essa crise se coloca como condição de possibilidade para a manutenção do sistema, e ganha contornos diversos com o caminhar da história. Ocorrem modificações seja no sistema, seja no campo social, que fazem com que o sistema capitalista se modifique e tome novas formas, porém, sempre mantendo o seu caráter hegemônico, expropriatório e conflituoso. O empreendimento capitalista se consolida como um biopoder do qual parte, um sem número de estruturas de poder e controle, como também, de práticas e formas de realização desse controle, engendradas a partir de um também sem número de dispositivos técnico-sociais.

No contexto do que Negri (2015) denomina por biocapitalismo, é possível afirmar que as linhas de produção de subjetividades são geridas pelo capitalismo financeirizado, o que gera a constituição de sujeitos precarizados absorvidos pela dívida e pela expropriação social do capital. (Corrêa, Andrade e Souza, 2020). A sociedade se ordena contemporaneamente pela criação da precariedade e em especial de uma precariedade que se produz e se distribui desigualmente (Butler, 2019), gerando a partir dos mecanismos do mercado neoliberal e do capitalismo financeiro crescentes ondas de produção de desigualdade e precarização do humano.

A produção do sujeito está adstrita à produção de pobreza, desigualdade, perecimento, controle, vigilância, guerras - internas e externas -, e consequente incapacidade de (sobre)viver. No capitalismo contemporâneo - e no capitalismo em toda a sua história - produzir subjetividades é produzir desigualdade e miséria, e, ao mesmo tempo, é controlar os desiguais e miseráveis a partir dos mecanismos de controle constituídos pelo biopoder “imperial”.

Nesse contexto, Corrêa e Andrade e Souza (2020) apontam que na era do biocapitalismo global as desigualdades se produzem e se controlam a partir da ação conjunta do panoptismo disciplinar que se destaca do seu espaço-tempo clássico, das propriedades previdenciárias dos aparatos de controle que administram a produção do acontecimento, bem como, dos mecanismos de controle “imperiais” modelados na lógica global-cibernética do capitalismo financeirizado. Com esteira em Rolnik (2018), proporções macropolíticas e micropolíticas se conciliam na produção de subjetividades e de capital, o modo de produção capitalista contempla todos os âmbitos da sociabilidade, constituindo-se como construtor de uma micropolítica de produção de desigualdade e precariedade, e de uma macropolítica de controle e captura, quando não de extermínio da “multidão” expropriada de sua produção comum.

O paradigma “imperial” de soberania contempla uma perspectiva de inserção de tudo e todos dentro de seu espaço-tempo de dominação, controle e expropriação, apagando a percepção e a própria construção do dentro e do fora, seja na perspectiva do tempo ou do espaço. O espaço-tempo “imperial” é para tudo e para todos, desde que constituídos e entendidos subjetivamente inseridos nos seus mecanismos e técnicas de captura e diferenciação dos sujeitos. (Hardt; Negri, 2002). Esse movimento de imersão nas malhas do “Império”, é diretamente relacionado a gênese do capitalismo como crise, e, necessariamente como (máquina de) guerra, constitutiva da estruturação global do capital e da financeirização capitalística da vida, e, principalmente, dos modos de vida.

Há uma assunção da gestão da crise como técnica de governo, como forma da governamentalidade contemporânea que institui o capital como instancia não só de construção, como também, de controle dos fluxos informacionais, políticos, jurídicos, sociais e econômicos. O capitalismo cibernético financeirizado não se coloca mais como crise, mas sim, ele gera uma série contínua de crises das quais é necessário sair, e, em que a porta de emergência é a própria emergência global, emergência social, financeira, ambiental, humana etc., e, em que, o que é preciso para encontrar a saída é a manutenção da guerra (Comitê Invisível, 2016), ou, de acordo com Hardt e Negri (2014) do estado de guerra global.

É nesse caminho de desterritorialização e fragmentação em que o capitalismo financeirizado opera, que a crise é guerra, e a guerra é crise, e, em que a gestão dos modos de vida é constituída sob o manto da eclosão de crises e da sua solução pelas guerras, no qual “o cenário global parece se degradar em um panorama de desregulação, competição, inimizade e, em última análise, violência civil total”. (Corrêa; Andrade e Souza, 2020, p. 15). A guerra se desdobra em várias e variadas guerras, seja no âmbito externo ou interno, pois, há um processo de internalização das guerras exteriores em um sem-fim de guerras civis travadas nas linhas e limites do próprio Estado, uma guerra civil urbana e generalizada gerida pelo capitalismo cibernético financeirizado, nas malhas sem limites do “Império”.

A guerra civil está instituída na guerra de classe, raça e gênero, que constituem uma verdadeira guerra contra os corpos e suas potências, no sentido de dominá-los e/ou exterminá-los. Esses processos de dominação e controle ou de aniquilação e apagamento, se dão conforme as necessidades do “Império” que são as do capitalismo atual, e conforme a intensidade da resistência imposta pelos corpos. Como referem Corrêa e Andrade e Souza (2020, p. 16) “a função que uma micropolítica da insegurança desempenha, sob as condições da abstração da corporalidade, da ubiquidade interconectada dos espaços e do sequestro e da aceleração de um tempo sempre mais contraído, não é, porém, tanto a de apagar os corpos quanto de fazer deles os meios pelos quais se pode governar o seu próprio por vir”.

[...]a completa subordinação da guerra aos objetivos do capital adquire forma definitiva no fim do século XX, quando o esgotamento da guerra interestatal dá lugar ao paradigma a um só tempo exclusivo e inclusivo da guerra - ou melhor, das guerras - no seio das populações, criando assim um continuum virtual-real entre as operações econômico-financeiras e um novo tipo de operação militar, que não mais se restringe à periferia. (Alliez; Lazzarato, 2021, p. 319).

Nessa perspectiva, ainda com os autores, a crise passa a ser indistinguível da guerra, elas são a mesma, as duas faces da moeda, a produção e manutenção atemporal da crise está diretamente ligada à constituição da guerra - ou do já mencionado estado de guerra global - não mais limitada ao espaço-tempo estatal. A forma guerra está inseparável do capitalismo, é produzido por este, pois o capitalismo financeirizado se desenvolve, articula e movimenta pela guerra, que se relaciona diretamente com as políticas humanitárias, ecológicas, econômicas, sociais, raciais, de gênero, e, por óbvio com as suas formas de violência. (Alliez; Lazzarato, 2021). A guerra e a crise são macropolíticas, mas, sobretudo, micropolíticas nesse momento de desenvolvimento do capitalismo, pois, é necessário que se controle a população global e as periferias globais, o que se dá pelo uso da força não mais apenas para fora dos limites estatais, mas também, e, sobretudo, dentro dos limites dos Estados, e, mais ainda, sobre determinados territórios e populações.

Nesse ponto, é possível afirmar que “o novo paradigma da “guerra no seio da população” enuncia a imbricação entre o civil e o militar, e sua integração à máquina capitalista da globalização, que impõe a sua governança política em um continuum cujo os componentes são as próprias formas e variedades de guerra[...]” (Alliez; Lazzarato, 2021, p. 338), e, porque não dizer que são também as próprias formas e variedades de modos de vida. Isto porque, a máquina de guerra do capital que engendra e coordena a guerra populacional dirigida, tem como alvo determinadas formas de vida, modos de conviver, de produzir, formas de “estar-junto”, estar “em-comum”. Porquanto, com esteira em Mbembe (2018), trata-se de um prolongamento da tecnologia de extermínio colonial, pois, se o autor identifica no nazismo a extensão dos métodos da plantation, podemos afirmar que o capitalismo cibernético é a potencialização dessa tecnologia para o seio da população global, empreendendo uma periferização nos limites do Estado, e constituindo os espaços-tempo sitiados da metrópole.

Se Mbembe (2018, p. 32-33) aponta que “[...]a colônia representa o lugar em que a soberania consiste fundamentalmente no exercício de um poder à margem da lei (ab legibus solutus) e no qual a “paz” tende a assumir o rosto de uma “guerra sem fim””, o “Império”, por meio da máquina de guerra do capital internalizou a colônia, constituiu áreas periférico-coloniais no âmbito dos Estados-nação em que o controle biopolítico das populações precarizadas - pretos, mulheres, imigrantes, indígenas, quilombolas, população LGBTQIAPN+, operariado precário em geral, etc. - se estrutura pela e utiliza tecnologias de guerra. “O neoliberalismo precisa colonizar o Estado, estar dentro dele para definir as regras do jogo: um aparato jurídico musculoso que sustente a reprodução das elites de um lado e do outro, uma política de encarceramento e extermínio da juventude negra que possa abafar toda a sorte de revolta” (Moraes, 2018, p. 8).

As violências imperiais embaralham-se, criando e projetando um ambiente de conflito e enfrentamento populacional entre as forças do capitalismo cibernético-colonial de um lado e os expropriados e despossuídos de outro lado. As violências implementadas pelo capitalismo e suas relações são tão graves e agressivas quanto as demais, as formas de precarização do trabalho, de expropriação territorial, de endividamento, que constituem sujeitos dominados e sugados na sua essência pelo capital, conformando a violência sistêmica (Hardt; Negri, 2018). No entanto, se a crise é guerra, a violência sistêmica tem ao seu lado como aliada a violência da guerra, ou, melhor dizendo, das “guerras imperiais”, sejam as guerras de baixa ou de alta intensidade. A reestruturação das forças militares em um primeiro momento com a utilização de agentes terceirizados (de mercenários) e num segundo momento com o uso das novas tecnologias permite ao “Império” sinalizar tanto com um modelo de guerra espetacularizado e letal, quanto com um modelo de guerra silencioso e tão letal quanto. “O sonho por trás dessas alterações é o de criar uma modalidade de guerra (que da perspectiva daqueles que a travam) é virtual em termos tecnológicos e incorpórea em termos militares, ao passo que é muito real e corpórea para aqueles que a sofrem” (Hardt; Negri, 2018, p. 346).

A questão que se coloca é que essas violências não estão mais longe de nós, elas não estão mais na guerra distante, elas se colocam em prática na guerra cotidiana, sobretudo, em sociedades coloniais-escravocratas como a brasileira. Não estamos mais falando “do(s) outro(s)”, estamos falando de nós, das políticas de segurança pública de extermínio e desaparecimento dos corpos que não importam e que antagonizam ao empreendimento do capitalismo “imperial” (Moraes, 2018). O racismo endêmico brasileiro, a violência sistêmica do capital, a violência policial cotidiana sobre populações determinadas, as políticas de aprisionamento ou desaparecimento, configuram uma zona de guerra que nos circunda, que nós habitamos, e que ao mesmo tempo nos habita, nos constitui como subjetividades limite, desumanizadas, imunizadas e imunizantes ao “outro”, o que constitui uma micropolítica do distanciamento e da despreocupação com quem, e desresponsabilização por quem “está junto”. É o que caracteriza Grégorie Chamayou como “uma forma não convencional de violência de Estado que combina as características da guerra e da operação de polícia, sem realmente corresponder nem a uma nem à outra, e que encontra sua unidade conceitual e prática na noção de caça ao homem militarizada” (Chamayou, 2015, p. 41).

“O que caracteriza micropoliticamente o regime colonial-capitalístico é a cafetinagem da vida enquanto força de criação, transmutação e variação[...]” (Rolnik, 2018, p. 104), uma cafetinagem que gera justamente esse desfazimento do “comum” - do “estar-em-comum” -, e nos constitui atomizados, distanciados, disruptivos, desconectados da vida e de quem está ao lado, dos que nas suas singularidades são conosco “em-comum”, pois, cafetinados, precarizados, expropriados pelas tecnologias de controle do capitalismo “imperial”. Mas nesse ponto, a crise que se coloca como guerra não se constitui como em Hobbes na guerra de todos contra todos, não há uma desordem na guerra, há sim uma ordenação da guerra pelo capitalismo cibernético no sentido de produzir esse ambiente disruptivo e precarizado, em que o “Império” engloba a todos, mas, diferencialmente (Comitê Invisível, 2018).

A guerra já não contrapõe necessariamente exércitos uns aos outros ou Estados soberanos uns aos outros. Os atores da guerra são, em qualquer ordem ou combinação, Estados devidamente constituídos; grupos armados atuando por trás da máscara do Estado ou abertamente; exércitos sem Estado, mas no controle de territórios bem definidos; Estados sem exército; corporações ou empresas concessionárias, responsáveis pela extração de recursos naturais, mas que se arrogaram, além disso, o direito de guerra. A regulação das populações passa por guerras que, por sua vez, consistem cada vez mais num processo de apropriação de recursos econômicos. Em tais contextos, a imbricação da guerra, do terror e da economia é tamanha que não se trata mais apenas de uma economia de guerra. Ao criar novos mercados militares, a guerra e o terror se convertem em autênticos modos de produção (Mbembe, 2020, p. 65-66).

Dessa forma, guerra, terror, capital, são formas, dos quais segregação, extermínio, desaparecimento, encarceramento, precarização, são meios. Meios para produzir mercadorias e subjetividades, e, diga-se, sobretudo, subjetividades, sujeitos reduzidos à condição espectral, e induzidos à uma experiência competitiva, concorrencial, e, principalmente combativo-conflituosa do social. É o que com Mbembe (2020) podemos determinar como a brutalidade da(s) democracia(s) que sempre às constituiu, e que se exacerba e totaliza no seio das democracias securitárias contemporâneas. As formas de brutalidade colonial estiveram integradas desde sempre na atuação de forças/instituições privadas ou estatais no controle das populações - de algumas populações - passando do disciplinamento ao controle, e do adestramento ao extermínio - isso por óbvio na história da(s) metrópole(s), pois, na das colônias está presente desde o início.

Por isso o autor camaronês afirma que a ordem da plantation, a ordem da colônia e a ordem da democracia estão ligadas intrinsecamente, mesmo que em uma relação de aparente distanciamento, e, ao mesmo tempo, de proximidade e intimidade velada, retraída (Mbembe, 2020). A questão é que em Estados periféricos como o brasileiro, e, em democracias como a brasileira, essa relação se é que um dia foi diferente, está cada vez mais escancarada, pois o signo da plantation constitui o não-lugar da periferia capitalista, da favela, da ocupação, do quilombo, da aldeia indígena, e implementa cada vez mais também escancaradamente o extermínio, o desaparecimento, e a precarização dessas subjetividades tidas como indesejáveis e descartáveis pelo paradigma “imperial-capitalístico”.

Pois, é justamente nesse ponto, que a crítica deve se dar como condição de possibilidade para o desvelamento e enfrentamento da crise como guerra. Mas a crítica que se pretende, é a um modelo democrático capitalístico-colonial-securitário, bem como, à produção de subjetividades engendrada pelo capital no contexto do biopoder “imperial” que transmuta o capitalismo do fordismo ao pós-fordismo, e constitui novas formas de subjetividade para habitar cada vez com menos estranhamento esse ambiente democrático constituído pela brutalidade. E é isso que se propõe adiante.

2 A crítica como processo antagônico: Resistindo às forças e formas “imperiais”

A crítica que se pretende então a partir de agora, é para além de uma crítica ao capital e à crise como guerra, uma crítica à democracia securitária e às subjetividades que à habitam, e que constituem o empreendimento colonial-capitalístico-imperial. Quer dizer, é necessário pensar e constituir uma outra democracia e outras subjetividades que à habitem e deem forma sob uma perspectiva anticapitalista, anticolonial, e antiimperial, ancorada em processos, movimentos e lugares de antagonismo, resistência e insurreição ao capitalismo colonial/“imperial” - processos, movimentos e lugares que serão explorados na Parte 3 do presente artigo.

Como bem afirma Moraes (2018, p. 9) a partir da experiência de junho de 2013, não só era, como é “[...] preciso nos liberar do papel de telespectadores das nossas próprias vidas. É preciso voltar a decidir, ainda que para isso seja necessário romper com as regras do jogo elaboradas entre elites políticas, empresariais, financeiras, midiáticas e do judiciário”. E assumir essa condição, é constituir-se subjetivamente de uma outra forma, que se contrapõe diretamente a uma das subjetividades da crise, pois, implica tomar para si a democracia e o ambiente da política, e deslocá-la da ação hegemônica das elites políticas e econômicas, bem como da ação reducionista do direito.

Criticar o representado é necessário, essa figura subjetiva reduzida às malhas do poder político que o representa, mas que, em verdade, se coloca como um obstáculo e não como possibilidade de constituir um tempo e um espaço de garantia de direitos. O representado como sujeito, se estabelece livre para voar, mas o voo acaba no abismo, abismo da precariedade, do populismo, do medo, da falta de responsabilidade e da impotência em constituir o novo, em apresentar possibilidades à representação caduca, hegemônica e expropriatória que (não) nos representa (Hardt; Negri 2014). “Se não estimular seus sentidos vitais e despertar seu apetite pela democracia, o representado se tornará um produto puro do poder, a casca vazia de um mecanismo de governança que não faz mais referência ao cidadão-trabalhador”. (Hardt; Negri, 2014, p. 45).

Nesse caminho, o capitalismo cibernético-financeiro produz um ambiente de desregulamentação político-social no que se relaciona com a normatividade do(s) direito(s), constituindo um modo de viver aparentemente livre e sem as amarras do governo. No entanto, em verdade, fixa essa “zona de liberdade” à regulamentação pelas finanças e pela competição, que submete o sujeito contemporâneo às formas, estruturas, e práticas do biopoder “imperial” (Berardi, 2020).

Eis a constituição do endividado, inserido em um plano geral em que endividar-se é o único caminho, pois, as condições sociais e econômicas de vida estão amarradas aos processos de financeirização naturalizados pelo capitalismo neoliberal. O endividado é governado pela dívida e despotencializado subjetivamente, pois, encontra-se inserido em um meio de precariedade econômica e social tal, que o absorve em toda a sua potência produtiva (Hardt; Negri, 2014). É a subversão dos sistemas econômicos, políticos e sociais em maquinarias guiadas pelo modelo empresarial e concorrencial, absorvendo instituições privadas, públicas e o próprio sujeito, o trabalhador que se torna um empreendedor de si mesmo em concorrência com os demais sujeitos. “O governo do mercado fundado na concorrência e na empresa deve velar para que todo mundo se encontre em um estado de “igual desigualdade” (Lazzarato, 2011, p. 22).

“O capital explora progressivamente toda a gama de nossas capacidades produtivas, nossos corpos e nossas mentes, nossas capacidades de comunicação, nossa inteligência e criatividade, nossas relações afetivas mútuas, etc.” (Hardt; Negri, 2014, p. 25), nos levando ao que, com Rolnik (2018) podemos denominar de cafetinação da vida, das pulsões, dos desejos, da potência dos corpos que estão absorvidos pela dívida e pela governamentalidade financeira do capitalismo cibernético-colonial. Ainda de acordo com Rolnik (2018), a política do desejo empreendida pelo inconsciente colonial-capitalístico implica um processo de subjetivação que reduz a produção de subjetividade à sua identificação exclusiva enquanto sujeito, o que consubstancia uma experiência esvaziada do mundo que habita. As forças e potências do mundo que constituem e informam o corpo em sua força e potência, são silenciadas pelo capitalismo cibernético-colonial incapacitando as subjetividades de vivenciarem o mundo para além da sua condição de sujeito representado, endividado - como já vimos -, mediatizado, e securitizado - que veremos adiante.

Nessa perspectiva o que ocorre é a liberação das amarras do governo político, mas, para além do aprisionamento pelas finanças, ocorre a submissão do sujeito à governança tecnolinguística, passando dos condicionamentos da vontade consciente à submissão aos automatismos tecnolinguísticos. (Berardi, 2020). E é justamente nesse cenário que podemos desvendar o mediatizado, um sujeito que está absorto por um emaranhado de informação e comunicação que o constitui de maneira incipiente, retirando-o a capacidade de produzir signos e significados que não os desejados e decifrados pela calculabilidade algorítmica do capitalismo cibernético-financeiro.

Como colocam Hardt e Negri (2014), o mediatizado é dominado pelo excesso de informação, de comunicação, de signos, de significados e de significantes que se originam nas e dão forma às redes cibernético-digitais de comunicação, que abastecem e fazem fluir os signos do capitalismo financeirizado, e, ao mesmo tempo, são responsáveis pela intoxicação dos sujeitos pela informação valiosa capitalísticamente, que gera a alienação desse mesmo sujeito em relação ao que efetivamente importa político-socialmente. “O que opera hoje não é alguém que manda, nem mesmo uma instituição, mas mecanismos que conduzem as condutas de uma população, que configuram um ambiente, um meio a partir do qual se modelam e se restringem as possibilidades, os desejos, os modos de pensar” (Pelbart, 2019, p. 101), pode-se dizer os biopoderes “imperiais” operando pela forma tecnológica das redes que constituem o capitalismo cibernético-financeiro e exaurem a potência mesma dos corpos, o desejo e a pulsão de vida não cafetinada por esse mesmo capitalismo “imperial”.

Os aparatos tecnológicos cibernético-digitais, seus dispositivos, técnicas e dinâmicas constituem necessariamente uma subjetividade indispensável para a era do “Império” e do capitalismo que o acompanha e constitui. Uma subjetividade que (re)produz o velho como se novo fosse, e que não tem capacidade de identificar o novo como novo, nem mesmo de perceber a urgência de produzir vitalmente e não apenas capitalisticamente num movimento disruptivo da subjetividade com a potência vital que à constitui. “O mediatizado está pleno de informação morta, sufocando nossos poderes de criar informação viva” (Hardt; Negri, 2014, p. 30), isso pois, “a semiotização financeira da economia é uma máquina de guerra que destrói recursos sociais e capacidades intelectuais diariamente”. (Berardi, 2020, p. 67).

Nesse ponto, essa maquinaria capitalístico-cibernética e seus dispositivos e técnicas de controle, modelam um sujeito que naturalmente se insere nessas dimensões de controle, pois, formado pelo medo que caracteriza o sujeito contemporâneo enquanto liberto, porém aprisionado, o que funda mais uma subjetividade da crise, o securitizado. “O poder agora é imanente à vida, tal como a vida é agora organizada tecnológica e mercantilmente” (Comitê Invisível, 2018, p. 100), o que importa que os dispositivos e técnicas de controle sejam eles também imanentes, alinhados às linhas de produção e circulação de informação, das finanças, mas também, e, sobretudo, da própria vida, da potência de cada corpo e da potência dos corpos.

O que ocorre, é que essa gama de dispositivos de controle da vida em todas as suas instâncias, são inseridos na própria vida em suas linhas de (re)produção social, buscando controlar justamente a dimensão potente e produtiva dos corpos que, agora, estão livres para produzir, porém, dentro do que é demarcado pelo capitalismo-cibernético como suas necessidades. Conforme declaram Corrêa e Andrade e Souza (2020) há um processo de multiplicação e difusão dos aparatos de controle do biopoder (“imperial”), que perfazem a vida como uma dimensão completamente vigiada e integrada a esses circuitos técnicos de governamentalização dos sujeitos, a partir de processos de catalogação, hierarquização e diferenciação, que constituem as formas mais eficazes e pervasivas de controle e exclusão, pois, todos estão integrados para serem diferenciados e excluídos. “O primeiro imperativo dessa gigantesca máquina de assujeitamento capitalístico é a implementação de uma rede implacável de vigilância coletiva e de autovigilância capaz de interditar qualquer fuga desse sistema e colmatar qualquer questionamento de sua legitimidade política, jurídica e “moral”” (Negri; Guattari, 2017, p. 6).

O securitizado não somente é objeto, como também agente da vigilância e desses aparatos técnicos de controle por estar sugestionado ao medo de tudo e de todos, à uma quase fobia do estar em comum, o que opera um apagamento da(s) solidariedade(s), que perfaz uma condição humana não alteritária vigiada e vigilante. A partir de Hardt e Negri (2014) é justamente essa forma securitária imanente que habita o sujeito contemporâneo que constitui e institui o mundo em um estado de guerra global e permanente, sejam essas, guerras de baixa ou de alta intensidade, pois, o que importa é que haja guerra, claro que, contra determinadas populações indesejadas, excedentes, não enquadradas no modelo “imperial” fundado pelo e no capitalismo cibernético-colonial.

“Segurança e medo remetem, aqui, não apenas a fatos psíquicos ou representações sociais, mas a dois sistemas de referência múltiplos, qualitativamente distintos, que se engendram e retroalimentam sob as formas de uma macropolítica da segurança e de uma micropolítica que administra os pequenos terrores diários” (Corrêa; Andrade e Souza, 2020, p. 9). E são justamente essas políticas do medo e da segurança que remetem à uma virada operada nas democracias liberais contemporâneas, que, justamente para dar conta da demanda por segurança e debelar o medo constante, configuram-se como democracias securitárias, implementando no contexto do que Alliez e Lazzarato (2021) chamam de guerra no seio da população, mecanismos, práticas, técnicas, dispositivos, espaços e tempos, não só de controle das populações, como de produção de exclusão e extermínio.

Engendra-se entre capitalismo (como guerra) e a hegemonia cibernética um novo regime de sentidos e percepções que abarca para além dos humanos, os não humanos, e os outros que humanos, em uma perspectiva não somente de controles desses corpos, desejos, sentidos e percepções, mas um novo “regime de sensibilidade e partilha do real” condicionado à potencialização do que se situa como capitalismo cibernético-colonial. (Moraes, 2021). E, é justamente esse novo regime sensorial-perceptivo que condiciona as práticas democráticas à processos de catalogação, diferenciação, e hierarquização, entre os que efetivamente merecem desfrutar da democracia, e os que devem ser relegados a um segundo plano em que o projeto democrático se constitui como um projeto de produção de desigualdade, vulnerabilidade, precariedade, segregação e extermínio.

As democracias securitárias (neo)liberais se constituem em verdadeiros espaços de produção de desaparecimento, ou, do que Barbosa (2021) dimensiona como “sociedades do desaparecimento”, seja na perspectiva do extermínio dos indesejados, seja com a propulsão para além do extermínio, do apagamento de vidas, que somem, e se quer deixam rastros. Constitui-se segundo Alliez e Lazzarato (2021, p. 340-341) nos apresentam, um “paradigma da intervenção sem limites na e contra a população, realizada em nome de “operações de estabilização” como parte de um sistema de pacificação global em que a guerra não mais pode ser “vencida” e que compõe uma nova razão governamental, um novo modelo de governamentabilidade alinhado com as linhas de produção do capitalismo cibernético (neo)colonial (Barbosa, 2021).

Em que pese, Moraes (2021, p. 28) fale explicita e especificamente do contexto pandêmico brasileiro, pensamos ser possível expandir a afirmação de que o que ocorre é “a declaração de uma fratura colonial que foi ainda mais aperfeiçoada nos últimos anos, cujo principal efeito pode ser lido pela impossibilidade radical de um mundo comum” para o horizonte das democracias contemporâneas pré e pós-pandêmicas. E essa fratura se dá pela reelaboração e internalização do regime colonial da plantation como “lócus democrático” de produção de segregação, exclusão, e extermínio, em que estar-em-comum é estar precarizado e à margem. Recuperar Mbembe (2020) e lê-lo entrecruzado com Butler (2019) é possível e necessário, pois, a democracia securitária contemporânea é brutal, justamente por imperativamente impor a precariedade como um regime de possíveis para boa parte da população mundial - e brasileira em especial - administrada necropoliticamente no interstício de uma governamentabilidade cibernético-colonial-“imperial”.

“Os diagramas da administração colonial do presente operam de maneira distinta das representações do Estado constitucional-parlamentar e possuem prevalência mesmo sob a vigência fantasmagórica deste: ilegalidades, extermínios, desaparecimentos e suplícios são resultados habituais de um poder ocupante e predatório”. (Barbosa, 2021, p. 62). É possível dizer que o Estado constitucional passou a abrigar (ou se transformou em) zonas de guerra que fabricam formas precárias de vida dadas ao encarceramento ou ao extermínio por meio de táticas contrainsurrecionais de exclusão e desaparecimento. A partir de Chamayou (2015), zonas de guerra controladas à distância e habitadas por padrões de ação que se configuram em sujeitos e constituem a presa, o inimigo, o excedente, o anormal, em relação ao capitalismo cibernético-colonial-“imperial”.

Instala-se um campo aberto e orientado a ocupar-se com as singulares formas de subjetivação, e com a gestão de corpos em meio a um capitalismo cibernético-colonial que pelos caminhos do neoliberalismo configura-se em um regime de desempenho, financeirização e punições (Moraes, 2021). A democracia contemporânea é ao fim e ao cabo se não, esse campo e esse regime, o que os abriga, o que os possibilita, funcionando a partir da demanda por segurança e controle ocasionada pelo medo não mais do estrangeiro - ou, não mais somente deste - mas, sim, das populações excluídas criadas pelo próprio rito produtivo de terror das políticas neoliberais de competição, concorrência, precarização, e confisco do comum. Pois, como afirma Tiqqun (2019, p. 27) “de modo cada vez mais expresso, a sociedade imperial vê a si mesma, em todos esses aspectos, como violência. E é o rastro de violência, que deixa por toda a parte, que exprime seu próprio desejo de desaparecimento”.

Esse neoliberalismo “imperial” que opera por técnicas de modulação distribuindo diferenciadamente vulnerabilidades e precariedades, como também pertencimento e exclusão, vida e assassinato, participação e alienação, conformidade e revolta, em um rito de subjetivação que ativa as potencialidades capitalístico-coloniais da concorrência e da produtividade, e desativa a potência humana do corpo e dar carne da solidariedade e do estar-em-comum. Como bem nos diz Moraes (2021), não é mais uma questão de pontos de vista, ou de compreensões sobre um mesmo mundo, mas sim de produção de mundos diversos em sua configuração segura ou não, fecunda ou não, vivível ou não, que conjuntamente configura pertencimentos, exclusões, condições precárias de vida, possibilidades de vida saudável, dentro e fora, amigos e inimigos, ou seja, realidades dispares e constitutivas de um modo de viver, existir, e habitar, que, invariavelmente implica não viver, inexistir, e desabitar.

O que parece inconcebível e inadmissível é que essas condições de diferenciação da vida, do corpo, e dos seres humanos - e não humanos - são erguidas democraticamente, pois, justamente pertencentes e constitutivas de modelos democráticos liberais-representativos esgotados, que se transmutam em democracias liberais securitárias que se escondem atrás de uma cortina de fumaça e de um paradigma democrático-constitucional que no mais das vezes está esvaziado em sua substância, e em que pelo menos deveria ser o seu essencial propósito, qual seja, conferir condições de vida dignas aos sujeitos, independentemente de sua classe, raça, credo, cor, orientação sexual, gênero, etnia, ideologia, ou o que seja que lhe constitui enquanto sujeito.

Nesse sentido, o que se mostra evidente é a necessidade cada vez mais intensa de reativar o comum, constituir-se em comum, praticar o comum, produzir e gerir o comum, longe dos mecanismos de expropriação do capitalismo cibernético-colonial“imperial” que, apesar de não o impossibilitar, dele se assenhora e governa. E, aqui, constituir o comum, é constituí-lo como sujeito, como modo de produção, mas, sobretudo, enquanto um campo aberto (Moraes, 2021), plural, e multifacetado de práticas, vivencias, experimentações, curas, cuidados, solidariedades, afetos, potências, desejos, humanidades, espiritualidades, condições de vida que se originam em-comum e que conformam o comum.

Pois é justamente esse processo de reativação que está necessariamente ajuntado à projetos, vivências e práticas antagonistas que para além de gerar a resistência, constituem a insurreição, a revolta, o motim, a rebelião, a urgência de um novo momento, de um espaço-tempo de afeto, liberdade, e comunhão que produz inclusão, saúde, cuidado e vida, acima de tudo. “É preciso nos implicar em um projeto coletivo e desejar ganhar, escapar da melancolia da derrota. Produzir reflexões que sejam implicadas nos processos de luta em curso: não há fórmula mágica que invente a revolução” (Moraes, 2018, p. 9). É preciso constituir novas tecnologias políticas que efetivem esse campo aberto, e produzam as condições de possibilidade para ativar o comum, pois, “também não precisamos de “unidade” que apague nossas diferenças. O segredo é saber cozinhar com o que tem na geladeira, como nas ocupações urbanas” (Moraes, 2018, p. 9). E é essa cozinha e esse cozinhar, temperado pela luta, pela resistência, e pela carne da potência, que se passa a constituir nesse trajeto.

3 As lutas do e pelo comum da resistência à insurreição

Nesse contexto, lutar pelo comum é ao mesmo tempo constituir o comum em luta, em um campo de antagonismo, luta, resistência, capaz de insurgir-se desde dentro, contra o capitalismo cibernético-colonial-“imperial”. A crítica à produção de subjetividades e à democracia se transforma em prática de luta e resistência, em condição para amotinar-se e buscar a destituição constitutiva do novo, o novo que condicional à relação humana, à uma relação comum de pertencimento, troca, contato, afeto e desejo que é constitutiva do sujeito comum, do modo de produção comum e do campo comum de práticas e dispositivos que resistem e implicam o ser/estar-em-comum.

Na trilha proposta por Tiqqun (2019) o comum se constitui então como uma afetação de corpos e potências, uma afetação como experiência corpórea e carnal anterior a toda e qualquer decisão, o que implica dizer que o comum simplesmente se constitui, se “faz-comum”. A constituição do comum enquanto sujeito, modo de produção, e/ou campo prático-cotidiano é a relacionalidade de corpos em movimento com o mundo que os faz devir corpo, devir potência, pois, o comum só é possível na conexão dos corpos, e dos corpos com o mundo, com o não humano, com outros que humanos (Moraes, 2021), na coexistência ativa desses mundos possíveis, de dispositivos e sujeitos humanos ou não.

Mas pensar, propor, constituir o comum nesse momento é constituí-lo como insurreição, revolução, rebelião, pois “o motim organizado pode produzir o que esta sociedade é incapaz de engendrar: laços vivos e irreversíveis” (Comitê Invisível, 2017, p. 15), sociedade que se engendra pelas malhas do capitalismo cibernético-colonial como um poder produtor de distância, de autismos que nos constituem próximos mas apenas na rede cibernética de “não-convívio”, e de produção de um espaço-tempo delimitado por tecnologias de solidão e determinado por sistemas de controle e vigilância (Comitê Invisível, 2017).

Romper com essa malha de aparatos técnicos e políticos que gerenciam e exploram o comum, bem como, distribuem desigualdades e violências é vital para a conformação de possíveis, de outras possibilidades políticas, sociais, econômicas e jurídicas, posto que, a constituição de um outro campo social a partir do comum é central nessa perspectiva de resistir e rupturar insurgindo-se contra o biopoder “imperial”. Esse movimento de ruptura de acordo com Hardt e Negri (2018) constitui-se a partir de uma mirada contra-soberana, ou seja, desde a possibilidade e necessidade de se pensar poderes, lideranças, e práticas não ligadas à soberania, mas sim, ativadas pela “multidão” que constitui o comum e deve orientar as formas de organização e as tomadas de decisão.

Nesse caminho, é importante deixar bastante claro que essas formas de organização e liderança surgem contra-soberanamente com as próprias capacidades e saberes organizacionais que as singularidades já possuem, e que marcam a forma multitudo. Como deixam claro Hardt e Negri (2018, p. 42) “qualquer forma de resistência e de afirmação da liberdade do povo dependem inteiramente do poder da inventividade subjetiva, sua multiplicidade singular, sua capacidade de (por meio das diferenças) produzir o comum”, e essa inventividade é mundana, é da rua, é cotidiana, é constitutiva de mundos que rompem com a única possibilidade assujeitadora do capital. Nas palavras de Moraes (2018, p. 10) é o que se relaciona como uma capacidade urgente de:

[...]elaborar e organizar nossas tecnologias de fazer mundos, de possibilitar modos de vida dissidentes e é isso que vai nos implicar, criar pertencimentos. Também tem a ver com uma “política do meio”: no sentido de ser fortemente ancorada no meio em que se encontra, localizada e aberta a ser atravessada por um ecossistema vivo de reflexões, problemas, implicações, e não guiada por uma resposta exterior fundada na autoridade.

A “forma comum”, os movimentos da “multidão”, nascem de novas tecnologias de fazer mundo, de fazer novos mundos, de escrever novas gramáticas, de gerar novas possibilidades imaginativas, de constituir novos espaços e novos tempos, de "em-comum" constituir futuros comuns possíveis, herdando potências que se perfazem na diferença e não na unidade. É a “produção do que seria uma coletividade fundada pelo cuidado e interdependência que pudesse sustentar uma prática comum de isolamento e apoio mútuo” (Moraes, 2021, p. 29) que desestrutura os modos sacrificiais de vida do capitalismo colonial predatório e financeiro que nos engloba indistintamente.

Essa “forma comum” é o que ativa a Primavera Árabe, o movimento Occupy, o junho de 2013 no Brasil, e tantos outros movimentos globais anticapital e anterglobalização, mas é também, o que ativa - e é ativado - enquanto novas tecnopolíticas comuns, as escolas, as praças, os quilombos, as comunidades indígenas, as comunidades ribeirinhas, os coletivos urbanos - feministas, pretos, quilombolas, LGBTQIA+, entre outros -, as ocupações urbanas, os assentamentos rurais, constituindo a forma e a força comum.

O Comum, afirma Stengers (2015), não produz abstratamente o que seria um traço de “universalidade humana”, mas é o que reúne os commoners, os praticantes de uma comunidade (feita de humanos, tecnologias e de outros que humanos), seja ela um código livre de software, um grupo de portadores de doenças crônicas que compartilha experiências e cuidados, um rio vivo que vincula pela ancestralidade humanos e não humanos, espíritos e minerais (Moraes, 2021, p. 30).

Nessa perspectiva, Stengers (2017, p. 2) define que “algumas pessoas adoram dividir e classificar, enquanto outras fazem pontes - tecem relações que transformam uma divisão em um contraste ativo, com poder de afetar, de produzir pensamento e sentimento”, e são justamente essas singularidades que constroem, que presentes nos modos de resistir, habitar e imaginar da ocupação, do quilombo, da aldeia indígena, da multidão em assembleia, instituem o comum como política possível. “O “nós” não é um sujeito pronto de antemão, ele se faz no dia-a-dia, é um experimento permanente e por isso exige cuidado”. (Moraes, 2018, p. 11). O comum, é também uma tecnologia política e forma de cuidado. É uma produção/constituição do ser/estar-em-comum que se dá cotidianamente a partir da prática e da potência dos corpos que juntos experimentam modos de existir, de imaginar e de cuidar próprios de uma experiência antagônica às ativações do capitalismo cibernético-colonial neoliberal e financeiro.

Refere Stengers que esse trabalho consiste em compor um campo múltiplo e plural de descolonização do pensamento, que envolve justamente o comum como possível, como saída de dentro do monstro voraz que a tudo e a todos capitaliza e financeiriza. (STENGERS, 2017). Nesse sentido, podemos vislumbrar o comum como campo experimental, como sujeito aberto, e como modo de produção cooperativo, ou seja, o comum se orienta pela criatividade e experimentação potentes engendrada pela movimentação dos corpos em suas singularidades, confrontando-os com os modos de expropriação, colonização, exclusão e extermínio empregados pelo biopoder “imperial” que orienta(-se) (n)o paradigma capitalístico-cibenético-colonial.

Desde a perspectiva ainda de Stengers (2019), o comum deve se fazer desde dentro da luta, em um modo inseparável de luta, para que seja possível a constituição de algo novo, a percepção de novos mundos, novas formas de imaginar, novos territórios para habitar, e novos modos de existir, e de resistir insurgindo-se, revoltando-se, amotinando-se. Porquanto, essa possibilidade comum se dá a partir do corpo expropriado que se revolta, “o corpo designa a porção ingovernável do real que retorna nas revoltas e as revela como tais. Toda revolta é sempre a revolta profunda dos corpos, porque o corpo jamais se insere nos mecanismos de representação política” (Corrêa, 2020, p. 83). O que remete diretamente ao porquê do comum se dar como acontecimento, sem antecipação, sem a priori, sem respostas prontas, sem antecipações de sentido, pois, constitui-se como sentido em potência, como devir singular e plural na materialidade do(s) corpo(s).

Esse processo, de constituição do comum pela e na revolta, na subversão, na insurreição, é sem dúvida alguma também um processo de choque contra as formas jurídicas dominantes. Contra um dado direito ainda burguês, proprietário, branco e varão, contra a forma propriedade, e, assim, contra o regime do privado e do público, contra um sujeito de direito dado a priori sobre o qual o direito lança os seus efeitos - para o bem e para o mal -, contra uma dada forma constitucional, contra um dado projeto de democracia, ou seja, contra um sistema jurídico que está ligado intrinsecamente ao paradigma capitalístico-cibernético-colonial.

Lançar os corpos na rua é propor uma forma de enfrentamento do campo político e das formas jurídicas, ao mesmo tempo que das forças “imperiais”. O estar-em-comum praticado na união dos corpos no espaço urbano que não é público, nem privado, pois, acima de tudo não é propriedade, é necessariamente uma proposta de releitura do regime de ilegalismos composto, ou seja, do que é lícito e/ou ilícito. (Corrêa, 2020). A questão aqui, é que o lícito e o ilícito são determinados dentro e sob o prisma do biopoder “imperial”, logo, a partir dos sentidos proposto pelo capitalismo cibernético-colonial neoliberal, financeiro, predatório e excludente. Desde esse ponto de vista, os ilegalismos são os protestos de junho de 2013, mas são também a aldeia indígena e seu modo de viver, existir, e habitar não capitalística; como é também a comunidade quilombola com suas sabedorias, feitiçarias, mundos, cuidados, territórios; e mais do que nunca é a ocupação contra-proprietária por moradia, por um habitar a metrópole de outra forma.

Será nesses regimes possíveis do comum, nesses espaços-tempos cooperativos, nesses territórios coletivos que são as comunidades quilombolas, as comunidades indígenas, as comunidades ribeirinhas, as multidões em assembleia, os coletivos urbanos em movimento, os assentamentos rurais, as ocupações, que “chegamos no exato momento de experimentar e fabricar, ainda que de forma precária, outras formas de existência”. (Moraes, 2018, p. 11). E, sem qualquer dúvida, expor-se em assembleia, movimentar-se no espaço urbano, ocupar, viver e existir de outras formas, como aponta Butler (2018) é sim no mais das vezes entregar-se à distribuição desigual da precariedade e colocar-se em risco pela violência pública ou privada que o capitalismo cibernético-colonial lança sobre as resistências, revoltas e insurreições do comum. Com efeito:

No cotidiano de uma ocupação, na luta pela liberdade de Rafael Braga, na luta contra a expansão da especulação imobiliária e aos ataques às populações que ferem o projeto higienista e neoliberal de cidade, na resistência dos indígenas contra um projeto predatório de desenvolvimento, dos sem-teto, das universidades públicas e seus renovados coletivos de mulheres, dos movimentos negros, nas batalhas de slam, na resistência dos movimentos dentro do campo da saúde coletiva, novas possibilidades de compartilhamento de cuidados: o que importa é “fazer funcionar” a resistência, a vida em comum, um encanamento, uma cozinha, as relações. Criar alianças e conexões para que a luta seja mais eficaz. Algumas feministas vêm chamando essa virada de uma ecologia pragmática ou de uma poética da infraestrutura. Uma perspectiva revolucionária não tem mais a ver com a reorganização institucional da sociedade, mas com a “configuração técnica dos mundos”, diz o comitê invisível. (Moraes, 2018, p. 13).

O que se quer e se pretende é constituir o comum socialmente enquanto expressão de mundos compartilhados, de existências plurais, de sujeitos múltiplos na sua singularidade, de territorialidades, de cuidados, afetos, magias, contatos, experiências, desejos, sexos, relações, potências, de corpos que habitam e se movimentam, que se chocam, que discordam, mas dialogam, compartilham e criam mundos possíveis, mundos habitáveis, mundos vivíveis. É justamente essa dinâmica que condiciona o comum ao cotidiano, à invenção, à mudança, à dança e aos ritmos de corpos que a cada novo amanhecer se realinham e compartilham o novo na materialidade da existência humana que é ao mesmo tempo precária e vulnerável, mas é possível e viva.

O que se conforma aqui para além do comum como um sujeito, um modo de produção, e como campo aberto de possibilidades, lutas, e existências, é o comum como o que constitui tecnologias políticas possíveis para além das tecnologias de controle, vigilância e solidão fabricadas pelo capitalismo cibernético-colonial, e que orientam as políticas de exclusão e extermínio postas em prática pelo biopoder “imperial”. Se o capitalismo nos incita e estimula no desenvolvimento das práticas e processos que o sustentam (Stengers, 2019), sobretudo, em tempos de capitalismo cibernético e mediação tecnológica, também podemos vislumbrar as tecnopolíticas do comum como vetores que excitam práticas antagônicas e anticapitalistas de estar-no-mundo.

Como aponta ainda Stengers (2019, p. 228), “esses rituais são pragmáticos, neles as forças dos participantes se organizam para serem produzidas como “forças sociais”, com a particularidade de que - ao contrário dos cientistas - quem participa sabe reconhecer e honrar o que essa organização exige.”3, e para a nossa proposta, essa constatação implica dizer que constituir o comum não é apenas uma utopia, mas sim, uma força e uma maneira pragmática de efetivar um novo paradigma político, jurídico, social e econômico, assentado na possibilidade de pragmaticamente dar-se em abertura cotidiana para o novo constituindo uma dimensão material da vida.

A partir dessas “novas” tecnologias políticas se constitui uma política, e um projeto de democracia orientado pelas forças e formas micropolíticas e seus desejos, desejos esses por vida, por existência plena, livre e digna, a partir de outros mundos possíveis e em-comum. Como bem marca Rolnik (2018) é a ativação de um processo que vai e nos leva além da resistência, pois, resistir não mais basta, e é necessário insurgir-se na busca pela reativação dos seres vivos na luta pela reapropriação da potência criativa e cooperativa do comum, das quais a vida não cafetinada depende.

O que essas “novas” tecnologias políticas nos evidenciam são formas outras de políticas possíveis, de economias possíveis, de democracias possíveis, são outros referenciais de felicidade, afetos, modos de sentir e viver, são outras potências que criativa e cooperativamente desvelam mundos possíveis, são tecnopolíticas do comum e que reativam o comum contra os poderes do capitalismo cibernético-colonial-“imperial”. Concordando com Corrêa (2020), a dimensão do político nessas novas experiências insurrecionais, é a dimensão do acontecimento político-democrático na materialidade da vida, no movimento dos corpos, e nos fluxos de potência destituinte e constituinte que atravessam as ruas, praças, escolas, territórios, quilombos, aldeias, coletivos, assentamentos, que se constituem em, e constituem o comum.

Nesse acontecimento material da política democrática que luta e se insurge por possibilidades de vida e de viver não vulnerável, não precarizada e não expropriada, o que informa a multidão é o múltiplo, o plural, a horizontalidade e a enunciação da força de cada corpo no momento correto, taticamente posto a serviço do comum. “Nesses encontros e desencontros entre práticas distintas, produzem-se devires singulares de cada uma delas na direção da construção de um comum” (Rolnik, 2018, p. 95), o que é justamente o caminho para uma democracia possível no devir da potência corpórea do comum. Assim define-se um “nós” contra o Um, contra a unidade da política democrática “imperial” de controle e sujeição, e o “nós” se dá no e em comum, bem como, de maneira concreta, material, na multidão desfigurada que se insurge, e singular-pluralmente amedronta tanto a unidade política do regime estatal-“Imperial”-capitalístico. E, é nesse sentido, que Stengers (2017, p. 8) associa esse “nós”, singular e plural, à operação de “reativar”. E coloca a autora que “a questão será pensar pelo meio, mas, desta vez, um meio perigoso e insalubre, que nos incita a sentir que temos a grande responsabilidade de determinar o que está e o que não está autorizado a “realmente” existir”, e a partir da reativação insurrecional subverter a produção de mundos e existências, e construir uma nova gramática do que está autorizado a existir que se confronta com a gramática capitalístico-cibernético-colonial do biopoder “imperial”.

Reativar significa reativar aquilo de que fomos separados, mas não no sentido de que possamos simplesmente reavê-lo. Recuperar significa recuperar a partir da própria separação, regenerando o que a separação em si envenenou. Assim, a necessidade de lutar e a necessidade de curar, de modo a evitar que nos assemelhemos àqueles contra os quais temos de lutar, tornam-se irremediavelmente aliadas. Deve-se regenerar os meios envenenados, assim como muitas de nossas palavras, aquelas que - como “animismo” e “magia” - trazem com elas o poder de nos tornar reféns [...]. (STENGERS, 2017, p. 9).

Nesse momento, as manifestações do comum nesses lugares de luta, resistência, e insurreição que são os coletivos, as ocupações, os quilombos, as comunidades indígenas, os assentamentos, e as assembleias pelo Brasil e pelo mundo, são a possibilidade viva e latente de pensar, propor e constituir o comum, e, nessa trilha, constituir uma nova subjetividade, e uma nova democracia material, imanente, concreta e possível. Deflagrar um acontecimento democrático é preciso, e constatar um acontecimento comunal é necessário, o comum e suas representações ganham força, forma e pronuncia, em meio a um léxico ainda dominado pelo capitalismo cibernético-colonial, mas que a cada dia sofre abalos, contestações, tensionamentos, e é colocado em dúvida, contra os muros que ele mesmo ergue para dominar e expurgar a vida.

Nos parece que uma democratização radical da política só poderá ser feita a partir de uma nova politicidade - uma política no feminino, como muitas feministas vêm chamando, mas também uma política que volte à forma comuna, vamos dizer assim, ao problema de organizar a vida em um território, em um lugar, uma esquina de encontro - não para fugir da disputa de poder, mas para entendermos que poder é esse que queremos disputar e para restituir nossas capacidades de decidir sobre as nossas vidas. E essa experiência radical é o que pode inventar novas institucionalidades e que pode, outra vez, fazer com que consigamos oferecer medo ao poder. (Moraes, 2018, p. 17).

Se como nos lembra Moraes (2018) o capitalismo é feiticeiro, os contrafeitiços são da esfera do comum, da pluralidade, da multiplicidade, das singularidades que lutam, dos corpos pretos, LGBTQIA+, femininos, que não se sujeitam mais a uma democracia brutalizada a partir das diferenças de raça, classe e gênero que a constituem desde sempre, são da esfera dos coletivos que na horizontalidade organizacional e nas estratégias de campo contagiam o espaço urbano com uma forma-mundo mágica, poética, mas, agressiva e potente. A ocupação, o quilombo, a aldeia indígena, o assentamento e a assembleia são um só, sem ser só um, e muito menos sendo o uno, são um só enquanto ser-estar-organizar-habitar comum, e, sobretudo, enquanto democraticamente comum.

É a partir desses sujeitos e desses lugares que a forma democracia se reorienta e se redefine, se radicaliza e sustenta um projeto de vida e não de morte. Chega de morrer democraticamente, vivamos democraticamente, habitemos democraticamente, sonhemos democraticamente, e possamos assim constituir o comum em democracia e a democracia do comum, a democracia de sujeitos singulares e plurais, e de projetos de vida singulares e plurais que não são diferenciadamente vividos ou não. A concretude da vida, é a concretude comum dos laços que nos fazem humanos, e que nos constituem seres existente e existenciais, seres que habitam, compartilham e convivem não a partir da morte, mas sim da vida.

Considerações finais

O capitalismo cibernético-colonial a partir da crise e da guerra, bem como, através dos aparatos, técnicas, estruturas e forma de controle, exclusão e extermínio do biopoder “imperial” instituem uma forma de vida e de viver, um modo de estar no mundo, um estatuto de produção de subjetividades, e sobretudo, uma política e um projeto de democracia distorcido na direção do que pretende o capital e sua maquinaria sacrificial e predatória.

Se torna evidente que a forma capital que se vislumbra na atualidade se ergue com a expropriação e o governo do comum, e, para além disso, pelo controle e dissolução muitas vezes pela violência de qualquer forma do comum que possa se apresentar como possibilidade frente à forma capitalística-“imperial”. O comum é expropriado, controlado, confiscado, ou, quando insurgente, desconstituído violentamente no cerne da democracia liberal securitária que engendra “Império” e capital, sufocando assim qualquer possibilidade de se constituir o comum como opção político-democrática, e como outros mundos possíveis.

Nesse caminho se evidenciou que tecnopolíticas comuns e formas de manifestação do comum abalam essas estruturas políticas, sociais, econômicas e jurídicas que solidificam o paradigma “imperial” e o capitalismo cibernético-colonial que o compõe, posto que novos mundos são claramente possíveis e novas subjetividades estão presentes. O quilombo, a ocupação, o assentamento, a aldeia indígena, os coletivos urbanos, o espaço urbano reapropriado e agitado, são tecnologias políticas do comum, e são o próprio comum em manifestação, em materialidade, na constituição de uma cotidianeidade de cuidado, afeto, desejo, potência, e corpos que se compõe e compondo o comum.

E, é justamente a partir dessas novas tecnologias políticas que constituem novos mundos possíveis comuns, e que implicam novas subjetividades singulares, plurais e múltiplas, que é possível também constituir uma nova democracia como espaço-tempo do singular, do múltiplo e do plural. Não só é possível, como é necessário e urgente que desde o comum constituído, constitua-se uma nova democracia dos corpos e das potências, que tem por base a composição coletiva a partir da insurreição como condição de possibilidade para desacelerar e desestruturar as formas, práticas e estruturas “imperiais” que o capitalismo cibernético-colonial põe em jogo. Não basta mais somente resistir, é preciso a insurreição do corpo que constitui o comum como um mundo para habitar, uma forma de imaginar, e um modo de existir.

Referências

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Notes

1 O presente artigo se insere no âmbito do projeto de pesquisa “Tecnopolítica(s), Produção de Subjetividades e Constituição do Comum” desenvolvido junto ao Programa de Pós-Graduação em Direito - Mestrado e Doutorado - da Universidade Federal de Santa Maria (PPGD/UFSM), bem como, no âmbito do grupo de pesquisa Núcleo de Estudos do Comum (NEC/UFSM), registrado junto à UFSM e ao CNPq, ambos coordenados pelo autor do artigo.
2 Aqui é importante referir que para a construção do referencial metodológico e teórico-analítico que guia o presente trabalho, além de se levar em conta a obra de Antonio Negri, também se toma por base a leitura empreendida por (BERNARDES, 2017).
3 Tradução livre do autor: “esos rituales son pragmáticos, en ellos las fuerzas propias de los/as participantes se organizan para producirse como “fuerzas sociales”, con la particularidad de que - a diferencia de los científicos - quienes participan saben reconocer y honrar lo que requiere esa organización”.


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