Artigos inéditos

“Meu registro não sabe quem sou”: direito e acesso à retificação registral de nome e gênero para pessoas trans no Estado brasileiro na prática

“My documents don’t know who I am”: right and access to registry rectification of name and gender for trans people in practice, the Brazilian case

Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia
Universidade Federal de Ouro Preto, Brasil
Leonam Lucas Nogueira Cunha
Universidade de Salamanca, Espanha

“Meu registro não sabe quem sou”: direito e acesso à retificação registral de nome e gênero para pessoas trans no Estado brasileiro na prática

Revista Direito e Práxis, vol. 15, no. 4, e77011, 2024

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Received: 15 June 2023

Accepted: 07 April 2024

Resumo: Assumida a importância de abrir as portas da lei, é preciso averiguar a materialidade jurídica da vida partindo-se de uma pergunta fundamental: os direitos alcançam os seus titulares? O que pode impedir que a norma rompa essa barreira? Este estudo, portanto, pretende analisar como se dá, no contexto brasileiro, o acesso ao direito de retificação registral de nome e gênero para pessoas trans. Parte-se da hipótese de que, apesar dos avanços implementados pelo Provimento nº 73/2018 do Conselho Nacional de Justiça, o acesso à retificação pode ainda encerrar algumas problemáticas. Para analisar tal situação e esquadrinhar esse problema, traça-se o percurso histórico do reconhecimento do direito à retificação registral de pessoas trans: da Lei de Registros Públicos (lei 6.015/1973) até chegar ao Provimento nº 73 do CNJ, que representa um marco para o reconhecimento e acesso à retificação registral. Com o objetivo de avaliar a efetividade desse acesso, analisam-se entrevistas realizadas com ativistas trans de atuação regional e nacional para, assim, aferir as mudanças reais implementadas pelo Provimento nº 73 e quais problemáticas podem haver sido incorporadas a partir de então. Assim, a metodologia manejada contempla tanto a análise legal e jurisprudencial dos documentos pertinentes, como a investigação qualitativa através de entrevistas realizadas com pessoas trans que trabalham como ativistas pelos direitos dessa população.

Palavras-chave: Direitos trans, Retificação de nome e gênero, Reconhecimento de direitos, Acesso e garantia de direitos.

Abstract: Given the importance of opening the doors of the law, it is necessary to investigate the legal materiality of life, starting with a fundamental question: do rights reach their holders? What can prevent legal norms from breaking this barrier? This study, therefore, aims to analyze, in the Brazilian context, how access to the right of registry rectification of name and gender for transgender people happens. We start from the hypothesis that, despite the advances implemented by Protocol nº 73/2018 from the National Council of Justice, access to rectification may still contain some problems. To analyze this situation and scrutinize this defined research problem, we follow the historical path of recognition of the right to registry rectification for trans people: from the Public Registries Law (Law nº 6.015/1973) until we arrive at Protocol nº 73 from the National Council of Justice, which represents a milestone for the recognition and access to registry rectification. To evaluate the effectiveness of this access, we include in our analysis some interviews with regional and national trans activists to ascertain the real changes implemented by Protocol nº 73 and what problems may have been incorporated since then. Thus, the methodology used includes both legal and jurisprudential analysis of relevant documents, as well as qualitative research through interviews with trans people who work as activists for trans rights.

Keywords: Trans rights, Name and sex/gender rectification, Recognition of rights, Access to and guarantee of rights.

1. Introdução: panorama da retificação registral

Partimos de uma metodologia que se deslinda pelos entramados da interdisciplinaridade entre direito e ciências sociais. Assim, utilizamos uma revisão bibliográfica da doutrina pertinente ao tema e uma análise legal e jurisprudencial combinadas a entrevistas que seguiram uma orientação qualitativa1.

No tocante às entrevistas, estas foram realizadas no período de junho a agosto de 2021, no marco do Programa de Doutorado em Estado de Direito da Universidade de Salamanca; são, portanto, resgatadas da tese de doutoramento de um dos autores (CUNHA, 2021), intitulada “Queerizar el derecho: una estrategia para analizar el reconocimiento de derechos trans en España y Brasil bajo el paradigma de los derechos humanos2. As entrevistas foram produzidas de forma virtual (devido à pandemia de Covid-19), têm um caráter anônimo e tiveram uma duração de 50 min a 1:15min cada uma.

Na primeira parte deste artigo, tratamos sobre a Lei de Registros Públicos, assim como a jurisprudência pertinente ao tema, a fim de entender como se engendram, no Brasil, as discussões primeiras sobre o direito à retificação registral das pessoas trans. A antiga regra da imutabilidade do nome disposta na Lei de Registros Públicos de 1973 revelava-se como um flagrante obstáculo à demanda das pessoas trans pela alteração dos seus dados registrais com vistas a ter reconhecido um nome condizente à sua personalidade - no que cabe à autopercepção da sua identidade de gênero. Por isso, com o gestar dos anos, tal regra da imutabilidade foi sendo seriamente questionada.

No tocante às demandas do movimento trans pela retificação registral, argumentava-se em base aos direitos da personalidade a importância de se ter um nome em que o indivíduo possa reconhecer-se em termos de gênero. Dessa forma, entendendo-se o gênero como um marcador fundamental para a identidade, arguia-se o seu caráter constitutivo no campo do desenvolvimento da personalidade.

Toda a força argumentativa dessas ideias terminou chegando à Suprema Corte através da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI.) n. 4.275. Assim, procedemos, na segunda parte deste estudo, a uma análise dessa ADI., que sentou a base interpretativa plasmada no Provimento nº 73/2018 do Conselho Nacional de Justiça.

Pondo em foco dito provimento, consideramos os avanços que ele supôs e sinalizamos críticas com vistas a ponderar uma maior efetividade em sua realização prática. Tal ponderação leva em conta as próprias narrativas das pessoas trans entrevistadas quanto ao acesso à retificação dos seus documentos através da via aberta pelo Conselho Nacional de Justiça no ano de 2018.

Inspirando-nos no discurso das pessoas entrevistadas, primeiramente, relata-se como se dava o procedimento de retificação registral antes do Provimento nº 73/2018. Finalmente, pontuamos as problemáticas relatadas no que cabe à prática procedimental: a desinformação das pessoas que trabalham nos cartórios, assim como de outros espaços institucionais, o custo econômico dos trâmites e a exclusão da população trans não binária e menor de idade.

2. Lei de Registros Públicos: antecedentes e jurisprudência

A Lei de Registros Públicos, lei 6.015/1973, foi elaborada em um contexto de ditadura civil-militar. Só por isso ela precisa ser tomada com bastante cuidado, uma vez que à época vigorava uma Constituição redigida por militares e apenas formalmente aprovada pelo Congresso Nacional, além de estarem em vigor Atos Institucionais - inclusive o mal lembrado AI-5, de 1968.

É verdade que a lei vem sofrendo algumas atualizações após a Constituição de 1988; no entanto, algumas questões se mantiveram intocadas até muito recentemente. Uma delas diz respeito ao registro do nome e do gênero da pessoa quando do nascimento (art. 50 e segs. da Lei 6.015/73). Toda pessoa nascida viva tem o direito de ser registrada e aí estão também compreendidos os direitos ao prenome e ao sobrenome (art. 55). Vale ressaltar que ter um prenome e um sobrenome são direitos fundamentais ínsitos aos direitos de personalidade, previstos, por exemplo, no art. 16 do Código Civil.

Segundo a lei, o prenome é definitivo (art. 58). No ano de 2022, no entanto, foi aprovada a lei n. 14.382, que passou a possibilitar que qualquer sujeito, maior de idade, possa, imotivadamente, requerer em cartório a alteração do seu prenome (art. 56) e do seu sobrenome (art. 57). A mudança é positiva para pessoas que antes só teriam podido mudar seu nome caso motivassem o pedido mostrando, por exemplo, que este lhe causava constrangimento, como se pode ver aqui: “admite-se a alteração do nome civil após o decurso do prazo de um ano, contado da maioridade civil, somente por exceção e motivadamente, nos termos do art. 57, caput, da lei 6.015/73” (STJ, REsp. n. 538.187/RJ, 3ª. T., Rel. Min. Nancy Andrighi, DJ. 21/02/05).

Apesar de ser um avanço, ao flexibilizar o que antes era praticamente imutável e não exigir a judicialização para se promover a mudança, a lei ainda falha ao estabelecer que todas as certidões que vierem a ser emitidas conterão a referência ao prenome anterior (art. 56, §2o), além de não haver referência à possibilidade de alteração do sexo da pessoa registrada. Tais questões atingem diretamente as pessoas trans, pois a referência ao prenome anterior na Certidão de Nascimento (e demais certidões) ainda causa constrangimento; outrossim, o fato de a alteração legislativa não fazer referência à modificação do sexo do registrado coloca a lei em atraso face à decisão do STF na ADI. n. 4.275 e ao posterior Provimento n. 73 do CNJ (infra). Esse cenário também poderia ser visto como controverso e problemático para as pessoas intersexuais, já que seu nome registral pode estar vinculado a uma identidade de gênero com a qual não se identificam, assim como o seu sexo registral não refletirá acertadamente nem seu gênero percebido nem seu sexo real (entendendo sexo, aqui, de maneira ampla, contemplando não só as características morfológico-genitais)3.

Antes da histórica decisão do STF sobre a possibilidade de pessoas trans poderem pedir a mudança do seu prenome e do seu gênero no registro de nascimento - sem a necessidade de prévia cirurgia de transgenitalização e/ou de laudos psiquiátricos - a jurisprudência no país era bastante heterogênea. Havia algumas decisões totalmente favoráveis, algumas que conferiam apenas a mudança do nome, mas não do sexo/gênero, e também as que não permitiam nem uma nem outra coisa sob o argumento de que “faltava norma” tratando do caso - como se a Constituição e o Direito Internacional dos Direitos Humanos não fossem suficientes.

Nesta decisão, o STJ condicionava a mudança registral à prévia realização de cirurgia:

REGISTRO PÚBLICO. MUDANÇA DE SEXO. (...) REGISTRO CIVIL. ALTERAÇÃO DO PRENOME E DO SEXO. DECISÃO JUDICIAL. AVERBAÇÃO. LIVRO CARTORÁRIO. (...) 4. A interpretação conjugada dos arts. 55 e 58 da Lei n. 6.015/73 confere amparo legal para que transexual operado obtenha autorização judicial para a alteração de seu prenome, substituindo-o por apelido público e notório pelo qual é conhecido no meio em que vive. 5. Não entender juridicamente possível o pedido formulado na exordial significa postergar o exercício do direito à identidade pessoal e subtrair do indivíduo a prerrogativa de adequar o registro do sexo à sua nova condição física, impedindo, assim, a sua integração na sociedade. 6. No livro cartorário, deve ficar averbado, à margem do registro de prenome e de sexo, que as modificações procedidas decorreram de decisão judicial (...) (STJ, REsp. n. 737993/MG, 4ª T., Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJe. 18/12/09, grifos nossos).

Em 2016, dois anos antes da decisão do STF que será tratada a seguir, o TJMG proferiu decisão em sentido similar à acima citada:

APELAÇÃO - TRANSEXUAL - ALTERAÇÃO DE SEXO NO REGISTRO CIVIL DE NASCIMENTO - CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO NÃO REALIZADA - PREVALÊNCIA DA CONDIÇÃO REGISTRAL NATURAL ATÉ QUE HAJA MODIFICAÇÃO SEXUAL. A só condição de transexual individual, conquanto imponha o respeito de todos pelo gênero de opção explicitado, permitindo inclusive a modificação do nome, e o dever de tratamento respeitoso da sociedade pela própria opção, não autoriza a modificação da condição registral do gênero sexual contida nos assentos de nascimento, que só é admissível àqueles que se submeterem ao procedimento de redesignação sexual, porque a excepcionalidade afasta o interesse público no conhecimento da condição de gênero sexual originalmente designado. Não provido (TJMG, Apel. Cív. nº 1.0024.13.395561-7/001, 3ª Câm. Cív., Rel. Des. Judimar Biber, DJ. 11/02/16)4.

2.1. A Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.275: um marco no tema

Em 2009, a Procuradoria-Geral da República (PGR) ajuizou a ADI. n. 4.275, pretendendo que o STF fizesse uma interpretação conforme a Constituição do art. 58 da Lei de Registros Públicos. Alegava que o dispositivo violava os arts. 1º, III (dignidade da pessoa humana), 3º, inciso IV (vedação à discriminação) e 5º, caput (igualdade) e X (intimidade, honra e vida privada). Logo, o artigo deveria ser interpretado de forma a permitir que pessoas trans pudessem fazer a mudança de nome e sexo/gênero no registro de nascimento, desde que observados alguns requisitos: que o indivíduo requerente fosse maior de idade; que há pelo menos 3 anos estivesse “convicto” de que é uma pessoa trans e que se pudesse presumir “com alta probabilidade” que essa pessoa não iria mais modificar sua identidade de gênero. Tudo isso deveria ser comprovado por laudos de especialistas.

O Min. Marco Aurélio Mello havia sido sorteado como Relator da Ação e, em fevereiro de 2018, começou a votar na segunda sessão de julgamento da Ação (a primeira havia acontecido em junho de 2017 e apenas foram ouvidas as partes e os amici curiae, além de lido o Relatório). Em seu voto, o Ministro entende que a dignidade humana e a autonomia da vontade impõem o direito à mudança de nome e de sexo no registro de nascimento de pessoas trans. Ademais, que não seria necessária prévia cirurgia. No entanto, aduz que, quando não houvesse aquela, seria necessária a adoção de “critérios médicos” para que fossem autorizadas as mudanças, quais sejam: que o indivíduo interessado fosse maior de 21 anos e que tivesse laudos de especialistas (como indicado pela PGR). Ademais, acolhe pedido da AGU no sentido de que os registros deveriam indicar a referência à mudança que foi feita.

A grande mudança, no entanto, quanto ao resultado dessa ação se deu após o voto do Min. Edson Fachin, que começa a partir de algumas premissas: (i) o direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou expressão de gênero; (ii) a identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa, logo, cabe ao Estado apenas reconhecê-la, nunca constituí-la e (iii) a pessoa não deve provar o que é; assim, o Estado não deve condicionar a expressão da identidade a qualquer tipo de modelo, ainda que meramente procedimental. Além de dispositivos constitucionais, o Ministro também faz referência ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, inclusive à Opinião Consultiva n. 24 da Corte Interamericana de Direitos Humanos de 20175 - um documento especialmente importante para a presente ação uma vez que trata especificamente de responder às questões discutidas na ADI. e, logo, servirá de base para o voto do Min. Fachin.

As conclusões do Ministro foram no sentido de que: (1) pessoas trans, maiores de idade, têm o direito de pedir a mudança do nome e sexo no registro de nascimento independentemente de cirurgia, laudo médico/psicológico: basta uma declaração assinada e o pedido; (2) tais alterações poderão ser feitas via cartório, sem ser necessária uma ação judicial; e (3) a alteração do registro não constará averbada, ou seja, não poderá constar qualquer indício de que o Registro Civil foi retificado. Na mesma sessão seguiram o voto do Min. Fachin os Min. Roberto Barroso, Rosa Weber e Luiz Fux. Retomado o julgamento no dia seguinte, o julgamento foi encerrado julgando-se procedente o pedido nos termos do voto do Min. Fachin (Rel. para o acórdão), vencidos os Min. Marco Aurélio, Lewandowski e Gilmar Mendes.

Felizmente, após a decisão do STF na ADI. n. 4.275, tais questões restaram superadas, como se pode ver dessa decisão do STJ:

RECURSO ESPECIAL. ALTERAÇÃO DE REGISTRO PÚBLICO. LEI Nº 6.015/1973. PRENOME MASCULINO. ALTERAÇÃO. GÊNERO. TRANSEXUALIDADE. REDESIGNAÇÃO DE SEXO. CIRURGIA. NÃO REALIZAÇÃO. DESNECESSIDADE. DIREITOS DE PERSONALIDADE. (...) 2. Cinge-se a controvérsia a discutir a possibilidade de transexual alterar o prenome e o designativo de sexo no registro civil independentemente da realização da cirurgia de alteração de sexo. 3. O nome de uma pessoa faz parte da construção de sua própria identidade. Além de denotar um interesse privado, de autorreconhecimento, visto que o nome é um direito de personalidade (art. 16 do Código Civil de 2002), também compreende um interesse público, pois é o modo pelo qual se dá a identificação do indivíduo perante a sociedade. 4. A Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/1973) consagra, como regra, a imutabilidade do prenome, mas permite a sua alteração pelo próprio interessado, desde que solicitada no período de 1 (um) ano após atingir a maioridade, ou mesmo depois desse período, se houver outros motivos para a mudança. Os oficiais de registro civil podem se recusar a registrar nomes que exponham o indivíduo ao ridículo. 5. No caso de transexuais que buscam a alteração de prenome, essa possibilidade deve ser compreendida como uma forma de garantir seu bem-estar e uma vida digna, além de regularizar uma situação de fato. (...) 7. O direito de escolher seu próprio nome, no caso de aquele que consta no assentamento público se revelar incompatível com a identidade sexual do seu portador, é uma decorrência da autonomia da vontade e do direito de se autodeterminar. Quando o indivíduo é obrigado a utilizar um nome que lhe foi imposto por terceiro, não há o respeito pleno à sua personalidade. 8. O Código Civil, em seu artigo 15, estabelece que ninguém pode ser constrangido a se submeter, principalmente se houver risco para sua vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica, caso aplicável à cirurgia de redesignação de sexo. 9. A cirurgia de redefinição de sexo é um procedimento complexo que depende da avaliação de profissionais de variadas áreas médicas acerca de sua adequação. 10. A decisão individual de não se submeter ao procedimento cirúrgico tratado nos autos deve ser respeitada, não podendo impedir o indivíduo de desenvolver sua personalidade. 11. Condicionar a alteração do gênero no assentamento civil e, por consequência, a proteção da dignidade do transexual, à realização de uma intervenção cirúrgica é limitar a autonomia da vontade e o direito de o transexual se autodeterminar (...). (REsp. n. 1.860.649/SP, 3ª T., Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe. 18/05/20).

3. Provimento nº 73 do CNJ: avanços e críticas

Em razão da decisão do STF, o CNJ tratou de regulamentar como deveria dar-se a mudança de nome e sexo no registro de pessoas trans através do Provimento n. 73, de 2018. A normativa ressalta a autonomia da pessoa requerente que pode pedir a alteração sem a necessidade de motivação ou de laudos/cirurgias (art. 5º do Provimento). Dessa maneira, o Provimento afasta-se do paradigma patologizante das trans-identidades, que se articulou a partir das ciências biomédicas, que catalogavam a manifestação da identidade trans como um transtorno mental (historicamente, sob os termos “transexualismo”, “transexualidade”, “disforia de gênero”) (BUTLER, 2006, p. 113 e seguintes). Colocar-se na condição de pessoa com um transtorno mental, necessitada de um laudo, um diagnóstico e um tratamento, sempre supõe uma estigmatização. Assim, não exigir requisitos patologizantes trata-se de um acerto e de realocar as questões trans num paradigma de direitos.

Ademais, abrir a possibilidade de que a retificação registral seja feita por via cartorária põe fim, definitivamente, aos périplos judiciais que as pessoas trans tinham que enfrentar ao ter de solicitar a alteração do seu registro judicialmente. Além do desgaste que isso supunha para as pessoas interessadas, ao verem-se como alvos da patologização e do questionamento de suas identidades, e do tempo e da disponibilidade econômica que os processos demandam, ainda não havia a certeza de um resultado positivo, já que os critérios estabelecidos nos tribunais eram variados. Portanto, desjudicializar o trâmite aparece, também, como um acerto.

No entanto, uma das grandes questões atuais com relação ao Provimento é sobre os custos que o procedimento envolve. No Provimento há uma lista de documentos para que a pessoa possa pedir a mudança. No §6º do art. 4º há dezessete documentos - comprovantes e certidões (sendo que apenas um deles é exclusivo daqueles sujeitos que até aquele momento têm registro masculino: o certificado de reservista) - que precisam ser apresentados ao Cartório. Assim, a pessoa requerente tem de arcar não só com as taxas para a emissão/cópia de todos os documentos exigidos como também com o próprio procedimento no Cartório de Registro de Pessoas Naturais.

Por outro lado, a realidade da maioria das pessoas trans é de vulnerabilidade econômico-social - inclusive pela discriminação e violência por que passam: muitas delas são afastadas do espaço familiar, têm os maiores índices de evasão escolar e vivem, em enorme medida, da prostituição como única forma de sobrevivência (cf. ANTRA, 2020 e BAHIA & MELLO, 2021). Assim, o custo para a obtenção de todos os documentos vem sendo uma barreira para que inumeráveis pessoas trans consigam exercer o direito garantido pela citada decisão do STF.

Ademais, o Provimento limita a retificação via cartorária às pessoas maiores de idade, desconsiderando a possibilidade de que as menores de idade possam ser assistidas por responsáveis ou tutores, e aqueles casos em que há um grau de madurez suficiente para requerer tal alteração - deixando à margem, portanto, o interesse superior do menor6. Tampouco faz-se qualquer referência às pessoas trans não binárias, demarcando como únicas identidades de gênero habitáveis as de homem/masculino e mulher/feminino. Teceremos comentários sobre o tema mais adiante.

4. “Meu registro não sabe quem sou”: análise das entrevistas

Quanto às entrevistas, cabe esclarecer algumas questões metodológicas. Trata-se de entrevistas semiestruturadas realizadas com cinco pessoas trans com atuação ativista no contexto brasileiro, sendo cada uma delas de espaços geográficos distintos (regiões Norte, Nordeste, Sudeste e Sul), de maneira a contemplar uma diversidade de percepções em função das limitações de cada região7. As entrevistas foram realizadas com consentimento expresso do público entrevistado para serem gravadas e, depois, transcritas - seguindo-se o protocolo para a realização ética de uma investigação qualitativa. Para proteger os dados das pessoas participantes, no momento da transcrição, esses ou quaisquer outros dados que permitissem a sua identificação foram eliminados, em virtude da anonimidade. Dessa forma, as pessoas entrevistadas foram identificadas em função da sua identidade de gênero autopercebida e declarada: M.T.T. corresponde a mulher trans/travesti; H.T. corresponde a homem trans; T.1 e T.2, a travestis; e N.B., a pessoa não binária.

O público escolhido para as entrevistas foi de pessoas que se identificam como trans e como ativistas, vinculadas a associações ou organizações com atuação no contexto brasileiro, em função de um recorte de pesquisa que pretendia verificar não só a efetividade dos direitos trans plasmados na prática como também uma visão crítica e de demanda ativa dos sujeitos titulares desses direitos. Além disso, ao ouvir trans-ativistas, os discursos se estendem para além do campo meramente individual; isto é, as falas esboçadas refletem uma polifonia atravessada pelas vivências como ativistas e o contato com outras pessoas que recorreram às instituições das quais fazem parte.

4.1. “Como era esse babado antes?”

Para retificar prenome e gênero no registro civil, no Brasil, até o Provimento nº. 73 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), responsável pela regulação dos registros e cartórios, requeria-se autorização judicial, de maneira que a pessoa interessada tinha de reclamar essa alteração judicialmente. Como exposto, tratava-se de um trâmite em geral bastante longo sobre o qual não havia a certeza de ter uma decisão favorável.

Nesse sentido, M.T.T. ilustra, através de sua história de vida, o périplo que as pessoas trans tinham de afrontar para ver a sua verdadeira identidade de gênero reconhecida por meio do nome e do sexo/gênero no registro de nascimento e documentos de identificação. M.T.T. é residente de uma cidade do interior do Brasil e, quando quis proceder com a retificação dos seus dados registrais, ao buscar informação, descobriu que não havia possibilidade de êxito caso a ação judicial fosse protocolada em seu município, tendo em vista a jurisprudência que havia nessa competência que seguia o entendimento da imutabilidade de prenome e sexo/gênero. Conforme o relato de M.T.T.:

Resumidamente, eu passei uns dois anos indo [à capital] porque no meu município, como é uma cidade pequena, a vara aqui, o advogado não via um fator positivo de eu ganhar a causa aqui. E aí o meu amigo tinha conseguido o avô dele pra fazer isso pra mim aqui [na minha cidade e ele disse que a] vara, o juiz não era favorável.

Haja vista essa circunstância, e a necessidade que M.T.T. sentia de ver sua identidade reconhecida, decidiu ajuizar a oportuna ação na capital do seu estado de residência. Ela nos conta que:

(...) dei entrada por volta de 2014-2015, e aí fiquei nessa: indo e voltando [da capital] uns dois anos e meio. Aí eu fui lá, conheci uma advogada, ela deu entrada e tudo, só que aí, nesse percurso todo, eu precisava morar lá, porque como eu ‘tava entrando com a vara de lá, eu precisava estar provando que era moradora de lá. Eu tive que ir pra casa de um amigo meu, um homem trans também. (...) Olha que doideira: ele montou um quarto pra mim, um quarto provisório até o processo acontecer e tudo; eu fui, levei roupas minhas da minha casa, levei retrato, levei coisa pra simular um quarto como se eu ‘tivesse morando ali. [Tudo isso porque] o advogado tinha dito que ia... Como é que fala? Agora eu não lembro se era o oficial de justiça, não sei como é que se chama... se era um avaliador psicossocial pra ver sua vida...

Nesse ponto, a entrevistada refere a necessidade da mudança para outra cidade em virtude da competência territorial. Segundo ela, na capital do estado, havia um entendimento favorável à possibilidade de retificação de nome e gênero para pessoas trans. Por outro lado, a cobrança de sua advogada de que efetivamente vivesse na cidade, possivelmente, dava-se pela possibilidade de que se realizasse alguma intimação por oficial de justiça.

Para além dessas questões, no entanto, o que realmente merece destaque é que a história de M.T.T. é uma metonímia evidente sobre as barreiras que as pessoas trans tinham de traspassar para retificar prenome e sexo/gênero: ela investiga sobre as varas que tinham um histórico de emitir decisões favoráveis nesse tema, “muda-se” a outra cidade para poder requerer a retificação, acode à sua rede de contatos e amizades. Aqui é importante frisar a existência de redes de solidariedade construídas entre as próprias pessoas trans que manufaturam soluções para livrar-se da violência institucional e ajudar umas às outras a ter acesso efetivo aos direitos, consolidando e mantendo verdadeiras estratégias autogeridas coletivamente8.

No itinerário dessa busca de M.T.T. pelo reconhecimento real de um direito, aprova-se, em 2018, o Provimento nº. 73 do CNJ. Dessa forma, arquivado o seu processo, M.T.T. pode solicitar a retificação do seu registro de nascimento por uma via mais rápida e efetiva, dando fim ao seu sendeiro judicial.

Através dos relatos, observamos claramente a importância dessa medida para garantir o acesso ao reconhecimento pleno da identidade de gênero das pessoas trans no Brasil: isto se verifica por meio da constatação de que todas as pessoas entrevistadas que têm prenome e sexo/gênero corrigidos procederam à retificação através desta via. O novo procedimento é muito mais célere e não exige requisitos patologizantes, o que facilita a retificação e fez com que a realidade anterior, ilustrada aqui pelo relato de M.T.T., fosse em alguma medida superada. Apesar disso, existem algumas problemáticas pendentes de novo enfoque, das quais trataremos adiante.

4.1. A desinformação das equipes dos cartórios (e de outros espaços institucionais)

Nas entrevistas, observamos uma problemática referente à pouca informação de que dispunham as pessoas que trabalham nos cartórios sobre os procedimentos de retificação registral9. Podemos vê-lo refletido nas entrevistas de M.T.T., T.1 e T.2. Por exemplo, T.1 conta que, ante o desconhecimento das pessoas funcionárias do cartório, teve sorte porque um deles era seu amigo de infância e outro, em virtude dessa relação que existia previamente, implicou-se em buscar as informações necessárias. É possível ver, de forma antecipada, que existem fios invisíveis que mediam a relação entre as pessoas interessadas e as instituições e que determinarão como será o trato recebido e a prestimosidade das pessoas que trabalham nesses espaços. Esses fios invisíveis, que requerem uma espécie de negociação, fazem-se perceber nos casos de desconhecimento do cartório, de modo que é o indivíduo que busca ter acesso a um direito aquele que deve, estabelecendo um laço particular com as instituições, informar sobre o procedimento para alcançar o fim pretendido.

A história de T.1 é ilustrativa: ela conta que, depois de retificada a sua certidão de nascimento, quando foi atualizar os outros documentos oficiais de identificação, dependeu de uma conhecida sua que tinha relação com funcionários que trabalhavam nos órgãos competentes. Nesse sentido, ela relata que, devido a essa mediação, a emissão dos seus novos documentos deu-se mais célere e descomplicadamente.

T.2, por outro lado, aponta o alto nível de desconhecimento geral. Ela afirma que poucas pessoas conhecem em profundidade esse direito e os trâmites atualizados pelo Provimento nº. 73 do CNJ. Dessa maneira, como ativista, ela assume o grande desafio que é difundir adequadamente as informações pertinentes. Além disso, enfatiza o desequilíbrio que existe entre as cidades grandes e as pequenas, assim como entre as distintas regiões do país:

Quando eu terminei a faculdade, eu ainda ‘tava morando no Nordeste, foi um processo bem difícil porque lá, até os dias de hoje, existe um grande desafio, que é sensibilizar os cartórios, mostrar que não é eles quererem mudar o nome, é um direito que deve ser garantido... Porque às vezes as meninas vão pro cartório e falam “ah, eu fui discriminada”. Olhe o absurdo diante de uma busca por acesso a um direito! (T.2)

Portanto, parece ser uma constante a descompensação entre as realidades dentro do mesmo país, havendo mais desconhecimento nas áreas mais distantes dos grandes centros urbanos. Isto também pode-se verificar através do relato de M.T.T., que mora numa cidade pequena: “O pessoal do cartório não estava a par da questão. E aí o cartório não sabia nada, uma péssima comunicação [com as pessoas que requeriam informação]...”.

H.T., que ainda não retificou seu nome e gênero, comenta que o desconhecimento dos funcionários sempre implica um trato potencialmente discriminatório. Ele conta que quer retificar o seu registro civil o quanto antes, mas que está se preparando psicologicamente para isso: “Vou ter que fazer esse ano, mas ainda ‘tou naquele processo de ‘ai, vou ter que fazer isso agora... vou ter que enfrentar uma transfobiazinha que sempre tem nesses processos, vou ter que explicar alguma coisa pra alguém’.” No relato de H.T. também parece cobrar bastante importância o medo a como ele vai ser tratado quando se apresente ao serviço militar depois de retificar o seu gênero: ele alcunha isso de “microviolências” às quais as pessoas trans sempre estão sujeitas.

T.1 também fala sobre essa questão, mas partindo de uma perspectiva trans-feminina, quando as mulheres trans e travestis têm que ir aos órgãos militares para dar baixa no registro. No seu relato, aparece não só o temor à violência transfóbica, como também ao machismo específico dirigido às mulheres trans e travestis, especialmente nesses ambientes em que se tende a reproduzir uma masculinidade hegemônica10:

Eu sempre digo, pra mim, eu não acho constrangedor, mas sempre depende de como a pessoa vai agir comigo. Mas eu fico muito preocupada no sentido de um assédio, um assédio sexual, que isso é muito claro. Quando eu fui me alistar, [sofri] um assédio sexual absurdo. Assédio mesmo. É constrangedor pra mulher trans e pra travesti. (T.1)

É curioso como as pessoas trans elaboram estratégias para lidar com as discriminações quando querem ter acesso a algum direito ou às esferas institucionais. T.2 assume que essas estratégias são positivas porque se trata de garantir um acesso pleno a direitos muito relevantes. Por isso, junto a outras ativistas trans, organizou uma iniciativa coletiva (um mutirão de retificação) para a qual reuniram muitas pessoas trans com o objetivo de retificar as suas certidões de nascimento. Ela conta que essas iniciativas são importantes porque, além de divulgar informação a uma coletividade, evita situações de transfobia que se dão mais isoladamente: ela o explica dizendo que “a busca espontânea, quando ela é feita sozinha, ela ainda é atravessada por muita problemática” (T.2).

Para ilustrar a importância desse direito para uma pessoa trans, resgatamos o relato entusiasmado de T.2:

Foi muito transformador na minha vida. Eu peguei a certidão de nascimento retificada e eu senti muito orgulho, sabe? Eu pensava “sou nordestina, travesti, eu ‘tou no Brasil viva e pegando minha certidão depois do tanto que eu lutei na minha vida pra ter meu nome respeitado e tudo”. Foi um processo bem emocionante.

Em linhas gerais, a desinformação que orbita em torno do tema levanta uma reflexão direta sobre a transfobia como uma manifestação não meramente individual senão estrutural (quando nos referimos à falta de informação da população em geral) e institucional (quando nos referimos ao desconhecimento dos funcionários dos cartórios). Isto é, não só se desconhecem as entrelinhas do direito à retificação, como esse desconhecimento se plasma na realidade quando pessoas trans buscam acessá-lo, de maneira que encarnam o personagem Josef K. (n’O Processo de Franz Kafka). Além disso, a distância das pessoas que trabalham nos cartórios em relação ao tema pode conduzir facilmente a formas concretas de discriminação: tratar pelo nome morto11, utilizar pronomes equivocados, questionar a necessidade de realizar a retificação, aproveitar a ocasião para fazer questionamentos invasivos etc.

Assim, é importante formular algumas perguntas; por exemplo: trata-se de uma desinformação conveniente? Sendo assim, a quem convém: a um grupo de pessoas específico, como a “direita raivosa assentada em doutrinas religiosas” que nega rotundamente o direito à identidade de gênero, ou a um sistema jurídico que se constrói precariamente no tocante a direitos LGBTI? E, mesclando as duas hipóteses, não poderia se tratar de uma conveniência e assimilação a uma estrutura de garantias e liberdades fundamentais informada e construída, no Brasil, também por essa “essa direita raivosa assentada em doutrinas religiosas” que há décadas se mobiliza para obstaculizar qualquer projeto de lei que tente estabelecer uma margem de ação jurídica sólida e baseada nos direitos humanos voltada às demandas da população trans? (BAHIA & SANTOS, 2012).

4.3. O custo econômico da retificação

Outra barreira que aparece nas entrevistas e que dificulta o acesso à retificação registral refere-se ao custo econômico do trâmite. Em vários momentos os sujeitos entrevistados relataram que os valores eram um handicap para eles.

M.T.T., por exemplo, conta que teve que pedir dinheiro emprestado porque, naquele momento, estava desempregada: “eu tive que arrumar grana emprestada pra poder pagar a tributação das certidões”. N.B., igualmente, assume que essa é uma das grandes razões pelas quais ainda não retificou os seus documentos, conjugada à impossibilidade de ver reconhecida a sua real identidade de gênero (como pessoa não binária)12. A história de T.1 também faz referência a tal questão: como ela buscou realizar a retificação logo após a publicação do Provimento nº. 73 do CNJ, diz que foi possível “fazer barganha, barganhar preços” porque o “cartório não sabia” por quais certidões ou serviços ela tinha de pagar. Não fosse isso, talvez os custos tivessem sido impeditivos para T.1 que, à época, ainda era estudante de ensino médio.

Em função disso, propôs-se na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 3667/2020, de autoria de Fernanda Melchior (PSOL-RJ), David Miranda (PSOL-RJ) e Sâmia Bomfim (PSOL-SP), que prevê alterar “a Lei nº 6.015, de 31 de [d]ezembro de 1973 para institui[r] a isenção de taxas para retificação de nomes civis e gênero de pessoas transgênero, travestis, intersexuais ou não-binárias”. O projeto, no entanto, ainda está em fase de apreciação e encontra-se, desde dezembro de 2020, no mesmo estado (BRASIL, 2020)13.

É necessário entender a pertinência desse Projeto de Lei, ou de outras iniciativas que visem à gratuitidade desse procedimento, em função da transfobia à qual as pessoas trans são constantemente submetidas que implica noutras consequências: por exemplo, o abandono escolar14, o que acarreta um despreparo formativo e/ou técnico para a sua futura inserção no mercado de trabalho; e as dificuldades de acesso e manutenção em postos de trabalho no mercado formal (CUNHA, 2018, p. 300). Assim, a transfobia constrói um panorama de precarização e empobrecimento das pessoas trans, de maneira que se dificulta a garantia efetiva dos seus direitos específicos.

Outra anotação que merece especial desvelo refere-se à importância, especialmente para as pessoas trans, de um trato conforme à sua identidade de gênero. Como se trata de um grupo que tem constantemente a sua identidade negada, questionada ou desrespeitada, o uso do nome e dos pronomes assumidos é fundamental para brindar um trato adequado e não discriminatório. Neste sentido, N.B. relata o incômodo que sente ao ser chamado “[por um nome feminino] ou de senhora”, supondo-lhe uma vexação. Também T.2 relata o quão importante para ela foi “retificar o meu nome e o meu gênero pra evitar o cotidiano de discriminações, tanto no uso do banheiro, aeroporto, rodoviária, em instituições, prédios públicos”. H.T, por outro lado, relata o desconforto ao ser chamado, em clínicas e hospitais, pelo seu nome registral, e T.1, devido ao seu histórico de discriminação suportado na época da escola, queria entrar na universidade com os seus documentos já retificados.

Desse modo, observa-se como as demandas por direitos trans têm uma estreita conexão e como não ter acesso à retificação registral condiciona as pessoas trans a distintas formas de discriminação, exposições desnecessárias e exclusão de variados âmbitos (educativo, sanitário ou outros âmbitos informais, como o uso do banheiro15 em shoppings, discotecas etc.). T.1 julga o desrespeito à identidade de gênero nos espaços institucionais, através do uso do nome morto ou da proibição do uso do banheiro correspondente, como claro reflexo da transfobia institucional: “eles querem mais é que a gente [...] se sinta não pertencente aos espaços.” Dessa forma, relata uma espécie de cidadania condicionada, já que persistentemente as pessoas trans têm que negociar o seu espaço social e reclamar o seu acesso como cidadãs genuínas. Ademais, por meio dos relatos de vexação ao serem chamadas por seus nomes registrais nos espaços de saúde - o que pode levar a que evitem frequentá-los -, adverte-se que garantir a possibilidade de ter documentos de identificação conformes à identidade de gênero vivida é também aproximar as pessoas trans do âmbito sanitário e, consequentemente, promover o cuidado da sua saúde.

4.4. A exclusão das identidades trans não-binárias e das pessoas trans menores de idade

Apesar de no texto do Provimento nº. 73 do CNJ não constar qualquer menção ao binarismo de gênero, nota-se que essa lógica permeia o procedimento de retificação. O binarismo de gênero, assentado nos saberes biomédicos da modernidade16, que consagrou o dimorfismo sexual (dois corpos: macho e fêmea; dois gêneros: masculino e feminino) (BENTO, 2008, p. 25-28) como pilar da construção epistemológica ocidental sobre os gêneros, as identidades e os desejos, permeia culturalmente o imaginário brasileiro. Desse modo, ainda que o Provimento expressamente fale em “identidade autopercebida”, as possibilidades identitárias não binárias são excluídas.

Entendemos que o conceito tradicional dado ao fenômeno trans, vinculado historicamente a uma lógica patologizante chancelada pelo biopoder17, parte de um ponto de vista dimórfico tanto para os corpos como para as identidades de gênero, o que acarreta a construção de uma “verdade” amparada cientificamente de que as únicas possibilidades existentes são macho ou fêmea, homem ou mulher, masculino ou feminino; e de que, no caso da existência de pessoas trans, só há homem trans ou mulher trans18. É desse modo que, ao partir de uma noção muito concreta da categoria “trans” ou das identidades de gênero, serão produzidas exclusões: ao definir, algo sempre escapa - ocupando as margens da definição ou ficando fora dela (BUTLER, 2019, p. 12).

É essa definição que, como referimos anteriormente, atravessa a sociedade e a cultura brasileiras (e ocidentais como um todo). Assim, apesar de não haver menção expressa no Provimento de que as alterações de gênero para pessoas trans só podem ser de masculino a feminino ou de feminino a masculino, esse binarismo é tal que se entende por óbvio: o que atesta esse argumento é o fato de que, no próprio formulário oferecido pelo CNJ nos anexos do Provimento nº. 73 para o pedido de retificação de prenome e gênero, apareça: “II - REQUERIMENTO: Visto que o gênero que consta em meu registro de nascimento não coincide com minha identidade autopercebida e vivida, solicito que seja averbada a alteração do sexo para (masculino ou feminino), bem como seja alterado o prenome para...” (BRASIL, 2018, grifos nossos).

Nas entrevistas produzidas, notamos como isso afeta diretamente as pessoas não binárias19 que, também sendo trans - tendo em vista que não se identificam com o sexo/gênero designado na hora do seu nascimento -, não podem ver assentada no seu registro a sua identidade autopercebida, já que não estão contempladas pelas categorias binárias homem/mulher ou masculino/feminino. N.B, por exemplo, comenta que uma das razões para ainda não haver retificado nome e gênero é a impossibilidade de inscrição como não binário.

Assim, vê-se que, ao não ser contemplada a possibilidade de inscrição de gêneros não binários, a única saída factível seria pleiteá-la judicialmente. Já existe jurisprudência que entende a possibilidade desse registro através, simplesmente, da não inscrição de um sexo/gênero ou do assento “gênero não definido” ou “gênero não especificado” (AGUIAR & CONSTÂNCIO, 2022, p. 334-335)20. No entanto, não se trata de um entendimento estendido. Nada obstante, algumas notícias sinalizam que esta possibilidade tende a ser cada vez mais ampla: em 2020, no Rio de Janeiro, deferiu-se inscrição de gênero não binário, optando pela omissão do assento de sexo/gênero (SANTOS, 2020); em 2021, no Piauí, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, também houve decisões no mesmo sentido de retificação de sexo/gênero para a contemplação de gêneros não binários (SERENA, 2021; MEDEIROS, 2021 e SCHÄFER, 2021).

O mesmo ponto de vista biomédico comentado anteriormente vinculava de especial forma o fenômeno trans à idade adulta: para o psiquiatra Robert Stoller, seria algo que começava a manifestar-se na infância ou adolescência de forma incipiente e “tratável”, mas que só chegava a uma concretude quando a pessoa se tornava adulta (STOLLER, 1982, p. 93). Isto toma presença no Provimento nº. 73 do CNJ, aliado, legitimamente, à noção jurídica de capacidade, o que leva a estabelecer uma idade mínima de 18 anos para solicitar a retificação registral, sendo excluídas, portanto, as pessoas trans menores idade do acesso a esse direito por essa via. Consequentemente, há-se de recorrer à via judicial21.

Quanto ao tema, é importante ressaltar alguns direitos potencialmente vulnerados como consequência dessa exclusão22; o que parte, provavelmente, de uma invisibilização das realidades da infância e juventude trans. De acordo com a Convenção sobre os Direitos da Criança, reconhecem-se o interesse superior da criança, que nunca deve perder-se de vista (art. 3.1), o direito da criança a expressar a sua opinião livremente em todos os assuntos que lhe digam respeito, levando-se devidamente em consideração as suas opiniões, em função da idade e da maturidade (art. 12.1) e o desenvolvimento da sua personalidade (art. 29.1) (NAÇÕES UNIDAS, 1989). Assim, o direito ao nome, como direito da personalidade, é fundamental para a construção da personalidade e do livre desenvolvimento da criança.

Além disso, estabelecer a idade de dezoito anos, apesar de adequar-se aos termos de uma total capacidade jurídica, parece não levar em conta o interesse superior da criança e, nos casos cabíveis, um grau de maturidade suficiente para definir-se como trans e poder ver a sua identidade reconhecida nos seus documentos de identificação. Como vimos, ademais, o direito à retificação registral pode blindar as pessoas trans de diversas formas de discriminação, e pode ser um instrumento importante para construir, por exemplo, um espaço educativo mais seguro e digno para elas, evitando exposições discriminatórias ou algumas formas de bullying.

5. Últimas considerações

Tendo em vista as travas que podem surgir durante o procedimento de retificação registral por via administrativa, conforme elucidamos ao longo da análise das entrevistas, apesar dos avanços introduzidos pelo Provimento nº. 73 do CNJ, continua sendo relevante e prática a figura do nome social. Tal figura, que garante um trato conforme à identidade de gênero da pessoa nas instituições públicas e privadas, como as sanitárias e educativas, é ainda mais acessível e menos burocrática23.

Nada obstante, cabe pontuar a melhora fruto da atuação do Conselho Nacional de Justiça através do Provimento nº. 73/2018. Ao não ser necessário cumprir requisitos patologizantes (como o laudo psicológico ou psiquiátrico que ateste “disforia de gênero/incongruência de gênero/transexualidade”) nem de hormonização ou realização de cirurgias transgenitalizadoras, as pessoas trans podem ter acesso a esse direito sem ser inevitavelmente objetos do biopoder, o que ademais implica numa celeridade procedimental. No entanto, ainda coloca como opcional a juntada desses documentos quando do requerimento de alteração no cartório. É como se esses documentos dessem um caráter de legitimidade mais genuíno ao pedido, do que se infere a permanência das verdades biomédicas ligadas ao paradigma da transexualidade como transtorno mental.

O requisito, já dispensável, de laudo ou diagnóstico de transexualidade retardava os processos de alteração registral de prenome e sexo/gênero e obrigava as pessoas trans a submeterem-se a avaliações psicológicas e psiquiátricas que as colocavam sempre no lugar de enfermas que padeciam um transtorno mental. Assim, o poder biomédico seria o responsável por chancelar a real identidade da pessoa, de forma paternalista e mitigando a sua agência, capacidade de autodeterminação e autonomia para definir a si mesmas. M.T.T, por exemplo, ao não querer passar por uma avaliação psiquiátrica, falsificou o seu diagnóstico de disforia de gênero. Ela se refere à exigibilidade do documento quando requereu, antes da publicação do Provimento nº. 73 do CNJ, a retificação judicialmente e ao incômodo de ser submetida a uma avaliação médica que estigmatiza as pessoas trans. Ela nos conta:

Por quê? Porque eu não iria conseguir nada no processo de retificação sem um laudo, por conta da peste da patologização, entendeu? Então, não foi nem uma questão que eu ‘tava fazendo pra prejudicar alguém.... Eu precisava tocar minha vida e era muito ruim você precisar ser medida pela mediCISna a partir de um laudo. (M.T.T.)

Nesse sentido, a retirada dos requisitos patologizantes para realizar a retificação registral no contexto brasileiro demonstra a evolução do reconhecimento de direitos trans, pautados por um ativismo crítico que pôs o tema sobre a mesa. Além disso, como enfatizamos, possuir documentos de identificação condizentes com a identidade autopercebida tem uma enorme utilidade prática porque, com isso, as pessoas trans se veem munidas e mais protegidas ante situações de transfobia, preconceito e discriminação. No entanto, de acordo com os apontamos trazidos ao longo deste estudo, vê-se que é preciso haver garantias de acesso aos direitos para aquelas pessoas trans que não têm recursos suficientes para custear os trâmites, as pessoas trans menores de idade e as pessoas trans não binárias.

Uma recente medida do governo federal, anunciada no dia 19 de maio de 2023, traria outro avanço nessa articulação para a garantia do direito à retificação registral. O Ministério de Gestão e Inovação, atendendo a uma solicitação formulada pelo Ministério de Direitos Humanos e da Cidadania, anunciou que a nova carteira de identidade brasileira não traria o campo “sexo” no documento (AGUIAR, 2023). Tratar-se-ia de uma solução paliativa para a exclusão das pessoas não binárias da retificação registral de gênero, já que as possibilidades estão limitadas e moldadas por noções de gênero binárias. Dessa forma, ainda que as pessoas não binárias não pudessem ver reconhecido o seu gênero no assento registral, poderiam ao menos blindar-se frente a algumas discriminações, já que a nova carteira de identidade seria um documento oficial que não mencionaria o sexo/gênero registral. Ademais, poderia usar-se, nesse documento, o nome social com o qual a pessoa se identifica. Assim, garantiria de alguma forma o respeito ao nome e à identidade daquelas pessoas trans que não realizaram a retificação em seus registros civis. No entanto, tal medida não se implantou, o que gerou respostas críticas de associações trans, como a ANTRA, já que o governo recuou e decidiu manter o campo “sexo” no documento e fazer uma distinção entre “nome de registro” e “nome social” (FLORIPA.LGBT, 2023).

Referências bibliográficas

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STOLLER, Robert. A experiência transexual. Rio de Janeiro: Imago, 1982.

Notes

1 “Trans struggles are in constant critical, self-critical and transformative movement. […] [T]here is a need to broaden the scope of ‘identity policies’ to provide answers to multiple and changing realities. In order to do so, I found it necessary to rely on methodologies fond of chaos. By this, I refer to mixed research methods, which are open to reconfiguring the research along its way and to embrace unpredictability.” (CUNHA, 2023, p. 160).
3 Assim, o direito à retificação registral pode ser de cabal importância também para as pessoas intersex: primeiramente porque uma pessoa intersex pode não se identificar com o sexo atribuído no nascimento, em razão do fato de que seus caracteres sexuais primários e secundários não seguem o padrão macho/fêmea adotado hegemonicamente como o único existente, e, primordialmente, porque o seu sexo registral não se corresponderá com a totalidade de sua realidade corporal, devido à limitação binária de sexo-gênero adotada nos registros. Além disso, convém recordar que as variações intersex podem passar por um nível genético, hormonal, anatômico-genital (GÓMEZ, 2022).
4 No entanto esse não era entendimento pacífico naquele Tribunal, que também decidiu no mesmo ano: “APELAÇÃO CÍVEL - ALTERAÇÃO DE REGISTRO CIVIL - TRANSEXUALIDADE - ALTERAÇÃO DO NOME - POSSIBILIDADE - PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - SENTENÇA MANTIDA - RECURSO NÃO PROVIDO. 1- Em consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana se mantém a decisão judicial que reconheceu o direito do transexual à mudança do nome, que vive socialmente e publicamente como mulher, sendo conhecido por apelido, que constitui o prenome feminino. 2- Observadas as circunstâncias do caso, em que o nome de registro masculino está dissonante com a identidade social, podendo levar o usuário a situação vexatória ou de ridículo, justifica-se a alteração deferida na sentença. 3- Recurso não provido” (TJMG, Apel. Cív. nº 1.0702.15.039065-7/001, 2ª Câm. Cív., Rel. Des. Hilda Teixeira da Costa, DJ. 30/09/16). Vale ressaltar, no entanto, que nesse caso a autora havia sido parcialmente sucumbente: o juiz havia concedido a possibilidade de mudança do prenome, mas não do sexo/gênero. A apelação foi feita pelo Ministério Público, contra o deferimento parcial. Contudo, não houve recurso da autora para obter a reforma da sentença quanto à parte em que foi sucumbente.
6 Remeta-se à “Observação geral nº. 14 sobre o direito da criança a que seu interesse superior seja primordialmente considerado (artigo 3, parágrafo 1)”, das Nações Unidas, em que se afirma que “a identidade da criança abarca as características como o sexo, a orientação sexual, a origem nacional, a religião e as crenças, a identidade cultural e a personalidade. Embora as crianças e os adolescentes compartilhem as necessidades universais básicas, a expressão dessas necessidades depende de uma ampla gama de aspectos pessoais, físicos, sociais e culturais, incluída a evolução das suas faculdades” (tradução e grifos próprios). Remeta-se, ademais, à Convenção sobre os direitos da criança, artigos 3, 9 e 12.
7 Em total, no estudo “Queerizar el derecho”, citado anteriormente, foram contempladas dez entrevistas. Tal investigação se propunha a aproximar o contexto ativista espanhol ao contexto brasileiro, com o intuito de tecer diálogos transnacionais tendo em vista uma autocrítica e uma reflexão contínua dos movimentos trans para a renovação e atualização das suas pautas e demandas. No entanto, a investigação não foi totalmente construída em base a essas entrevistas; constituindo o estudo qualitativo realizado através desse método só uma parcela da pesquisa. Assim, as entrevistas limitam-se a um capítulo da tese desenvolvida - capítulo cujo objetivo era contrapor as produções legislativas e jurisprudenciais à prática. Assim, neste artigo, só trazemos cinco das dez entrevistas, já que as outras cinco se referem às trans-vivências ativistas no Estado espanhol. Ademais, como explicitado, o objetivo das entrevistas realizadas era construir diálogos a partir dos ativismos para averiguar como as associações e organizações trans encaravam a realidade vivida e o acesso aos direitos voltados especificamente para essa população. Assim, todas as pessoas entrevistadas são ativistas vinculadas a um coletivo, grupo ou associação, no momento ativas no campo associativo. Das entrevistas realizadas com trans-ativistas do Brasil, todas as pessoas partiram de contextos socioeconômicos empobrecidos, mas tiveram acesso à educação e persistiram na sua formação educativa; três delas eram estudantes, uma era pedagoga e a última era assistente social, e todo o seu campo de trabalho formal ou informal, no momento da realização das entrevistas, estava ligado à ação ativista. Nenhuma tinha uma cis-passabilidade indubitável.
8 Holzer et. al abordam brilhantemente a construção dessas redes de apoio entre as pessoas heterodissidentes: “While ‘home’ can be a strange, if not unsafe space for queer bodies, […] one can build queer homes elsewhere, or create queer-familiar pockets within strange homes”. (HOLZER et al., 2023).
9 Limitamo-nos ao âmbito notarial porque as pessoas entrevistadas que têm prenome e sexo/gênero retificados o fizeram por meio dessa via proporcionada pelo Provimento nº. 73 do CNJ.
10 Veja-se o conceito de masculinidade hegemônica articulado por Raewyn Connell e James Messerschmidt (CONNELL & MESSERSCHMIDT, 2013, p. 241-282).
11 Tradução direta do inglês “deadname”, ou seja, o nome de registro da pessoa trans feito após o nascimento.
12 Trataremos disso no próximo ponto.
13 Última consulta: 07 de junho de 2023.
14 De acordo com pesquisa realizada em 2017 pela Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil, 82% das pessoas trans abandonam o ensino médio entre os 14 e os 18 anos.
15 O banheiro é um espaço recorrente de discriminação vivenciada pelas pessoas trans e o seu uso e acesso são objeto de pesquisa para a área dos estudos de gênero, estudos trans ou estudos queer. Veja-se, por exemplo, a reflexão proposta por DIAS, ZOBOLI & SANTOS, 2018.
16 O termo usado pelos estudiosos que se tornaram internacionalmente conhecidos como especialistas no tema, como Harry Benjamin, John Money e Robert Stoller, é “transexual” e/ou “transexualismo”. A referência a “sexo”, entendido como os caracteres sexuais primários, pode haver sido casual, mas termina por fazer muito sentido: depois de vários estudos, terminou-se por propor como solução à aparente incompatibilidade entre corpo e mente das pessoas trans as cirurgias de redesignação sexual, para alterar o “sexo” mesmo; assim, produz-se um trânsito de um sexo a outro.
17 Veja-se como Foucault trata este conceito: FOUCAULT, 2015, p. 145-150.
18 Aqui, entendemos como contempladas as variações trans masculino, trans feminino, homem transexual, mulher transexual, homem transgênero, mulher transgênero. Uma anotação curiosa é que, devido à capilaridade cultural da travestilidade no Brasil, contemplem-se as travestis, que utilizam marcadores de gênero e expressão de gênero femininos, mas são uma possibilidade identitária para além do binarismo homem/mulher. Veja-se o conceito de travesti/travestilidade oferecido por Jaqueline Gomes de Jesus: JESUS, 2012, p. 17.
19 Que não se identificam nem como homem nem como mulher. Várias identidades podem inserir-se neste termo guarda-chuva: gênero fluido, agênero, gênero neutro, ou até mesmo travesti etc.
20 O acesso à jurisprudência é dificultoso em função dos processos estarem em segredo de justiça. No entanto, Aguiar e Constâncio (2022, pp. 334-335) apresentam três entendimentos em “Retificação civil do gênero de pessoas não binárias sob a ótica dos direitos da personalidade”. Num dos votos, o desembargador Carlos Alberto Salles frisou que: “Seria incongruente admitir-se posicionamento diverso para a hipótese de transgeneridade não-binária, uma vez que, também nesta, há dissonância entre nome e sexo atribuídos no nascimento e a identificação da pessoa, devendo igualmente prevalecer sua autonomia da vontade. A não identificação do apelante com prenome e sexo atribuídos no nascimento geram sofrimento que justifica a autorização para a mudança, de maneira indistinta do que ocorre com transgêneros binários, sendo essa a única solução que se coaduna com os direitos à dignidade, intimidade, vida privada, honra e imagem garantidos pela Constituição Federal”. SALLES apudAGUIAR & CONSTÂNCIO, 2022, p. 335.
21 Não obstante essa problemática não haver sido tratada nas entrevistas, o tema pode suscitar discussões atuais e relevantes para a juventude trans. Vê-se uma interessante análise sobre a exclusão das pessoas menores de idade pelo Provimento nº. 73/18 do CNJ em ALVES & FERREIRA, 2018. Os autores, nesse sentido, recalcam a importância da função do nome social para saldar minimamente essa omissão.
22 Não nos deteremos sobre essa análise já que a questão não apareceu nos relatos das pessoas entrevistadas.
23 Além das exclusões produzidas pelo texto do Provimento e o custo econômico do procedimento, há algumas outras exigências que podem dificultar o acesso à retificação registral: por exemplo, a necessidade de que a pessoa requerente declare “a inexistência de processo judicial que tenha por objeto a alteração pretendida” (BRASIL, 2018).
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