Resumo: O presente estudo busca investigar os fundamentos da xenofobia no Brasil, pela análise das categorias raça e classe presentes na histórica política de Estado imigratória brasileira. Com uma abordagem metodológica estruturalista, que parte das fontes da histórica política de Estado, apontamos para a figura do mais estrangeiro dentre os estrangeiros. Isso se sustenta por uma construção psicossocial da estrangeiridade estruturada não pela aversão ao pobre como pressuposto, mas pelo racismo constitutivo da identidade nacional. É pela análise das nossas estrangeiridades e - por oposição - do que nos é familiar, que a xenofobia se revela na dinâmica social da exclusão no Brasil, a partir da nossa identificação com a imigração histórica europeia classificadora do branco adjetivado. O estudo aponta, portanto, que, no caso brasileiro, há uma sobreposição das discussões de raça às de classe no que concerne à aversão ao não nacional.
Palavras-chave: Identidade nacional, Xenofobia, Migrações, Racismo, Política de Estado para migrações no Brasil.
Abstract: The present study seeks to investigate the foundations of xenophobia in Brazil, by analyzing the categories of race and class present in the historical Brazilian immigration State Policy. With a structuralism methodological approach, which starts from the sources of historical State Policy, we point to the figure of the most foreign among foreigners. This is sustained by a psychosocial construction of foreignness structured not by the aversion to the poor as an assumption, but by the constitutive racism of the national identity. It is through the analysis of our foreignness and - in opposition to - what is familiar to us, that xenophobia is revealed in the social dynamics of exclusion in Brazil, based on our identification with historical European immigration that classifies the “adjectived white”. Therefore, the study points out that, in the Brazilian case, there is an overlap from race over class discussions with regard to aversion to non-nationality.
Keywords: National identity, Xenophobia, Migrations, Racism, State policy for migrations in Brazil.
Artigos inéditos
O mais Estrangeiro dentre os Estrangeiros: Xenofobia no Brasil
The most Foreign among Foreigners: Xenophobia in Brazil
Received: 21 July 2023
Accepted: 25 February 2024
El diablo es extranjero
El culpómetro indica que el inmigrante viene a robarnos el empleo. Y el peligrosímetro lo señala con luz roja. Si el intruso, el venido de afuera, es joven y pobre y no es blanco, está condenado a primera vista por indigencia o inclinación al caos o portación de piel. Pero si no es joven ni pobre, ni oscuro, de todos modos merece la malvenida porque ha venido a trabajar el doble a cambio de la mitad.
El pánico a la pérdida del empleo es uno de los miedos más poderosos en estos tiempos del mundo gobernado por el miedo.
Y la verdad es que el inmigrante está siempre situado a primera mano, ahí no más, a la vista, a la hora de encontrar culpables del desempleo, de la inseguridad y de otras muchas temibles desgracias.
Antes Europa derramaba sobre el mundo, sobre el mundo entero: soldados, presos, campesinos muertos de hambre… que eran protagonistas de las aventuras coloniales y han pasado a la historia como mensajeros de Dios. Era la civilización lanzada al rescate de la barbarie.
Ahora el viaje ocurre al revés. Eso quiere ser la invasión de los invadidos. Los que llegan o intentan llegar desde el sur al norte son protagonistas de las desventuras coloniales que pasan a la historia como mensajeros del Diablo. Es la barbarie lanzada al asalto de la civilización. (GALEANO, 2008, p. 116-117)
A estrangeiridade como construção social e psíquica - ou, nas palavras de Simi (2020, p. 142), como constituída por “valorações ao que ‘vem de fora’ a partir do que ‘está dentro’” - está diretamente relacionada à formação da identidade nacional e implicada no processo histórico de forja da política de Estado brasileira para migrações, a partir da questão racial. O presente estudo, nesse contexto, busca aprofundar a relação da formação da identidade nacional e do processo de colonização com a xenofobia, e, com isso, apontar para o mais estrangeiro dentre os estrangeiros. Isto é, reconhecer a existência de formas (e gradações) distintas de estrangeiridade que são projetadas sobre sujeitos estrangeiros, a partir de características (e marcadores) socialmente definidos.
Tal construção psicossocial da estrangeiridade, aquela capaz de despertar a aversão ao não nacional, está consubstanciada no histórico do arcabouço político-jurídico das migrações no Brasil. Desse modo, é por meio da análise das nossas estrangeiridades que a xenofobia, na dinâmica social da exclusão no Brasil, não pode ser afastada da questão racial, tampouco subsumida à aporofobia, conforme teoria de Adela Cortina (2020). O problema fundamental encontrado neste tipo de argumento reside numa simplificação das dinâmicas raciais como subjugadas às de classe, relegando-as ao segundo plano. O que argumentamos a seguir, porém, decorre de um entendimento da centralidade do debate racial no caso brasileiro - que será demonstrado com base na retomada da discussão sobre a histórica política de Estado, bem como nos debates sobre a formação da identidade nacional. De modo a indicar como, no Brasil, foram aspectos raciais que condicionaram o estabelecimento e manutenção de certas estruturas de classe. O exercício de Cortina (2020) de cunhar um termo e, com isso, dar nome a uma série de fenômenos sociais, por outro lado, é de inegável importância para o desenvolvimento de debates mais complexos sobre as dinâmicas de sujeitos migrantes.
Na epígrafe que inaugura este estudo, Galeano aponta para o que nos é muito familiar, a identificação da imigração histórica europeia com a identidade nacional. Sendo, portanto, uma distinção racial portadora de uma valoração que aponta em sua crônica como la civilización lanzada al rescate de la barbarie, ou “protagonistas coloniais” representados na história como mensajeros de Dios. As migrações contemporâneas, por outro lado, correspondem à invasión de los invadidos, nas quais os protagonistas das desventuras coloniais passam pela história como mensajeros del Diablo, ou la barbarie lanzada al asalto de la civilización.
A tese central que almejamos sustentar no decorrer deste texto é a da incapacidade de explicar o fenômeno da estrangeiridade no Brasil exclusivamente (ou, ao menos, prioritariamente) em referência às condições de classe. Para tanto, faz-se pertinente compreender o fenômeno da aporofobia, como exposto por Adela Cortina (2020), ao dar um nome à aversão, medo ou rechaço aos pobres. O fenômeno que a autora busca compreender, que fundamenta o conceito por ela cunhado, é a pobreza como a razão da aversão dos espanhóis ao estrangeiro. O que Cortina identifica é que não há propriamente uma aversão ao estrangeiro, mas, em muitos casos, uma acolhida entusiasmada dos sujeitos de fora pela sociedade espanhola. Algo que, contudo, só se estenderia àqueles que ingressam com fins de ali deixar o seu dinheiro, migrantes com fins lucrativos, notadamente turistas. O que a autora infere, portanto, é que os espanhóis não necessariamente têm uma aversão ao estrangeiro, mas ao estrangeiro pobre. Isto é, em alguns casos, não são propriamente xenófobos, mas aporófobos.
É evidente que a capacidade de nomeação desse fenômeno por Cortina é digna de nota e é uma importante contribuição para o estudo dos processos de articulação da estrangeiridade. Nosso argumento, por outro lado, almeja evidenciar como, no caso do Brasil, a discussão puramente fundada no marcador de classe é profundamente reducionista para o campo de estudo das migrações. Para tanto, mobilizamos o conceito de estrangeiridade como “a valoração da distância relativa entre um sujeito nacional (interior) e um objeto estrangeiro (fora)”, levando “em consideração não só o estado de ‘ser de fora’, mas, principalmente, as atribuições que são feitas a esse estado em relação a um interior tomado como parâmetro” (SIMI, 2020, p. 135-136). A estrangeiridade, nesta acepção, deixa de recair sobre o estrangeiro em si, se referindo ao hiato entre o que dele se inventa projetivamente e a forma como o nacional representa-se a si mesmo. Nos cabe, assim, antes de mais nada, traçar uma breve cartografia do que vem a ser o brasileiro.
Nosso ponto de partida é o de que não existe nada como o brasileiro e todos os esforços de representar esse absoluto incorrerão em análises parciais e, muito possivelmente, imaginárias - mas que, não obstante, produzem efeitos reais. A proposição de um caráter nacional1 brasileiro, isto é, de características psicológicas ou comportamentais do povo brasileiro pode ser, sucinta e superficialmente, sintetizada em três grandes tendências, quais sejam: o romantismo, com um movimento generalizado de otimismo e nacionalismo; o realismo, com uma posição mais pessimista em relação ao país; e, finalmente, o modernismo, onde já não é mais possível identificar um direcionamento predominante entre os ideólogos do caráter nacional (LEITE, 2017, p. 343). Sob uma perspectiva mais subjetiva, por outro lado, existirão tantos Brasis quanto sujeitos capazes de imaginá-lo e, talvez, uma das maiores dificuldades reside precisamente na dissonância entre a existência do Brasil enquanto tal e no que, subjetivamente, se associa a esse significante. O que se pensa, queremos dizer, não necessariamente corresponde àquilo que é. Os Brasis subjetivos, não obstante, jamais correspondem ao que é o Brasil - apesar de, para os sujeitos, assim o serem.
Jamais seremos capazes, por óbvio, de saber e codificar o que cada sujeito pensa sobre o que é o Brasil. Podemos, por outro lado, fazer um breve percurso por algumas das principais interpretações, com vistas a estabelecer um modelo geral - mesmo que precário - do que se diz (e, com isso, inventa) sobre esse país e seu povo. Com isso, talvez seja possível traçar alguns contornos sobre a posição deste que fala, o brasileiro, e a “distância que se cria entre essa posição e o objeto da fala em relação ao sujeito” (SIMI, 2020, p. 138). Ou seja, acreditamos que só é possível estabelecer o lugar do estrangeiro após identificar de onde parte o discurso de dentro, que o representa como tal e, mais do que isso, estabelece uma lógica de proximidade/distanciamento entre os mesmos. Em outras palavras, se a estrangeiridade sempre se constitui em função de algum referencial nacional (ao qual se opõe e, simultaneamente, reforça), precisaremos cartografá-lo.
Dante Moreira Leite (2017, p. 431-432), nesse sentido, faz um grande esforço para identificar o que, ao longo do tempo, foi produzido sobre o caráter nacional brasileiro. Ao final de seu estudo indica que o desenvolvimento de tais correntes no Brasil é profundamente alinhado aos esquemas europeus, iniciando com a descoberta de terra e a mobilização de um sentimento nativista. O nacionalismo, contudo, só passa a aflorar a partir do pós-independência com o otimismo do romantismo e a criação de uma nacionalidade a partir dos traços positivos do brasileiro, notadamente através da imagem do índio. Há, ainda
Uma terceira fase [que] se inicia por volta de 1880 e só terminará na década de 1950. Essa é, a rigor, a fase da ideologia do caráter nacional brasileiro. É nesse período que a teoria racial é aceita pelos autores brasileiros, e aqui servirá - como inicialmente na europa - para justificar o domínio das classes mais ricas. Além disso, as teorias raciais permitem aos ideólogos explicar o atraso do Brasil pela existência de grupos de raças inferiores, e de mestiços. (Leite 2017: 432)
O que está posto, portanto, é que o atraso do Brasil se deve às classes inferiores que, para tais ideólogos, são os grupos racializados (negros, indígenas e/ou mestiços, a depender do autor observado). Moreira Leite, contudo, argumenta que “não é fácil explicar porque essas teorias foram aceitas no Brasil”, se limitando a duas hipóteses: por um lado, poderiam ser uma resposta à abolição da escravatura, como um mecanismo de defesa do grupo branco contra a ascensão social dos antigos escravos; por outro, poderiam ser uma justificativa para a manutenção de tais populações em uma situação ainda análoga à da escravidão. Novamente, como no caso europeu, as classes dominantes estariam justificando seus privilégios em função de uma suposta “incapacidade” dos povos inferiores. O ocaso do nazismo trouxe consigo uma desmoralização das teorias puramente racialistas. No caso brasileiro, porém, isso deu ensejo à explicação culturalista, que reposicionou o debate para além das características biológicas, passando a explorar o campo da cultura. Sem abandonar, contudo, seu caráter estruturalmente racista, propondo povos negros e indígenas em estágios culturais mais primitivos, mantendo sua posição de seres inferiores (LEITE, 2017, p. 433).
A posição sustentada por Cortina (2020), nesse sentido, deixa fundamentalmente a desejar na proposição de um pensamento crítico em relação às cadeias simbólicas que criam um ser brasileiro. O que pretendemos fazer no decorrer das próximas seções, portanto, é reposicionar o debate da estrangeiridade com vistas a perceber como, no caso brasileiro, nos interessa muito mais pensar a partir da categoria de raça para compreender o lugar relegado ao mais estrangeiro dentre os estrangeiros, isto é, ao sujeito negro estrangeiro. Cabe-nos, assim, discutir brevemente o processo de constituição de uma subjetividade (ou identidade) negra, bem como, alguns de seus principais efeitos.
Abordar as dinâmicas do racismo brasileiro é um grande desafio, dada a sua especificidade e amplitude. Ao longo do tempo, autores se engajaram em projetos radicalmente distintos de interpretação desse fenômeno, compreendendo desde uma naturalização (e justificação) das hierarquias de submissão de raça-classe do país (FREYRE, 2001; VIANNA, 1956, por exemplo) até esforços críticos que passam a problematizar tais critérios de diferenciação, bem como, seus efeitos (FERNANDES, 1965; GONZALEZ, 2020d; CARNEIRO, 2015, por exemplo). Não objetivamos, portanto, esgotar tal discussão, mas tematizar uma de suas variáveis: a constituição subjetiva dos sujeitos negros - dado que parte importante de nosso esforço analítico é apontar o racismo como um importante componente da identidade nacional e, por conseguinte, da política de Estado referente às migrações no Brasil.
Num trabalho recente, Deivison Faustino e Leila de Oliveira (2021, p. 205) tentam elaborar a pertinência (e as limitações) do uso do conceito de xeno-racismo para a compreensão do fenômeno migratório no Brasil, compreendendo o escopo de uso desse "racismo que não pode ser codificado por cores" como já expresso em Ambalavaner Sivanandan. Nesse processo, indicam que
Enquanto a imigração Sul-Sul foi insignificante - diante de um fluxo Norte-Sul de longa duração - o xeno foi marcado por uma filia motivada pela identificação com a Europa e desejo de embranquecimento das elites nacionais [...]. A fobia, propriamente dita, fora historicamente direcionada aos alienígenas de dentro. Foi apenas com as recentes alterações nas direções assumidas pelos fluxos migratórios mundiais - e ampliação maciça da imigração Sul-Sul - que os significados de “estrangeiros” passaram a ser deslocados, revelando antigas e não resolvidas cisões existentes no Brasil (FAUSTINO, OLIVEIRA, 2021, p. 202).
Apontando, por fim, uma baixa sensibilidade "à tematização da distribuição desigual e racializada da fobia e da filia entre diferentes grupos de estrangeiros xeno em países de via colonial" (FAUSTINO, OLIVEIRA, 2021, p. 203). Tal argumento, não obstante, se sustentaria no fato de que, por vezes, estrangeiros são privilegiados em políticas de Estado em detrimento dos alienígenas de dentro - algo largamente documentado no que se refere aos processos migratórios do século XIX, em especial com a ocupação das terras devolutas, vetadas aos ex-escravizados a partir da Lei de Terras, de 1850. Para os fins deste estudo, preocupamo-nos prioritariamente com reducionismos da ordem da estrutura de classes, que deixem de reconhecer as especificidades da experiência de sujeitos racializados - para nós, o principal problema de uma importação direta de Cortina (2020) -, dada a vinculação direta que costuma existir entre identidade nacional e raça2. Havendo, inclusive, a concessão de vantagens específicas para sujeitos brancos imigrantes em detrimento de sujeitos negros nacionais (os alienígenas de dentro).
Grada Kilomba (2019, p. 34), ao discutir as configurações do racismo cotidiano perpetuado sobre a subjetividade de mulheres negras alemãs, aponta como, através de um processo de negação, "o sujeito negro torna-se então aquilo a que o sujeito branco não quer ser relacionado". Isto é,
Dentro dessa infeliz dinâmica, o sujeito negro torna-se não apenas a/o "Outra/o" - o diferente, em relação ao qual o "eu" da pessoa branca é medido -, mas também "Outridade" - a personificação de aspectos repressores do "eu" do sujeito branco. Em outras palavras, nós [as/os negras/os] nos tornamos a representação mental daquilo com que o sujeito branco não quer se parecer (KILOMBA, 2019, p. 37-38).
Sujeitos brancos estabelecem a sua própria "branquitude" como uma identidade dependente daquilo que eles não são, a/o sua/eu "Outra/o". A noção base da negritude, portanto, não representa aos sujeitos negros, mas ao imaginário branco, criando estruturas hierárquicas entre as posições racialmente definidas (KILOMBA, 2019, p. 38, 75-77). O movimento aqui indicado por Kilomba está longamente descrito na revisão de Dante Moreira Leite sobre as interpretações do caráter nacional brasileiro3, na qual o autor busca evidenciar “se não o erro, ao menos a precariedade das teorias de caráter nacional”, passando a classificá-las “como ideologias, e não como teorias científicas” (LEITE, 2017, p. 173). É digno de nota, nesse sentido, que desde sua formulação europeia
As teorias racistas [...] tendem a dividir a nação, pois dentro desta indicam partes heterogêneas, quando não antagônicas. O exame das teorias de Lapouge e Gobineau, sobretudo do primeiro, indica o caráter de luta de classe das teorias racistas: na medida em que estas apresentam diferenças biológicas entre raças - que são também classes sociais -, justificam o domínio de um grupo sobre outro, mas, ao mesmo tempo, negam a unidade nacional. Num segundo momento, as teorias racistas são empregadas pelos ideólogos do imperialismo, e aí justificam o domínio do europeu branco sobre os povos coloniais (LEITE, 2017, p. 432).
Sua reedição brasileira, segundo Moreira Leite (2017, p 432), “servirá - como inicialmente na Europa - para justificar o domínio das classes mais ricas. Além disso, as teorias raciais permitem aos ideólogos explicar o atraso do Brasil pela existência de grupos de raças inferiores, e de mestiços”. Mesmo após o avanço das ciências do século XX, que passaram a refutar a relação entre raça e características psicológicas, abandonando as teses de Gobineau e Lapouge (LEITE, 2017, p. 129, 433), o racismo científico não deixou de existir. A inferioridade de raças foi remodelada na de estágios culturais, em um movimento que muito embora não tenha sido formulado em termos de critérios biológicos - como as teorias raciais - “desta[s] se aproxima porque o ideólogo considera o negro, o índio e o mestiço como objetos, isto é, não se identifica com eles, ou neles não percebe qualidades especificamente humanas” (LEITE, 2017, p. 433). “O racismo, portanto, mudou seu vocabulário. Nos movemos do conceito de ‘biologia’ para o conceito de ‘cultura’, e da ideia de ‘hierarquia’ para a ideia de ‘diferença”, sendo que “aqueles e aquelas que são ‘diferentes’ permanecem perpetuamente incompatíveis com a nação” (KILOMBA, 2019, p. 112-113).
É em oposição direta a isso que estudos como o de Neusa Santos Souza (2021) e Grada Kilomba (2019) se propõem, deslocando o negro do lugar de objeto para o de sujeito, permitindo-o falar. Para a primeira, faz-se pertinente dar contornos ao mito negro4, que é feito de “imagos fantasmáticas” mobilizadas para “dissolver, simbolicamente, as contradições que existem em seu redor” (SOUZA, 2021, p. 54-56). Criando, assim, uma diferença que “se define em relação a um outro, o branco, proprietário exclusivo do lugar de referência a partir do qual o negro será definido e se autodefinirá” (SOUZA, 2021, p. 56). As figuras representativas do mito negro, por sua vez, são “o irracional, o feio, o ruim, o sujo, o sensitivo, o superpotente e o exótico”, dado que mesmo seus “dons” são percebidos como legado uma certa “irracionalidade” e “primitivismo” negros, diametralmente opostos ao “refinamento” e à “racionalidade” do branco (SOUZA, 2021, p. 57, 61). Ao fim de seu movimento analítico, Neusa indica que “ser negro não é uma condição dada, a priori. É um vir a ser. Ser negro é tornar-se negro”, pois decorrente de uma conscientização do processo ideológico que aliena o sujeito negro em uma imagem decorrente do discurso mítico.
Apesar de cruzar um percurso distinto, Grada Kilomba (2019, p. 34) chega a pontos semelhantes, identificando o lugar privilegiado do sujeito negro como “aquilo a que o sujeito branco não quer ser relacionado”. A negritude, nesse sentido, não se refere às características próprias dos sujeitos negros, mas às “fantasias brancas sobre o que a negritude deveria ser” - fundando, com isso, um “estado de absoluta Outridade” no qual o sujeito negro passa a ser identificado com aquilo que, imaginariamente, o sujeito branco não quer ser identificado, sua parte “má” (KILOMBA, 2019, p. 36-40). Sendo, à sua própria maneira, uma ferramenta ideológica de dominação colonial em um movimento que cola o passado e o presente, reatualizando-os. Isso não é, porém, uma descoberta recente. Frantz Fanon (2020, p. 27-28) já indicava que “a civilização branca e a cultura europeia impuseram ao negro um desvio existencial, [...] com frequência, aquilo que é chamado de alma negra é uma construção do branco”.
Lélia Gonzalez (2020d), para além da constatação dessa identificação do “dominado com o dominador”, propõe-se a pensar o porquê de sua sustentação, refletindo sobre o que é evidenciado (e ocultado) pela subsunção de uma democracia racial no Brasil. No processo dialético de consciência e memória, nos desvela - através da figura da mulher negra brasileira, a mãe preta - como “a batalha discursiva, em termos de cultura brasileira, foi ganha pelo negro”, com o uso extensivo do pretuguês em nossas terras de Améfrica Ladina. Porque, porém, isso não seria a regra no ordenamento de nossa estrutura social? Afinal, cadê o sujeito negro na sociedade de classes brasileira? Em outros de seus trabalhos, Lélia investiga as implicações do racismo brasileiro sobre as relações de trabalho e constata que “o que existe no Brasil, efetivamente, é uma divisão racial do trabalho”, afinal, “o chamado ‘milagre brasileiro’ beneficiou apenas uma minoria da população interna e, sobretudo, as multinacionais” (GONZALEZ, 2020a, p. 46-47). Mantendo-se, assim, a força de trabalho negra alocada nas vagas de menor qualificação e pior remuneração - o que pode ser percebido no fato de que “um terço (33%) da PEA [População Economicamente Ativa] em 1980 recebia até um salário mínimo; [...] em termos de composição racial teremos 24% de brancos e 47% de negros” -, estando concentrados nos “setores agrícola, de construção civil e prestação de serviços” (GONZALEZ, 2020c, p. 96-97). Sobre a mulher negra, em específico, argumenta que “quando não trabalha como doméstica, vamos encontrá-la também atuando na prestação de serviços de baixa remuneração (“refúgios”) nos supermercados, nas escolas ou nos hospitais, sob a denominação genérica de “servente” (que se atente para as significações que tal significante nos remete)” (GONZALEZ, 2020b, p 59).
Reencenando, em certo sentido, o ditado racista “preta para cozinhar, mulata para fornicar e branca para casar”, dado que as mulheres negras que fogem ao lugar de servidão acima expresso são, tendencialmente, as que se enquadram na categoria de “mulata”. Sendo que, “a profissão de mulata é exercida por jovens negras que, num processo extremo de alienação imposto pelo sistema, submetem-se à exposição de seus corpos [...], para o deleite do voyeurismo dos turistas e dos representantes da burguesia nacional (GONZALEZ, 2020b, p 59). Fica evidente, desse modo, um processo distinto de inserção laboral de sujeitos a partir de sua raça, sua classe e seu gênero. Florestan Fernandes (1965), em certo sentido, já enuncia esse problema ao pensar sobre a integração do negro na sociedade de classes. Para ele, a integração do negro na sociedade de classes não é nula. O que não significa, por outro lado, que sua integração seja completa. É preciso, assim, antes de mais nada, historicizar o processo de inserção do negro nessa forma de organização social, de modo a indicar seu percurso ao longo do tempo.
Fernandes nos indica, com isso, que: a) os negros não iniciaram esse processo em pé de igualdade com os brancos (nacionais ou imigrantes); b) o Estado não teve nenhuma preocupação com a adaptação dos negros (ex-escravizados) ao novo regime de trabalho capitalista - já conhecido pelos imigrantes -, o que culminou na “transplantação do negro”; c) o contínuo processo de desmobilização de qualquer “florescimento da vida social organizada” dos escravizados - somado aos esforços para seu distanciamento no pós-abolição - os apartou da sociedade urbana em formação; d) mesmo dentro do grupo negro houve uma cisão de classe5, bem como, relevantes distinções de gênero; e) a inexistência de um conflito aberto entre raças viabiliza a formulação de ideologias míticas e homogeneizantes, como a da democracia racial; e f) a condição do negro na sociedade de classes tem, necessariamente, relação com a escravidão - nunca tendo sido efetuada uma libertação total do negro, tampouco, sua ascensão à categoria de igualdade com os brancos.
De modo com que: se, de um lado, os negros não estivessem juridicamente fora da sociedade; pelo outro, os contingenciamentos históricos que os atravessaram (e passam a constituir seu habitus) marcam os limites de sua integração. Sucintamente: é a impossibilidade de sustentar uma crença na democracia racial a partir da análise da experiência histórica no Brasil, o que Florestan nos indica. Algo que, para muitos sujeitos negros no pós-abolição, correspondeu à troca da liberdade por um nada. Uma troca de sua servidão pelo desamparo absoluto. Ou, como formula Gilcerlândia Nunes, “a mudança de ‘estado social’ não trouxera consigo a ‘redenção da raça negra’ e os negros e mulatos custaram a perceber isso. Eles haviam sido expropriados de sua condição de dependentes e, submissos, recebido o peso de seu destino, mas não os meios para lidar com essa realidade”. (NUNES, 2008, p. 250).
E, mesmo nos casos de estratos de classe negra mais elevados, tal processo de ascensão não se deu sem custos, como indica Neusa Santos Souza (2021). Tais ideias, contudo, não circula(ra)m com facilidade pela sociedade, se restringindo ao acesso de grupos intelectualizados. É interessante, nesse sentido, notar que, conforme o relato de Maria Lúcia da Silva,
Neusa [Souza Santos] e [Frantz] Fanon foram fundamentais na compreensão dos impactos do racismo na subjetividade, estiveram muito à frente de seu tempo. Contudo, nós que militávamos nos anos 1980 não tínhamos massa crítica suficientemente formada que pudesse colocar o conteúdo desses livros em movimento, numa atuação ativista que nos fizesse avançar no cuidado dos efeitos psíquicos do racismo na subjetividade do povo negro. Na ocasião, amparados principalmente em escritos sociológicos e históricos, estávamos ainda numa força-tarefa para fazer com que reconhecessem que há racismo no Brasil. E, diante das urgências da vivência e da militância, o livro de Neusa quase não foi lido por nós (SILVA, 2021, p. 13-14, grifo nosso).
Evidenciando como, apesar dos avanços intelectuais, tais autores - que sustentam grande parcela de nossos argumentos neste estudo - ainda são recentes e demoraram a ter uma maior permeabilidade, mesmo dentro dos movimentos negros, algo que só foi acontecer após os anos 1990 (SILVA, 2021, p. 14) - dada a necessidade pungente de fazer-se reconhecer, ainda naquela altura, a existência do racismo no país. Ao passo em que, por outro lado, autores como Oliveira Vianna e Artur Hehl Neiva - defensores de uma “arianização” do Brasil - já desde os primeiros anos do século XX
Eram indivíduos com grande influência na formulação das políticas imigratórias e de nacionalização de imigrantes e descendentes, num período histórico de maiores restrições à entrada de imigrantes baseadas em pressupostos da eugenia negativa (ou racial). Assim, grupos que não se coadunavam com a formação nacional desejada - ou processo de assimilação e caldeamento visando o “branqueamento - não deviam ser admitidos (Seyferth 2007: 120)
Sabendo disso, e após traçar alguns contornos parciais desse impossível (o brasileiro) - bem como as dinâmicas raciais que o perpassam -, faz-se necessário compreender quais articulações históricas do seu entendimento passaram ao largo do poder. Cabe-nos, nesse sentido, uma análise do processo de constituição da política de Estado brasileira para migrações, com vistas a perceber que os predicados eminentemente racistas dos ideólogos do caráter nacional brasileiro não se restringiram ao campo científico passando a engendrar, também, a feitura de políticas públicas. Argumentamos, nesse sentido, a existência de um racismo inerente à política de Estado não como uma “falta de informação sobre a/o ‘Outra/o’ - como acredita o senso comum -, mas sim [como] a projeção branca de informações indesejável na/o ‘Outra/o” (KILOMBA, 2019, p. 117). O que observamos, a seguir, é que as leis que constituem (e selecionam) os sujeitos que podem (ou não) ingressar no Brasil não só se constituem historicamente como um mecanismo securitário, como também, (re)produzem dinâmicas de estrangeiridade - profundamente marcadas pela raça, no caso brasileiro.
As teorias eugenistas de branqueamento da população brasileira - associadas à brasilidade e latinidade - são historicamente referenciadas e colocadas em prática em todo o desenvolvimento das políticas migratórias de Estado e de governo brasileiras do século XIX e XX. Como expressão da elite dominante da sociedade brasileira escravocrata, mas também de forma disseminada na sociedade de classes, a política imigratória desse período levava em consideração perfis racialistas como orientação para escolhas políticas ligadas à imigração laboral, de povoamento e acesso à terra. Ou seja, institui-se uma divisão racial do trabalho decorrente da construção de uma “consciência coletiva” determinada pelas elites dominantes, nas palavras de Florestan Fernandes, que associavam a força produtiva/laboral à assimilação de padrões raciais e hábitos definidos no campo ideológico como preferenciais, mais eficientes, pela classificação de raças superiores, intermediárias e inferiores.
No estudo Colonização, Imigração e a Questão Racial no Brasil, Giralda Seyferth (2002), pesquisadora do Museu Nacional, traz a análise da documentação histórica, leis, decretos, doutrinas e discursos, que associam a imigração no Brasil à questão racial e à formação da identidade nacional. Tal estudo traduz a política imigratória do século XIX inteiramente dirigida pela orientação de discursos e doutrinas baseadas em um construído “tipo racial ideal”, em que o imigrante europeu, mas não genérico, o branco6, estava no topo da preferência nacional. Era essa a imigração desejada para o povoamento de áreas do Brasil e acesso à posse e propriedade de áreas devolutas7, não concorrentes com a grande propriedade escravocrata. Imigração essa que também seria útil na primeira fase que vai até 1830, inclusive, à colaboração com regimentos portugueses para segurança do território nacional. Depois da proibição do tráfico de escravos - consubstanciada na Lei Euzébio de Queirós, de 1850 -, também foi essa a mão de obra chamada livre, aquela desejada e considerada apta para o desenvolvimento produtivo do Brasil, pois civilizada8, constituída por pessoas de “perfil industrioso, constante e voltadas ao trabalho eficiente”. Apesar do “celeiro de imigrantes” europeus nas políticas imigratórias do Império e na primeira República, a legislação - a exemplo do Decreto 9.081/1911, que regulamentou o Serviço de Povoamento - apontava os brancos indesejáveis e vedava a imigração de “desordeiros, criminosos, mendigos, vagabundos, portadores de doenças contagiosas, profissionais ilícitos, dementes, inválidos, velhos, etc.”. Também aparecem, segundo Seyferth (2002, p. 126) restrições expressas a “Ciganos, ativistas políticos, apátridas, refugiados (especialmente depois da Primeira Guerra Mundial)”. Seyferth (2002, p. 126) destaca, ainda, o Decreto 528/1890 como outro exemplo de restrição expressa à entrada do que nominou de “indígenas da Ásia ou da África”, restrição que desapareceu no Decreto que criou a Diretoria Geral de Povoamento em 1907, antes do início da imigração japonesa.
Nesta classificação racial, no topo estavam os alemães e os italianos do norte da Europa, cujas agências imigratórias eram fomentadas por subsídios de recursos pelo Brasil imperial. Asiáticos, a exemplo dos chineses, eram associados nesta tipologia aos indígenas, classificados na hierarquia como inferiores, apenas acima dos africanos, excluídos da política imigratória e, sobretudo, da política de colonização de terras devolutas voltadas ao povoamento no Brasil.9 As discussões para a imigração asiática no Brasil iniciaram em 1879, como uma alternativa para suprir a mão de obra escrava, que vinha se tornando escassa diante da proibição do tráfico negreiro (1850) e da Lei do Ventre Livre de 1871, que assegurava a liberdade aos nascidos de escravas. Contudo, tal agência imigratória, que via nos chineses uma potencial mão de obra semiescrava10, não progrediu diante da “maledicência contra os orientais”11 por parte dos fazendeiros, afirma Westin (2019), que logo encontraram na imigração italiana a mão de obra necessária.
O estudo de Seyferth (2002) também aprofunda a associação da imigração na formação da identidade nacional e os temas de assimilação, brasilidade e latinidade. A concepção de imigrante ideal perpassava a assimilação, o que significava que o estrangeiro deveria se adequar à formação latina e católica - preferência apontada nos documentos oficiais dos anos 1850 a 1860. Na perspectiva da assimilação, os alemães eram vistos com muita desconfiança, tanto pelo idioma, quanto pela religião. A organização das comunidades alemãs reivindicava construir aqui uma extensão da terra natal, com a constituição de uma identidade atrelada a “dois pertencimentos ‘pátrios’”, com destaque para a “índole” e o “espírito” germânico, constitutivos da percepção jus sanguini. Assim, eram estranhos face a um nacionalismo assimilacionista, atrelado à latinidade e ao catolicismo. A política imigratória da primeira fase, constituída pela vinda de alemães, precisa assegurar grandes contingentes como forma de “desviar” o interesse para os Estados Unidos. Entendia-se que a presença da força de trabalho alemã, pelo seu sistema produtivo, poderia desenvolver o país pela ocupação de terras devolutas. Para isso, era fundamental a igualdade de direitos civis e religião. Esta força de trabalho não era uma mera substituição do trabalho escravo nas grandes propriedades, mas sim trabalho livre, o que justificava a incompatibilidade social entre brancos e negros, por uma alegada distância intelectual (SEYFERTH, 2002, p. 126-129).
É possível encontrar, ainda no estudo de Seyferth (2002, p. 130), registros de um conjunto de vozes pseudocientíficas que, nas vésperas da Abolição, associavam o problema da mestiçagem no Brasil às três raças de sua formação. Sendo duas inferiores - os negros e indígenas -, com a contribuição da imigração européia branca para o caldeamento da população. Apesar da dificuldade de assimilação, reputava-se a imigração alemã positiva para tal propósito. Nestas construções, a assimilação estava associada à mestiçagem, na perspectiva da contribuição para o caldeamento da população.
O peso atribuído à imigração branca na construção da nação tem sua contrapartida na legislação e na estatística: a promulgação da lei que impôs restrições à imigração asiática e africana em 1890 (atenuadas em 1907), e os altos índices de europeus (principalmente italianos) admitidos no primeiro decênio após a abolição, em grande parte direcionados para São Paulo (Seyferth 2002, p. 132).
A Primeira República funda sua política imigrantista na ideia de fortalecimento da identidade nacional, baseada na latinidade. Assim,
A elite imigrantista comprometida com o modelo de colonização baseado na pequena propriedade, e os próprios legisladores, ao articular assimilação/miscigenação com imigração européia, estavam sinalizando a nação pretendida - mestiça, porém com um povo branco na aparência, mantidas as características socioculturais da civilização latina de língua portuguesa. Nessa configuração, os grupos mais apegados à sua identidade nacional e considerados, portanto, avessos à mistura e distantes da latinidade, eram inaceitáveis (Seyferth 2002: 134, grifo nosso).
Trata-se do “branco adjetivado”, nos termos de Seyferth (2002, p 143), como “o imigrante ideal [...], cabendo ao Estado o fomento da imigração europeia dentro dos parâmetros da eugenia, da conveniência política e das tendências à assimilação”. O que se delineia, aqui, é o brasileiro que se quer ter no país e, por conseguinte, o que se quer que o brasileiro seja. A “nação pretendida”, portanto, é mestiça de aparência branca. O que se quer, enquanto devir do brasileiro, é uma sociedade de brancos adjetivados.
No século XX, tal ideal é reafirmado, em especial no escopo do que ficou conhecido como a Lei de Cotas de 1934, pela introdução do parágrafo 6º ao art. 121, que estabelecia restrições à entrada de imigrantes no território nacional, como forma de garantia da “integração étnica e capacidade física e civil do imigrante”. A proposta definia que a corrente imigratória de cada país não poderia exceder anualmente o “limite de dois por cento sobre o número total dos respectivos nacionais fixados no Brasil durante os últimos cinqüenta anos”. Tal dispositivo legal foi acrescido pelo parágrafo 7º, o qual dispunha: “É vedada a concentração de imigrantes em qualquer ponto do território da União, devendo a lei regular a seleção, localização e assimilação do alienígena”. Esta política de Estado instituída no bojo constitucional foi pautada pelos debates da época, marcados, segundo o estudo de Endrica Geraldo (2009, p. 189), pela presença de “concepções eugenistas e a influência do projeto de branqueamento até então defendidos principalmente entre profissionais médicos”. Este debate foi aliado, conforme Geraldo (2009, p. 189), “à então crescente discussão sobre a competição entre trabalhadores nacionais e estrangeiros”, a partir das consideradas “correntes imigratórias até então acusadas por não favorecerem o processo de branqueamento da população, agora também apareciam como uma ameaça ao mercado de trabalho”.
Geraldo (2009) observa ainda que essa restrição de cotas, apesar de não identificar as nacionalidades, atingia especialmente a nacionalidade japonesa, pois imigrantes europeus na prática não seriam atingidos pela cota. Os debates na época giravam em torno da tentativa de proibir ou restringir a entrada de negros e amarelos, sendo que “desses grupos, no entanto, apenas o de japoneses constituía realmente uma corrente imigratória considerável para o Brasil. A entrada de imigrantes nipônicos, iniciada em 1908, vinha crescendo anualmente nesse período” (GERALDO, 2009, p. 181). Esse debate se baseava nos temas da assimilação, segurança nacional (como, por exemplo, argumentos que invocavam o risco do avanço imperialista japonês em regiões da Amazônia, a exemplo da invasão da Manchúria), reserva de mercado de trabalho aos nacionais e branqueamento da população brasileira.
O Estatuto do Estrangeiro de 1980 - Lei 6.815/1980 - foi constituído nessas bases, ao invocar que a Política Imigratória deveria resguardar os interesses nacionais, atender “à segurança nacional, à organização institucional, aos interesses políticos, sócio-econômicos e culturais do Brasil, bem assim à defesa do trabalhador nacional” (art. 2º). Portanto, um instrumento que situava as imigrações no Brasil como pauta exclusiva da agenda de segurança nacional. Este arcabouço jurídico-político histórico brasileiro das imigrações internacionais é estruturado pelo racismo como pressuposto - mesmo que, por vezes, de forma implícita -, passando a orientar a perspectiva de classe e a traduzir um significante coletivo, determinante da identidade nacional brasileira. Esse pressuposto ingressou no conteúdo jurídico histórico para justificar, legitimar e institucionalizar a xenofobia, definidora da estrangeiridade. É esta estrangeiridade que “guarda a relação de identificação com o que se quer ser e o que se quer ter12 [...] Essa estrangeiridade é o que define a exclusão do migrante! Essa estrangeiridade implica a ‘permanente provisoriedade’ do migrante” (REDIN, 2022, p. 28)
Segundo Redin (2022, p. 27), “a constituição e desenvolvimento dessa identidade nacional, impulsionada por políticas de Estado, rechaça o estrangeiro não pelo simples fato de ser um não nacional, mas pela relação de identificação, socialmente construída, com o que se quer ser e, por oposição, ao que não se quer ser”. Tal elemento de identificação é historicamente marcado pelo racismo, demarcando uma linha de exclusão - que, em um certo sentido, inclusive precede o elemento de classe, pois este é associado à raça - da qual advém um status, uma estética, um padrão ou comportamento determinado por uma elite dominante da sociedade brasileira. Na clássica obra de Florestan Fernandes, A Integração do Negro na Sociedade de Classes, de 1964, essa relação da conversão do negro após a Abolição é definida como um “elemento residual do sistema social”, afinal
o regime escravista não preparou o escravo (e, portanto, também não preparou o liberto) para agir como ‘trabalhador livre’ ou como ‘empresário’. Ele preparou, quando o desenvolvimento econômico não deixou outra alternativa, para toda uma rede de ocupações e de serviços que eram essenciais, mas não encontravam agentes brancos. Assim mesmo estes agentes apareceram (como aconteceu em São Paulo e no extremo sul), em plena escravidão os libertos foram gradualmente substituídos e eliminados pelo concorrente branco (FERNANDES, 1964, p. 67).
A questão que se coloca é que em sendo a identidade nacional forjada estruturalmente no racismo, a xenofobia no Brasil ou a estrangeiridade do não nacional também é revestida desta natureza. Essa é uma dinâmica securitária que incide sobre as migrações no âmbito brasileiro. Em 2017, foi sancionada no Brasil a Lei de Migração - nº 13.445/2017 - reconhecida como um avanço paradigmático em termos de política de Estado para imigrações: a) revogou o Estatuto do Estrangeiro baseado na segurança nacional; b) estabeleceu um rol de direitos e garantias fundamentais ao imigrante, considerando-o sujeito de direitos; e c) afirmou a agenda de direitos humanos como orientadora da imigração no Brasil, reconhecendo como princípio, dentre outros, a “não criminalização das migrações”, a “igualdade de tratamento e de oportunidade ao migrante e a seus familiares”, a “inclusão social, laboral e produtiva do migrante por meio de políticas públicas” e a “promoção de entrada regular e de regularização documental”.
Apesar disso, é digno de nota que, a partir da pandemia de COVID-19 de 2020, de crise sanitária e econômica, onde foi potencializado o sentimento de desamparo e insegurança, a política de governo brasileira passou a violar diretamente a política de Estado para migrações sem consequências político-jurídicas. Nos primeiros dias do decreto da emergência sanitária, as fronteiras de acesso de imigração por acolhida humanitária no Brasil foram fechadas. Isso ocorreu a despeito de uma expressa orientação sanitária da ANVISA e das garantias asseguradas na Lei de Migração. Este fechamento, que perdurou por mais de um ano, atentou diretamente a política de Estado e expôs imigrantes do corredor humanitário a várias situações de violência pela obstrução de uma via regular e segura de ingresso no país. Foram reintroduzidos mecanismos de exceção, como deportação imediata (sumária), inabilitação de pedido de refúgio e impossibilidade de regularização documental, proibidos pela Lei de Migração, como resposta para o estado de calamidade decretado no país. Essa imigração, caracterizada pela raça e classe, representou o bode expiatório do momento de crise. Faz-se pertinente destacar, ainda, que apesar da flagrante suspensão de direitos fundamentais a um grupo social vulnerabilizado, ao arrepio da política de Estado, tribunais superiores no Brasil passaram a acolher teses “justificadoras” das restrições pelo simples fato de uma emergência sanitária.13
Como é possível, afinal, a estrangeiridade operar de forma tão distinta através dos sujeitos migrantes que chegam ao Brasil? Não seriam todos eles igualmente de fora? Os argumentos que sustentamos neste estudo, em síntese, são: a) o processo estrutural de formação de uma identidade nacional não existe como um elemento fechado, sendo constituído (e determinado por) dinâmicas sociais ao longo do tempo; b) a ficção da identidade nacional costuma estar atrelada a suposições sobre o que se quer ser ou ter e, não obstante, também perpassa dinâmicas de raça, classe e gênero; c) os processos históricos de constituições subjetivas conduziram a negritude ao lugar de “Outra/o” do sujeito branco, correspondendo a uma ideia pouco coesa e abstrata d’o mal; d) tais ideias racistas, apesar de equivocadas (e/ou falsas), foram significativas em termos históricos e condicionam diversos outros processos; e) a política de Estado brasileira para migrações, em virtude de sua constituição histórica, se configurou como um dispositivo político-jurídico embrenhado de pressupostos racistas; e, por fim, f) mesmo com o avanço normativo da Lei de Migração (2017), uma política de Estado fundada nos direitos humanos e fundamentais, sua aplicação é tensionada pelo racismo estruturado na sociedade brasileira decorrente da formação da identidade nacional e, portanto, da subjetividade humana, ou seja, “não está apenas no plano da consciência - a estrutura é intrínseca ao insconsiente”, e, por isso, “transcende o âmbito institucional, pois está na essência da sociedade e, assim, é apropriado para manter, reproduzir e recriar desigualdades e privilégios, revelando‑se como mecanismo colocado para perpetuar o atual estado das coisas” (BERSANI, 2018).
Não nos parece plausível, assim, uma importação direta da aporofobia de Cortina (2020, p. 28) - para quem “O problema não é, então, a raça, a etnia e nem mesmo o estrangeiro. O problema é a pobreza. O mais impressionante nesse caso é que há muitos racistas e xenófobos, mas quase todos são aporófobos” - para discutir o processo de “integração” do imigrante na sociedade de classes porque o imigrante pobre, no caso brasileiro, já foi preterido ao alienígena de dentro (o negro, notadamente o ex-escravizado). Porque, além disso, em um certo sentido, o Brasil também já esclareceu - literalmente - a sua escolha por brancos (mesmo que adjetivados) como os cidadãos que gostaria de ter, através de seus dispositivos legislativos. Ou, ainda, pelo tratamento (não) prestado pelo Estado às populações negras desde a Abolição. O que não significa, por óbvio, que as dinâmicas de classe não estejam implicadas nesse processo. Argumentamos, em suma, a centralidade das discussões que perpassam o processo de constituição social da raça - bem como seus desdobramentos - para pensar o processo de constituição das políticas migratórias no Brasil. Em nosso caso, nossa maior aversão não é ao pobre, mas ao negro, quando não ao negro pobre. A combinação desses determinantes, assim, constituiria o mais estrangeiro dentre os estrangeiros. O estrangeiro negro e pobre. O oposto perfeito do nacional branco e rico. O oposto perfeito do “cidadão de bem”. O estrangeiro negro e pobre é, assim, o de fora por excelência. No caso de nosso racismo, porém, isso não precisa estar explicitamente dito, pois opera por denegação - conforme já expresso por Lélia Gonzalez (2020) -, o que continua a garantir a ilusão de uma democracia racial, da qual todos participam com igualdade de acesso e condições de participação.
Esse estudo não almeja, de forma alguma, esgotar as discussões que permeiam todos os processos sociais até aqui discutidos. Parece-nos pertinente, contudo, apontar qual a variável comum que define quem é o mais fora dentre os de fora e, igualmente, o menos dentro dentre os de dentro. O ponto de convergência central, ao nosso ver, entre aqueles excluídos historicamente da política imigratória no Brasil e aqueles que, mesmo dentro, são considerados como quase de fora é o racismo, que permeia todo o processo de constituição da identidade nacional. Os alienígenas de dentro, assim, se aproximam dos mais estrangeiros dentre os estrangeiros. Ambos são, para todos os fins, constituídos como Outridade. Afinal, como já expresso por Kilomba (2019, p. 113), “aqueles e aquelas que são ‘diferentes’ permanecem perpetuamente incompatíveis com a nação”. Os “mensageiros do Diabo” a que se refere Galeano, portanto, apenas o são por terem sido constituídos como inversamente proporcionais àqueles que, do topo de suas aventuras coloniais, passaram a representar-se como “mensageiros de Deus”.
A suposição de um hiato metafísico - como uma valoração hierarquicamente definida - entre essas duas posições, assim, sintetiza: a) a relação desigual estabelecida entre as raças (ou culturas) superiores e inferiores (KILOMBA, 2019, p. 112-113; LEITE, 2017, p. 433); b) a distância relativa estabelecida entre um sujeito nacional (de dentro) e um objeto estrangeiro (de fora) (SIMI, 2020); e, especialmente, c) o poder estabelecido pela capacidade discursiva de representar a si mesmo e ao/s seu/s Outro/s (KILOMBA, 2019; SOUZA, 2021; FANON, 2020). Os “mensageiros de Deus”, não obstante, correspondem - em termos de criação - ao próprio Deus pois, através de um ato discursivo, criam-se em uma posição de superioridade absoluta e estabelecem-na como parâmetro performativo para todas as demais que, invariavelmente, são alçadas à inferioridade. Tais mensageiros, por fazerem o discurso circular, acabam por condicionar toda a realidade (limitando-a a certos modos de cognoscibilidade) nos moldes ontologicamente constitutivos de sua visão de mundo. O que tentamos fazer aqui, em síntese, foi demonstrar o seu sucesso, em termos históricos, no caso da política imigratória brasileira.