Artigos inéditos

A lei da propriedade privada sob o capital: dialética da apropriação pelo trabalho próprio e da expropriação

The law of private property under the rule of capital: dialectic of appropriation by one's own labor and expropriation

Vinícius Gomes Casalino
Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Brasil

A lei da propriedade privada sob o capital: dialética da apropriação pelo trabalho próprio e da expropriação

Revista Direito e Práxis, vol. 15, no. 4, e78128, 2024

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Received: 28 July 2023

Accepted: 08 October 2023

Resumo: O artigo procura compreender o funcionamento da lei de propriedade privada sob a lógica do capital. Sustenta a hipótese de que, embora apareça como norma de apropriação fundada no trabalho próprio e na troca de equivalentes, a produção do mais-valor inverte o sentido da lei, estabelecendo formas de apropriação de trabalho excedente fundadas na exploração. Ao revelar apenas o momento da igualdade, a norma aparece de modo invertido, dando ensejo à falsa percepção de sua realidade, o que resulta em modos ideológicos de compreensão. A conclusão sugere que a lei de propriedade capitalista é, na realidade, uma lei de expropriação. O método utilizado é o dialético-marxiano.

Palavras-chave: Crítica marxista do direito, Propriedade privada e equivalência, Produção de mais-valor e interversão das leis de apropriação, Direito e exploração econômica, Karl Marx e Evgeny Pachukanis.

Abstract: This article aims to investigate how private property law operates under the logic of capital. It supports the hypothesis that, although such law may appear as a norm of appropriation based on one's own labor and the exchange of equivalents, the production of surplus-value reverses its meaning, establishing forms of appropriation of surplus-labor based on exploitation. By revealing only the moment of equality, the norm appears inverted, giving rise to a false perception of its reality, which results in ideological modes of understanding. The conclusion suggests that the capitalist property law is, in reality, a law of expropriation. The method used in this article is the dialectical-Marxian one.

Keywords: Marxist critique of law, Private property and equivalence, Production of surplus-value and interversion of the laws of appropriation, Law and economic exploitation, Karl Marx and Evgeny Pashukanis.

Introdução

A filosofia política tradicional tem justificado os vínculos de propriedade privada de diversas maneiras. O que há de comum, em geral, é a identificação do fundamento de tal vínculo no trabalho próprio, desenvolvido pelo proprietário do bem, na apropriação e posse legítima de objetos naturais ou na transferência de bens com base numa relação equitativa e contratual.

Nesse sentido, John Locke, em sua obra Dois tratados do governo civil, observa: “Assim, no princípio, o trabalho conferiu o direito de propriedade sempre que alguém se dispôs a empregá-lo em bens que eram comuns” (LOCKE, 2015, p. 264). Kant, por sua vez, em sua Metafísica dos costumes, explica: “É possível ter como meu qualquer objeto exterior de meu arbítrio. Ou seja: é contrária ao direito uma máxima tal que, se ela se tornasse lei, um objeto do arbítrio teria de ser, em si (objetivamente), sem dono” (KANT, 2019a, p. 51). Hegel, por fim, em seu Linhas fundamentais da filosofia do direito, afirma: “No contrato eu tenho propriedade por vontade comum: pois é do interesse da razão que a vontade subjetiva se torne universal e se eleve a essa efetivação” (HEGEL, 2022, p. 285).

Essa perspectiva teórica de justificação da propriedade privada cumpriu papel importante na transição da feudalidade para a modernidade. Sem dúvida, era preciso colocar em questão os tradicionais vínculos fundados na vassalagem, que viam legitimidade apenas na apropriação pela guerra (santa, de preferência), na autossuficiência produtiva e na transmissão por hereditariedade. Afinal de contas, somente aqueles escolhidos por Deus poderiam ser proprietários (ANDERSON, 2007, pp.143-149).

Nada obstante, a retomada e consolidação da economia de mercado, primeiramente no âmbito do comércio e depois no campo da indústria, demandaram a reformulação teórica da noção de propriedade para que correspondesse às novas relações econômicas, pautadas na troca de mercadorias. O reavivamento do direito romano na transição da alta para a baixa Idade Média reflete bem essa situação (MARX; ENGELS, 2007, p. 76). Os paradigmas de autonomia da vontade, liberdade contratual e igualdade formal, que caracterizam o intercâmbio mercantil moderno, foram transpostos à órbita da justificação teórico-jurídica, de modo que a aquisição e a transferência de quaisquer bens pudessem se adequar a esta lógica, inclusive, e principalmente, a propriedade da terra.

Assim, as revoluções burguesas que consolidaram politicamente o domínio da nova classe social puseram-se a proclamar juridicamente a propriedade privada como direito natural, fundamental e inalienável. O famoso art. 17 da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, por exemplo, dispõe: “Sendo a propriedade um direito inviolável e sagrado, ninguém pode ser dele privado senão quando a necessidade pública, legalmente constatada, assim o exija evidentemente, e sob a condição de uma justa e prévia indenização” (FRANÇA, 1789). O art. 544 do Código Civil francês, em vigor até os dias de hoje, determina: “Propriedade é o direito de gozar e dispor das coisas da maneira mais absoluta, desde que não se faça uso delas de modo proibido por lei ou regulamento” (FRANÇA, 1804).

A positivação legal da propriedade privada e sua justificação teórica têm como parte de seus objetivos assegurar a relação íntima do bem com a pessoa, isto é, garantir que as coisas não sejam retiradas de seus proprietários, a não ser em circunstâncias muito excepcionais e em razão do chamado “bem comum”. Isso significa a consolidação de um sentido de propriedade em que o bem não passa da extensão da pessoa que o detém, algo como um prolongamento seu. Retirar a propriedade de alguém sem o seu consentimento significa quase uma mutilação. Nesse sentido, Hegel observa: “O racional da propriedade não reside na satisfação das carências, porém em que a mera subjetividade da personalidade se suspende. Só, e primeiro na propriedade, a pessoa é enquanto razão” (HEGEL, 2022, p. 237).

Este paradigma, no entanto, envolve algumas contradições. Os revolucionários franceses não destruíram a sacralidade da propriedade feudal em nome da sacralidade da propriedade burguesa? Não substituíram um sagrado por outro? Por que razão a propriedade hereditária e imobilizada precisa ser eliminada, enquanto a propriedade por apropriação e livre intercâmbio deve ser estimulada?

Além do mais, como se sustenta uma concepção de propriedade fundada no trabalho próprio, se aqueles que nada têm devem obrigatoriamente alienar suas forças de trabalho para que possam sobreviver? É fato que a teoria tradicional forjou a noção de contrato salarial, isto é, “a concessão do uso de minhas forças a um outro por um preço determinado” (KANT, 2019a, p. 91). Esta noção, contudo, equipara a força de trabalho humana a uma coisa móvel ou imóvel, com a diferença de que a primeira somente pode ser alienada por tempo determinado. Pessoas e coisas, no entanto, são juridicamente distintas, como enfatiza a própria teoria tradicional (KANT, 2019b, p. 72).

A contradição mais evidente, no entanto, parece residir no esforço teórico de se conciliar uma noção de propriedade fundada em relações equitativas, com um modo de organização econômica que se desenvolve pela lógica da acumulação.

De fato, se a relação contratual é a maneira par excellence de operar a transferência da propriedade privada de modo justo e legítimo, e se tal relação pressupõe a equidade de posições dos contratantes, isto é, pessoas livres, iguais e autônomas, como é possível justificar, do ponto de vista do direito, o surgimento do excedente econômico? Se o contrato expressa um sinalagma, quer dizer, uma igualdade de origem, como apresentar o lucro, a renda da terra ou o juro, figuras que trazem implícita a noção de mais-valor, como frutos legítimos de uma relação jurídica equânime? Se os mundos moderno e pós-moderno são mundos da economia de mercado, do liberalismo e do neoliberalismo, da autonomia quase absoluta da vontade individual, da fragmentariedade e das relações líquidas (LYOTARD, 2009; BAUMAN, 2000), como se legitima uma época que concentra nas mãos de um reduzido número de pessoas, uma porção cada vez maior de riqueza? (PIKETTY, 2013).

O problema é mais complexo do que se imagina. Se esses modos de apropriação e transferência da propriedade fundados na equivalência de posições são explicáveis e justificáveis, isso ocorre apenas porque existem na realidade, isto é, porque a sociedade capitalista organiza-se de tal maneira que os vínculos econômicos expressam, de fato, aqueles sentidos jurídicos paritários. Por outro lado, se o excedente econômico na forma do lucro, renda da terra e juros também existem, ou seja, se a propriedade privada canaliza trabalho excedente e o deposita nas mãos de certas pessoas, isso somente ocorre porque a economia capitalista viabiliza a captura do trabalho alheio. Em outros termos, a contradição não é teórica: ela caracteriza a realidade que conforma o modo de produção dominado pelo capital (ADORNO, 2009, p. 132-133). Do que se trata não é de negar um dos polos, como se não existissem. Trata-se de explicá-los, isto é, de esclarecer de que maneira a contradição opera.

Para tanto, parece que a análise mais sofisticada é a desenvolvida pelo marxismo (GONÇALVES, 2014). Primeiro, porque não produz simplificações teóricas como aquelas que sustentam que a propriedade não passa de uma espécie de roubo. “Eu pretendo que nem o trabalho, nem a ocupação, nem a lei podem criar a propriedade; que ela é um efeito sem causa; é repreensível pensar assim?” (PROUDHON, 1975, p.11). Ora, o roubo pressupõe a propriedade; sem esta, aquele não pode ser pensado. Se a propriedade é um roubo, isso significa que ela viola outro tipo de propriedade que, por sua vez, constitui-se como roubo, que desrespeita outra forma de propriedade etc. Cai-se numa regressão ao infinito.

Em segundo lugar, porque o marxismo recusa algumas ingenuidades, como aquelas que afirmam a possibilidade de uma certa função social inerente à propriedade (RENNER, 1949). Ora, a função da propriedade, no capitalismo, é viabilizar a produção e extração privadas do excedente econômico socialmente criado. Que a luta de classes, em cada momento histórico, interfira em sua fisionomia normativa desta ou daquela maneira, minimizando ou atenuando seus efeitos espoliativos perversos, isso não altera em absolutamente nada a sua natureza essencialmente capitalista (BERCOVICI, 2005, p. 147).

Assim, este artigo pretende compreender de que modo se desenvolve a lei de propriedade privada sob o modo de produção capitalista. Em outras palavras, busca desvendar como as relações de propriedade transitam entre formas de apropriação e transferência fundadas no trabalho próprio e em padrões de equivalência, para meios de aquisição de valores e captura de trabalho alheio através da exploração da força de trabalho. Esse trânsito contínuo é mediado pelo direito e assegurado pelas instituições políticas por ele moldadas. A circulação de valores idênticos enseja uma face externa, superficial, viabilizadora de relações contratuais equitativas que, no entanto, são negadas no momento produtivo subsequente, imperceptível a olho nu, mas que viabiliza a produção e extração do mais-valor. A exteriorização do primeiro momento cria a aparência de que normas jurídicas fundadas na isonomia de posições são o próprio fundamento das relações econômicas.

A análise crítica do modo de produção capitalista revela, no entanto, uma essência econômica que é oposta à aparência jurídica. Isso significa que as relações de produção, organizadas como sistema de dominação de classe, dão ensejo ao prolongamento da jornada de trabalho, de modo que o tempo de trabalho excedente se transforma em valor excedente. A captura deste mais-valor, viabilizado pela propriedade privada dos meios de produção, não elimina as relações de equivalência que têm lugar no momento da circulação. Antes, fixa-as como momento aparentemente fundador da ordem social. A questão reside justamente na maneira como isto ocorre, ou seja, a chamada interversão das leis de propriedade. Esta é responsável pela projeção superficial das relações de equivalência de valores, fundadoras de relações jurídica equitativas, ao mesmo tempo em que preserva uma produção fundada em pressupostos opostos, isto é, a extração e captura de trabalho excedente não pago.

A lei da propriedade privada sob o capital é justamente a norma social resultante da interversão das relações de propriedade, isto é, a projeção, na superfície, de relações de equivalência de valores que mantém imperceptível a relação exploratória de fundo, ou seja, a produção e captura do valor excedente, fundadora e conformadora de todo o edifício social.

Para tanto, este artigo analisa, na seção 01, o ponto de vista de E. B. Pachukanis sobre a propriedade privada, exposto em Teoria geral do direito e marxismo. Sua crítica avassaladora à chamada função social da propriedade o coloca certamente entre os mais radicais e destacados opositores ao movimento reformista no campo da política e do direito. Na seção 02, procura-se integrar o ponto de vista de Pachukanis à obra-prima de Karl Marx, O capital, para compreender as consequências da produção do mais-valor no que concerne à forma jurídica da propriedade privada. Na seção 03, considera-se a importância da forma-salário no que toca ao apagamento das diferenças entre trabalho necessário e mais-trabalho, e a função que cumpre como gênese das ilusões jurídicas de toda a sociedade. Na seção 04, analisa-se a chamada conversão das leis que regem a produção de mercadorias em leis de apropriação capitalista, exposta nos capítulos 21 e 22 do Livro I, de O capital, para entender como o vínculo de propriedade privada sob o capital se constitui simultaneamente como relação de equivalência e exploração. Por fim, a seção 05 visa à compreensão da natureza da norma posta pelo Estado e seu papel na consolidação da lei de propriedade privada capitalista, lei que se inverte de tal maneira no fluxo contínuo da produção e reprodução do capital que, no final das contas, passa em seu oposto, funcionando como lei de expropriação, isto é, norma social que afirma a propriedade privada apenas na medida que a nega.

Finalmente, o método utilizado é o dialético-marxiano. Trata-se do método desenvolvido por Karl Marx e apresentado, sobretudo, em O capital. Em suas próprias palavras (MARX, 2013, pp. 90-91; 1962, p. 27), trata-se de aproveitar a descrição fundamental das formas gerais de movimento da dialética, tal como elaborada por Hegel, desvirando-a, no entanto, para alcançar o seu cerne racional (GRESPAN, 2002, pp. 26-47). Percebe-se, assim, que as relações econômicas, essenciais, projetam formas jurídicas e políticas que muitas vezes são não apenas diferentes de seus conteúdos, mas se opõem decididamente a eles. Este é um dos principais cânones metodológicos dos quais se vale este trabalho.

I. A crítica da propriedade privada em Pachukanis

A crítica marxista do direito, no Brasil, tem se debruçado de modo assaz consistente sobre o pensamento de Pachukanis. Leituras tradicionais (NAVES, 2000; NAVES, 2014; MASCARO, 2003) e recentes (PAZZELLO, 2022; SARTORI, 2015) têm levantado questões e apontado respostas que encaminham os problemas da teoria geral do direito de modo bastante adequado.

No que concerne ao tema específico da propriedade privada, há, no entanto, espaço para avanços. Pachukanis enfrenta a questão no capítulo 04 de Teoria geral do direito e marxismo, ao abordar a relação entre mercadoria e sujeito de direito. Sem dúvida, trata do problema ao longo de toda a obra, como ocorre no prefácio à segunda edição, por exemplo. Mas, naquele capítulo, o autor desenvolve a temática de modo particularizado, elaborando, ainda, uma crítica à noção de função social da propriedade, relativamente nova à época.

Para o autor russo, a figura do sujeito de direito é o ponto de partida para análise crítica da teoria geral do direito. Isso ocorre porque a forma jurídica deve ser deduzida da forma mercantil. Quer dizer, a relação econômica de troca de mercadorias exige, para que ocorra a bom termo, o ajuste de vontades entre os possuidores dos bens mercantis. Ora, como observa Marx (2013, p. 159; 1962, p. 99) no início do capítulo 02, do Livro I, de O capital, a relação jurídica é um reflexo da relação econômica, isto é, a forma pela qual se expressa.

Nesse sentido, se a economia capitalista aparece como uma enorme coleção de mercadorias (MARX, 2013, p. 113; 1962, p. 1962, p. 49), então ela deve aparecer, também, como uma cadeia ininterrupta de relações jurídicas (PACHUKANIS, 2017, p. 97; 2003, p. 84). Estas relações são levadas a cabo por pessoas dotadas de atributos que correspondem às necessidades mercantis: liberdade, igualdade e propriedade. As pessoas às quais Marx se refere, do ponto de vista econômico, são, do ponto de vista jurídico, os sujeitos de direito.

Eis o contexto em que Pachukanis situa a análise da propriedade privada, partindo da relação elementar, orgânica, entre produção e apropriação de bens, que existe em qualquer formação social. Sem dúvida, como afirma Marx na Introdução à crítica da economia política de 1857, “a produção em geral é uma abstração, mas uma abstração razoável, na medida em que efetivamente destaca e fixa o elemento comum, poupando-nos, assim, da repetição” (MARX, 2011, p. 41). Sob esse aspecto, o russo anota:

Assim, a apropriação de um produto produzido no interior de dada formação social e por meio de suas forças é um fato fundamental - se preferirmos, uma lei fundamental. Mas essa relação admite apenas a forma jurídica da propriedade privada em determinado estágio de desenvolvimento das forças produtivas e da divisão do trabalho a ela relacionada. O camarada Razumovsky pensa que, ao tomar como fundamento de minha análise o conceito de sujeito, excluo de meu exame as relações de domínio e subordinação, enquanto a posse e a propriedade estão indissoluvelmente ligadas a elas. Não penso, evidentemente, em negar essa ligação, afirmo apenas que a propriedade se torna fundamental para o desenvolvimento da forma jurídica somente enquanto livre disposição no mercado, e a expressão mais geral dessa liberdade é desempenhada pela categoria de sujeito (PACHUKANIS, 2017, p. 118; 2003, p. 109-110).

Note-se que o bolchevique, com base em Marx, assinala a existência de uma lei fundamental de produção e apropriação de bens, que corresponde ao modo como se organizam as forças produtivas e a correspondente divisão social do trabalho. Esta lei pode resultar na forma da propriedade privada ou não. Uma vez que resulte, pode assumir a forma jurídica ou não, a depender das especificidades de cada modo de produção.

Assim, é preciso distinguir a produção e apropriação de bens, o que tem lugar em qualquer comunidade em que se desenvolve uma divisão social do trabalho; a propriedade privada enquanto modo de distribuição dos produtos, o que ocorre a partir do momento em que a sociedade se divide em classes sociais e; finalmente, a forma jurídica da propriedade, o que se verifica numa comunidade cuja produção e circulação de bens gira em torno da mercadoria e, consequentemente, do sujeito de direito.

Numa comunidade indígena, por exemplo, existe a divisão social do trabalho, mas não há propriedade privada, já que não existem classes sociais, pois os bens são produzidos e distribuídos para o grupo de modo equânime, de acordo com as necessidades individuais e com base em critérios como sexo, idade, função desempenhada na comunidade etc.; no modo de produção feudal há divisão social do trabalho e propriedade privada, pois existem classes sociais (senhores feudais e servos da gleba), mas a propriedade não assume a forma jurídica, já que a mercadoria não figura como elemento central de sociabilidade e, portanto, o sujeito de direito não é elemento predominante; por fim, na economia capitalista há divisão social do trabalho, classes sociais e propriedade privada, sendo que esta assume a forma jurídica, uma vez que a economia adquire característica mercantil e o sujeito de direito é o ponto de apoio para as trocas generalizadas de mercadorias.

É nesse sentido que se deve compreender o caráter jurídico da propriedade privada no capitalismo. Significa que as forças produtivas e a divisão social do trabalho estão organizadas de tal modo que a distribuição de bens obedece a uma lógica específica resultante da organização mercantil da produção. A forma da troca de mercadorias empresta seus caracteres sociais a todo o modo de produção e distribuição dos bens, dando ensejo à figura impulsionadora do sujeito de direito. Assim, a liberdade e a igualdade deste, conteúdo particular da forma jurídica, qualifica também o vínculo de propriedade privada.

Não se trata, em absoluto, de considerar que a propriedade privada é o resultado de uma norma jurídica, no sentido atribuído pela teoria tradicional do direito. Tanto esta como aquela, ou seja, tanto a norma quanto a propriedade privada são jurídicas porque estão incrustadas numa economia que se organiza em torno da produção e circulação de mercadorias. Aliás, o próprio Kelsen reconhece que quando se fala em “lei” para qualificar as normas que ele entende como “jurídicas”, está-se usando um artifício de linguagem. As leis, no sentido genuíno do termo, expressam eventos do “mundo do ser”, regidos, pois, pela causalidade, como a lei da gravidade. Por outro lado, as normas que, para ele, são “jurídicas”, expressam sentidos do “mundo do dever-ser”, isto é, são descritas com o auxílio do princípio da imputação. Nesse sentido, observa:

Assim como a lei natural é uma afirmação ou enunciado descritivo da natureza, e não o objeto a descrever, assim também a lei jurídica é um enunciado ou afirmação descritiva do Direito, a saber, da proposição jurídica formulada pela ciência do Direito, e não o objeto a descrever, isto é, o Direito, a norma jurídica. Esta - se bem que, quando tem caráter geral, seja designada como “lei” - não é uma lei, isto é, não é algo que, por qualquer espécie de analogia com a lei natural, possa ser designado como “lei”. Ela não é, com efeito, um enunciado pelo qual se descreve uma ligação de fatos, uma conexão funcional. Não é sequer em enunciado, mas o sentido de um ato com o qual se prescreve algo e, assim, se cria a ligação entre fatos, a conexão funcional que é descrita pela proposição jurídica, como lei jurídica (KELSEN, 1995, p. 90).

Toda sociedade, por estar fundada em um modo de produção específico, é regida por leis que decorrem da organização da produção, distribuição e circulação de bens, descritas com o auxílio daquilo que Kelsen chamaria de princípio de causalidade. Do ponto de vista marxista, são leis naturais-sociais, isto é, eventos encadeados logicamente em razão da divisão social do trabalho e das relações de produção daí decorrentes. Tais leis não dependem, em absoluto, da vontade humana, que apenas adere a tais padrões normativos, reproduzindo-os automaticamente.

Desse modo, compreender a lei de propriedade privada sob o capital significa entender como se organiza a produção e circulação de bens neste sistema econômico específico, e como são distribuídos entre classes sociais de acordo com uma norma do “mundo do ser”, isto é, que surge do próprio modo de produção. Por outro lado, as normas que a teoria tradicional chama de “jurídicas”, isto é, os enunciados de dever-se que pretendem disciplinar as relações sociais, inclusive a propriedade privada, decorrem desta lei natural-social e têm seus sentidos determinado por ela.

Assim, para Pachukanis a propriedade privada moderna desenvolve-se no contexto específico do surgimento, afirmação e predomínio do modo de produção capitalista, como decorrência do desenvolvimento das relações econômicas ligadas à mercadoria e ao valor e, consequentemente, à conformação da figura do sujeito de direito e dos respectivos aparatos estatais necessários à preservação deste movimento econômico-jurídico:

A crescente divisão do trabalho, a melhoria nos meios de comunicação e o consecutivo desenvolvimento das trocas fizeram do valor uma categoria econômica, ou seja, a personificação das relações sociais de produção que dominam o indivíduo. Para isso, foi preciso que os atos de troca isolados ocasionais formassem uma cadeia de circulação ampla e sistemática de mercadorias (...) Tais condições reais são necessárias também para que o homem se transforme de um exemplar de zoológico em persona jurídica, sujeito de direito individual e abstrato. Essas condições reais consistem no estreitamento dos vínculos sociais e no crescimento do poder da organização social, ou seja, da organização de classe, que atingem seu apogeu no Estado burguês “organizado” (...) A consequência disso é que a propriedade burguesa capitalista deixa de ser uma posse frágil, instável, puramente factual, que a qualquer momento pode ser alvo de disputa e deve ser protegida de arma em punho. Ela se transforma em um direito absoluto, inalienável, que cerca a coisa por todos os lados e que, enquanto a civilização burguesa conservar seu domínio do globo terrestre, será protegido no mundo inteiro pela lei, pela polícia e pelos tribunais (PACHUKANIS, 2017, pp. 122-123; 2003, pp. 114-115, passim).

A passagem da posse à propriedade depende do desenvolvimento de um mercado de trocas consistente e permanente, em que o valor deixa de ser mera percepção individual da quantidade de bens que devem ser trocados esporadicamente uns pelos outros e passa a atuar como norma econômica geral que disciplina as relações de troca em sua totalidade, independentemente da apreciação individual deste ou daquele possuidor (JAPPE, 2006, pp. 23-83).

Simultaneamente, os guardiões dos bens deixam de ser meros indivíduos, dotados de peculiaridades e particularidades, como origem geográfica, status social ou religião determinada, para se tornarem pessoas em geral, isto é, sujeitos de direitos dotados de atributos compartilhados de maneira comum, a saber, liberdade, igualdade e propriedade. Ao mesmo tempo desenvolve-se o poder de organização da classe social dominante que, no capitalismo, assume a forma de Estado, ou seja, uma estrutura de dominação cujas origens remontam à generalização econômica do valor e universalidade jurídica do sujeito de direito.

É na conexão social entre uma economia organizada em torno das trocas mercantis e das relações de valor; da disseminação da figura do sujeito de direito, que passa a qualificar os indivíduos de modo geral; de uma nova organização política de classe social, que aparece situada acima e para além das classes, enquanto atua na tutela dos interesses práticos do capital (o Estado); é nesta conexão que a propriedade privada é concebida como proteção permanente da posse, direito absoluto e inalienável, inscrita em declarações de direitos fundamentais e protegida por constituições orais e escritas.

Nesse sentido, para Pachukanis, a principal característica da propriedade privada, no capitalismo, é sua livre transmissibilidade, o que significa que os atributos da forma mercantil, de alguma maneira, plasmam a relação entre indivíduo e coisa:

Mas, se a relação orgânica, “natural”, do homem com a coisa, ou seja, a apropriação, constitui-se geneticamente como ponto de partida do desenvolvimento, a passagem desta relação para a relação jurídica se dá sob influência daquelas necessidades que foram trazidas à vida pela forma da circulação de bens, ou seja, sobretudo por compra e venda (...) A formação de um mercado permanente suscita a necessidade de regulamentação do direito de dispor de uma mercadoria e, consequentemente, do direito de propriedade (...) No ato de alienação, a realização do direito de propriedade como abstração se torna realidade. Qualquer emprego de uma coisa está ligado ao aspecto concreto de sua utilização como meio de consumo ou de produção. Quando uma coisa opera na qualidade de valor de troca, ela se torna impessoal, puro objeto do direito; por sua vez, ao dispor dela, o sujeito se torna puro sujeito de direito (PACHUKANIS, 2017, pp. 128-129; 2003, pp. 122-123).

A produção e o consumo de bens ocorrem em quaisquer sociedades. Assim, a relação do homem com a coisa é “orgânica” porque a sobrevivência da espécie humana depende dela. É preciso interagir com a natureza para extrair as substâncias necessárias à manutenção da vida. Afinal, como observa Marx nos Manuscritos econômico-filosóficos, a natureza é o corpo inorgânico do homem: “o homem vive da natureza significa: a natureza é o seu corpo, com o qual ele tem de ficar num processo contínuo para não morrer” (MARX, 2004, p. 84).

A qualificação da relação indivíduo-objeto como jurídica depende do contexto socioprodutivo dentro do qual está inserida. É necessário que a produção de mercadorias esteja consolidada para que o homem ou a mulher se relacione com a coisa juridicamente. Isso significa que os caracteres sociais da mercadoria aderem ao modo de produção, distribuição e manutenção de bens no interior da comunidade. Em outras palavras, a mercadoria estabelece o caráter jurídico da propriedade.

Este caráter está intimamente relacionado aos aspectos conformadores da forma mercantil do produto do trabalho: o valor de uso e o valor de troca. Ambos os aspectos aparecem na cláusula geral de propriedade que, no Brasil, consta do art. 1.228 do Código Civil: “O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha” (BRASIL, 2002).

Como se percebe, a primeira parte do dispositivo (usar e gozar) remete ao valor de uso; a segunda (dispor e reaver), ao valor de troca.

O valor de uso significa a consideração pela utilidade da coisa, isto é, sua aptidão para satisfazer necessidades humanas concretas. Estas necessidades estão ligadas ao consumo de subsistência ou produtivo, isto é, a modificação da substância da coisa para a manutenção da vida ou produção de outros objetos. Esse aspecto é comum a todos os modos de produção e não permite que se descubra o caráter histórico da sociedade em questão. Afinal, como salienta Marx no capítulo 06, do Livro I, de O capital, o gosto do trigo não revela como foi produzido, pois “o que diferencia as épocas econômicas não é ‘o que’ é produzido, mas ‘como’, ‘com que meios de trabalho’” (MARX, 2013, p. 257; 1962, pp. 194-195).

O que confere caráter eminentemente jurídico à propriedade é, no entanto, o valor de troca da mercadoria. Este remete à aptidão que a coisa tem de ser livremente trocada, isto é, transferida das mãos de um indivíduo às mãos de outro, deixando em segundo plano suas características concretas, ligadas à utilidade.

O valor de troca aponta para o aspecto quantitativo da relação, quer dizer, quanto de um produto deve ser trocado por tanto de outro. Esta perspectiva imprime às relações sociais uma espécie de abstração real, de modo que os caracteres que daí emergem são apreendidos apenas segundo a quantidade envolvida e não de acordo com a qualidade. Marx, a propósito, observa: “Como valores de uso, as mercadorias são, antes de tudo, de diferente qualidade; como valores de troca, elas podem ser apenas de quantidade diferente, sem conter, portanto, nenhum átomo de valor de uso” (MARX, 2013, p. 116; 1962, p. 52).

Duas coisas diferentes, por exemplo, casaco e botas, apreendidos como valores de troca, exprimem uma relação de equivalência, de igualdade formal, portanto, uma identidade social. Esta identidade é fundamental para qualificar a propriedade como jurídica, pois ela remete ao núcleo fundamental da relação mercantil, que é o princípio de equivalência.

Assim, os polos da relação mercantil, embora sejam valores de uso distintos, são valores de troca idênticos. Esta identidade é projetada nos guardiões das mercadorias, as pessoas, que, embora sejam indivíduos distintos, igualam-se na relação, sendo, portanto, idênticos em atributos, ou seja, sujeitos de direito.

Este duplo aspecto da relação, que qualifica os produtos e as pessoas, adere ao modo de produção e distribuição dos bens no interior da comunidade, caracterizando a relação do sujeito e da coisa como um vínculo específico de propriedade privada, cuja natureza é eminentemente jurídica.

Nesse sentido, a propriedade privada, no capitalismo, assume caráter jurídico na medida em que a relação entre indivíduo e coisa é uma relação entre pessoa e mercadoria, ou seja, uma relação em que, ao mesmo tempo, indivíduos e coisas são diferentes e idênticos. Do ponto de vista do valor de uso, são homens e mulheres concretamente distintos, tanto quanto são produtos de utilidades diferentes; do ponto de vista dos valores de troca, são sujeitos de direito com atributos idênticos, tanto quanto são coisas mercantis de idênticos valores.

Esta identidade é o que viabiliza a livre permuta de bens, sem quaisquer tipos de restrições morais, éticas, religiosas ou políticas. Para ser mais exato, a moral, a ética a religião e a política é que devem se ajustar a este modo específico de produção e circulação. Ora, uma vez que o valor de troca se sobrepõe ao valor de uso, a troca de um objeto por outro significa que, do ponto de vista quantitativo, ninguém perde e ninguém ganha, ou seja, ambos continuam tão proprietários antes do negócio, como depois.

Por isso, como observa Pachukanis, a característica fundamental da propriedade privada capitalista, quer dizer, seu caráter especificamente jurídico, reside na livre disposição do bem qualquer que seja sua natureza. Inclusive a terra, cuja propriedade permaneceu imobilizada durantes os séculos em que teve lugar o modo de produção feudal, passa a ser objeto de livre disposição e aquisição. No prefácio à segunda edição de Teoria geral do direito e marxismo, o russo anota:

Assim se dá, por exemplo, a questão da propriedade privada: apenas um momento de livre alienação revela em plena medida a essência dessa instituição, ainda que, sem dúvida, a propriedade como apropriação tenha existido antes não apenas das formas de troca desenvolvidas, mas até mesmo das mais rudimentares. A propriedade como apropriação é uma consequência natural de qualquer modo de produção; mas apenas no interior de uma determinada formação social a propriedade adquire sua forma lógica mais simples e universal de propriedade privada, na qual é determinada como condição básica de circulação contínua de valores pela fórmula M-D, D-M (PACHUKANIS, 2017, p. 65; 2003, p. 42-43).

O problema, no entanto, é que o sistema econômico capitalista não é apenas um modo de produção de valores, mas de mais-valores. Quer dizer, as mercadorias produzidas neste particular sistema produtivo não devem representar apenas valores de troca de magnitudes idênticas, mas precisam carregar consigo um excedente de valor.

Este mais-valor introduz uma questão importante no que concerne à natureza específica da propriedade privada capitalista: como produzir não apenas valores, mas mais-valores manteando as relações de equivalência? Em outras palavras: como fica a questão da exploração no contexto da propriedade privada capitalista?

2. Propriedade privada e produção do mais-valor

O modo de produção capitalista é um modo de produção de mais-valor. Isso significa que ele se organiza em torno da produção de mercadorias que se relacionam entre si a partir de valores equivalentes, mas precisa extrair dessa relação mais valor do que fora lançado inicialmente no ciclo produtivo.

Nesse sentido, a circulação de mercadoria é apenas o momento inicial a partir do qual o capital deve movimentar o sistema. Ao iniciar o circuito mercantil pelo dinheiro (D), o capitalista induz à produção de mais-valor (D’), pois dá ensejo à circulação do dinheiro como capital, conhecida pela fórmula D-M-D’. Uma vez que a troca de mercadorias não viabiliza a extração de valor excedente, pois, como se viu, as mercadorias são trocadas por valores equivalentes, a circulação D-M-D’ exige a integração da produção à lógica mercantil.

É, pois, no momento produtivo que o trabalho concreto entra em cena, modificando as formas da natureza e adequando-as às necessidades humanas. Simultaneamente, o trabalho abstrato dá ensejo ao valor representado nas mercadorias. Quanto maior o tempo de trabalho abstrato agregado, tanto maior será o valor. Do que se trata, então, como observa Marx, é do tempo de trabalho depositado em cada objeto mercantil, pois ele definirá se o sistema produz somente valor, ou se produz, também, mais-valor:

Ora, se compararmos o processo de formação de valor com o processo de valorização, veremos que este último não é mais do que um processo de formação de valor que se estende para além de certo ponto. Se tal processo não ultrapassa o ponto em que o valor da força de trabalho pago pelo capital é substituído por um novo equivalente, ele é simplesmente processo de produção de valor. Se ultrapassa esse ponto, ele se torna processo de valorização (...) O processo de produção, como unidade dos processos de trabalho e de formação de valor, é processo de produção de mercadorias; como unidade dos processos de trabalho e de valorização, ele é processo de produção capitalista, forma capitalista de produção de mercadorias (MARX, 2013, pp. 271-273; 1962, pp. 209-211, passim).

Há que se ter em mente, portanto, as diferenças entre processo de formação de valor e processo de valorização. No primeiro caso, deposita-se um quantum de trabalho em certas substâncias extraídas à natureza dando ensejo a um produto que se leva à troca, como um casaco, por exemplo. Neste processo de formação de valor, parte-se do princípio de que o proprietário do bem depositou ali trabalho próprio, sem a ajuda de ninguém. Evidentemente, a relação de propriedade privada entre a pessoa e a coisa é cristalina: aquilo que produziu com o suor de seu rosto lhe pertence “por direito”.

O processo de valorização, por outro lado, impõe uma outra dinâmica. A valorização do bem exige que trabalho seja integrado à produção. Não se trata, contudo, de trabalho do proprietário dos meios de produção, mas de terceiro. Quer dizer, exige-se que as substâncias naturais sejam modificadas por uma atividade laborativa que não é executada por aquele que deu início ao processo de produção, mas por terceira pessoa, contratada num mercado livre. Logo se percebe que o vínculo de propriedade privada, neste caso, terá de ser alterado, pois aquele que trabalha não será proprietário dos bens resultantes de sua atividade laborativa.

É preciso agregar ao processo de produção uma mercadoria muito especial, cujo valor de uso é a própria atividade criadora de valor: o trabalho (no aspecto concreto e, sobretudo, abstrato). Esta mercadoria é a força de trabalho. Como afirma Marx, por força de trabalho ou capacidade de trabalho “entendemos o complexo das capacidades físicas e mentais que existem na corporeidade, na personalidade viva de um homem e que ele põe em movimento sempre que produz valores de uso de qualquer tipo” (MARX, 2013, p. 242; 1962, p. 181).

Note-se que o conceito de força de trabalho liga-se, inicialmente, à noção de valor de uso. Isso significa que a força de trabalho pode qualificar-se como mercadoria ou não: será mercadoria se for vendida e comprada; não será mercadoria se escapar aos processos de compra e venda. No sistema escravista, a força de trabalho não era mercadoria, pois o próprio indivíduo escravizado, seu corpo físico, era comprado e vendido. Homens e mulheres eram as próprias mercadorias. No capitalismo, a força de trabalho torna-se mercadoria, pois o trabalhador não vende seu corpo, mas apenas sua aptidão para trabalhar, isto é, sua capacidade físico-intelectual de trabalho e, ainda por cima, por um tempo limitado, preestabelecido contratualmente e na legislação trabalhista.

O processo de criação de mais-valor, que caracteriza especificamente o modo de produção capitalista, significa um processo de produção de mercadorias no interior do qual se agrega a força de trabalho de terceiros, isto é, daqueles que não são proprietários dos meios de produção, vale dizer, as trabalhadoras e os trabalhadores assalariados.

É importante compreender que, neste caso, ocorre um deslocamento do vínculo de propriedade, pois os meios de produção pertencem à pessoa que não executará o trabalho produtivo, ou seja, o capitalista. Este é proprietário dos meios de produção, das matérias-primas e da força de trabalho de terceiros, mas não trabalha, isto é, não despende sua energia físico-intelectual no processo de criação de bens.

Para que o processo de trabalho crie valor e, consequentemente, mais-valor, é necessário que a força de trabalho tenha, ela mesma, um valor próprio, isto é, possa ser trocada por uma quantidade específica de dinheiro. Como observa Marx, “o valor da força de trabalho é o valor dos meios de subsistência necessários à manutenção de seu possuidor” (MARX, 2013, p. 245; 1962, p. 185). Assim, a força de trabalho de um ser humano corresponde à soma dos valores dos objetos necessários à sua sobrevivência, como roupas, comida, abrigo etc. Esta soma de valores, designada em dinheiro, denomina-se salário.

Trata-se, pois, de adquirir mercadorias por seus valores, vendê-las por seus valores e, ainda assim, obter um mais-valor. Em outras palavras, é preciso adquirir os meios de produção (máquinas, equipamentos), as matérias-primas (tecidos, couros, tintas) e as forças de trabalho de trabalhadoras e trabalhadores por seus valores, movimentar o processo de trabalho, vender as mercadorias resultantes por seus valores e, ainda assim, obter mais-valor.

Isso apenas é possível se, entre a compra e venda dos objetos mercantis, ocorrer a modificação do valor dos bens levados à esfera da produção, pois, como sabemos, a troca de mercadorias, considerada isoladamente, não produz valor. Sabemos, ainda, que a alteração da magnitude de valor apenas é possível por intermédio do trabalho abstrato e que o valor de uso da força de trabalho consiste no próprio trabalho, quer dizer, na atividade físico-intelectual criadora de produtos dotados de valores, ou seja, mercadorias.

Assim, todos os elementos da equação estão postos: meios de produção, matérias-primas e força de trabalho criadora de valor.

É necessário, então, que o período de tempo dedicado à produção de bens exceda o período de tempo que apenas repõe o valor das matérias-primas e das forças de trabalho integrados à produção. Se o tempo de trabalho dedicado à produção apenas reproduzir os valores das matérias-primas e força de trabalho, ou seja, se houver apenas a produção de um equivalente, há a produção de valor, mas não de mais-valor. Para que este último venha à tona, é preciso que a trabalhadora ou o trabalhador sejam socialmente constrangidos a trabalhar por um período de tempo que ultrapassa aquele que repõe os valores de suas próprias forças de trabalho. Marx explica:

Vejamos a questão mais de perto. O valor diário da força de trabalho é de 3 xelins porque nela própria está objetivada meia jornada de trabalho, isto é, porque os meios de subsistência necessários à produção diária da força de trabalho custam meia jornada de trabalho. Mas o trabalho anterior, que está incorporado na força de trabalho, e o trabalho vivo que ela pode prestar, isto é, seus custos diários de manutenção e seu dispêndio diário, são duas grandezas completamente distintas. A primeira determina seu valor de troca, a segunda constitui seu valor de uso. O fato de que meia jornada de trabalho seja necessária para manter o trabalhador vivo por 24 horas de modo algum o impede de trabalhar uma jornada inteira. O valor da força de trabalho e sua valorização no processo de trabalho são, portanto, duas grandezas distintas. É essa diferença de valor que o capitalista tem em mente quando compra a força de trabalho. Sua qualidade útil, sua capacidade de produzir fio ou botas, é apenas uma conditio sine qua non, já que o trabalho, para criar valor, tem necessariamente de ser despendido de modo útil. Mas o que é decisivo é o valor de uso específico dessa mercadoria, o fato de ela ser fonte de valor, e de mais valor do que aquele que ela mesma possui. Esse é o serviço específico que o capitalista espera receber dessa mercadoria e, desse modo, ele age de acordo com as leis eternas da troca de mercadorias. Na verdade, o vendedor da força de trabalho, como o vendedor de qualquer outra mercadoria, realiza seu valor de troca e aliena seu valor de uso. Ele não pode obter um sem abrir mão do outro. O valor de uso da força de trabalho, o próprio trabalho, pertence tão pouco a seu vendedor quanto o valor de uso do óleo pertencente ao comerciante que o vendeu. O possuidor do dinheiro pagou o valor de um dia da força de trabalho; a ele pertence, portanto, o valor de uso dessa de trabalho durante um dia, isto é, o trabalho de uma jornada. A circunstância na qual a manutenção diária da força de trabalho custa apenas meia jornada de trabalho, embora a força de trabalho possa atuar por uma jornada inteira, e, consequentemente, o valor que ela cria durante uma jornada seja o dobro de seu próprio valor diário - tal circunstância é, certamente, uma grande vantagem para o comprador, mas de modo algum uma injustiça para com o vendedor (MARX, 2013, pp. 269-270; 1962, pp. 207-208).

Marx desvenda o segredo: a trabalhadora e o trabalhador são contratados para trabalhar ao longo de uma jornada inteira de trabalho (oito horas diárias, por exemplo), mas suas forças de trabalho valem o correspondente ao trabalho executado durante meia jornada de trabalho (quatro horas diárias). Esta diferença entre trabalho necessário (que corresponde ao valor da força de trabalho) e trabalho excedente (as quatro horas sobressalentes) é o núcleo constitutivo da produção capitalista, pois este mais-trabalho é representado nas mercadorias a serem vendidas, ao final do processo, como mais-valor.

O ponto fundamental a ser considerado, quando se pensa na propriedade privada especificamente capitalista, consiste em compreender que as mercadorias resultantes do processo de trabalho são de propriedade do capitalista e não dos trabalhadores. Embora estes tenham trabalhado de fato, quer dizer, tenham empregado sua energia físico-intelectual laborativa por um período de tempo que excede o valor de suas forças de trabalho, os produtos resultantes deste esforço não lhes pertencem.

A propriedade sobre do dinheiro que inicia a circulação D-M-D’ faz com que os bens resultantes do processo produtivo, isto é, as mercadorias, também sejam de propriedade do capitalista. Há, assim, uma espécie de cisão entre trabalho e produto do trabalho, pois aquela atividade, desenvolvida por trabalhadores assalariados, dá ensejo a bens que não lhes pertencem, nem de fato, nem de direito. O dinheiro funciona como uma cunha que separa o trabalho de seu produto e o trabalhador do resultado de sua atividade laborativa.

O prolongamento da jornada de trabalho por um período que excede aquele em que a força de trabalho simplesmente repõe seu o valor, ou seja, a produção do mais-valor absoluto, significa que o capitalismo mantém, embora de forma alterada, a relação de exploração de uma classe por outra, ou seja, o mecanismo social por intermédio do qual se drena o excedente de trabalho desenvolvido por um segmento de indivíduos para outro, tal como ocorre em quaisquer sociedades em que existam classes sociais desenvolvidas.

Afinal de contas, como observa Marx no capítulo 07, do Livro I, de O capital: “O que diferencia as várias formações econômicas da sociedade, por exemplo, a sociedade da escravatura daquela do trabalho assalariado, é apenas a forma pela qual esse mais-trabalho é extraído do produtor imediato, do trabalhador” (MARX, 2013, p. 293; 1962, 231). E, mais à frente, anota:

Como, por um lado, o valor do capital variável é igual ao valor da força de trabalho por ele comprada, e o valor dessa força de trabalho determina a parte necessária da jornada de trabalho, enquanto o mais-valor, por outro lado, é determinado pela parte excedente da jornada de trabalho, concluímos que o mais-valor está para o capital variável assim como o mais-trabalho está para o trabalho necessário, ou, em outras palavras, que a taxa de mais valor m/v = (mais trabalho) / (trabalho necessário). Ambas as proporções expressam a mesma relação de modo diferente, uma na forma de trabalho objetivado, a outra na forma de trabalho fluido. A taxa de mais-valor é, assim, expressão exata do grau de exploração da força de trabalho pelo capital ou do trabalhador pelo capitalista (MARX, 2013, p. 294; 1962, p. 231-232).

Do ponto de vista do direito, o problema está em que a drenagem, pelo capital, do trabalho excedente criado pela classe trabalhadora dá-se por intermédio da forma jurídica. Uma vez que o mais-trabalho está representado no mais-valor, e este, por sua vez, é realizado por meio da troca de mercadorias, é através do intercâmbio mercantil que o lucro, o juro ou a renda da terra, isto é, as formas concretas do mais-valor, são acessados pelos capitalistas.

Sabe-se, ademais, que a forma jurídica é o modo pelo qual se expressam as relações econômicas de compra e venda mercantil. Assim, o direito encaminha todos os momentos decisivos da produção do capital: a aquisição dos meios de produção, das matérias-primas e da força de trabalho, que assumem a forma jurídica do contrato de compra e venda; a alienação das mercadorias resultantes do processo de produção, em cuja estrutura está representado o mais-valor, o que assume a forma jurídica do contrato de venda e compra.

O direito, portanto, opera a mediação através da qual a classe trabalhadora pode ser explorada. Pachukanis estava atento a esta questão. Numa passagem do capítulo 04 de Teoria geral do direito e marxismo, anota:

A propriedade capitalista é, em sua essência, a liberdade de transformar o capital de uma forma em outra e de transferi-lo de uma esfera para outra com o objetivo de obter o máximo de lucro fácil. Essa liberdade de dispor da propriedade capitalista é impensável sem a presença de indivíduos desprovidos de propriedade, ou seja, de proletários. A forma jurídica da propriedade não está de modo algum em contradição com a expropriação de um grande número de cidadãos. Isso porque a capacidade de ser sujeito de direito é uma capacidade puramente formal. Ela qualifica todas as pessoas como igualmente “dignas” de ser proprietárias, mas por nenhum meio faz delas proprietárias. A dialética da propriedade capitalista está representada de modo magnífico por Marx em O capital, seja naquilo em que ela assume a forma “imutável” do direito, seja quando abre caminho por meio da violência (período da acumulação primitiva) (PACHUKANIS, 2017, p. 132-133; 2003, p. 127, grifo meu).

À luz desta passagem, é preciso chamar a atenção para uma espécie de incompreensão de Pachukanis no que concerne ao método desenvolvido por Marx.

O russo observa que a forma jurídica da propriedade não está em contradição com a expropriação de um grande número de pessoas. De fato, ocorre exatamente o oposto. É preciso que se diga: a forma jurídica da propriedade está em contradição com a expropriação de um grande número de pessoas, e esta é a característica essencial da propriedade privada capitalista. O papel que deve ser desempenhado pela crítica marxista do direito reside precisamente em mostrar esta contradição; apresentá-la claramente, e não em negá-la.

De fato, se não houvesse uma contradição a exploração do trabalho pelo capital apareceria claramente como aquilo que é, ou seja, como relação de expropriação.

É justamente porque há uma contradição, ou seja, porque o modo de aparecimento da realidade não coincide com sua essência, que a exploração capitalista pode aparecer como uma relação jurídica formada por partes formalmente equânimes e livres. Em outras palavras, o padrão de equivalência que comanda as trocas de mercadorias e, consequentemente, dá ensejo à forma jurídica, é o resultado externo e contraditório de uma produção que se funda justamente na negação da equivalência e na extração do mais-trabalho.

Isso não significa, evidentemente, que as trocas mercantis por valores equivalentes e as respectivas formas jurídicas que projetam a figura de sujeitos de direitos formalmente livres e juridicamente iguais sejam meras ilusões ou figurações produzidas pela consciência humana. São formas reais, produzidas pela organização econômica capitalista, mas que aparecem invertidas, isto é, revelam aspectos apenas parciais de relações mais profundas e que são imperceptíveis a olho nu.

Assim, quando Pachukanis aponta que a dialética da propriedade capitalista está descrita de modo primoroso por Marx em O capital, ele está plenamente correto. Nada obstante, deveria levar esta afirmação a sério para compreender que o método dialético exige que se caminhe por intermédio das contradições, reconhecendo-as. Justamente porque a produção capitalista funda-se na expropriação de uma classe por outra, sua superfície pode aparecer como a proteção absoluta da propriedade privada. O que movimenta esta oposição é justamente a contradição em que se envolvem seus termos.

Do que se trata, pois, é de compreender de que modo se desenvolve esta contradição, isto é, a maneira como se passa das relações de circulação fundadas em equivalência de valores e suas respectivas formas jurídicas, para relações de exploração fundadas na extração de mais-trabalho na forma de mais-valor e na luta política das classes sociais. Para tanto, é preciso avançar à Seção VI, do Livro I, de O capital, para compreender adequadamente a importância decisiva da forma-salário nesse contexto.

3. Apropriação pelo trabalho próprio, forma-salário e ilusão jurídica

Na superfície da sociedade capitalista, a norma pela qual se constitui a propriedade privada aparece como lei jurídica, isto é, como norma fundada em relações de equivalência mercantil impulsionadas por sujeitos de direito, ou seja, pessoas dotadas de igualdade e liberdade formais, além de autonomia de suas vontades.

Esta lei qualifica, em um primeiro momento, apenas os possuidores de mercadorias que são coisas, quer dizer, objetos resultantes do trabalho humano, levados ao mercado para serem trocados uns pelos outros ou por dinheiro. O pressuposto que subjaz à troca de mercadorias, neste momento, é o de que tais valores de uso são resultado do trabalho desenvolvido pelo proprietário do bem.

Ao se encontrarem no mercado, os possuidores de bens mercantis se reconhecem mutuamente como proprietários privados, livres e iguais, pressupondo que os respectivos produtos resultam do esforço pessoal de cada um. Num escrito denominado Fragmento da versão primitiva de Contribuição à crítica da economia política, redigido entre agosto e novembro de 1858, Marx explica:

Os agentes do processo de troca apresentam-se, antes de tudo, como proprietários de mercadorias. Ora, na base da circulação simples, só existe um método para entrar na posse de uma mercadoria, que é fornecer um novo equivalente; logo, a propriedade da mercadoria anterior à troca, isto é, a posse de uma mercadoria de que não nos apropriamos por intermédio da circulação, mas que, pelo contrário, deve ainda dar entrada nesta, tem diretamente origem no trabalho do indivíduo que a possui e o trabalho será assim o modo primitivo de apropriação (...) Mas como é somente graças à circulação, logo, à alienação do equivalente que se possui, que se torna possível adquirir um outro, esta aquisição supõe necessariamente o próprio trabalho do indivíduo como processo inicial de apropriação, e a circulação surge de fato como uma simples troca recíproca de trabalho, encarnado em múltiplos produtos. O trabalho e a propriedade do resultado do trabalho próprio apresentam-se assim como condição fundamental, sem a qual não teria lugar a apropriação secundária por intermédio da circulação. A propriedade fundamentada no trabalho pessoal constitui, pois, no quadro da circulação, a base da apropriação do trabalho alheio (...) E, como deste ponto de vista, só podem adquirir mercadorias de outrem, e portanto trabalho alheio, através da alienação de seu próprio trabalho, o processo de apropriação da mercadoria, anterior à circulação, aparece necessariamente, deste ponto de vista, como uma apropriação realizada graças ao trabalho (...) Eis a razão por que todos os economistas modernos fazem do trabalho pessoal o título original de propriedade, quer acentuem o aspecto econômico, quer o ponto de vista jurídico; e fazem da propriedade o resultado do trabalho pessoal a condição fundamental da sociedade burguesa (MARX, 2003, pp. 309-312, passim).

A posse do objeto mercantil dá ensejo à presunção de legítima propriedade do bem; esta, por sua vez, faz presumir que o trabalho próprio subjaz à coisa. Assim, a troca direta de mercadorias (M-M) ou a circulação simples (M-D-M) instauram o pressuposto de que, indiretamente, trocam-se trabalhos privados uns pelos outros, de modo que os membros da sociedade trabalham reciprocamente em prol do bem comum.

Uma vez que se pressupõe que a coisa pertencente ao guardião foi produzida por ele, quer dizer, por seu trabalho, não há nada de estranho na presunção de que o próprio trabalho pertence ao indivíduo, podendo, assim, ser livremente alienado, como se fosse uma coisa qualquer. Se é possível trocar bens produzidos pelo trabalho humano, pode-se, evidentemente, trocar diretamente este, ou seja, a atividade laborativa, desde que haja uma distinção muito clara entre a alienação da atividade, por um lado, e a alienação do indivíduo apto ao trabalho, por outro. Neste último caso, o homem ou a mulher qualificar-se-iam como escravos, indivíduos-coisa, o que é estranho à produção capitalista. No primeiro, são trabalhadores assalariados, isto é, livres trocadores de suas capacidades laborativas, o que é não apenas bem-vindo, como absolutamente necessário à formação do mercado capitalista.

Nesse sentido, Kant trata, em sua Metafísica dos costumes, do contrato salarial (locatio operae), isto é, “a concessão do uso de minhas forças a um outro por um preço determinado (merces). Segundo esse contrato, o trabalhador é o trabalhador assalariado (mercennarius)” (KANT, 2019a, p. 91). Hegel, por sua vez, anota: “Contrato de salário (locatio operae) [:] alienação do meu poder de produzir ou de prestar serviços, na medida em que são alienáveis, por um tempo restrito ou segundo uma outra restrição qualquer” (HEGEL, 2022, p. 297). Um pouco antes o filósofo foi mais a fundo e equiparou a alienação da coisa à alienação da atividade laborativa, ressaltando, contudo, que não se pode alienar a totalidade de ambos sob pena de transmissão, a outrem, da própria personalidade, o que significa escravidão:

Das minhas habilidades particulares, corporais e espirituais, e das possibilidades de atividade, eu posso alienar a outrem as produções singulares e um uso limitado no tempo, porque, segundo essa limitação, elas adquirem uma relação exterior à minha totalidade e universalidade. Pela alienação de todo o meu tempo, tornado concreto pelo trabalho, e da totalidade de minha produção, eu faria do elemento-substancial destes, da minha atividade e da minha efetividade universais, da minha personalidade, a propriedade de um outro (HEGEL, 2022, p. 278).

A equiparação da alienação da atividade laborativa à alienação da coisa, ou seja, a livre permuta tanto dos objetos do trabalho quanto deste último, é fundamental não apenas à constituição da sociedade capitalista, quanto à sua justificação teórico-filosófica.

No primeiro caso, porque o trabalho é a substância do valor das mercadorias, portanto, a fonte de riqueza não apenas concreta como, principalmente, abstrata. Assim, a atividade produtiva, que antes ficava a cargo de escravos ou servos da gleba, é elevada a um novo status, digno daqueles que são livres, iguais e proprietários. No segundo, porque autoriza que o trabalhador e a trabalhadora destituídos de quaisquer bens participem igualmente do mercado de trocas generalizadas, na medida em que podem alienar diretamente suas forças de trabalho. Equiparam-se aqueles que possuem coisas àqueles que possuem apenas capacidade laborativa que, formalmente, passam a ser iguais.

Do ponto de vista jurídico, a trabalhadora e o trabalhador assalariado assumem o status de pessoas ou sujeitos de direito, isto é, guardiões de mercadorias dotados de liberdade, igualdade e autonomia da vontade, aptos que estão a alienar suas forças de trabalho a quem quer que seja, pelo que preço que bem lhes aprouver, contanto que o façam por um período de tempo limitado.

Esta qualidade persiste inclusive no contrato pactuado com o capitalista, quer dizer, com o proprietário dos meios de produção. Uns e outros, trabalhadores assalariados e donos do capital, aparecem como sujeitos de direito, pessoas juridicamente iguais, contratando em paridade de condições. Aqueles são proprietários de suas capacidades de trabalho; estes detêm o dinheiro, ou seja, o ponto de partida da circulação D - M - D’ que, por sua vez, dá ensejo à produção do capital. No capítulo 04, do Livro I, de O capital, Marx observa:

A troca de mercadorias por si só não implica quaisquer outras relações de dependência além daquelas que resultam de sua própria natureza. Sob esse pressuposto, a força de trabalho só pode aparecer como mercadoria no mercado na medida em que é colocada à venda ou é vendida pelo seu próprio possuidor, pela pessoa da qual ela é a força de trabalho. Para vendê-la como mercadoria, seu possuidor tem de poder dispor dela, portanto, ser o livre proprietário de sua capacidade de trabalho, de sua pessoa. Ele e o possuidor de dinheiro se encontram no mercado e estabelecem uma relação mútua como iguais possuidores de mercadorias, com a única diferença de que um comprador e o outro vendedor, sendo ambos, portanto, pessoas juridicamente iguais. A continuidade dessa relação requer que o proprietário da força de trabalho a venda apenas por um determinado período, pois, se ele a vende inteiramente, de uma vez por todas, vende a si mesmo, transforma-se de um homem livre num escravo, de um possuidor de mercadoria numa mercadoria. Como pessoa, ele tem constantemente de se relacionar com sua força de trabalho como sua propriedade e, assim, como sua própria mercadoria e isso ele só pode fazer na medida em que a coloca à disposição do comprador apenas transitoriamente, oferecendo-a ao consumo por um período determinado, portanto, sem renunciar, no momento em que vende sua força de trabalho, a seus direitos de propriedade sobre ela (MARX, 2013, pp. 242-243; 1962, pp. 181-182, grifo meu).

Se, por um lado, a teoria tradicional equipara a troca de trabalho por dinheiro a qualquer outro contrato, considerando-a apenas uma modalidade dentre tantas outras, a crítica da economia política desenvolvida por Marx faz questão de diferenciá-los.

Para a primeira, a compra e venda do trabalho equivale à compra e venda de qualquer coisa, que pode ser consumida assim que a propriedade foi transferida. Justamente por isso, a teoria tradicional sustenta que o objeto do contrato de trabalho é o serviço prestado pelo trabalhador ou trabalhadora, e não sua capacidade para trabalhar. Para a crítica marxiana, a aquisição da força de trabalho transfere ao capitalista a aptidão de consumir uma mercadoria muito especial, a única capaz de criar valor e, o que é mais importante, mais valor do que ela própria tem.

A natureza contraditória da mercadoria, isto é, a oposição entre valor de uso e valor, ganha contornos especiais na mercadoria força de trabalho. Nesta, o valor corresponde à quantidade de trabalho necessária à sua manutenção, o que, expresso em termos monetários, denomina-se salário. O valor de uso, por outro lado, remete à natureza das necessidades que ela atende. No caso da força de trabalho, seu valor de uso reside no próprio trabalho, ou seja, na aptidão físico-intelectual que tem o ser humano de atuar sobre a natureza modificando suas substâncias para contemplar necessidades humanas.

Ocorre que, no sistema de produção mercantil, o trabalho humano desdobra-se em trabalho concreto, representado nos valores de uso das mercadorias, e trabalho abstrato, representado nos valores dos objetos mercantis. Isso significa que, ao adquirir, no mercado, a força de trabalho, o capitalista compra não apenas a aptidão para produzir valores de uso concretos, ou seja, objetos que contemplam necessidades humanas, mas também, e principalmente, a capacidade de produzir valores de troca, ou seja, coisas mercantis dotadas de valor e que podem ser trocadas por dinheiro.

Ainda mais importante: a força de trabalho possui um valor que não precisa coincidir com o valor que ela produz ao longo de uma jornada inteira de trabalho.

A forma-salário, isto é, a quantia em dinheiro que o trabalhador ou a trabalhadora recebem em contrapartida à alienação de sua capacidade para trabalhar corresponde ao valor desta, da força de trabalho, mas equivale a apenas uma parte da jornada de trabalho e não a esta inteira. Em outras palavras, o trabalhador ou a trabalhadora são contratados para trabalhar por uma jornada inteira de trabalho (oito horas diárias, por exemplo,) mas o salário recebido corresponde a apenas meia jornada (quatro horas diárias).

Isso significa que as quatros horas restantes são utilizadas para a produção de valores de uso nos quais se representam valores de troca que, por sua vez, serão apropriados pelo capitalista no momento em que as mercadorias forem vendidas.

Ao colocar em circulação as mercadorias que resultaram do processo de produção, o empresário abocanha o excedente de valor produzido pela força de trabalho, denominado por Marx de mais-valor. Ele o faz porque é proprietário dos meios de produção e o faz sem violar qualquer lei econômica ou jurídica ditada pelo mundo das mercadorias porque remunerou justamente o trabalhador ou a trabalhadora na medida em que pagou o salário previamente ajustado em contrato, nem acima, nem abaixo dos valores que são pagos normalmente no mercado.

A chave para a compreensão da natureza específica da exploração econômica que ocorre no interior da produção capitalista reside, portanto, na forma-salário, isto é, no valor recebido pelo assalariado ou assalariada em contrapartida à venda de sua força de trabalho.

O salário aparece como remuneração do tempo de trabalho executado pelo empregado ou empregada; no entanto, corresponde, na verdade, ao valor da força de trabalho, ou seja, ao conjunto de bens necessários à sua manutenção. Marx explica:

Na superfície da sociedade burguesa, o salário do trabalhador aparece como preço do trabalho, como determinada quantidade de dinheiro paga por determinada quantidade de trabalho. Fala-se, aqui, do valor do trabalho, e sua expressão monetária é denominada seu preço necessário ou natural. Por outro lado, fala-se dos preços de mercado do trabalho, isto é, de preços que oscilam acima ou abaixo de seu preço necessário (...) No mercado, o que se contrapõe diretamente ao possuidor de dinheiro não é, na realidade, o trabalho, mas o trabalhador. O que este último vende é sua força de trabalho. Mal seu trabalho tem início efetivamente e a força de trabalho já deixou de lhe pertencer, não podendo mais, portanto, ser vendida por ele. O trabalho é a substância e a medida imanente dos valores, mas ele mesmo não tem valor nenhum (...) Compreende-se, assim, a importância decisiva da transformação do valor e do preço da força de trabalho na forma-salário ou em valor e preço do próprio trabalho. Sobre essa forma de manifestação, que torna invisível a relação efetiva e mostra apenas o oposto dessa relação, repousam todas as noções jurídicas, tanto do trabalhador quanto do capitalista, todas as suas ilusões de liberdade, todas as tolices apologéticas de economia vulgar (MARX, 2013, pp. 605/607/610; 1962, p. 557/559/562, passim).

O trabalho é a substância e medida dos valores, mas ele mesmo não tem valor. A força de trabalho é uma mercadoria e, portanto, tem valor. Seu valor corresponde aos valores dos bens necessários à subsistência do trabalhador ou da trabalhadora. Por outro lado, o valor de uso da força de trabalho é o trabalho, ou seja, a atividade criadora de valor. Ao trabalhar, o empregado ou empregada produzem valor.

Ao contratar com o capitalista, o trabalhador ou a trabalhadora vendem a sua força de trabalho, isto é, recebem, como contrapartida, um valor correspondente a esta (o salário). Uma vez integrada aos meios de produção e em contato com as matérias-primas, a força de trabalho será consumida, isto é, o homem ou a mulher devem trabalhar. Ao fazê-lo, mantêm os valores que estão incorporados aos bens necessários à produção de uma nova mercadoria e, além disso, agregam valor, ou seja, adicionam valor àquele já existente através da atividade laborativa.

A magnitude de valor criada pelo empregado ou pela empregada corresponde ao período de tempo em que permanecem trabalhando. Se laboram por meia jornada de trabalho, então produzem um valor que corresponde ao valor de suas forças de trabalho, ou seja, apenas repõem o salário que é pago pelo capitalista. Se, no entanto, trabalham ao longo de uma jornada inteira, então produzem o valor corresponde aos seus salários e um valor excedente, quer dizer, um mais-valor. Este mais-valor é apropriado pelo capitalista pelo só fato de ser proprietário dos meios de produção e de ter iniciado o ciclo produtivo dando ensejo ao movimento D-M-D’.

A diferença entre o valor da força de trabalho e o valor produzido pelo trabalho é fundamental para que se compreenda a natureza específica da relação de exploração sob o capital e, também, para que se descubra como se constitui a lei de propriedade privada no interior do modo de produção capitalista. De fato, a análise detalhada da forma-salário à luz do método dialético materialista e no contexto da apresentação categorial que Marx opera em O capital, permite compreender sua importância decisiva como momento de “engate do sistema”. Nesse sentido, Helmut Reichelt observa:

A categoria “salário” é a que oferece maiores dificuldades à decifração, mas ao mesmo tempo sua desmistificação constitui para Marx o pressuposto para a compenetração conceitual plena do processo global (...) A caracterização marxiana do trabalho no capitalismo como escravidão assalariada de modo algum deve ser encarada apenas como alusão cínica às relações existentes no processo imediato de produção, mas se refere, muito antes, ao ponto de engate do sistema, ao ponto de junção, no qual a esfera da aparência é mediada com a esfera da essência: na passagem da esfera da circulação simples para o capital, que Marx compreender, no Rascunho, em conexão estreita com a formulação hegeliana na lógica maior (REICHELT, 2013, pp. 97-98, passim).

Uma vez que o trabalhador ou trabalhadora, ao contratarem com o capitalista, recebem o valor exato de suas forças de trabalho (o salário), dão ensejo a uma relação que, em princípio, qualifica-se como jurídica, pois se troca equivalente por equivalente. Considerando, ademais, que o salário não aparece como valor da força de trabalho, mas como valor do próprio trabalho, a relação econômica produz a aparência socialmente objetiva de que o salário remunera a jornada de trabalho em sua totalidade, isto é, que corresponde à integralidade do período em que a empregada ou empregado permanecem trabalhando.

Assim, a relação econômica de emprego aparece como autêntica relação jurídica e não há como negar, do ponto de vista do senso comum, a autenticidade desta relação. Por isso, tanto o trabalhador, como o capitalista interpretam e agem no interior dela como verdadeiros sujeitos de direitos, ou seja, pessoas dotadas de liberdade, igualdade e autonomia de suas vontades.

Além do mais, pode-se compreender que o excedente de valor capturado pelo capitalista não aparece como tal. Quer dizer, o mais-trabalho que se representa em mais-valor não vem à tona claramente, pois o salário parece corresponder à jornada de trabalho inteira e não apenas a parte dela. Com isso, instaura-se um mecanismo por intermédio do qual o empresário drena mais-trabalho sob a aparência de uma relação de equivalência, portanto, obtém mais-valor sob a aparência de uma relação de valor.

Eis o quiproquó fundamental a partir do qual se pode esclarecer a lei de propriedade privada sob o capital.

Pachukanis aproximou-se decisivamente da natureza íntima deste problema. Como uma cabeça de Jano, ele olha para os modos de produção escravista e feudal, e para os alicerces fundamentais do socialismo, que então ganhavam corpo na URSS, para concluir que, no capitalismo, a propriedade privada obtém sentido ao viabilizar o livre intercâmbio de bens e, ao mesmo tempo, a apropriação privada do excedente econômico na forma de lucro, juros e renda da terra, mediados pela relação de exploração. No prefácio à segunda edição de Teoria geral do direito e marxismo, ele observa:

E se dá exatamente do mesmo modo a questão da relação de exploração. Essa não é, claro, de modo nenhum ligada às relações de troca e imaginada pela forma natural da economia. Mas, apenas na sociedade capitalista burguesa, em que o proletário aparece na qualidade de sujeito que dispõe de sua força de trabalho como mercadoria, as relações econômicas de exploração são mediadas juridicamente na forma do contrato. E a isso está ligado justamente o fato de que, na sociedade burguesa, em contraposição à escravagista e àquela baseada na servidão, a forma jurídica adquire significado universal, a ideologia jurídica torna-se a ideologia por excelência e a defesa dos interesses da classe dos exploradores surge, com cada vez mais sucesso, como defesa abstrata do princípio da subjetividade jurídica (PACHUKANIS, 2017, p. 65; 2003, p. 43).

O que falta à Teoria geral do direito e marxismo é um mergulho mais profundo na dialética da propriedade privada capitalista, tal como apresentada por Marx em O capital.

Não basta apontar que o livre intercâmbio de bens mercantis, no capitalismo, é estruturado a partir da exploração da classe trabalhadora. Também é insuficiente dizer que o empregado ou empregada aparecem como sujeitos de direito e que a extração de mais-valor é mediado pelo contrato. É preciso ir além e mostrar como a lei de propriedade privada no capitalismo é uma lei de expropriação, ou seja, de negação da propriedade privada. Para tanto, é necessário ingressar na Seção VII, do Livro I, de O capital, para compreender de que maneira opera o processo de acumulação do capital.

4. A conversão das leis de propriedade mercantil em leis de apropriação capitalista

Na forma da circulação D-M-D’ está implícita a acumulação do capital. O excedente de valor (∆D) representado pelo símbolo (’) significa que o intercâmbio mercantil é utilizado como meio para a ampliação da magnitude de valor em jogo. Nada obstante, os extremos do movimento, como etapas da circulação, são relações de equivalência. De fato, tanto a compra (D-M) como a venda (M’-D’) consistem em intercâmbios de valores idênticos. Desse modo, a ampliação do valor lançado na circulação precisa ocorrer no momento da produção.

A fórmula D-M-D’, desdobrada, revela com mais nitidez esse ponto: D-M- [MP + FT] -M’-D’. O interregno [MP + FT] significa o momento da produção, em que a força de trabalho (FT) é agregada às matérias-primas e meios de produção (MP), dando ensejo a mercadorias prenhes de mais-valor (M’). Este, o mais-valor, é o resultado do prolongamento da jornada de trabalho por um período de tempo que excede aquele em que os trabalhadores e as trabalhadoras simplesmente repõem os valores de suas forças de trabalho.

Isso significa que o início e o fim dos ciclos de acumulação do capital são caracterizados por relações de equivalência, portanto, jurídicas, levadas a cabo por sujeitos de direito dotados de liberdade e igualdade formais, e autonomia de suas vontades.

Desde esta perspectiva, portanto, a norma de propriedade privada qualifica-se como lei jurídica, na medida em que expressa modos de apropriação fundados em relações equânimes, em que nenhuma das partes é lesada. A troca de equivalentes, que caracteriza a circulação capitalista, qualifica, neste primeiro momento, as relações de apropriação do excedente econômico, dotando-as de caráter jurídico. Provêm daí, também, as noções de “justiça” que permeiam a sociedade capitalista (GERAS, 2018).

No entanto, na medida em que se isola, artificialmente, o momento produtivo, vislumbra-se o núcleo constitutivo da economia capitalista, isto é, a produção do mais-valor absoluto e relativo. Nestes se encontra representado o mais-trabalho, isto é, o período da jornada de trabalho que excede aquele destinado à reposição do valor da força de trabalho, este último denominado de trabalho necessário. Aquele, o trabalho excedente, é apropriado pelo capitalista sem o pagamento de equivalente aos empregados e empregadas e apenas é possível em razão da propriedade privada dos meios de produção.

É precisamente neste momento que se encontra a relação de exploração capitalista, que se caracteriza pela obtenção de mais-trabalho não pago. É aqui que a sociedade do capital se aproxima dos modos de produção escravista e feudal, que também consistiam na obtenção de trabalho excedente sem a entrega de equivalente. A diferença é que nestes sistemas produtivos a força de trabalho não se qualificava como mercadoria e, portanto, os indivíduos trabalhadores (servos da gleba e escravos) não se caracterizavam como sujeitos de direito. No capitalismo, a força de trabalho é uma mercadoria e o trabalhador e a trabalhadora se qualificam, em princípio, como pessoas dotadas de direitos.

É a partir deste momento, desta perspectiva específica, que se deve explicar a lei de propriedade privada sob o capital, e não a partir do ponto de vista da circulação (ARTHUR, 2016, p. 50).

Nesse sentido, na Seção VII, do Livro I, de O capital, em particular nos capítulos 21 e 22 da obra, encontra-se a apresentação marxiana da transformação do mais-valor em capital, também chamada de acumulação do capital.

Até então Marx mostrou como o mais-valor é produzido a partir do capital. O próximo passo consiste em mostrar como o capital é produzido a partir do mais-valor. Em outras palavras, é preciso revelar como este, o mais-valor (∆D), é transformado em dinheiro (D) e, a partir daí, inicia um novo ciclo de acumulação: D-M- [MP + FT] -M’-D’. Esse movimento é denominado de reprodução ampliada do capital.

Do ponto de vista da teoria do direito, logo se percebe o problema que se coloca: como a forma-salário parece remunerar toda a jornada de trabalho, e não apenas parte dela, parece que o trabalhador recebe um equivalente pela totalidade da atividade laborativa desenvolvida. Parece, assim, que sua qualidade de sujeito de direito, que é apenas potencial no início da circulação, passa a ato, isto é, concretiza-se de fato.

A descoberta do mais-valor feita por Marx, no entanto, faz desvanecer esta aparência. Uma vez que o salário remunera o valor da força de trabalho e não o trabalho, isto é, apenas uma parte da jornada de trabalho e não o período inteiro, constata-se que o trabalhador ou trabalhadora permanecem trabalhando durante uma parte do tempo sem receberem nenhum equivalente. Este período, denominado por Marx de trabalho excedente ou mais-trabalho, é o que caracteriza a relação de trabalho, sob o comando do capital, como uma relação de exploração. O que particulariza este modo de produção, entretanto, é que esta relação econômica exploratória é camuflada por uma relação jurídica.

Sem dúvida, a integração do trabalho à produção dá-se por intermédio da compra e venda da força de trabalho no mercado comum de mercadorias. Seus proprietários, o trabalhador e a trabalhadora, qualificam-se, então, como sujeitos de direito. Além do mais, a forma-salário apaga a diferença entre trabalho necessário e trabalho excedente. Assim, a aparência de juridicidade da relação social, que tem lugar na circulação, abrange, por inércia, o momento da produção, que se qualifica, então, como jurídica. O direito, que brota na circulação, lança raízes na produção. São raízes adventícias, que não fundam a relação social, mas são fundadas por ela.

Antes, porém, de apresentar a transformação do mais-valor em capital, Marx, no capítulo 21, do Livro I, de O capital, trata da chamada reprodução simples, que significa, em linhas gerais, que o mais-valor obtido do processo de produção é consumido inteiramente como renda do capitalista, para fins de sobrevivência individual.

A exposição da reprodução simples abriga, por si só, uma relevância epistemológica. Sua análise permite compreender que certas características da produção, se consideradas isoladamente, são meras aparências que podem ser diluídas quando se analisa a repetição sistemática do processo. Marx anota:

Ora, embora esta não seja mais do que a repetição do processo de produção na mesma escala, essa mera repetição ou continuidade imprime ao processo certas características novas ou, antes, dissolve as características aparentes que ele ostentava quando transcorria de maneira isolada (MARX, 2013, p. 642; 1962, p. 592, grifo meu).

De fato, observando-se a compra e venda da força de trabalho de modo isolado, tem-se a impressão de que o capitalista comparece ao mercado com dinheiro que provém da venda de mercadorias produzidas por eles mesmo, com trabalho próprio. Como o pressuposto geral do mundo das mercadorias é o de que o bem mercantil é fruto do trabalho de seu possuidor, parece que o capitalista segue a mesma lógica, de modo que o dinheiro do qual dispõe é resultado de alienação prévia de mercadorias que foram produzidas por ele.

A apresentação do mais-valor e de seu consumo pelo capitalista, no entanto, acarreta a modificação deste pressuposto.

Uma vez que, ao fim de cada ciclo produtivo (D-M [MP + FT] -M’-D’), o resultado obtido é um valor maior do que aquele que iniciou a cadeia econômica (∆D = D’-D), um excedente que pertence ao capitalista, pois este é proprietários dos meios de produção, conclui-se que, ao final de um determinado período, 05, 10 ou 15 anos, por exemplo, todo o capital existente é resultado dos mais-valores obtidos através da repetição do processo de produção. Em outras palavras, aquele valor inicial (D), cuja origem, em princípio, provém do trabalho próprio do capitalista, é substituído pela soma dos mais-valores (∆D) obtidos ao longo dos períodos de tempo em que o capital completa seus ciclos. Marx explica:

Transcorrido certo número de anos, o valor do capital que ele possui é igual à quantia de mais-valor apropriada sem equivalente durante esses mesmos anos, e a quantia de valor consumido por ele é igual ao valor original. Ele conserva, decerto, um capital nas mãos, cuja grandeza não se alterou, e do qual uma parte - edifícios, máquinas etc. - já existia quando ele pôs em marcha seu negócio. Porém, se trata, aqui, do valor do capital, e não de seus componentes materiais. Se alguém consome todos os seus bens contraindo dívidas que se igualam aos valores desses bens, então a totalidade desses bens representa apenas a soma total de suas dívidas. Do mesmo modo, quando o capitalista consumiu o equivalente do seu capital adiantado, o valor desse capital representa tão somente a soma total do mais-valor do qual ele se apropriou gratuitamente. Nem um átomo de valor de seu antigo capital continua a existir (MARX, 2013, pp. 644-645; 1962, p. 594-595).

Uma vez que o capital pode ser compreendido, em princípio, como uma determinada soma de valor acumulado que se valoriza (HEINRICH, 2012, p. 16), pouco importa que este valor esteja materializado em uma fábrica de salsichas ou de sapatos, em matérias-primas que são carnes ou couros, com trabalhadores açougueiros ou sapateiros. O que importa é que ele perfaça o circuito D-M [MP + FT] -M’-D’ e produza mais-valor.

Assim, não há diferença entre mais-valor (∆D) e valor (D), a não ser sob o aspecto quantitativo, pois aquele representa uma magnitude maior do que este.

Se não fosse a produção do mais-valor, o capitalista teria de consumir o valor inicial adiantado em seu negócio para a manutenção de sua sobrevivência e de sua família. Seria necessário vender o galpão da fábrica, as matérias-primas e dispensar a força de trabalho contratada para adquirir comida, bebida e abrigo para si e para os seus. Mais cedo ou mais tarde, estaria reduzido a zero. A produção e o consumo do mais-valor que brota incessantemente da jornada de trabalho executada por empregados e empregadas permite que mantenha o negócio funcionando, já que esta magnitude de valor substitui aquela inicial. A manutenção do galpão, a compra de matérias-primas e a contratação de nova mão de obra dão-se com a utilização do mais-valor produzido a partir do primeiro ciclo produtivo.

Nesse sentido, a segunda rodada de produção já é levada a cabo a partir de um valor que não proveio inteiramente de seu trabalho próprio, mas do mais-trabalho representado no mais-valor extraído da força de trabalho por ele contratada. A partir de um número determinado de rodadas produtivas, todo o valor em jogo é resultado dos mais-valores acumulados ao longo do período, de modo que todo o capital do empresário provém de mais-trabalho obtido de graça, isto é, sem o pagamento de equivalente à força de trabalho.

Aquele pressuposto inicial, de que o capitalista vai ao mercado com um dinheiro que é resultado da venda de mercadorias por ele mesmo produzidas, desaparece. A análise da reprodução simples do capital permite compreender que, a partir de certo momento, todo o seu negócio gira com base na obtenção de trabalho alheio não pago, ou seja, a partir da extorsão de mais-trabalho retirado de trabalhadores e trabalhadoras sem a entrega de um equivalente. Marx apresenta, aqui, o início da passagem da lei de apropriação com base no trabalho próprio para a lei de expropriação do trabalho alheio:

Do ponto de vista que desenvolvemos até aqui, portanto, é provável que o capitalista se tenha convertido em possuidor de dinheiro em virtude de uma acumulação originária, independentemente de trabalho alheio não pago, e que, por isso, tenha podido se apresentar no mercado como comprador de força de trabalho. No entanto, a mera continuidade do processo capitalista de produção, ou a reprodução simples, opera também outras mudanças notáveis, que afetam não apenas o capital variável, mas também o capital total (...) Abstraindo-se inteiramente de toda a acumulação, a mera continuidade do processo de produção, ou a reprodução simples, converte necessariamente todo o capital em capital acumulado ou mais-valor capitalizado. Ainda que, no momento em que entrou no processo de produção, esse capital fosse propriedade adquirida mediante o trabalho pessoal daquele que o aplica, mais cedo ou mais tarde ele se converteria em valor apropriado sem equivalente, em materialização, seja em forma-dinheiro ou outra, de trabalho alheio não pago (MARX, 2013, pp. 644-645; 1962, pp. 594-595, passim).

A mera repetição do ciclo produtivo D-M [MP + FT] -M’-D’ é capaz de mostrar que a compra e venda da força de trabalho (D-FT), se do ponto de vista formal equipara-se à troca simples de mercadorias (M-M) e, portanto, assume a forma jurídica, do ponto de vista material é incompatível com o direito, pois significa a troca de uma certa magnitude de valor (D) por uma mercadoria capaz de produzir uma magnitude infinitamente maior (FT).

Percebe-se, pois, que a identidade inicial que se estabelece na troca entre capitalista e trabalhador (D-FT), quer dizer, o fato de que, enquanto valores, ambos os extremos da equação representam a mesma magnitude, traz consigo, implícito na característica específica da mercadoria força de trabalho, sua negação. Com ela, a negação da própria relação jurídica. Eis o núcleo da contradição.

Uma vez que o valor de uso da força de trabalho é o próprio trabalho, ou seja, a potência criadora de valor novo, para que a compra e venda desta mercadoria fosse uma relação de equivalência e, portanto, jurídica, seria necessário que a jornada de trabalho desempenhada pelo trabalhador ou trabalhadora cessasse exatamente ao cabo do período de tempo que correspondesse ao valor de suas forças de trabalho. Neste caso, contudo, haveria produção de mercadorias, mas não produção capitalista de mercadorias.

Se, por um lado, a reprodução simples permite compreender como, ao término de uma série de ciclos produtivos, todo o valor inicial lançado na circulação (D) corresponde ao mais-valor obtido no ciclo produtivo anterior (∆D), de modo que o trabalho ali representado já não possui nenhuma gota de suor do empresário, a reprodução ampliada permite compreender que a expansão da magnitude do valor em jogo acelera essa substituição, de modo que tem lugar a chamada conversão das leis que regem a produção de mercadorias em leis de apropriação capitalista.

De fato, no capítulo 22, do Livro I, de O capital, Marx coloca em evidência a natureza específica deste quiproquó:

O capital original se formou pelo desembolso de £10 mil. De onde o possuidor as obteve? De seu próprio trabalho e do de seus antepassados!, respondem-nos em uníssono os porta-vozes da economia política, e essa suposição parece ser, de fato, a única de acordo com as leis da produção de mercadorias. Totalmente diverso é o que ocorre com o capital adicional de £2 mil. Conhecemos com plena exatidão seu processo de surgimento. Trata-se de mais-valor capitalizado. Desde sua origem, ele não contém um só átomo de valor que não derive de trabalho alheio não pago (MARX, 2013, p. 657-658; 1963, p. 608).

A produção do mais-valor ocorre por intermédio do próprio valor. Quer dizer, uma quantia inicial de valor, expressa em dinheiro (D), é trocada por meios de produção, matérias-primas (MP) e força de trabalho (FT). Uma vez que esta última encerra em si uma oposição muito especial entre valor de troca e valor de uso, quer dizer, a oposição entre salário e a capacidade para trabalhar, ou seja, produzir mais valor do que ela mesma tem, entra em cena uma dialética específica através da qual, por meio do valor se produz mais-valor que, por sua vez, é reintroduzido no ciclo produtivo como valor original. Considerando que o valor se expressa apenas quantitativamente, a diferença entre mais-valor e valor original é apagada toda a vez que o ciclo produtivo reinicia.

Este movimento dá ensejo a uma torção dialética, também chamada de interversão (FAUSTO, 2021, pp. 30-49)1. De acordo com esta, a produção do mais-valor através do valor, ou seja, a apropriação, pelo capitalista, de trabalho excedente desempenhado pelo trabalhador ou trabalhadora sem o pagamento de equivalente, faz com que a lei de apropriação pelo trabalho próprio passe em seu oposto, ou seja, transforme-se em lei de expropriação do trabalho alheio. Numa passagem extensa, porém, importante, Marx descreve esta inversão, absolutamente fundamental para a compreensão da lei da propriedade privada sob o capital:

Na medida em que o mais-valor de que se compõe o capital adicional n. 1 resultou da compra da força de trabalho por uma parte do capital original, compra que obedeceu às leis da troca de mercadorias e que, do ponto de vista jurídico, pressupõe apenas, da parte do trabalhador, a livre disposição sobre suas próprias capacidades, e da parte do possuidor de dinheiro ou de mercadorias, a livre disposição sobre os valores que lhes pertencem; na medida em que o capital adicional n. 2 etc. não é mais do que o resultado do capital adicional n. 1 e, portanto, a consequência daquela primeira relação; na medida em que cada transação isolada obedece continuamente à lei da troca de mercadorias, segundo a qual o capitalista sempre compra a força de trabalho e o trabalhador sempre a vende - e, supomos aqui, por seu valor real -, é evidente que a lei de apropriação ou lei da propriedade privada, fundada na produção e circulação de mercadorias, transforma-se, obedecendo à sua dialética própria, interna e inevitável, em seu direto oposto. A troca de equivalentes, que aparecia como a operação original, torceu-se (gedreht) ao ponto de que agora a troca se efetiva apenas na aparência, pois, em primeiro lugar, a própria parte do capital trocada por força de trabalho não é mais do que uma parte do produto do trabalho alheio, apropriado sem equivalente; em segundo lugar, seu produtor, o trabalhador, não só tem de repô-la, como tem de fazê-lo com um novo excedente. A relação de troca entre trabalhador e capitalista se converte, assim, em mera aparência pertencente ao processo de circulação, numa mera forma, estranha ao próprio conteúdo e que apenas o mistifica. A contínua compra e venda da força de trabalho é a forma. O conteúdo está no fato de que o capitalista troca continuamente uma parte do trabalho alheio já objetivado, do qual ele não cessa de se apropriar sem equivalente, por uma quantidade maior de trabalho vivo alheio. Originalmente, o direito de propriedade apareceu diante de nós fundado no próprio trabalho. No mínimo esse suposto tinha que ser admitido, porquanto apenas possuidores de mercadorias com iguais direitos se confrontavam uns com os outros, mas o meio de apropriação da mercadoria alheia era apenas a alienação de sua mercadoria própria, e esta só se podia produzir mediante trabalho. Agora, ao contrário, a propriedade aparece do lado do capitalista, como direito a apropriar-se de trabalho alheio não pago ou de seu produto; do lado do trabalhador, como impossibilidade de apropriar-se de seu próprio produto. A cisão entre propriedade e trabalho torna-se consequência necessária de uma lei que, aparentemente, tinha origem na identidade de ambos. Portanto, por mais que o modo capitalista de apropriação pareça violar as leis gerais da produção de mercadorias, ele não se origina em absoluto da violação, mas, ao contrário, da observância dessas leis (MARX, 2013, p.658-659; 1962, p.609-610).

Note-se que a produção do mais-valor através do valor é o movimento que leva à interversão, ou seja, à passagem da relação em seu oposto. Na medida em que se produz valor excedente por intermédio do consumo de uma mercadoria específica, a força de trabalho, sem que se tenha que recorrer a expedientes externos à lógica mercantil, a produção de valores equivalentes não apenas não é violada, como é plenamente confirmada.

Esta confirmação, no entanto, paga um preço. A relação de equivalência que caracteriza inicialmente o ajuste entre capitalista e trabalhador passa ao status de aparência. Ela não deixa de existir, pois, de fato, o empresário compra a força de trabalho por seu justo valor e o empregado ou empregada a vendem nesses termos, nem acima, nem abaixo. Nada obstante, seu consumo por um período de tempo que excede a reprodução deste valor (da força de trabalho) opera a passagem do momento da equivalência ao da exploração.

O consumo da força de trabalho difere do consumo de outras mercadorias. Nestes casos, trata-se de consumir objetos, coisas produzidas pela associação entre trabalho humano e matérias da natureza. No primeiro caso, trata-se de pôr em marcha uma relação social, relação que se prolonga no tempo. Este prolongamento é decisivo para que a interversão ocorra, de modo que a equivalência dos termos iniciais seja substituída pela expropriação que tem lugar ao cabo da jornada de trabalho.

Desse modo, a interversão liquida o caráter essencialmente jurídico da compra e venda da força de trabalho, que remanesce apenas como aparência invertida. Como afirma Ruy Fausto, “pode-se dizer que se altera o ‘acento’ do processo, do momento do contrato para o momento da produção. Também se pode afirmar em geral que o momento do contrato é ‘engolido’ pelo processo ou é invalidado” (FAUSTO, 2021, p. 42, nota 21). O autor prossegue:

Observe-se: desaparecem assim - ou antes, reduz-se à aparência - tanto a “compra” como a própria mercadoria “força de trabalho”. No lugar disso, tem-se agora uma apropriação, uma apropriação forçada (sem compra e venda), que é o que agora indica o travessão. Na base dessa transmutação está o desaparecimento do que o comprador fornece ao vendedor da força de trabalho (porque o que ele fornece é, na realidade, produzido pelo próprio vendedor num momento anterior). E, caindo a bilateralidade do ato, cai a ideia de compra. Fica a de simples apropriação (FAUSTO, 2021, p. 47, nota 21).

A aparência econômica que remanesce expressa uma inversão, ou seja, a interversão mantém (aparentemente) intacta a relação de equivalência entre capital e trabalho na superfície da sociedade capitalista, ao mesmo tempo em que, essencialmente, tal relação passa sem seu oposto, isto é, assume característica exploratória. Esta torção, no entanto, é suficiente para sustentar a higidez da relação jurídica. Como esta é apenas a forma da relação econômica, e não seu conteúdo, o direito expressa a superfície da relação social sem ingressar em seus termos constitutivos.

Quer dizer, a forma jurídica funda-se imediatamente na aparência de equivalência da relação econômica que une capitalista a trabalhador, selando, em definitivo, seu caráter de igualdade formal e reiterando a percepção superficial de que se trata de um ajuste equânime. Isso não significa que o direito produza a interversão. Significa que a forma jurídica não é atingida pela torção dialética. Para ser mais exato, o direito acompanha a aparência invertida de equivalência e ajuda a disfarçá-la, na medida em que reitera, com sua forma alienada, a aparência de equidade do contrato de compra e venda da força de trabalho.

Eis o fundamento material a partir do qual se deve pensar a chamada ideologia jurídica. Não se trata apenas de assinalar que o direito, como forma, encobre o conteúdo econômico, de modo que faz surgir a aparência de que as relações jurídicas é que dão ensejo às relações econômicas. Também é insuficiente afirmar que seu núcleo essencial consiste em fazer de todo indivíduo, naturalmente, um sujeito de direito (ALTHUSSER, 1985, p. 93).

A questão fundamental gira em torno de compreender que o próprio direito se assenta numa aparência econômica objetiva, isto é, no caráter de falsa equivalência da compra e venda da força de trabalho. O fenômeno jurídico não cria a aparência, pois ela o antecede. Mas, ao recobri-la com sua forma, o direito impede que se tenha acesso ao caráter essencial da relação, qual seja, sua natureza exploratória.

Na medida em que a passagem da equivalência à expropriação consiste numa torção dialética, ou seja, uma vez que se mantém a aparência de igualdade nos termos da equação original de compra e venda da força de trabalho (D-FT), a forma jurídica permanece intacta em seu significado, quer dizer, aparece como se, de fato, fosse uma relação jurídica do mesmo tipo daquela que tem lugar na troca direta (M-M), circulação simples (M-D-M) ou na circulação do dinheiro como capital (D-M-D’).

Assim, não se percebe nenhuma interrupção no mercado econômico de trocas de bens, tanto quanto não se verifica nenhuma lesão ao sistema de contratos que expressam este mercado. Sob o aspecto formal, em todos os casos se verificam ajustes de vontades entre sujeitos de direito iguais, livres e autônomos. É por isso que o direito do trabalho aparece como direito, tanto quanto a Justiça do Trabalho, como justiça. Evidentemente, tanto aquele como esta fundam-se em aparências invertidas de relações expropriatórias que, no fundo, não expressam senão sintomas de relações mais profundas e imperceptíveis neste nível da apresentação categorial, que são as relações entre as classes sociais. De fato, Marx observa:

Certamente, o quadro é inteiramente diferente quando consideramos a produção capitalista no fluxo ininterrupto de sua renovação e, em vez do capitalista individual e o trabalhador individual, consideramos a totalidade, a classe capitalista e, diante dela, a classe trabalhadora. Com isso, porém, introduziríamos um padrão de medida estranho à produção de mercadorias (MARX, 2013, pp. 661-662; 1962, p. 612).

A perspectiva jurídica gira em torno de relações pactuadas entre pessoas. O trabalhador ou a trabalhadora contratam com o capitalista ou com a empresa, que é uma pessoa jurídica. O contrato de trabalho une duas singularidades e a Justiça do Trabalho resolve, como regra geral, demandas individuais. Centrado no ponto de vista do sujeito de direito, a aparência de juridicidade do contrato de trabalho e da justiça trabalhista são confirmados pela práxis empírica do movimento econômico.

Quando, no entanto, amplia-se a perspectiva, passando-se do indivíduo para as classes sociais, percebe-se que tanto o contrato de trabalho, como a Justiça do Trabalho são ressignificados e compreendidos como formas e mecanismos de dominação de classe.

A apresentação da interversão é um dos momentos mais importantes no contexto da estrutura categorial de O capital. Ela revela como obtenção capitalista do excedente econômico ocorre por intermédio de uma relação de valor de idêntica magnitude, o que produz a aparência invertida e socialmente objetiva de que o sistema opera na base da equivalência. Como afirma Rui Fausto, no entanto, “é impressionante constatar como o conteúdo desses textos, e mesmo, simplesmente, seu sentido geral, foi ignorado ou mal conhecido” (FAUSTO, 2021, p. 30).

5. Norma positivada pelo Estado e bloqueio do acesso à interversão

A compreensão da lei de propriedade privada sob capital exige que se entenda o papel desempenhado pela norma positivada pelo Estado, seja no nível legislativo, executivo ou judiciário. Esta norma, como não poderia deixar de ser, é formulada a partir das aparências objetivas que conformam a superfície da sociedade capitalista.

Aquilo que a teoria tradicional chama de “direito”, ou seja, o conjunto de textos normativos elaborados pelos poderes estatais constituídos, tem como ponto de partida a observação empírica do funcionamento da sociedade capitalista. Portanto, o conteúdo destes textos apenas reproduz a aparência objetiva que se verifica na realidade, visando à unificação e padronização das respostas estatais possíveis e necessárias ao funcionamento do organismo social, sobretudo nas hipóteses em que os contratos são descumpridos.

Assim, as normas estatais reproduzem, no nível textual, a mesma lógica que se encontra nas relações sociais em que o direito se verifica na realidade, isto é, nas trocas diretas de mercadorias (M-M); na circulação simples (M-D-M); na circulação do dinheiro como capital (D-M-D’) e na compra e venda da força de trabalho (D - FT). As três primeiras dão ensejo a relações sociais essencialmente jurídicas. A última aparece como relação jurídica e assim é captada pelo legislador, embora, sem sua essência, seja uma relação de exploração.

Nesse sentido, a norma estatal assume como pressuposto único e verdadeiro: que a força de trabalho, sob a designação de “serviço”, poder ser livremente alienada pelo trabalhador ou trabalhadora, sem qualquer empecilho ou coerção; que o empregado e a empregada são legítimos proprietários de suas capacidades laborativas, tanto quanto o empresário o é dos meios de produção, merecendo, os dois lados, ampla proteção legal; que ambas as partes são sujeitos de direito, ou seja, dispõem livremente de suas vontades, aptas a contratar; e, finalmente, o mais importante, que o salário pactuado remunera a totalidade da jornada de trabalho executada pelo indivíduo, e não apenas parte dela.

Como as relações jurídicas são relações de equivalência, em que o sujeito de direito pode usar, gozar e dispor de suas coisas desde que lhe seja dado, em contrapartida, uma quantidade de valor de idêntica magnitude, o chamado “direito de propriedade”, isto é, o conjunto de textos normativos que a teoria tradicional entende como tal, reproduz esta lógica na medida em que inscreve aquela cláusula como conteúdo dotado de força cogente.

Ao fazê-lo, no entanto, mantém intacta a relação de exploração que tem lugar no momento mais fundamental da produção capitalista, que é a compra, venda e o consumo da força de trabalho. Para ser mais exato, a norma que descreve o direito de propriedade, uma vez que parte da relação de compra e venda da força de trabalho e a percebe desde sua aparência, isto é, como relação de equivalência, reitera a forma jurídica ilusória produzida pela relação econômica, ajudando, com isso, a ocultar o acesso à interversão.

É preciso que fique bem claro: o direito não produz a interversão. No âmbito da relação de trabalho, a forma jurídica é resultado dela. Uma vez que o direito é expressão da aparência objetiva de equivalência do contrato de trabalho, a forma jurídica apenas reitera e densifica esta aparência, mas não a produz. Ao fazê-lo, no entanto, o direito, como expressão formal que é, ajuda a mistificar e bloquear o acesso à interversão, entre outras razões, porque a forma jurídica consegue se autonomizar da relação econômica, já que se funda na dimensão de valor das mercadorias, e não em seus valores de uso.

Assim, o direito de propriedade privada no capitalismo é, em essência, um direito da expropriação, isto é, um não direito. Para ser mais exato: do ponto de vista dialético, a lei de propriedade privada sob o capital é essencialmente uma lei de expropriação que, no entanto, aparece de modo invertido, como lei jurídica, ou seja, como norma que resguarda a aptidão da pessoa de usar, gozar e dispor do que é seu, em contrapartida a um equivalente.

Trata-se de uma lei econômico-social, do “mundo do ser”, pela qual se produz o mais-valor, mas no interior de uma relação de valor. O prolongamento da jornada de trabalho e sua intensificação produzem, após determinados ciclos de acumulação, a interversão da lei de apropriação, que deixa de se fundar no trabalho próprio e passa a se sustentar na apropriação de trabalho alheio. Esta é a lógica oculta do sistema.

A interversão, no entanto, mantém a aparência invertida e socialmente objetiva de que a compra e venda da força de trabalho é uma relação de equivalência e, portanto, jurídica. A norma “jurídica” produzida pelo poder estatal, isto é, o texto positivado cujo conteúdo é um “dever-ser”, expressa apenas as relações de equivalência captadas a partir da superfície da sociedade, ajudando a ocultar a essência econômica expropriatória.

Ruy Fausto foi quem primeiro colocou em evidência a importância da interversão no que concerne à exata compreensão do fenômeno jurídico. No Tomo II de Marx: Lógica e Política, observa:

Chegamos assim ao direito enquanto direito positivo, enquanto lei posta pelo Estado. Mas por que a relação jurídica deve ser posta enquanto lei? O começo da resposta, mas só o começo, se obtém comparando a relação jurídica enquanto lei com a ideologia. Como observamos em outro lugar o que caracteriza a ideologia é o bloqueio das significações. A ideologia torna positivo - e esse “positivo” pode igualmente ser relacionado com a noção de posição - aquilo que é em si mesmo negativo, aquilo que contém a negatividade. A essência da ideologia está em “cristalizar”, no seu momento positivo, um discurso que se interverte em seu contrário. Ela funciona como bloqueio, freio da - isto é, contra a - interversão (...) Poder-se ia dizer a mesma coisa a propósito da fixação da relação jurídica enquanto lei do Estado. A posição da relação jurídica enquanto lei do Estado “nega” o segundo momento e só faz aparecer o primeiro, exatamente para que, de maneira contraditória, a interversão do primeiro momento no segundo possa se operar na “base material”. O Estado guarda apenas o momento da igualdade dos contratantes negando a desigualdade das classes, para que, contraditoriamente, a igualdade dos contratantes seja negada e a desigualdade das classes seja posta (FAUSTO, 1987, pp. 299-300, passim).

Até que ponto a lei posta pelo Estado significa a posição da relação jurídica, é um assunto do qual não podemos nos ocupar neste momento. De qualquer maneira, a eficácia social da forma jurídica é mais acentuada do que supõe Fausto. Uma leitura apressada desta tese deu ensejo a uma série de incompreensões no interior da crítica do direito (GRAU, 2000).

De toda forma, se o Estado positiva uma lei que bloqueia o acesso à interversão, isto é, a percepção de sua ocorrência, isso se dá porque a forma jurídica que expressa a compra e venda da força de trabalho já o fez, isto é, já bloqueou o acesso à torção dialética.

A lei estatal tem como base uma forma jurídica que, por sua vez, está baseada numa aparência invertida e objetiva produzida pela própria relação econômica. Ademais, vale pontuar que a lei posta pelo Estado é mais um resultado da desigualdade de classe capitalista, do que uma causa, como o texto de Fausto, de alguma maneira, sugere. A interversão não ocorre porque o Estado positiva uma lei que reproduz a lógica jurídica de equivalência, mas a positivação normativa tem lugar porque fundada na aparência invertida e objetiva produzida pela interversão. De resto, o desenvolvimento de Fausto é perfeito.

Este padrão de equivalência jurídica, cuja origem sistêmica e, portanto, lógica, é a compra e venda da força de trabalho (o contrato de trabalho), é generalizado pelos mais diversos âmbitos de sociabilidade capitalista, adaptando-se às relações sociais conforme suas naturezas específicas. É um padrão que molda todo tipo de contato social entre indivíduos, em que se vislumbra, ainda que num horizonte apenas longínquo, o envolvimento de uma magnitude de valor, mesmo que potencial.

Assim, no direito privado, que remete à origem histórica das relações jurídicas e, por isso, apresenta o desenvolvimento teórico mais antigo e consistente, o padrão de equivalência encontra-se claramente no direito civil, em especial na disciplina dos contratos, obrigações e responsabilidade. Aquele ramo do direito é o mais antigo, pois sua faceta empresarial acompanha as chamadas “formas antediluvianas do capital”, especialmente o capital comercial. No entanto, em razão do caráter fetichista do sistema, é retroativamente validado como ramo por excelência do mundo jurídico, relegando a relação jurídica de trabalho, que é central do ponto de vista lógico, a plano secundário e subordinado.

Como as figuras jurídicas do direito privado lidam com o intercâmbio de coisas mercantis, ou seja, objetos que possuem valores bem determinados, esse ramo expressa, em sua pureza, as relações de equivalência, aparecendo como direito natural da sociedade capitalista. Sua ligação óbvia com o direito romano permite à teoria jurídica tradicional estabelecer uma linha evolutiva firme e consistente, aprofundando as brumas ideológicas que abrangem esse campo do direito.

A partir deste núcleo mais espesso, não é difícil compreender que a forma jurídica, por residir no coração do sistema capitalista, empresta sua lógica às relações que acompanham ou derivam dos contratos, obrigações e responsabilidades, ou seja, deste núcleo duro da figura do sujeito de direito. É necessário, pois, disciplinar o que o indivíduo pode ou não fazer (direito das pessoas); como se mantém e transfere o patrimônio no interior da família e uniões sentimentais (direito de família), no caso de sua morte (direito das sucessões); no âmbito do consumo (direito do consumidor), entre outros.

Por outro lado, nas relações em que o padrão de equivalência não constitui o cerne do vínculo social, mas, ainda sim, giram em torno do paradigma do valor, a forma jurídica também se faz presente, pois a lógica do direito precisa ser reproduzida em momentos de sociabilidade que se distanciam da produção econômica em sentido estrito. Isso ocorre, por exemplo, nas relações em que o Estado está presente. É aquilo que a teoria tradicional chama de “direito público”.

Assim, o direito tributário, embora seja modo indireto de expropriação do trabalho pelo capital, através do Estado, aparece como relação jurídica equânime em que o contribuinte e o Fisco detêm direitos semelhantes. Não há nada mais artificial no mundo jurídico do que a chamada obrigação tributária. No direito administrativo, embora se reconheça o predomínio da posição do Estado, ou justamente em razão deste reconhecimento, parece que o administrado tem prerrogativas especiais, como, por exemplo, a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato. No entanto, sabe-se que, no limite, o fato do príncipe subverte totalmente essa regra. No direito penal, o delito é compreendido como uma espécie de contrato às avessas, de modo que o réu dispõe de todos os direitos relativos à defesa, ainda que, ao final, dependendo de sua classe social, esteja com o destino selado de antemão (PACHUKANIS, 2017, pp. 165-185; 2003, pp. 167-190).

Percebe-se, pois, que a natureza expropriatória da lei de propriedade privada sob o capital, que se firma como norma social geral, aparece nos textos jurídicos de modo invertido, ou seja, como lei jurídica de equivalência.

No âmbito do direito privado esta aparência é descrita naturalmente pela legislação, sendo meramente replicada, sem que seja necessário desvirtuar as categorias. No direito público, em que o momento político se faz presente, ora mais, ora menos acentuadamente, o texto normativo não se limita a replicar as categorias jurídicas, mas precisa adulterá-las, ou seja, moldá-las de forma tal que se ajustem a um tipo de relação em que predomina a discricionariedade absoluta, tal como exigem as circunstâncias políticas. No direito penal, o padrão é mantido ou não em razão da posição de classe do indivíduo sob acusação.

Apenas excepcionalmente a natureza essencialmente expropriatória da lei de propriedade privada é admitida nos textos positivados pelo Estado. É o que ocorre no caso brasileiro, por exemplo, com o art. 243 do texto constitucional, que admite a expropriação de propriedades rurais e urbanas em que se verifiquem o cultivo ilegal de plantas psicotrópicas ou o trabalho escravo.

Como se percebe, o direito sela, em definitivo, o mecanismo exploratório da economia capitalista na medida em que empresta sua forma à lei de propriedade privada. Esta, que essencialmente é norma natural-social de expropriação, aparece como norma jurídica que expressa relações de equivalência. Como em Ulisses, a linguagem jurídica é uma espécie de canto das sereias. O problema é que, no palco real do capitalismo, o trabalhador não pode se amarrar ao mastro.

Conclusão

A lei de propriedade privada sob o capital é uma norma socioeconômica de expropriação, ou seja, de extração de trabalho alheio sem o pagamento de equivalente.

Nesse sentido, é uma norma antijurídica ou de não direito, pois este, como se sabe, significa a vigência social do padrão de equivalência, isto é, a formalização de relações sociais em que valores de uso diferentes são trocados, mas sempre com a manutenção de idênticos valores em jogo. Mudam-se as coisas, mas não se mudam as quantidades de valor.

Nada obstante, esta lei de propriedade funda-se numa relação social que aparece como relação jurídica equitativa. De fato, a compra e venda da força de trabalho aparece como contrato pactuado entre partes iguais, livres, proprietárias e que trocam valores idênticos. Como na superfície da sociedade capitalista a forma-salário corresponde à totalidade da jornada de trabalho, parece que a igualdade jurídica qualifica essencialmente a relação. Trata-se de uma aparência invertida cuja descoberta só pode ser feita uma vez que se tenha em mente o fenômeno da interversão.

A torção dialética, por sua vez, só pode ser percebida depois que a natureza do mais-valor é revelada e somente após a compreensão do processo de acumulação do capital, ou seja, de sua reprodução ampliada. Depois de algumas voltas no ciclo de produção do capital, todo o valor que reinicia o processo já é resultado, em sua totalidade, dos mais-valores produzidos anteriormente e extraídos à classe trabalhadora sem o pagamento de equivalente. A lei de apropriação pelo trabalho próprio passa em seu oposto, ou seja, vira lei de apropriação do trabalho alheio.

Esta torção, no entanto, porque ocorre no interior de uma relação de valor, mantém intacta a aparência de equivalência econômica e, portanto, também a jurídica, da compra e venda da força de trabalho. Assim, os textos normativos estatais que descrevem a lógica jurídica são elaborados à luz do paradigma de aparência invertida e socialmente objetiva de equivalência desta relação. Esta, por sua vez, é relegada a segundo plano, retroativamente, pelas relações civis e empresariais que, à luz da dinâmica fetichizada do sistema, aparecem como as autênticas relações jurídicas.

A lei jurídica não faz mais do que intensificar e bloquear, em definitivo, o acesso à interversão, isto é, à lei socioeconômica real a partir da qual a norma de propriedade privada no capitalismo consiste numa norma de expropriação contínua de trabalho alheio não pago. O direito só é possível porque ancorado no não direito; a liberdade jurídica é a outra face da escravidão econômica.

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Notes

1 A interversão ou torção dialética é categoria que expressa o modo de ser da realidade efetiva capitalista e, por isso, assume, também, natureza epistemológica. Do ponto de vista dialético, o método é um aspecto ou momento da própria realidade, razão pela qual não se pode seccionar as categorias, como o entendimento ou a teoria tradicional geralmente fazem. De resto, Hegel anota: “O método é, desta maneira, não uma forma exterior, mas a alma e o conteúdo, do qual só difere enquanto os momentos do conceito vêm também neles mesmos, em sua determinidade, a aparecer como a totalidade do conceito” (HEGEL, 1995, p. 370).
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