Resenhas
Identidades da Constituição, lutas da democracia: CORBO, Wallace. Identidade constitucional: formação, transformação e crise da Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022.
| CORBO Wallace. Identidade constitucional: formação, transformação e crise da Constituição.. 2022. Rio de Janeiro. Lumen Juris |
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Received: 12 January 2024
Accepted: 03 March 2024
Em sua crítica à Constituição do Império do Brasil, Frei Joaquim do Amor Divino Caneca (1779-1825) escreveu que “uma constituição não é outra coisa, que a ata do pacto social, que fazem entre si os homens, quando se ajuntam e associam para viverem em reunião, ou sociedade” (CANECA, 1976, p. 97). Na melhor tradição do contratualismo liberal, frei Caneca identificava na constituição a grande obra da identidade popular que, desde as grandes revoluções do final do século anterior, tinha se afirmado como a legítima detentora da soberania nacional. Nascida do fechamento da Assembleia Constituinte eleita em 1823, outorgada pelo cetro do imperador, a Carta de 1824 era, pelo contrário, um ato de usurpação, a justificar, inclusive, a ruptura do pacto social e a insurreição armada - a Confederação do Equador, cuja derrota levaria à trágica execução de Caneca, meses depois.
A imagem de um Sujeito moderno (individual ou coletivo) onipotente, substancial, a-histórico e imutável, vem sendo desconstruída por uma longa e multifacetada linha de pensadores, desde Nietzsche até os pós-estruturalistas. Não deixa de ser sintomático, porém, que a teoria constitucional brasileira - que tem como ponto de partida justamente a imagem essencialista do poder constituinte como atributo demiúrgico de uma identidade coletiva pressuposta (o “povo” ou a “nação”) - só agora esteja começando a questionar seus próprios fundamentos centrais. Se a “morte do Sujeito” levou, ao contrário do que se poderia esperar, à multiplicação das subjetividades (LACLAU, 2011, p. 45), abre-se uma oportunidade para os intérpretes do Direito rediscutirem essa concepção algo ossificada entre identificação política e constituição.
Nesse sentido, Identidade constitucional, de Wallace Corbo, é um sopro de ar fresco. Fruto de sua tese de doutorado, defendida no início de 2020, a obra propõe uma articulação teórica inovadora para um termo de uso tão difundido quanto nebuloso no debate jurídico nacional. Ao invés de se restringir a uma análise meramente normativa de qual seria o núcleo essencial de uma Constituição a partir do que dizem o seu texto ou seus intérpretes mais próximos (os juízes), Corbo convida o leitor a olhar para a metade esquecida do conceito: a “identidade” e o problema das subjetividades coletivas. A partir das leituras de Stuart Hall, Charles Taylor e Benedict Anderson, o autor reposiciona a questão nos marcos da “pós-modernidade”: os sujeitos coletivos não são mais entidades dadas pela natureza (como o “povo” ou a “nação” das teorias da titularidade do poder constituinte, tão poderosos quanto abstratos), mas construções históricas mutáveis, narrativas e discursos articulados de forma a engendrar aquilo que não está dado no mero fato natural de se compartilhar uma origem, uma cor de pele ou um idioma. Tais “comunidades imaginadas”, para usar a célebre definição de Anderson, buscam criar uma tradição e um horizonte de expectativas comuns para um agregado de indivíduos e grupos naturalmente dispersos. Ao invés de sujeitos coletivos pré-constituídos, as identidades coletivas são constituídas pelo próprio ato de representação daquela coletividade - um “experimento alucinatório” que está, a bem da verdade, no imaginário da filosofia política desde Hobbes (LESSA, 2019). E a adoção dessa premissa, ainda largamente ignorada pelo constitucionalismo (com exceções devidamente lembradas e trabalhadas pelo autor, como Carl Schmitt, Gary Jacobsohn e Michel Rosenfeld), já bastaria para destacar positivamente a obra de Corbo na doutrina publicista brasileira.
É a partir dessa perspectiva alternativa que o autor retorna ao direito público e busca construir um referencial teórico propriamente jurídico para o tema. Após um breve voo panorâmico sobre o estado da arte na teoria constitucional e no direito comparado de Índia, Colômbia e União Europeia, o livro defende que o conteúdo da identidade constitucional abrange três perspectivas. Pelo lado substancial, ela nomeia as escolhas existenciais, políticas e morais fundamentais tomadas por determinada unidade política, como a adoção do princípio da liberdade ou de um projeto socialista de sociedade. A perspectiva procedimental aglutina os mecanismos de exercício do poder político, como forma de Estado ou sistema de governo. E a perspectiva relacional localiza a constituição nacional na tradição constitucionalista global, definindo suas relações internacionais. Mas essa identificação quase textual de “cláusulas pétreas”, como vimos, não é capaz de esgotar o tema pelo ponto de vista da construção de subjetividades. Daí que a identidade constitucional deve se caracterizar não pela pretensa intangibilidade e univocidade de certos mandamentos constitucionais inafastáveis, mas pela sua mutabilidade permanente, derivada da pluralidade de possíveis articulações interpretativas extraídas do seu texto, narrativas nascidas e colocadas em disputa conforme os contextos históricos e sociais que se apresentem.
Dessa conjugação de características e conteúdos, o autor extrai três funções da identidade constitucional: a constitutiva (é a narrativa sobre a comunidade constitucional que cria essa subjetividade, se bem sucedida); a normativa em sentido estrito (a criação, pela constituição, de determinadas expectativas de conduta e comportamento àqueles que se integram à sua identidade, especificamente amparadas em normas e instituições que buscam concretizar esse dever ser); e a normativa em sentido amplo (uma função crítica que serve de parâmetro normativo de análise social e política dos discursos e práticas que reivindicam para si o atributo de “constitucionais”, não apenas pelos atores do sistema judiciário mas por toda uma “comunidade de intérpretes”). São essas funções normativas, não apenas prescritivas como coercitivas, que singularizam a identidade constitucional perante outras subjetivações de pretensões constitutivas e universalistas em diálogo e tensão consigo, como a nacional. Para tanto, porém, o texto constitucional precisa ter alguma pretensão mínima de efetividade: meras “constituições semânticas”, para usar da classificação de Loewenstein, não constituem identidade própria alguma.
Definidos os termos do referencial teórico, o livro passa a colocá-lo à prova em sua segunda metade, onde entra em discussão a formação das identidades constitucionais. E aqui encontramos a segunda grande ideia original da obra: a “luta pela Constituição”. Indo além das teorias que localizam tal origem apenas em excepcionais momentos fundacionais, como as assembleias constituintes, Corbo defende que a identidade constitucional é produto das lutas sociais ordinárias, nascidas da apreensão do texto constitucional pelos sujeitos históricos em busca de reconhecimento e inclusão. Ao invés de uma obra acabada, a constituição assume a posição de ponto de partida, de instrumento e de ponto de chegada para movimentos sociais que denunciam o desatendimento de pretensões normativas constitucionalmente insculpidas, para construir interpretações inovadoras que os incluam na comunidade constitucional. O conceito - que reúne a “luta pelo Direito” de Ihering com a “luta pelo reconhecimento” de Axel Honneth - usa o caráter variável das identidades políticas para defender que a identidade constitucional está sempre sujeita a ressignificações em suas narrativas, partidas não de cortes iluministas e homens extraordinários, mas de uma agência coletiva permanente que contesta a realidade excludente e, afinal, busca concretizar a própria expectativa de futuro do projeto constitucional. Ao invés de mera ata do pacto, a Constituição vira o gatilho de novos pactos sociais.
Ainda que mutável, toda identidade política que se pretenda estável retém uma necessária resistência à mudança. É nessa tensão que se insere a temática da transformação da identidade constitucional. As lutas pela Constituição podem impor transformações com continuidade - geralmente consolidadas por alguma mudança jurídica, como a emenda ou a mutação constitucional - ou em ruptura com a identidade vigente. Neste último caso, estamos diante de uma crise constitucional, a qual Corbo distingue da mera crise política, que a princípio é controlável pelas regras vigentes. Trata-se do momento em que as aspirações, compromissos e acordos básicos da comunidade são contestados, e a própria utilidade da luta pela Constituição entra em questão.
O livro dedica sua parte final a aplicar o referencial teórico num “estudo de caso”: a Constituição de 1988 e as pretensões e expectativas dos movimentos negro e LGBT. Fruto de intensas demandas e mobilizações sociais, a Constituição brasileira assumiu, em sua trajetória, uma identidade emancipatória, reconhecida mesmo por seus críticos, que a aproxima da tradição das constituições militantes do pós-Segunda Guerra. Ainda assim, o momento fundacional de 1988 se revelou inconcluso do ponto de vista das demandas de reconhecimento do movimento negro (com a exclusão de qualquer previsão de ações afirmativas) e totalmente ausente para o incipiente movimento LGBT, alvo de intenso preconceito nos debates constituintes. A inclusão desses grupos como portadores de direitos se daria pela persistente luta social de movimentos organizados, que adotaram os princípios jurídicos da Constituição como mandamentos a exigirem uma aplicabilidade mais ampla do que aquelas imaginadas pelos constituintes ou pela doutrina jurídica majoritária. Corbo defende, com competência e qualidade, que as memoráveis decisões do STF pela constitucionalidade das cotas raciais, da união homoafetiva e da substituição do nome civil por pessoas trans não foram decisões isoladas, fruto do “ativismo judicial” do tribunal, mas resultantes de multifacetadas lutas populares por interpretações mais expansivas do direito à igualdade, que buscaram reconhecimento não apenas perante o Judiciário, mas também através de medidas executivas, administrativas e legislativas.
A fase atual, porém, parece ser de crise da identidade constitucional brasileira. O autor identifica na aprovação da EC 95/2016 (“Teto de Gastos”) e na eleição de Jair Bolsonaro em 2018 desafios claros ao sentido emancipatório da Constituição, com vistas a uma ruptura identitária. Mas tal reação também gerou importante resistência, que ainda se utiliza largamente dos instrumentos e referenciais da Carta de 1988 para se organizar e representar, mantendo a luta em aberto.
Identidade Constitucional é uma obra densa e cuidadosamente estruturada, sem ser hermética. A reiteração de determinados pontos e conceitos pode, algumas vezes, soar repetitiva, mas é fundamental para reter a ideia central e manter a continuidade da obra. O autor utiliza os pensadores manejados de forma sóbria e adequada, e em nenhum momento se reduz à pura exibição de erudição ou à síntese arbitrária de nomes e teorias totalmente incompatíveis entre si - dois hábitos ainda lamentavelmente disseminados no direito público brasileiro.
Até pela extensão e ambição da tese proposta, é inevitável que uma série de interpelações críticas surjam a partir das escolhas e posições teóricas adotadas. O primeiro ponto sensível é o conceito de “constitucionalismo”, definido como um referencial ético transnacional que contém os ideais do Estado de Direito: a limitação dos poderes do Estado e a proteção dos direitos fundamentais dos indivíduos. Enquanto ideal ético, o constitucionalismo, nos termos da pesquisa de Corbo, é necessariamente emancipatório e democrático, como fica claro na seguinte passagem, baseada nas lições de Gary Jacobsohn: “uma autoridade que não estabelece liberdades vinculadas à tradição constitucional (...) não pode ser considerada constitucional” (CORBO, 2022, p. 35). Após inovar com o conceito “pós-moderno” de identidade, Corbo retorna ao núcleo teórico do neoconstitucionalismo, como é mostrado de forma exemplar na nota 22 de seu livro, quando cita Daniel Sarmento e Cláudio Pereira de Souza Neto e defende que “não se deve abdicar do projeto político-jurídico da Modernidade, mas corrigir os seus desvios e incompletudes, tornando a empreitada ainda mais abrangente e inclusiva” (apud Ibid., p. 23).
Ao nosso ver, a premissa constitucionalista é a parte mais problemática de Identidade Constitucional. A sobreposição axiológica constitucionalismo-emancipação-democracia simplesmente não se sustenta, à luz das mais variadas pesquisas contemporâneas - as quais não se reduzem à “visão cética ou desconfiada das instituições” dos “pós-modernos”, que Corbo afasta de forma brusca na citada nota de rodapé (Ibid., p. 23). A crítica da noção romântica de um constitucionalismo intrinsecamente emancipatório já tinha sido levantada por James Tully (2008), ao expor as íntimas relações dessa tradição com o imperialismo europeu que a impôs pelo mundo. Tal crítica foi reforçada por Linda Colley (2021), em seu alentado estudo sobre a história das constituições escritas, no qual demonstra como tais documentos foram rapidamente assimilados, ao longo do século XIX, para organizar regimes políticos alinhados com o tradicionalismo, o autocratismo político e o colonialismo - com grande êxito. Da mesma forma, abraçar a perspectiva “pós-moderna” de identidade sem levar em consideração os desdobramentos formulados a partir dela por autores como Judith Butler, Jacques Rancière ou Achille Mbembe blinda o (neo)constitucionalismo de críticas necessárias e urgentes. Recentemente, Thula Pires e Ana Luiza Flauzina (2022) demonstraram, a partir das reflexões de Mbembe sobre a relação entre sistema colonial, escravismo e Modernidade, como
o continuum de violência sobre pessoas negras na diáspora africana representa não o desvio ou a antítese dos modelos analisados [a história constitucional franco americana], mas uma presença-ausente sobre as quais se sustentam as promessas modernas. Dito de maneira mais direta, o sistema colonial e o escravismo representam o duplo da democracia e do constitucionalismo. (PIRES e FLAUZINA, 2022, p. 2818)
Dessa forma, “há duplos no processo de definição de como se limita o poder e como se distribui as liberdades (o que se entende por liberdade, inclusive) que não costumam ser explorados pelas leituras mais hegemônicas, ainda que críticas” (Ibid., p. 2818). A história do constitucionalismo no período da “segunda escravidão” e da ocupação imperialista dos séculos XIX e XX foi uma história de “produção de uma noção de unidade ou pertencimento coletivo que tinha como duplo o racismo, o cisheteropatriarcado, o classismo e a manutenção do colonialismo” (Ibid., p. 2821). Insiste-se em negar esse duplo pela lógica do desvio, ignorando-se que essas exclusões eram centrais para aquelas identidades, e não meramente acidentais. Como demonstrado por Marcos Queiroz (2017) e Tâmis Parron (2022), os convencionais de Filadélfia e os constituintes do Rio de Janeiro de 1823 falavam abertamente que os poderes e direitos por eles institucionalizados se aplicariam a partir, e não apesar, da escravização e desumanização de negros e negras, sem que isso fosse considerado incompatível com o constitucionalismo. Afinal, “contrato social” era um privilégio exclusivo daqueles cuja humanidade e racionalidade era inquestionável: homens brancos de ascendência europeia com posses. Se a luta pela Constituição é uma luta pela mudança de sentidos dos direitos fundamentais, ela deve levar em conta que já há um sentido hegemônico contra o qual se combate, o qual muitas vezes é um sentido não-democrático que foi inscrito na Constituição como parte fundamental de sua identidade - e reconhecido por uma comunidade política como tal. Nesses casos, a luta pela emancipação necessariamente será uma luta de ruptura, de desidentificação, e não de atualização, da própria ideia de “Constituição”. Como, porém, a premissa constitucionalista impede que se reconheça um lado autoritário das constituições modernas, tal antagonismo é negado. Daí o absurdo da leitura de Jacobsohn sobre o julgamento de Dred Scott, reproduzida por Corbo (2022, p. 94), pela qual os juízes da Suprema Corte teriam ignorado o “conteúdo aspiracional” do princípio de igualdade da Constituição de 1787. Ela parte do pressuposto de que a Constituição americana sempre fora democrática, e que os Justices não a aplicaram da forma correta. Ignora-se, assim, todo o esforço político de Madison e seus colegas de inserirem a escravidão na Carta como ferramenta de justificação da representação política e da repartição de competências entre União e Estados; e meio século de expansão e consolidação da escravidão em solo americano, antes de movimentos abolicionistas passarem a defender algo que, do ponto de vista constitucionalista dos sulistas, era apocalíptico. Pois a escravidão não era uma zona de não-direito; ela era o próprio fundamento do constitucionalismo atlântico, seja americano, seja brasileiro. Para os escravistas americanos, o julgamento de Dred Scott foi uma “luta pela Constituição” exemplar. Seria necessária uma guerra civil e mais cem anos de segregacionismo para um “conteúdo aspiracional” se tornar fragilmente hegemônico (como a nova ascensão supremacista nos EUA revela). Evidente que os textos constitucionais podem ser usados por movimentos autonomistas e de resistência para fins emancipatórios. Mas tal conexão também entra no jogo de contingência e precariedade que marca o desenvolvimento histórico das identidades coletivas. A sobreposição automática prejudica a reflexão acerca da possibilidade de existir uma tradição de identidades constitucionais parcialmente, ou totalmente, antidemocráticas. A luta pela democracia, muitas vezes na história, foi uma luta contra a Constituição “ideal” do constitucionalismo, com seu duplo de terror e desumanização constitutivos.
Esse problema teórico ainda se desdobra em dois pontos. O primeiro é o excessivo foco na “narrativa”, presente mesmo em pensadores “pós-modernos” da identidade, como Ernesto Laclau, e em autores utilizados no livro, como Anderson e Taylor. O foco nas narrativas como constitutivas de identidades obscurece o fato de que estamos lidando com mulheres e homens reais, pessoas de carne e osso com suas necessidades, ocupações, desejos e faltas. É da organização de corpos que falam, e não apenas de discursos, que estamos falando quando pensamos em comunidades políticas (como o próprio conceito de luta pela Constituição reconhece). Por isso, é estranho que Corbo identifique o constitucionalismo como uma “identidade” por si: ao contrário da identidade constitucional, é difícil vislumbrar que pessoas estão sendo reunidas em comunidade, diretamente, pelo constitucionalismo. Parece mais preciso afirmar que este termo nomeia uma linhagem de normatividades (ou, como Colley propõe, uma tecnologia política). Mais importante: há, nos projetos constitucionais modernos (especialmente quando saímos da sombra confortável da notavelmente emancipatória Constituição de 1988), claramente ideias preconcebidas de humanização que delimitam aqueles que são corpos políticos e aqueles sobre os quais o terror, privado ou de Estado, é liberado. Pensemos em Schmitt: sua teoria da constituição como decisão política fundamental é indissociável de sua teoria da democracia que concebe o povo como uma unidade existencial que deve se contrapor a um inimigo, cuja assimilação pelo reconhecimento é impossível, sob pena de se anular a política. Nesse sentido, a “igualdade” constitucional nunca será a “igualdade” universal e expansiva das Declarações de Direitos - uma divisão que mesmo uma antischmittiana como Hannah Arendt reconheceu ao fazer a crítica dos direitos humanos como um conceito vazio quando fora do enquadramento dos Estados nacionais. Faz falta à análise uma teoria da democracia para lidar com esse problema: o que fazer com os “Outros” da identidade, em especial quando falamos de pessoas reais, e não apenas de narrativas ou discursos abstratamente assimiláveis ao infinito?
A solução sugerida pelo autor, a luta pela Constituição como “luta pelo reconhecimento”, não é suficiente para resolver o problema. A tese honnethiana é importante, e certamente mais adequada aos marcos de um constitucionalismo que se pretenda expansivo e inclusivo. Mas, como demonstrado por Adom Getachew (2016), o “reconhecimento” presume que a história da luta pelos direitos se resume ao desenrolar lógico e natural de uma invenção europeia. Bastaria, assim, integrar a Revolução Haitiana como mais uma das Grandes Revoluções Liberais para formar uma história mais inclusiva dos direitos humanos; e a luta pela Constituição teria como grande objetivo fazer mover essa lógica pré-fixada. Getachew pondera que essa visão, ao invés de reforçar a agência política dos excluídos, na verdade anula o seu potencial inventivo. E, de fato, se as identidades são “constitutivas”, prender sua agenda à atualização de uma tradição anterior significa limitar, prévia e arbitrariamente, sua capacidade instituinte, e por conseguinte a agência política dos excluídos de inventar novos mundos.
Por isso, é preciso livrar a identidade da âncora do constitucionalismo. Por mais que se utilizem nomes já conhecidos, como “liberdade” e “igualdade”, as lutas sociais podem conferir a estes conceitos significados e, mais importante ainda, práticas que são totalmente disruptivas e inovadoras, e que não podem ser reduzidas à mera “realização” de princípios etéreos concebidos por iluministas para homens brancos europeus. Esta foi a novidade do experimento haitiano, como Getachew e Queiroz defendem, e do Quilombo dos Palmares, segundo Thula Pires e Ana Flauzina. Indo além: a lógica do reconhecimento é insuficiente por reduzir o mundo a “incluídos” e “excluídos”. A política, nos espaços marcados pelo colonialismo e pela escravidão, sempre foi uma prática de dominação, pela qual diferentes graus de pertencimento à comunidade política são alocados, de forma a dificultar a formação de movimentos transversais de contestação. A inclusão não resolve essa partilha do sensível desigual (RANCIÈRE, 2009): a estrutura de dominação é capaz de absorver determinadas inclusões para atualizar a hierarquia de (des)humanizações. O reconhecimento de direitos, arrancados pelos movimentos negro e LGBT, pode vir acompanhado da desestruturação do ensino público e da assistência social, ou do aumento da violência policial, numa reação que visa enfraquecer essas conquistas e manter esses grupos subalternizados. Daí que uma luta pela Constituição - se for realmente uma luta pela democracia - pode vir a questionar todo um sistema de dominação, ainda que tributário do constitucionalismo moderno, com vistas não a realizar princípios abstratos supostamente adormecidos, mas a criar novas instituições e relações de vida que rompam com o duplo de violência e exceção do constitucionalismo. Como Pires e Flauzina pontuam, citando Fanon: “ ‘o negro não se torna senhor - quando não há mais escravos, não existem mais senhores’” (apud PIRES e FLAUZINA, p. 2822).
Os termos axiológicos absolutos também impedem que localizemos os pontos de ambiguidade e conflito da identidade constitucional brasileira. É corajosa a defesa de Corbo de que a Emenda do Teto de Gastos atenta contra os direitos sociais, como parte dessa identidade. Corajosa porque é notória a dificuldade da teoria constitucional de tratá-los com a mesma solenidade e sacralidade dos direitos individuais; e porque é igualmente notório que os direitos sociais vêm sendo desconstruídos continuamente, como a ofensiva conjunta dos Três Poderes contra os direitos trabalhistas nos últimos anos demonstra. Da mesma forma, é de se questionar se as partes problemáticas do texto de 1988 - o art. 142, o retrógrado capítulo sobre reforma agrária, a forte autonomização sem accountability adequada do Poder Judiciário e do Ministério Público etc. - podem ser simplesmente desconsideradas como exceções ao conteúdo de sua identidade. E, por fim, uma provocação: não seria o teto de gastos apenas a culminância de uma transformação incremental da Constituição, que nasce nas reformas de desestatização do governo Fernando Henrique e continua até o arcabouço fiscal de 2023, que virou pelo avesso a ordem econômica decidida em 1988, sem que isso tenha sido visto como “crise”? Essa certamente é a visão do neoliberalismo brasileiro, ávido por negar qualquer ligação com o retrocesso democrático iniciado em 2016. De qualquer forma, vê-se que o consenso sobre o sentido emancipatório da Constituição de 1988 talvez não tenha produzido uma narrativa tão coesa como se acredita, e a crise de identidade atual seja, na verdade, o acirramento de uma tensão que começou já na formação do Centrão no Plenário da Constituinte. O que coloca em discussão até que ponto “adotar a Constituição” - e quais partes da Constituição - significou a mesma coisa para todos os atores políticos, ao longo desses 35 anos.
Tais considerações não tiram a importância e originalidade de Identidade Constitucional para o direito constitucional brasileiro. Que as lutas pela Constituição continuem a convergir com as lutas pela democracia, contra as ameaças do autoritarismo de ontem e de hoje.